crenças e devoções em fluxo: notas a respeito da … não é só na imaterialidade do som, como...

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Crenças e devoções em fluxo: notas a respeito da paisagem sonora e dinâmica religiosa na regi ão da tríplice fronteira. Marcelo Ricardo Villena 1 Resumo Na América do Sul, a região conhecida como tríplice fronteira é espaço de intenso fluxo religioso transnacional. Esta zona de intersecção entre três cidades: Ciudad del Este, no Paraguai, Puerto Iguaçu, na Argentina e Foz do Iguaçu, no Brasil. Por todos os lados, cerca de 400 mil habitantes compõem um campo religioso diversificado e complexo, cuja influência se manifesta pelas cidades próximas à região fronteiriça. Estas inter-relações socioculturais se retro-alimentam do intenso fluxo de bens materiais e simbólicos característico desta região. Aqui, neste trabalho, busca discutir, o modo como determinadas práticas religiosas têm se organizado e se mantido neste cenário dinâmico e multiforme a partir da sua “musicalidade”. Nossa perspectiva partirá do método etnográfico para caracterizar as especificidades da paisagem sonora das distintas manifestações de crença/devoção/práticas da/na região. Depois, configuraremos o contexto sócio-histórico dos referidos grupos religiosos, seus fluxos fronteiriços e a relação estabelecida com as práticas sonoras e musicais. E, por fim, discutiremos a emergência do sagrado destas comunidades; com ênfase na tentativa de compreender a relação entre paisagem sonora e diversidade cultural. 1. O som e as práticas religiosas De que forma as religiões se expressam através do som? Esta poderia ser a pergunta inicial de nossa pesquisa em relação às formas de manifestar a fé, religiosidade ou espiritualidade na região conhecida como a Tríplice 1 Mestre em música (UFPR). Doutorando em música (UFMG). Professor de composição musical na UNILA. Pesquisador do Observatório das Religiões na Latino-América. [email protected]

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Crenças e devoções em fluxo:

notas a respeito da paisagem sonora e dinâmica religiosa na região da tríplice fronteira.

Marcelo Ricardo Villena1

Resumo

Na América do Sul, a região conhecida como tríplice fronteira é espaço de intenso fluxo

religioso transnacional. Esta zona de intersecção entre três cidades: Ciudad del Este, no

Paraguai, Puerto Iguaçu, na Argentina e Foz do Iguaçu, no Brasil. Por todos os lados, cerca de

400 mil habitantes compõem um campo religioso diversificado e complexo, cuja influência se

manifesta pelas cidades próximas à região fronteiriça. Estas inter-relações socioculturais se

retro-alimentam do intenso fluxo de bens materiais e simbólicos característico desta região.

Aqui, neste trabalho, busca discutir, o modo como determinadas práticas religiosas têm se

organizado e se mantido neste cenário dinâmico e multiforme a partir da sua

“musicalidade”. Nossa perspectiva partirá do método etnográfico para caracterizar as

especificidades da paisagem sonora das distintas manifestações de crença/devoção/práticas

da/na região. Depois, configuraremos o contexto sócio-histórico dos referidos grupos

religiosos, seus fluxos fronteiriços e a relação estabelecida com as práticas sonoras e

musicais. E, por fim, discutiremos a emergência do sagrado destas comunidades; com ênfase

na tentativa de compreender a relação entre paisagem sonora e diversidade cultural.

1. O som e as práticas religiosas

De que forma as religiões se expressam através do som?

Esta poderia ser a pergunta inicial de nossa pesquisa em relação às formas de

manifestar a fé, religiosidade ou espiritualidade na região conhecida como a Tríplice

1 Mestre em música (UFPR). Doutorando em música (UFMG). Professor de composição musical na UNILA. Pesquisador do Observatório das Religiões na Latino-América. [email protected]

Fronteira, entre o estado brasileiro do Paraná, a provincia argentina de Misiones e o

departamento paraguaio de Alto Paraná, um local de grande fluxo turístico atraído pelas

Cataratas do Iguaçu e o comércio de produtos importados nos países vizinhos. É também

uma região habitada por uma grande diversidade de etnias e culturas, sendo habitual, no

dia-a-dia, escutar pessoas falando chinês, espanhol, alemão, árabe, guarani, italiano, quíchua

ou francês. Essa diversidade linguística e cultural se reflete no campo das crenças: centros

Hare Krishna, templos budistas, mesquitas, igrejas católicas, luteranas, pentecostais,

terreiros de umbanda e candomblé, centros de Santo Daime ou espíritas, igrejas Seijo-no-ie,

ritos indígenas ou grupos de pessoas a procura de novas formas de espiritualidade.

Nossa pesquisa busca compreender as formas em que estes grupos sociais

manifestam sua espiritualidade através do som nesse cotidiano da Tríplice Fronteira, tendo

por base o conceito de paisagem sonora em seu sentido amplo, como concebido nos

estudos do seu criador, o compositor e educador canadense Raymond Murray Schafer:

Denomino soundscape (paisaje sonoro) al entorno acústico, y con este término me refiero

al campo sonoro total, cualquiera sea el lugar donde nos encontremos. Es una palabra

derivada de landscape (paisaje); sin embargo, y a diferencia de aquélla, no está

estrictamente limitada a lugares exteriores. (SCHAFER, 1994, p. 12).

Ao falarmos de paisagem sonora estamos nos referindo tanto ao trânsito dos carros

na rua, que entra pela janela, quanto ao som da água da torneira do banheiro pingando, aos

sons dos pássaros cantando na árvore, ou da nossa própria respiração. Tudo o que está ao

alcance dos nossos ouvidos é a paisagem sonora, incluindo, evidentemente, o som musical.

Ao apropriarmo-nos desse conceito para a pesquisa da produção sonora de grupos

religiosos podemos aludir tanto à música de um culto religioso pentecostal, quanto ao

chamado à oração (Adhan), aos toques de sinos (ou tam-tam), aos gritos proferidos durante

uma possessão espiritual, ao som de orações, os sermões, os toques de atabaques, os sons

corporais de dança (ou procissão). Enfim: podemos aludir a todas as sonoridades presentes

nos ritos e práticas de pregação da fé. Podemos incluir na paisagem sonora religiosa sons

produzidos de forma consciente ou inconsciente, proposital ou não. Assim como

compreender sua dinâmica dentro do espaço ritual (paisagem sonora interna) ou suas

interferências e jogos com a paisagem sonora externa, em que uma fé em particular dialoga

com pessoas de outras crenças.

Desta forma, a Tríplice Fronteira é compreendida como um campo de pesquisa

etnográfica onde observar como acontecem estas dinâmicas do dialogo inter-religioso,

através da visita a rituais privados e públicos, onde podem-se registrar em áudio as

paisagens sonoras para sua posterior análise. Como se comporta esta paisagem? Como os

sons se manifestam no espaço e no tempo? De que maneira manifestam concepções de

espacialidade e temporalidade próprias de uma fé ou cosmovisão? Essa paisagem sonora

prima pelo silêncio ou é plena de sons? As sonoridades do ritual expressam a procura por um

estado meditativo ou procuram manifestar drama, teatralidade ou uma forma de

espetacularização da fé? Os sons dos rituais ficam circunscritos ao âmbito espacial de uma

coletividade específica? Ou ao contrário, o som é usado propositalmente como veículo de

pregação da fé? De que maneira as pessoas do entorno, e que não partilham da fé do grupo

social que está produzindo o som, recebem os sons desses rituais?

Nosso intuito aqui também é destacar a centralidade do som nos cultos religiosos.

Como protagonista do transe místico, seja através da repetição de fórmulas rítmicas (os

ostinatos2 dos cultos afro), da concentração meditativa no timbre dos rituais orientais (como

nos overtones3 dos mantras tibetanos e mongóis), o som é um auxiliar indispensável em

rituais de povos de todos os continentes, em comunhão (ou não) com a dança. É visto

também como uma sorte de “mensageiro” de seres de “outros mundos”, talvez por

manifestar a vibração de algo que nem sempre é visível. O artista futurista Luigi Russolo

aponta essa relação no seu manifesto L’arti dei rumori ao destacar a importância do som na

construção dos ritos religiosos, assim como a influência do pensamento religioso na

construção do pensamento musical:

O som foi atribuído pelos povos primitivos aos deuses, considerado sagrado e reservado

aos sacerdotes, que se serviram dele para enriquecer o mistério de seus ritos. Nasceu

assim a concepção do som como coisa em si, distinta e independente da vida e a música

2 Em música denomina-se ostinato a pequenos trechos rítmicos e/ou melódicos que se repetem. 3 A técnica de overtones, típica de rituais tibetanos e mongóis, consiste na emissão cantada de uma nota grave

sobre a qual se realiza, através de movimentos da cavidade bucal , a filtragem dos parciais harmônicos. Para

entender mais sobre os sons parciais da série harmônica ver MED (1996).

acabou por ser um mundo fantástico por cima da realidade, um mundo inviolável e

sagrado.4

Já para o compositor José Miguel Wisnik:

[...] nas sociedades pré-capitalistas [...] a música foi vivida como uma experiência do

sagrado, justamente porque nela se trava, a cada vez, a luta cósmica e caótica entre som e

ruído. Essa luta, que se torna também uma troca de dons entre a vida e a morte, os

deuses e os homens, é vivida como rito sacrificial. (WISNIK, 1999, p. 34)

Muitos instrumentos musicais, em sua origem foram feitos com restos de um animal

sacrificado: no charango vemos o uso da carapaça do tatu como caixa de ressonância, as

antigas quenas eram feitas de tibias (vários mitos contam que a primeira foi feita com o osso

da namorada morta do herói da lenda – e talvez por isso a música de quena é dolente...), o

ayotl asteca era um woodblock feito de carcaças de tartarugas... também na Europa

podemos mencionar as cordas de violino, feitas originalmente de tripas de gatos (e há

inumeras lendas que vinculam os gatos às bruxas).

Mas não é só na imaterialidade do som, como veículo de entidades invisíveis, ou na

materialidade do corpo vibratório, que traz a “alma” (a voz?) do ser sacrificado, que

podemos entender a relação entre som e espiritualidade. Voltando a Murray Schafer, no

primeiro capítulo de Voices of Tyranny: Temples of Silence (1993) ele aponta diversos textos

religiosos que fazem menção a um som primordial que estaria na origem do universo o

Ursound. Menciona passagens da Bíblia (no livro do Gênesis) em que antes da diferenciação

entre luz e escuridão, “o ‘espírito de Deus’ (que poderíamos conceber como respiração,

pneuma ou vento) se movimenta sobre a ‘escuridão... das profundezas’ (uma metáfora para

o inconsciente).”5 Todos os atos de criação são precedidos ou por uma batida [stroke] ou

pela manifestação sonora de sua intenção: “e Deus disse...”

Após o exame do mito da criação na Bíblia Schafer aponta também a importância do

som (e particularmente da palavra falada) nos mitos do Egito antigo:

4 Tradução nossa. No original: “Il suono fu dai popoli primitivi attribuito agli dèi, considerato come sacro e

riservato ai sacerdoti, che se ne servirono per arricchire di mistero i loro riti. Nacque così la concezione del

suono come cosa a sè, diversa e indipendente dalla vita, e ne risultò la musica, mondo fantastico sovrapposto al

reale, mondo inviolabile e sacro.” (Russolo, 1913). 5 Tradução nossa. No original: “‘the spirit of God’ (which we may conceived as breath, pneuma or wind) moved

over the ‘darkness… of the deep’ (a metaphor for the unconscious).” (SCHAFER, 1993, p. 11).

Atum (às vezes Ra) iniciou a criação subindo das águas abissais (Nun) à primeira colina, de

onde ele, então, trouxe os outros deuses à vida. Atum (Ra) disse: ‘Eu sou o grande deus

que veio à vida por si mesmo.’ [...] A diferenciação em relação à substância primeva só

acontece quando Atum (Ra) nomeia as partes do seu corpo; deste ato de nomear os

outros deuses nascem.6

Além destes casos, aponta para o ato sonoro de proferir palavras “mágicas”, que

“criam” o universo, em mitos maias, hopi, maoris, indianos, etc. (IBIDEM, p. 19-22). Religiões

de diferentes regiões do mundo (e de sociedades organizadas de forma extremamente

diversa) coincidem nesta relação entre palavra sagrada e criação. Por outro lado, o autor

chama a atenção para a palavra falada como forma de comunicação entre deuses e seus

“escolhidos”, como no caso de Moisés, na Bíblia. Schafer comenta, a partir de um trecho que

descreve o relâmpago e o trovão, que a mensagem divina contida nesses fenômenos seria

recebida exclusivamente pelo profeta. (IBIDEM, p.25). Ou seja: o som da voz divina nessas

“mensagens telefônicas” so seria entendido por experts, profetas nas religiões monoteístas,

xamãs nas religiões animistas ou perspectivistas. Mas enquanto esses experts teriam a

capacidade (e a obrigação) de ouvir a(s) entidade(s) divina(s) há uma segunda prática

auditiva, a dos fieis que se congregam para “aprender” com esses profetas e xamãs. Em

muitos casos, como na tradição indiana, a prática da comunidade não se limita a “ouvir”,

mas também a proferir de forma correta os mantras. Schafer cita o Khândogya-Upanishad

para exemplificar o uso das palavras sagradas em práticas meditativas:

O Khândogya-Upanishad não é, rigorosamente falando, um mito cosmogônico. Pelo

contrário, é uma tentativa de compreender a totalidade da criação em um simples e

compreensível fenômeno, o som sagrado do udgîtha Om.7

Pronunciar o Om seria, desta maneira, uma forma de cancelar as consciências

individuais e ativar uma unidade de consciência com o universo. Schafer, então, reflete que o

som parece ser empregado inicialmente para criar a distinção (diferenciação) das

6 Tradução nossa. No original: “Atum (sometimes Re) iniciated creation by climbing out of abysmal waters

(Nun) onto a primeval hill where he then brought the other gods into being. Atun (Re) says: ‘I am the great god

who came into being by himself’ […] the differentiation of the primal substance only begins when Atun (Re)

names the parts of his body; from this naming the other gods are born.” (IBIDEM, p. 14). 7 Tradução nossa. No original: “The Khândogya-Upanishad is strictly speaking not a cosmogonic myth. Rather is

an attempt to compress the whole of creation into a single comprehensible phenomenon, the sacred sound of the

udgîtha Om.” (IBIDEM, p. 20).

consciencias (nos mitos de criação), para posteriormente servir exatamente para o contrário,

apagar essa divisão e tornar tudo unido. Nesse ponto é inevitável lembrarmos de dualidades

como tonal e nagual (nas obras de Carlos Castaneda) ou do apolíneo e dionisíaco em

Nietszche. Schafer, no entanto, relaciona a questão com a psicanálise e a divisão entre

consciente e inconsciente. E nestas “passagens” (nesse ato de transitar) entre consciente e

inconsciente o som teria um papel fundamental:

O som provê pelo seu ritmo e tempo um senso de movimento de um estado a outro, da

consciência para a pré-consciência, com o longo tono unificado nos conduzindo para trás e

a explosão abrupta nos conduzindo para frente. De alguma forma o som não pertence a

nenhum dos dois estados, mas parece pairar em cima do limite entre ambos.8

Entende-se desta maneira, a importância e centralidade do som nos ritos e

cerimônias religiosas: como forma de criar temporalidades diversas à temporalidade

cotidiana, como forma de induzir o transe, como forma de meditação, como forma de

manifestar os nomes divinos. Estas sonoridades compõem, desta maneira a paisagem sonora

dos ritos e estão carregadas da visão de mundo expressa por esses coletivos humanos.

2. A construção das paisagens sonoras

Neste ponto devemos voltar à conceituação de paisagem sonora, lembrando que,

diferentemente da definição de paisagem (visual), é um conceito que se refere tanto a

espaços internos (fechados) quanto a os externos (rua, campos, matas, etc.).

Devemos compreender que o som produzido por eventos religiosos ou manifestações

espirituais podem ser feitos em ambos espaços. Tomando por exemplo o grupo Hare Krishna

de Ciudad del Este, sabemos que eles fazem rituais em espaços fechados e procissões na

rua. É evidente que estas duas atividades tem intenções diferentes e que, por extensão, a

paisagem sonora variará. Sem contar que no espaço aberto há interferências de outros

fenômenos sonoros que se integram, rivalizam ou coexistem com os sons que formam parte

8 Tradução nossa. No original: “Sounds provides by its rhythm and timing a means of moving from one state to

another, from consciousness to preconsciousness, with the long unified tone drawing us back and the abrupt

burst of sound drawing us forward. In a sense sound seems to belong to neither state but hovers on the verge of

each.” (IBIDEM, p. 22).

essencial do rito. Se nos espaços internos o som pode nos falar muito sobre a “musicalidade”

própria do ritual, sobre a estrutura “dramática”, ou sobre a “paralização” meditativa do fluxo

temporal, quando esses sons são inseridos no espaço urbano entram em questionamento as

relações que este grupo social “joga” com os outros grupos que partilham desse entorno.

Mas não devemos esquecer também que mesmo o som que é feito para um ritual

fechado, “entre quatro paredes” pode atravessar esse ambiente e “invadir” o ambiente dos

outros, propositalmente ou não. Schafer menciona, neste sentido, o som dos sinos das

igrejas cristãs, ou o chamado à oração, típico dos lugares habitados pelo Islam. Em

Tenochtitlán os templos astecas anunciavam o amanhecer com os toques dos tambores e as

flautas de caracóis, numa paisagem sonora que estimula nossa imaginação:

[...] Antes de romper o dia, os astecas despertavam à vida com o rugir dos tambores de

duas línguas9 dos grandes templos, já que cada um dos teocalli10 de toda a cidade repetia

o sinal do templo maior. Quando aparecia para eles Venus,11 a estrela matutina, por volta

das quatro da manhã, nascia o dia e os caracóis tocados pelos sacerdotes uniam-se ao

estrépito, enquanto todos os outros templos respondiam em contraponto. (HAGEN, 1964,

p. 71).

Vista à distância, parece-nos uma paisagem sonora extremamente harmoniosa e

unânime, em que todo mundo, aparentemente, partilhava da mesma fé. A paisagem sonora

das nossas cidades modernas, ao contrário, parece-nos cheia de conflitos e luta por poder,

por dominar o espaço sonoro. Neste momento de escrita, por exemplo, chega pela janela o

som de música gospel cantada em alto volume por pessoas que devem estar saindo,

eufóricas, de um culto neo-pentecostal. Enquanto pessoas que não tem apreço por esse tipo

de fé expressam irritação diante desse tipo de manifestação “espontânea” por se sentir, de

alguma forma “invadido” ou “incomodado”, pessoas que professam essa religiosidade

declaram que tais atitudes são derivadas da “alegria da fé” e o desejo de “espalhar” essa

alegria.

9 O autor provavelmente se refere ao teponaztli, que tem duas membranas de madeira em forma de linguetas:

<http://www.mexicolore.co.uk/index.php?one=azt&two=art&id=103> 10 Pirâmide consagrada ao culto de um deus. 11 Venus, a estrela matutina simbolizava Quetzalcóatl, a serpente emplumada, deus da agricultura e da cultura:

“La muerte de Quetzalcóatl en Tlapalan es también Venus cuando se hunde em el poniente” (CARDENAL,

1988, p. 25).

Ambas paisagens sonoras, a interna e a externa, revelam muito da cosmovisão de um

grupo religioso. Se focarmos nossa atenção na paisagem sonora interna há de se considerar

todos os elementos implicados no rito como uma forma de construção de um “mundo

ideal”. Nesse sentido, a disposição espacial do rito, a construção do espaço arquitetônico diz

muito a respeito das relações de poder, das tensões sociais e constroem esse jogo

dramático, esse espaço ideal meditativo, esse espaço performático, esse “espetáculo” da fé.

Os cultos cristãos, em geral, apontam para uma organização frontal e hierárquica que

no mundo do teatro é conhecido como palco italiano, em que os “atores” encontram-se na

frente e acima do público. As pessoas devem olhar todas para um local enfrente em que há

uma pessoa de maior hierarquia no rito. Essa relação foi transferida para a maior parte das

experiências estéticas ocidentais, da música de concerto ao cinema. A arte contemporânea

(música acusmática, instalações, intervenções urbanas, etc.) tenta, de certa forma,

transcender o peso dessa tradição cristã.

Diferentemente, os cultos que contém matriz africana ou ameríndia, apresentam

uma relação espacial mais circular. Os terreiros de umbanda e candomblé, mesmo tendo em

algum dos lados um altar onde são dispostos os objetos sagrados (tanto as imagens como os

atabaques rum, rumpi e le), são espaços em que o “drama” acontece no centro. O mesmo

pode-se dizer de rituais indígenas ou do Santo Daime. No Daime, o olhar das pessoas é

focado na cruz ao meio, numa sala que é dividida entre homens e mulheres e onde a

hierarquia é expressa pela proximidade dos “fardados” a esse centro da sala. Se na umbanda

e candomblé olha-se para o centro porque é ali onde dançam os orixás, no Daime olha-se

para o altar. Já nas mesquitas, o olhar devocional é para fora do templo, com a disposição

das fileiras de fiéis dispostas em direção à Meca.

Essas diversas disposições físicas dos fieis no espaço sagrado acabam configurando

uma paisagem sonora particular, algumas gerando maior mistura dos sons, efeitos acústicos

particulares. Observe-se por exemplo, no Daime, a separação por sexos na sala, em um

canto em uníssono. As mulheres, pela diferença de registro vocal, cantarão naturalmente

uma oitava acima da linha melódica dos homens. A sala se divide em alturas diferentes,

sendo que os instrumentos (principalmente os maracás) geram a mistura e a “liga” do som.

Finalmente, deve-se considerar a construção do espaço sagrado, os materiais e sua

capacidade de refletir os sons. É diferente cantar dentro de um espaço feito de madeira do

que dentro de um feito de concreto, estar embaixo do teto alto de uma catedral gótica (e

seu eco demorado) ou sob um teto de palha ou zinco. É diferente cantar com microfone do

que sem amplificação. E há diferentes qualidades dos aparelhos e formas de colocação dos

mesmo no espaço ritual. Devemos nos preguntar, enfim, quando saímos a campo, até que

ponto o espaço construído pelo grupo religioso manifesta o “ideal” da comunidade, já que às

vezes o grupo pode não ter os meios econômicos para construir seu espaço sagrado. Neste

ponto, vale a pena observar os processos históricos que aglutinaram os grupos humanos na

nossa região e de que forma definem as relações sociais e os jogos de poder.

3. Diversidade religiosa na tríplice fronteira

Como mencionamos no início, a região da Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e

Argentina é um campo interessante de estudo das religiões já que, por suas características

peculiares, fomentou o desenvolvimento de atividades de uma grande diversidade de cultos.

Um dos motivos desta diversidade se deve, sem dúvida à facilidade de trânsito entre as três

cidades e, principalmente, ao forte comércio da região. Quando pesquisamos sobre a

presença de comunidades islâmicas e budistas, por exemplo, observamos que a vinda do

grande contingente migratório dos países árabes e da China (notadamente Taiwan e Hong

Kong) aconteceu a partir do fim da década de ’50. Além das motivações para emigrar de seus

países de origem devemos apontar como atrativo as possibilidades que se ofereciam na área

de comércio a partir da fundação de Ciudad del Este (em 1957), fundação ligada à

construção da Ponte da Amizade entre Brasil e Paraguai (1956-1965).12

Tendo em vista Foz do Iguaçu, os primeiros imigrantes árabes chegaram na década de

quarenta, posteriormente outros grupos vieram pelos anos de 1970 e 1990, motivados

principalmente pela grande abertura do comércio paraguaio e qualidade de vida.

(DOMINGUES, HTML)

12 O tratado entre Brasil e Paraguai foi assinado em 1956, a construção da ponte começou em 1959 e a obra foi

concluída em 1965).

A região foi vista, provavelmente, como um local de “prosperidade”, onde o

imigrante contava também com ajuda de conterrâneos para se estabelecer. Foi também o

palco de grandes obras: a já referida Ponte da Amizade e a usina hidrelétrica de Itaipu, que

atraíram pessoas de diversas regiões, tanto do Brasil e Paraguai como de outros países da

América Latina, para sua construção. Muitas dos que vieram para estas obras estabeleceram

residência fixa na região. É importante mencionar que o comércio transfonteiriço também

alimenta a vinda constante de pessoas de diversas regiões do Brasil (cariocas, mineiros,

amazonenses, gaúchos, cearenses) e da América do Sul (argentinos, paraguaios, bolivianos,

peruanos, colombianos), os popularmente chamados sacoleiros: as lojas populares de

grandes cidades como Buenos Aires, Córdoba, La Plata, Porto Alegre, São Paulo ou Belo

Horizonte são alimentadas pelo fluxo contínuo de produtos adquiridos em Ciudad del Este

pelo menos desde a década de ’70.

Todas essas pessoas que habitam ou transitam pela região carregam sua

religiosidade, seus ritos. Em alguns casos, com o esforço comunitário, constroem seus

espaços de culto, como a mesquita Omar Ibn Al-Khatab (1981-83) ou o Templo Budista

(1996), ambos em Foz do Iguaçu. A atual construção da Catedral Nossa Senhora de

Guadalupe na mesma cidade pode ser vista como uma tentativa de “rivalizar” em

imponência e beleza com esses espaços de religiões minoritárias. Assim mesmo, esses três

templos são enxergados pelo mercado local como um forte atrativo turístico para a cidade.

Outras religiões apresentam espaços mais modestos. Além de outros espaços de

culto cristão (católicos, luteranos, pentecostais, ou neo-pentecostais), podem-se encontrar

locais Hare Krishna (Ciudad del Este), terreiros de candomblé, salões Seicho-no-iê, centro de

religiões afro-brasileiras, ou Dai-me, entre outras. Também se escutam relatos de cerimônias

rituais que pretendem resgatar ritos ameríndios xamânicos, de outras regiões da América

Latina em Puerto Iguaçu. No âmbito do espiritismo, além dos típicos centros cardecistas,

existe um grande centro de conscienciologia, uma prática criada por um discípulo de Chico

Xavier, Waldo Vieira. A Tríplice Fronteira foi escolhida para ser o centro desta “ciência do eu”

(e das viagens astrais) por ser um “centro de energias”.13

4. Análise sonora dos grupos religiosos da Tríplice Fronteira

Neste seção avaliaremos a presença destes grupos religiosos na Tríplice Fronteira em

suas manifestações sonoras a partir de observações e escutas pessoais da paisagem sonora

interna e externa dos locais de culto. Nossa intenção é fazer um primeiro mapeamento dos

locais observados, analisando como o som expressa ideias próprias de cada cosmovisão.

Entende-se este trabalho, portanto, como um ponto de partida de uma pesquisa de maior

porte em que serão observados os fenômenos sonoros religiosos da Tríplice Fronteira de

forma minuciosa.

Começaremos identificando a localização dos templos. Através de uma pesquisa

simples na internet14 pode-se constatar que os espaços de religiões afro-brasileira se

localizam majoritariamente em bairros da periferia da cidade (Jardim Panorama, Morumbi,

Porto Meira). Esses centros de umbanda e candomblé normalmente são dispostos em locais

próximos à mata por causa da relação íntima desses cultos com elementos da natureza

(floresta, cachoeiras). Também há uma relação forte com os locais periféricos pela matriz

africana dos cultos e o fato da maior parte da população negra habitar nas periferias. Porém,

também pode se compreender a periferia como um “esconderijo” à represão policial da qual

estas religiões sempre foram objeto. Os templos de origem cristã, ao contário, se distribuem

nas cidades de forma muito homogênea, sejam católicos, evangélicos ou espíritas.

Os Hare Krishna parecem ter seguido a tendência do fundador da ISKCON15, Srila

Prabhupada, no início de suas pregações em Nova Iorque (GOSWAMI, 1995), escolhendo um

local central, rodeado pela vida “mundana”. O local que serve de templo na região situa-se a

13 Como explica o próprio Waldo Vieira no video da reportagem da RPC TV Foz do Iguaçu do dia 14 de

fevereiro de 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/pr/parana/videos/v/mais-de-700-pesquisadores-da-

conscienciologia-escolhem-foz-do-iguacu-para-viver/3148287/> Acesso:17/07/2016. 14 Um dos primeiros resultados é o Blog de Foz , com a postagem “Espaços afro-brasileiros em Foz do Iguaçu”.

Disponível em: <http://blogdefoz.blogspot.com.br/2008/10/espaos-afro-brasileiros-em-foz-do-iguau.html>.

Acesso:17/07/2016. 15 Sigla em inglês para a Sociedade Internacional para a Consciencia de Krischna.

500 metros das ruas principais do comércio de Ciudad del Este. Parece haver uma intenção

explícita de “estar no meio” das pessoas, mostrando uma outra proposta de vida, menos

“materialista”. A mesquita árabe e o templo budista, ao contrário dos Hare Krishna, parecem

procurar um certo afastamento.

Pode-se fazer uma análise simples das interferências sonoras destas comunidades e

suas particularidades na Tríplice Fronteira. O Templo Budista, muito além de sua

imponência, que o torna um cartão postal da cidade, foi construído em um bairro afastado

(Jardim Florença, perto da usina de Itaipu). O fato de estar afastado se relaciona com a

procura proposital pelo silêncio no pensamento budista. Se por um lado o silêncio facilita

que o praticante consiga esvaziar a mente de pensamentos desnecessários, pode ser, ao

mesmo tempo, o próprio objeto da prática meditativa. Na música há um caso pontual para

compreender isso: as composições e os escritos de John Cage, quem estudava budismo com

o mestre Daisetsu Teitaro Suzuki. Para Cage, ouvir o silêncio (a paisagem sonora, em

definitiva) era uma forma de caminho espiritual para assimilar o mundo como ele é, sem a

mediação das nossas ideias preconcebidas.

Os cantos dos praticantes budistas do templo de Foz do Iguaçu, ao mesmo tempo,

em nada interferem na vida cotidiana da cidade. Se comparadas com os canto Hare Krishna,

feitos em alto-volume em uma sala no centro da cidade de Ciudad del Este, somado às

apresentações em vias públicas destes cantos e danças, nos fazem refletir na diferença entre

ambas religiões. Os Hare Krishna, pelo menos desde Srila Prabhupada, parecem dedicados a

“divulgar” sua religião fora do seu ambiente, expressando a “alegria” da sua fé. O budismo

não demonstra através do som essa atitude “missionária”.

Se o Islam em outras regiões do mundo tem uma preocupação similar ao cristianismo

ou aos Hare Krishna de “espalhar” sua fé, em Foz do Iguaçu tem seu comportamento

específico. O chamado à oração é um evento que interfere na paisagem sonora de uma

cidade (cinco vezes ao dia) declarando que há um só deus e o nome do seu profeta. A

mesquita em Foz do Iguaçu foi edificada em um bairro habitado quase exclusivamente por

muçulmanos. Dessa forma, esse chamado perde sua função “propagandística”: é uma

mensagem destinada a uma comunidade específica, que tem seu bairro específico e sua

própria paisagem sonora.

As igrejas pentecostais na Tríplice Fronteira, como é usual em outras cidades, têm

uma atitude de intervenção sonora explícita, de “evangelização”: além do volume sonoro

empregado nos cultos (muitas vezes além do permitido por lei) há pessoas colocadas em

locais público com caixas de som tocando música e pregando o evangelho, locais de trânsito

intenso de pessoas, como o terminal urbano de ônibus. A intenção, evidentemente, é levar a

“palavra de Deus” a todas as pessoas. Mas na cidade de Foz é comum ver um fenômeno

particular que tal vez não seja usual em outros locais: encontrar pessoas cantando hinos de

igreja na porta de hotéis, pessoas que estão hospedadas nesses hotéis e que vieram juntas

para algum encontro evangélico. Cantam, aparentemente, como “recreio” das atividades

dessas viagens, antes de sair passear talvez, de conhecer as Cataratas ou Itaipu. Ao cantar,

intervém na paisagem sonora do centro da cidade e “evangelizam”. Neste sentido também

devemos mencionar relatos feitos por estudantes pesquisadores do ORLA16 de “duelos”

sonoros em bairros afastados. Nos dias de festa em terreiros de religiões afro-brasileiras o

som do batuque do ritual é confrontado ao som mecânico de reprodução de áudios de

música “gospel”, talvez como forma de “exorcizar” o som da religião do outro, que é vista

como “o mal”.

Finalmente, há de se mencionar a austeridade da paisagem sonora da

conscienciologia. Se a localização do Centro de Altos Estudos em Conscienciologia é em um

bairro afastado, procurando talvez o mesmo tipo de afastamento meditativo dos budistas,

chama a atenção o único som incluído na “sala de conferências” e que introduz os

trabalhos: un gong.

Considerações finais

Através deste trabalho trouxemos à tona um universo de pesquisa que será objeto de

futuras análises em próximos artigos: a paisagem sonora gerada pelas atividades religiosas

de diversos grupos humanos da Tríplice Fronteira. Entendemos que a partir da “leitura”

16 Sigla para Observatório das Religiões na Latino-América, grupo de pesquisa interdisciplinar da UNILA.

desta paisagem sonora pode-se compreender muitas questões referentes a estes grupos

humanos e sua cosmovisão. Neste primeiro texto foram apresentadas as bases teóricas,

discriminando a paisagem sonora interna, própria e íntima do ritual, da paisagem sonora

externa, em que acontecem os jogos de poder entre os diversos grupos sociais.

Tentamos também entender as origens das relações entre som e sagrado em diversas

culturas. Compreendemos que a importância dada ao som em diversos ritos provém dos

próprios mitos de origem, em que fica evidente que o som expressa a imaterialidade de

outros mundos. O líder religioso deve ter a capacidade de “escutar” os deuses e “comunicar”

seus mensagens aos fieis. A palavra, em sua manifestação sonora, neste sentido, é

compreendida em muitos mitos como um ato de “criação” do mundo.

Colocamos em questão o espaço ritual religioso, sua configuração arquitetônica,

como espaço de produção do som “ideal” (temporal e espacialmente) no imaginário de uma

comunidade religiosa. Compreendemos a influência que diversos fatores materiais podem

ter nesse som e atentamos para a necessidade de avaliar esses fatores em futuras análises.

Finalmente, relatamos nossas primeiras observações na região da Tríplice Fronteira,

através de saídas a campo e debates com pesquisadores do ORLA, dialogando com nossos

referenciais teóricos. Refletimos, principalmente nas motivações que levam os diferentes

grupos a escolher seus locais de instalação de espaços rituais, de estudo ou devoção, assim

como sua relação pública com outros grupos religiosos. Compreendemos que há nestes

questionamentos um enorme campo de pesquisa. Este trabalho serve como ponto de

partida para estabelecer um roteiro metodológico provisório.

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