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A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. Cozinha simples, mesa farta: os requintes da gastronomia mediterrânea grega antiga (Arquéstrato, séc. IV a. C.) Autor(es): Soares, Carmen Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra; Annablume URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/39652 DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/978-989-26-1191-4_23 Accessed : 26-Dec-2016 22:01:14 digitalis.uc.pt pombalina.uc.pt

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    de Autor e Direitos Conexos e demais legislao aplicvel, toda a cpia, parcial ou total, deste

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    este aviso.

    Cozinha simples, mesa farta: os requintes da gastronomia mediterrnea grega antiga(Arqustrato, sc. IV a. C.)

    Autor(es): Soares, Carmen

    Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra; Annablume

    URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/39652

    DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/978-989-26-1191-4_23

    Accessed : 26-Dec-2016 22:01:14

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    Joaquim Pinheiro Carmen Soares (coords.)

    Patrimnios Alimentares de Aqum e Alm-Mar

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

    ANNABLUME

    OBRA PUBLICADA COM A COORDENAO CIENTFICA

    Srie DiaitaScripta & RealiaISSN: 2183-6523

    Destina-se esta coleo a publicar textos resultantes da investigao de membros do

    projeto transnacional DIAITA: Patrimnio Alimentar da Lusofonia. As obras consistem

    em estudos aprofundados e, na maioria das vezes, de carcter interdisciplinar sobre

    uma temtica fundamental para o desenhar de um patrimnio e identidade culturais

    comuns populao falante da lngua portuguesa: a histria e as culturas da alimentao.

    A pesquisa incide numa anlise cientfica das fontes, sejam elas escritas, materiais ou

    iconogrficas. Da denominar-se a srie DIAITA de Scripta - numa aluso tanto traduo,

    ao estudo e publicao de fontes (quer inditas quer indisponveis em portugus, caso

    dos textos clssicos, gregos e latinos, matriciais para o conhecimento do padro alimentar

    mediterrnico), como a monografias. O subttulo Realia, por seu lado, cobre publicaes

    elaboradas na sequncia de estudos sobre as materialidades que permitem conhecer a

    histria e as culturas da alimentao no espao lusfono.

    Joaquim Pinheiro professor auxiliar da Universidade da Madeira (Faculdade de

    Artes e Humanidades) e investigador integrado do Centro de Estudos Clssicos e

    Humansticos (Universidade de Coimbra). Tem desenvolvido investigao sobre a

    obra de Plutarco, a mitologia greco-latina, a retrica clssica e o pensamento poltico

    na Antiguidade Clssica. membro do Projeto DIAITA - Patrimnio Alimentar da

    Lusofonia (apoiado pela FCT, Capes e Fundao Calouste Gulbenkian). Desde 2013,

    coordenador do Centro de Desenvolvimento Acadmico da Universidade da Madeira.

    Carmen Soares Professora Associada com agregao da Universidade de Coimbra

    (Faculdade de Letras). Tem desenvolvido a sua investigao, ensino e publicaes

    nas reas das Culturas, Literaturas e Lnguas Clssicas, da Histria da Grcia Antiga

    e da Histria da Alimentao. Na qualidade de tradutora do grego antigo para

    portugus coautora da traduo dos livros V e VIII de Herdoto e autora da

    traduo do Ciclope de Eurpides, do Poltico de Plato e de Sobre o afecto aos

    filhos de Plutarco. Tem ainda publicado fragmentos vrios de textos gregos antigos

    de temtica gastronmica (em particular Arqustrato). coordenadora executiva

    do curso de mestrado em Alimentao Fontes, Cultura e Sociedade e diretora do

    doutoramento em Patrimnios Alimentares: Culturas e Identidades. Investigadora

    corresponsvel do projeto DIAITA-Patrimnio Alimentar da Lusofonia (apoiado pela

    FCT, Capes e Fundao Calouste Gulbenkian).

    Os estudos reunidos neste volume refletem, de uma forma geral, sobre a alimentao

    enquanto elemento de extraordinrio valor cultural e identitrio. Com abordagens

    diversas ao patrimnio alimentar, seja numa perspetiva lingustica, seja numa anlise mais

    literria ou cultural, com o devido enquadramento histrico, social e espacial, o conjunto

    dos trabalhos reala a importncia desta temtica, desde a Antiguidade Clssica at aos

    nossos dias. Na verdade, a alimentao e tudo o que com ela se relaciona conduzem-nos

    por uma viagem reveladora da forma de vida do homem e do seu relacionamento com a

    natureza e com outros seres vivos.

    Os trinta e quatro contributos da obra esto reunidos nos seguintes captulos: 1.

    Alimentao: patrimnio imaterial; 2. Alimentao e patrimnio literrio; 3. Alimentao

    e patrimnio lingustico; 4. Alimentao: sade e bem-estar; 5. Alimentao: sociedade

    e cultura; 6. Alimentao e dilogo intercultural. Com este volume pretende-se tambm

    abrir perspetivas sobre novos domnios de pesquisa do patrimnio alimentar como fonte

    de saber essencial para a atualidade.

    9789892

    611907

  • Cozinha simples, mesa farta.Os requintes da gastronomia mediterrnea

    grega antiga (Arqustrato, sc. IV a. C.)Plain cooking, plentiful fare.

    The pleasures of ancient Greek Mediterranean gastronomy (Archestratus, 4th century BC)

    Carmen SoaresUniversidade de Coimbra, Faculdade de Letras

    Centro de Estudos Clssicos e HumansticosProjeto DIAITA: Patrimnio Alimentar da Lusofonia

    ([email protected])

    Resumo: A leitura que fazemos dos fragmentos do poeta siciliano Arqustrato visa demonstrar que o autor se distingue de prticas culinrias contemporneas, que davam fama de cozinheiros requintados a outras figuras oriundas da Magna Grcia. Com base na anlise das informaes que, nessas obras e nos testemunhos que sobre elas nos chegam, colhemos sobre pratos, servio e ambiente do banquete somos levados concluso de que o catlogo gastronmico de Arqustrato pode ser interpretado como uma proposta gastronmica inovadora no contexto do sc. IV a. C. A apologia da simplicidade (visvel na elaborao de preparados pouco condimentados) e da aposta numa cozinha natural (apoiada sobretudo em ingredientes de qualidade) ressalta dos versos do gastrnomo grego como evidncia de uma mesa de delcias, bem diversa da ento conhecida variedade siciliana. Dividimos o presente estudo em quatro partes distintas e capazes de demonstrar a razoabilidade da nossa proposta de interpretao: 1. Introduo; 2. Retratos literrios das mesas de delcias; 3. A mesa de delcias de Arqustrato: tradio e inovao; 4. Concluso. Palavras-chave: Gastronomia, Arqustrato, Grcia Clssica, estoicismo, epicurismo, mesas de delcias, mesas de sobrevivncia, Plato, Livros de Culinria.

    Abstract: The reading we make of the Sicilian poet Archestratus fragments aims to demonstrate that the author is distinguished from contemporary culinary practices which gave fame for fine cooks to other figures coming from the Magna Graecia. Drawing on the analysis of these pieces of information learnt from these works and the testimonies gathered about them, on plates, meal service and banquet environment, we are led to conclude that Archestratus gastronomic catalogue may be interpreted as an innovative gastronomic proposal in the context of the 4th cen-tury B.C. The apology of simplicity (evidenced in little spicy recipes) and natural cooking (supported mainly on quality ingredients) stands out from the verses of the Greek gourmet as evidence of a table of delights, quite different from the so-called Sicilian variety.

    DOI: http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1191-4_23

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    Carmen Soares

    Our study is divided into four distinct parts likely to demonstrate the reasonability of our proposal for interpretation: 1. Introduction; 2. Literary portraits of the table of delights; 3. Archestratus table of delights: tradition and innovation; 4. Conclusion.Keywords: Gastronomy, Archestratus, Classical Greece, stoicism, epicureanism, table of delights, table of survival, Plato, Cookbooks.

    1. Introduo

    O ttulo e subttulo do presente estudo suscitam uma reflexo prvia sobre conceitos-chave em termos de enquadramento terico anlise da fonte literria sobre a qual nos propomos debruar: os fragmentos do poema de temtica gastronmica Iguarias do Mundo Grego do siciliano Arqustrato1.

    Cozinha remete-nos para produtos-ingredientes, utenslios e tcnicas culinrias.

    Mesa cobre tanto o servio e consumo dos bens alimentares (quer os cozinhados quer os consumidos crus), como cdigos de comportamento e sentidos dos atos de servir, servir-se e ser servido ( mesa).

    Gastronomia, termo de origem grega, precisamente usado como um dos ttulos que na Antiguidade (segundo o testemunho de Ateneu, compilador dos fragmentos a chegarem aos nossos dias) a obra de Arqustrato recebeu, significa, literalmente, estudos do estmago. Note-se, no entanto, que o termo gastronomia era um neologismo, construdo a partir da juno do sufixo nomia (equivalente ao sufixo logia), de valor cientfico reconhecido2, ao nome comum gaster (estmago). O sarcasmo subjacente a este ttulo residia em equiparar os conhecimentos sobre os prazeres da comida e da bebida a uma cincia. Ou seja, quando nasce, no sc. III a. C., presumivelmente da autoria do filsofo estico Crisipo, a palavra gastronomia vem envolta numa

    1 Sobre os diversos ttulos que a obra recebeu na Antiguidade, leia-se Testimonia 2, 5 e 7 Olson-Sens. A justificao para a traduo que propomos do ttulo grego mais consensualmente aceite entre os seus comentadores contemporneos (Hedypatheia) j a apresentmos noutro lugar (Soares 2012a: 35). da conjugao do sentido literal do termo grego (significando letra experincia dos prazeres) com a temtica da obra (identificada no frg. 3 com a melhor comida e bebida, a que os Gregos da Europa e da sia tm acesso, segundo indicaes dos frgs. 1 e 2) que chegamos traduo livre Iguarias do Mundo Grego. Note-se que, relativamente a estu-dos anteriormente publicados (em que propusemos o ttulo portugus Iguarias do Mundo), entendemos acrescentar o adjetivo tnico grego traduo livre por ns sugerida para o ttulo da obra, por forma a no induzir o leitor moderno em erro. Impe-se, neste caso, clarificar para os no entendidos em Histria da Grcia Antiga, que os limites geogrficos do mundo grego de ento (sc. IV a. C.) eram bem mais alargados que os da Grcia atual (abrangendo a regio do Mar Negro, Turquia, Egipto, Itlia do sul e Siclia apelidadas estas duas com a designao de Magna Grcia).

    2 Com esse valor servira para designar o poema pseudo-hesidico Astrologia, ou seja a Cin-cia das estrelas (Olson-Sens: xxiii).

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    Cozinha simples, mesa farta.Os requintes da gastronomia mediterrnea grega antiga (Arqustrato, sc. IV a. C.)

    conotao pejorativa3. No obstante o sentido que poca o termo gastro-nomia adquiriu nesse meio intelectual e filosfico em que se empregou, a verdade que a valorizao do prazer, gosto ou fruio, obtidos no apenas do consumo, mas tambm do ambiente (material e humano) que envolve a refeio, surgem j nos fragmentos da obra de Arqustrato como princpio fundacional da sua relao com a mesa. Estamos, por isso mesmo, perante um autor que no sc. IV a. C. procede ao canto da gastronomia como ela hoje assumida. A receo de uma obra desse gnero no reuniu consensos na Antiguidade, no esperemos, por isso, que sobre ela (em particular sobre a sua tipologia), para mais sendo uma obra to fragmentada, possam hoje os comentadores estar de acordo4.

    Mas o facto de ser uma obra polmica, i. e., capaz de gerar opinies to diversas, deve ser por ns sublinhado como uma evidncia clara de que se tratou, na sua poca, de um produto literrio disruptivo. nesse seu perfil contrastivo com mentalidades e prticas vigentes que residem, conforme procuraremos demonstrar no seguimento da nossa anlise, as causas para as apreciaes pejorativas que Ateneu (no sc. III d. C.) e as fontes prximas do autor (dos scs. IV e III a. C.) tecem a seu respeito e da influncia da sua obra nos meios intelectuais contemporneos. Perceberemos, no entanto, que so alguns desses defeitos que tornam, para o pblico dos nossos dias, as Iguarias do Mundo Grego uma obra precursora em aspetos hoje particu-larmente valorizados em correntes/movimentos/tendncias/modas gastro-nmicas apostadas na promoo de uma cozinha natural e simples e de uma gastronomia requintada (em que a fruio deriva do consumo de produtos regionais demarcados e de ambientes diferenciados).

    O objetivo da nossa investigao consiste em demonstrar o carter substancialmente inovador dos contedos da mensagem de Arqustrato em relao a um padro alimentar vigente e o seu contributo para a afirmao dos prazeres da mesa como uma expresso cultural aceitvel, porque pautada pelos tradicionais e respeitados princpios clssicos do nada em excesso (consagrada na expresso esquiliana meden agan), da excelncia (ou arete), capaz de aproximar os seres humanos dos deuses, e da justa medida (ou metron). Considerando que esta leitura da obra de Arqustrato no confere ao autor um estatuto de pioneiro, mas sim de potenciador de prticas e mentalidades atestadas em autores anteriores, contemporneos e posteriores,

    3 Cf. testimonia 2 e 5 de Olson-Sens.4 So as seguintes as principais interpretaes dos comentadores quanto ao gnero do poema

    de Arqustrato: pardia pica (Wilkins-Hill 2011: 13-15) ou pardia gastronmica (Montanari 1999: 67), catlogo gastronmico (Dalby 1995: 402; Olson-Sens 2000: xliii), combinao entre o gnero didtico e o relato de viagens (Garca Soler 2001: 30), guia gastronmico (Soares 2012a: 36-37 e n. 20; leitura questionada por Olson-Sens 2000: xxix-xxx).

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    Carmen Soares

    decidimos preceder a anlise dos fragmentos e da obra de um levantamento de reflexes idnticas, patentes noutros autores (ponto 2: Retratos literrios das mesas de delcias). S depois de munidos deste enquadramento, poderemos avanar para a proposta literria de uma gastronomia requintada, apoiada numa cozinha simples, mas capaz de satisfazer plenamente (i. e., fartar) a mesa das elites privilegiadas pelos dons da fortuna (ponto 3: A mesa de delcias de Arqustrato: tradio e inovao).

    2. Retratos literrios das mesas de delcias

    O propsito desta nossa busca de outras fontes no reside em identificar o subgnero literrio em que se filiar o poema de Arqustrato (misso que, entre outros5, os editores Olson-Sens cumpriram no seu comentrio obra6), mas sim em demonstrar que h uma tradio de refletir sobre padres ali-mentares requintados (as chamadas mesas de delcias) atravs do confronto com padres alimentares modestos (que poderamos designar por mesas de sobrevivncia). A nomenclatura que propomos para esta ltima categoria, conforme sugere a prpria terminologia adotada, decorre do facto de os alimentos que compem as ditas mesas de sobrevivncia corresponderem a uma oferta elementar e sem qualquer referncia determinao que o gosto/prazer possa ter tido nessa composio.

    Devemos, no entanto, desde j advertir que esta bipolarizao em dois tipos de prticas de mesa no permite concluir que, para cada uma das duas categorias por ns estabelecidas, os textos dos Antigos nos apresentam uma conceo nica e universal. Muito pelo contrrio! Veremos que, em resultado

    5 Cf. nota anterior.6 No III da introduo (Olson-Sens 2000: xxviii-xliii), os comentadores comparam o

    contedo e estilo do texto de Arqustrato a obras anteriores ou contemporneas que, em alguma medida, com ela tenham pontos de contacto. A proximidade com as Histrias de Herdoto e, eventualmente, do seu antecessor Hecateu de Mileto, deriva do seu perfil periegtico (pela refe-rncia s viagens que fez para averiguar/investigar onde encontrar determinadas especialidades gastronmicas). A pica pardica de figuras como Hgemon de Tasos, Eubeu de Paros e Mtron de Ptane (Supplementum Hellenisticum 534-540, num total de 144 versos) explora o filo do luxo dos banquetes, mas numa linha de stira do gnero pico ausente da escrita de Arqustrato, destinada a ser representada em pblico, o que no seria o caso do poema do Siciliano. com os livros de culinria, em prosa, dos seus conterrneos (com destaque para Miteco, sc. V a. C.) e com a poesia de catlogos de gastronomia (como Filxeno de Leucas, frg. 836 Page, e frg. 189 da pea Fon de Plato, o Cmico, datada de 391 a. C. pelo Esclio de Aristfanes, Pluto, v. 179) que as afinidades aumentam. Na opinio dos dois comentadores, as Iguarias do Mundo Grego constituem, juntamente com o frg. de Filxeno, os exemplares sobreviventes de um subgnero lrico de catlogos gastronmicos em hexmetros dactlicos, inspirados numa tradio culinria siciliana requintada. Sobre os autores de literatura gastronmica anteriores e contemporneos de Arqustrato, vejam-se os trabalhos de Degani, percursor do interesse subsequente de estudiosos pela literatura gastronmica: 1975, 1982, 1990, 1991.

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    Cozinha simples, mesa farta.Os requintes da gastronomia mediterrnea grega antiga (Arqustrato, sc. IV a. C.)

    de mentalidades diferentes dos autores, os critrios usados para considerar determinado padro alimentar requintado e os preparados que o compem delcias pode variar significativamente.

    Porque o que pretendemos compreender em que medida as mesas propostas por Arqustrato replicam ou contradizem um padro gastronmico elevado, comecemos por recordar, em traos gerais, qual era o esteretipo vigente da culinria siciliana, sua terra natal. Evoquemos o testemunho de um autor ateniense contemporneo do nosso poeta, cuja cidade era invadida pelos modismos da comida siciliana, Plato. A propsito da dieta alimentar dos Guardies, atletas guerreiros de Calpolis, advoga-se uma cozinha o mais despojada possvel, quer nos mtodos de confeo o que dita a preferncia por grelhar em vez de cozer (j que este mtodo exige uma bateria de panelas, ao passo que aquele no) quer nos ingredientes usados (reduzidos ao bsico, no caso dos heris homricos, chamados colao, a carne, e dispensada a adio de condimentos). Estamos perante o retrato de uma clara mesa de sobrevivncia, tanto mais que a sua composio contribui para a boa forma fsica (a sade, ou, como diz o texto grego, para que venha a ter o corpo em bom estado7), como se depreende do passo 404c-d da Repblica:

    - To pouco Homero faz alguma vez referncia a condimentos, julgo eu. Os outros atletas sabem isso bem, que um corpo que queira estar em forma tem de se abster de tudo isso?- com razo que o sabem e se abstm.- No honrars, amigo, ao que parece, a mesa de Siracusa e a variedade de pratos siciliana, uma vez que te parecem certos estes princpios.

    (Trad. M. H. Rocha Pereira8)

    Nos antpodas dessa culinria simples, coloca a personagem do dilogo uma culinria apoiada em temperos9 e apostada na confeo de uma grande variedade (poikilia) de condutos (opsa10). A essa cozinha to diversificada aplicam-se os esteretipos do luxo gastronmico oriundo da Magna Grcia11, contidos nas expresses mesa de Siracusa e variedade siciliana.

    7 Resp. 404 c: .8 Rocha Pereira 2010: 138.9 Sobre o uso de temperos na cozinha grega, vd. Garca Soler (1997: 136-137; 2001: 323-61).10 Termo genrico, usado para designar tudo o que acompanha a base da alimentao grega:

    as papas de cereais, o po e o vinho. J tratmos da ntida distino que os antigos Gregos esta-beleciam entre os alimentos bsicos e os seus suplementos noutro estudo (vd. Soares 2012b: 37).

    11 Sobre a fama do luxo da cozinha siciliana, vd. Dalby (1996: 113-129), Collin-Bouffier (2000), Olson-Sens (2000: xxxvi-xxxviii) e Garca Soler (2001: 37-38; 2008: 147-148).

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    Carmen Soares

    Bastar ter presente que os magros fragmentos que nos chegaram de autores de Livros de Culinria ( )12, resgatados do oblvio por Ateneu de Nucrates, confirmam essa moda siciliana, pois apresentam receitas elaboradas a partir de uma elevada variedade de produtos e temperos, como o caso dos cubinhos de po de Heraclides de Siracusa (condimen-tados com anis, queijo e azeite13), do myma de Epeneto14, de um molho para carne assada (feito base de sangue, o que justifica a denominao por que era conhecido hyposphagma15) e do kandaulos. Tratava-se, este ltimo, de um prato de origem ldia, atribudo obra de Hegesipo de Tarento, a que chamaramos sopas de carne, na medida em que a carne se serve acom-panhada de po ensopado no seu caldo, prato que, na linha das receitas j mencionadas, se apresenta, uma vez mais, adubado com sabores fortes (de um queijo importado, da Frgia, e de uma planta aromtica nativa, o funcho16).

    Desta descrio de pratos de autores da Magna Grcia depreendemos que estamos perante um padro de requinte gastronmico baseado, por um lado, na assinalvel variedade de ingredientes reunidos na preparao de um nico prato, pelo outro, na indispensvel presena de temperos que, pela sua intensidade, alteram o gosto natural dos produtos bsicos (nestes casos, o po e as carnes). Note-se que a prpria etimologia do vocbulo grego para tempero (hedysma), palavra formada da raiz hedy - (comum aos nomes prazer/hedone) e doce (hedy), confirma que esses ingredientes se destinavam, antes de mais, a dar um gosto agradvel (hedy) aos pratos. Alis, Plato deixara bem clara essa relao estreita entre temperos e arte culinria (techne mageirike) na

    12 Sobre os livros de culinria gregos, vd. Soares 2010, Dalby (1996: 109-111, 160-167; 2003: 97-98).

    13 Ath. 3. 114 a.14 Hpax usado para designar um prato feito de carnes vermelhas e de aves picadas, vsceras

    e um sem fim de temperos e ervas aromticas vd. Ath. 14. 662 d: Quanto a Epeneto, afirma no seu Livro de Culinria o seguinte: o myma faz-se com carnes de todo o tipo de gado e aves, mas preciso preparar pequenos pedaos de carnes tenras, as vsceras, as tripas e o sangue, tudo bem amassado e temperado com vinagre, queijo grelhado, slfio, cominho, tomilho fresco e seco, segurelha, coentros frescos e secos, cebolinha-verde, cebola sem casca grelhada ou sementes de papoila, passas de uva ou mel, e sementes de rom amarga.

    15 O sangue misturava-se com mel, queijo, sal, cominho e slfio, preparado cozido com vinagre - Ath. 7. 324 a. Segundo a esclarece o Naucratita, o mesmo nome reservava Glauco de Locros (outro Siciliano) no ao molho (como sucedia no livro de culinria de Erasstrato), mas ao prato feito de sangue, slfio, carne cozida, mel, vinagre, leite, queijo e ervas aromticas picadas. O sentido literal do termo grego, formado por composio, o de derivado (do prefixo hyp-) do sacrifcio de sangue (do verbo sphazo).

    16 Ath. 12. 516 f. Identificar com os Ldios a origem do kandaulos (cujo nome apresenta bvias semelhanas fonticas com o nome do ltimo soberano da dinastia sandinida, Candau-les) no deixa de ser um recurso discursivo denunciador do sentido de luxo gastronmico, uma vez que os Ldios gozavam, entre os escritos da poca Clssica e posteriores, da fama de serem um dos povos orientais mais sofisticados e dados ao deleite.

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    Cozinha simples, mesa farta.Os requintes da gastronomia mediterrnea grega antiga (Arqustrato, sc. IV a. C.)

    Repblica (332 c-d), dizendo que a sua funo produzir adubos (adysmata) para as comidas (opsa).

    Discretamente, entre os inmeros ingredientes utilizados na preparao das supra mencionadas receitas de picado de carnes e de molho de sangue, foi referido o nico adoante consumido e produzido na Europa da poca, o mel. J nos idos sculos V e IV a. C. os doces eram concebidos como alimentos, na sua essncia (que o doce, ), responsveis por dar prazer (hedone) ao consumidor. Retomando o passo da Repblica de Plato sobre o regime alimentar dos Guardies, todo ele voltado para uma mesa de sobrevivncia (leia-se despojada dos luxos da culinria siciliana to em voga na poca), compreendemos que se enfatize a necessidade de repudiar as, igualmente renomadas, delcias da pastelaria ateniense17.

    A mentalidade do aristocrata Glucon, interlocutor de Scrates no dilogo platnico, no lhe permite aceitar placidamente uma proposta de diaita (modo de vida) que, pela sua extrema simplicidade espelhada num regime alimentar to humilde lhe merece a denominao de forragem, paradigma que, ainda segundo as suas palavras, se adequaria a uma cidade de porcos (372 d). A esta leitura depreciativa ter, sem dvida, levado a incluso de bolotas torradas, entre o elenco de sobremesas que teriam ao seu dispor. Esse , na perspetiva de um jovem ateniense da alta sociedade, um modelo ultrapassado, no compaginvel com os tempos modernos. Apela, por isso, a Scrates para que descreva uma Calpolis em que se adotem os hbitos de mesa do presente.

    O filsofo no s percebe que o que o seu interlocutor entende por condutos e sobremesas que atualmente se servem so pratos e doces variados ( , , 373 a), como entende que o ambiente que se coaduna com o consumo de tais iguarias se caracteriza pelo requinte. Este outro tipo de prazeres obtm-se, como se depreende, quer do conforto do mobilirio das salas de banquete (leitos e mesas), quer dos estmulos dos perfumes e incenso que marcam a experincia sinestsica do convvio. Como bem resume Scrates, essa , pois, uma cidade de luxo (tryphos an polin, 372 e), na qual, acrescentamos ns, s tem cabimento uma mesa de delcias.

    As posies contrrias assumidas pelas duas personagens platnicas revelam como a mesa assume na literatura grega o sentido de metfora de valores e comportamentos. Se a multiplicidade de pratos e temperos pode ser metfora de excessos, reverso da desejvel moderao (sophrosyne) a que deve aspirar quem almeja a virtude/excelncia (arete), o que percebemos da leitura da obra de Arqustrato que, ao invs do que sugere a interpretao

    17 Cf. 404 d: .

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    Carmen Soares

    literal da apologia de Scrates de uma mesa do passado, com uma dieta alimentar essencialmente cerealfera e base de vegetais e frutos (padro que a pobreza continuava a impor a alguns), possvel compatibilizar o requinte gastronmico com um modo de vida virtuoso.

    Conforme demonstraremos na anlise subsequente da equao que, no poema do Siciliano, se estabelece entre prazer, simplicidade, moderao, fartura e requinte, o que Ateneu nos legou da obra do nosso autor afasta-o, no geral, de uma leitura estandardizada da culinria da Magna Grcia, assente apenas em receitas de complexa elaborao e fortemente temperadas.

    3. A mesa de delcias de Arqustrato: tradio e inovao

    Os estudos que os comentadores modernos podem fazer sobre a obra do Siciliano padecem de constries relacionadas com os processos de trans-misso e receo do texto e do autor. Diferentemente do que sucedeu com a produo literria dos gneros maiores da literatura (em especial a pica, o drama, a prosa histrica e a filosfica), o catlogo de iguarias de Arqustrato no mereceu o interesse de ser copiado na ntegra por sucessivas mos. Assim, qualquer exerccio hermenutico sobre ele deve ter em conta que no possvel conhecer o produto literrio do poeta, mas apenas o recorte que dele nos legou Ateneu, volta de 200 d. C., ou seja, quase seis sculos mais tarde18. No s no podemos avaliar, com uma margem mnima de segurana, qual o volume da obra preservado, como procurar definir a sequncia pela qual os fragmentos originariamente figuravam na obra, hoje dispersos nos Sbios Mesa do Naucratita, consiste num exerccio especulativo de edio, passvel, como tal, de resultar em ordenaes divergentes19. To ou mais limitativo que estas restries formais estarmos condicionados pelo filtro tico do transmissor da obra. No basta a seleo dos passos resultar da subjetividade de quem escolhe, h ainda que conviver com os comentrios valorativos

    18 Olson-Sens (2000: xxi-xxii e n. 5) situam a sua redao algures nos primeiros dois teros do sc. IV a. C. Dalby (1995: 403-404), por seu turno, com base em referncias a determi-nadas cidades, prope um intervalo mais estreito de redao da obra: ca. 360-348 a. C. As recomendaes para a aquisio de pescado de qualidade na regio dos estreitos de Messina (frg. 7, 10, 17, 18, 41) faz sentido em data posterior morte do tirano de Siracusa, Dionsio I, em 367, altura a partir da qual as cidades da zona voltaram a viver um clima de paz e prosperidade, atrativo para os viajantes as procurarem em condies de segurana. Por outro lado a data de 348 a. C. corresponde ao ano da destruio de Olinto por Filipe da Macednia, cidade mencionada por Arqustrato como indicada para a aquisio de uma espcie de tainha de qualidade, o glaukos (frg. 20).

    19 Basta compararmos a ordem estabelecida pelos editores e/ou tradutores da obra (Ribbeck 1877, Brandt 1888, Montanari 1983, Olsen-Sens 2000, Wilkins-Hill 2011) para detetarmos essas diferenas de ordenao dos fragmentos.

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    que o mesmo faz aos textos selecionados e com a transmisso de uma srie de testemunhos antigos de tom depreciativo.

    Ainda que brevemente, importa mencionar que as crticas de Ateneu e de figuras contemporneas ou muito prximas do nosso autor, evocadas como testemunhos pelo enciclopedista - como o caso do filsofo peripattico Clearco (sc. IV a. C.) e do estico Crisipo (sc. III a. C.) - se baseiam na interpretao epicurista da obra20.

    Ou seja, se somarmos a estes testemunhos a tendncia, revelada em escritos dos scs. V e IV a. C. (de que evocmos o caso de Plato no ponto 2), para identificar a culinria oriunda na Magna Grcia e, em especial, a siciliana com uma gastronomia sofisticada, somos impelidos a uma abordagem pr-conceituosa da obra, isto , baseada em juzos formados previamente por terceiros. A leitura que propomos fazer, sem ignorar todo este enquadramento de poca e de receo da obra, procurar averiguar em que medida o que nos chega de Arqustrato legitima a identificao do poeta como um seguidor dessas ditas mesa siracusana e variedade siciliana ou como o promotor de uma gastronomia requintada, mas seguindo uma tendncia que se procura demarcar dessa moda difundida por outros conterrneos seus.

    Dos 60 fragmentos preservados do poema, cerca de um tero contm informaes sobre modos de preparao de alimentos21 e apenas quatro no fazem meno a produtos alimentares. Dos 56 fragmentos referentes a alimentos passveis de serem servidos mesa, o conduto (opson) mais representado o pescado (nas mais diversas categorias: peixe, marisco e moluscos), pois figura em 46 passos (frgs. 10-56), cabendo carne (caa e capoeira) apenas duas ocorrncias (frgs. 57-58). Residual tambm a meno ao alimento bsico da alimentao grega, presente ao longo de toda a refeio (das primeiras s segundas mesas), o po (frg. 5), e bebida eleita, o vinho (frg. 59). Devemos entender esta predominncia de pratos de peixe no como uma evidncia de que no poema essa seria, garantidamente, a comida mais retratada, mas como mais um indcio (a somar aos j mencionados juzos valorativos de Ateneu e de outros testemunhos por ele evocados) de que um recorte da obra que, no

    20 Clearco censura a moda, entre os seus contemporneos, de tomarem por tema de discusso dos banquetes o prazer decorrente do consumo de peixe e as pocas do ano em que esse alimento mais saboroso, temticas presentes na obra de Arqustrato, o que justifica a atribuio do ttulo depreciativo devotos de Arqustrato (cf. testimonium 4 Olson-Sens) a quem se filia nesta nova voga (hedonista e materialista) de reflexo. Ateneu coloca na boca de Crisipo a denncia de ser Arqustrato o poeta predileto dos epicuristas, insultados com o epteto de glutes (gastrimar-goi) - cf. testimonium 6 Olson-Sens. O prprio Ateneu adota o mesmo discurso, ao cham-lo, em trs ocasies, por outro sinnimo grego de gluto - (cf. testimonium 8, frgs. 6 e 22 Olson-Sens) ou recorrendo a uma terminologia menos acintosa, mas, ainda assim, clara na denncia da filiao epicurista do escritor: filsofo hedonista ( , frg. 17).

    21 Disponveis em traduo portuguesa em Soares 2012a. Traduo revista, anotao e estu-do de todos os fragmentos (Soares: no prelo).

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    seu conjunto, privilegia a presena de pescado fresco mesa (em particular de elevada qualidade e porte) condiz com a imagem de um Arqustrato de gostos que, aos ouvidos da maioria da populao grega, soariam requintados22. exceo das populaes costeiras ou ribeirinhas e das elites endinheiradas, no geral os Gregos no consumiam pescado fresco. Consequentemente, desco-nheciam o gosto e o prazer gustativo que lhe estavam associados. Semelhante ignorncia pode levar a resultados desastrosos do ponto de vista culinrio que a perspetiva sob a qual nos interessa agora analisar os fragmentos de Arqustrato. Se a arte culinria, como vem definida por Plato acima (ponto 2), consiste em saber potenciar o bom gosto dos condutos atravs de temperos, necessrio conhecer as combinatrias e quantidades corretas de ingredientes para no se arruinar um prato.

    A preocupao sobre como preparar bem a comida, por forma a poten-ciar o prazer que se retira da sua ingesto, um topos estruturante no corpus sobrevivente da obra de Arqustrato. A forma como o poeta o desenvolve, sob perspetivas complementares, em vrios dos seus versos permite-nos defender que h um ntido propsito didtico subjacente sua escrita. No se trata apenas de ensinar a distinguir a boa da m comida (frg. 36, vv. 4-5), mas de desmitificar a ideia corrente de que o requinte gastronmico (siciliano) se resume confeo de preparados complexos e fortemente temperados.

    Essa intencionalidade de se distanciar do estigma de uma culinria de excessos (da variedade de ingredientes e das quantidades de temperos) surge repetidas vezes nos fragmentos sobreviventes, quer relativos a receitas de pescado quer nos nicos dois de carne. A demarcao tanto a obtm o autor pelo recurso a vocabulrio com o sentido de simples (adv. , ) e natural (subst. ), como a termos com valor semntico contrrios a estes (i. e. rebuscado/adj. , excessivo/adv. e mltiplo/adj. , ), aplicados a prticas que repudia.

    No frg. 37, a propsito dos temperos indicados para obter um bom sargo grelhado, o autor aproveita para dar a entender que a hierarquia correta entre ingrediente base (neste caso o peixe, noutros, como veremos mais adiante, a carne e os vegetais23) e temperos esta mesma. Ou seja, so as caractersticas organolpticas do ingrediente que determinam a escolha dos temperos, nunca o inverso! A saber: os ingredientes que forem naturalmente agradveis ao paladar dispensam a adio de adubos de sabor intenso (como o queijo, o slfio e o vinagre), bastando retoc-los com os hedysmata bsicos da culinria

    22 Sobre a conceo do pescado como iguaria gastronmica por excelncia, na poesia arcaica elegaca e imbica, vd. Garca Soler 1997: 133-134; para a comdia grega, vd Davidson 1993, Garca Soler 1996.

    23 Frgs. 57, 58 (lebre e gansinho) e 9 (bolbos e caules).

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    mediterrnea: o azeite e/ou o sal. Entre o final do outono e o incio do inverno, o sargo grelhado para ser comido:

    () bem temperado () com queijo, com um bom tamanho, ainda quente e cortado com um vinagre bem forte, pois trata-se de um peixe rijo por natureza (). A todo o peixe que for duro, o que recomendo que te lembres de o tratar desta maneira. Mas o que por natureza () saboroso (), tenro e gordo da carne, esfrega-os apenas () com umas pedras de sal e azeite. A verdade que contm em si mesmo a essncia do prazer ( ).

    (frg. 37 Olson-Sens, apud Ateneu 7. 321c-d)

    A ltima frase, ao colocar a tnica na fruio que a comida proporciona, no deixa margem para dvidas de que Arqustrato um verdadeiro gastrnomo avant la lettre, vanguardismo que lhe valeu a aproximao cor-rente filosfica emergente do epicurismo e o sarcasmo dos opositores a toda e qualquer expresso de apreo pelos prazeres dos sentidos (os j referidos Clearco e Crisipo). Na sua poesia, conforme desenvolveremos mais adiante, so frequentes as remisses para as delcias (as coisas boas e os prazeres ) da mesa (na dupla aceo de comida e ambiente). Por ora atentemos no contraste entre duas formas bem distintas de colocar os temperos ao servio da valorizao do sabor da comida preparada para acompanhar o po. adio abundante (implcita no adj. composto pelo prefixo -, de valor intensificador, a significar totalmente/completamente) dos sabores marcantes da gordura que o queijo e da acidez de um vinagre forte, ope-se uma preparao minimalista (denunciada no emprego do adv. , somente/apenas). Note-se que o poeta-gastrnomo no considera uma forma de cozinhar melhor do que a outra, apenas esclarece que tm contextos diferentes.

    Porm, quando no se conhece este princpio elementar da harmonizao dos temperos com o alimento bsico do conduto, arruna-se o que poderia ser uma iguaria, se bem preparada. Dessa m prtica culinria no deixa o poeta de dar conta, nos versos em que ensina a cozinhar outro peixe natu-ralmente saboroso (a avaliar pelas indicaes que apresenta quanto forma de prepar-lo), o atum:

    Pega num rabo de atum fmea estou a falar de um grande atum fmea, cuja terra me Bizncio. Depois de bem partido, grelha todas as postas, depois de esfregados apenas () com umas pedras de sal e azeite. Come-as quentes, ensopando-as num molho salgado bem forte. Se quiseres com-las secas (), tambm so boas, semelhantes aos deuses imortais em natureza () e aspecto. Porm, se as servires regadas com vinagre, o prato f ica estragado ().

    (frg. 38 Olson-Sens, apudAteneu 7. 303e-f )

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    Alm de se repetir o topos de uma confeo simples (reduzida aos tem-peros bsicos), praticamente ao natural, no podemos deixar de assinalar que os traos de connaisseur de Arqustrato no lhe inibem a sensibilidade para a variao de gostos em matria de gastronomia. A observao de que as postas grelhadas de atum so deliciosas, tanto comidas com um molho salgado, como sem mais nada (ideia no texto vertida pelo adj. , que significa secas), condiz com o comentrio que oferece no frg. 15 sobre uma espcie de peixe que se julga ser a pescada (gr. ): uma pessoa gosta deste tipo de coisas, outra daquele (v. 4)24.

    No que se refere s carnes grelhadas, em ambas as nicas duas menes citadas por Ateneu, insiste-se na simplicidade do prato. Do gansinho diz-se que a preparao culinria simplesmente grelhada ( , frg. 58, v. 2); da lebre no espeto que deve ser simplesmente temperada com sal ( , frg. 57, v. 5). No caso desta ltima, o poeta , uma vez mais, bem claro no repdio de receitas rebuscadas (gr. ), sinnimo de adio de molhos gordos e de sabor intenso (a queijo), conforme declara (vv. 7-9):

    Quanto s outras formas de preparao da lebre, na minha opinio, so todas demasia-do () rebuscadas (uns molhos () gordurosos (), empes-tados de queijo () e de azeite (), como se fossem confecionados para uma doninha).

    (apud Ateneu 9. 399e)

    A escolha vocabular do autor, ao insistir aqui na noo do excesso das quantidades e, como vimos noutros fragmentos, admitir que os temperos melhoram determinados pratos, revela, sem margem para hesitaes, que a culinria requintada por ele retratada no a que exclui da mesa os adubos, mas a que pugna pelo seu uso seletivo e moderado. Neste frg. sobre a pre-parao de lebre assada no espeto, reaparece o uso de adjetivao composta com o prefixo intensificador kata-, a significar totalmente coberto25. Como se no bastasse combinar duas gorduras (o queijo e o azeite), contrariando o que foram as indicaes atrs referidas sobre a preparao de molhos adequados a peixes (em que percebemos que se usa um ou outro), abusa-se das quantidades. O emprego do adv. (excessivamente26) no termo da sequncia molhos gordos, completamente cobertos de queijo e azeite em excesso27

    24 , .25 Sobre o uso deste vocabulrio em Arqustrato, vd Rodrigues Amado 2010: 19.26 Forma potica que viria a ser substituda por agan, bem conhecida na expresso comum

    para designar o ideal de moderao clssico, o famoso meden agan (nada em excesso).27 Trad. literal do grego / , vv. 8-9.

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    serve de perfeito corolrio de uma expresso em que assistimos acumulao de vocbulos com o sentido de excesso.

    No obstante a perceo de que h, da parte de Arqustrato, uma certa tolerncia para as particularidades gustativas que distinguem os indivduos, consideramos que o Siciliano do sc. IV a. C., se afasta do esteretipo dos seus pares da Magna Grcia, pois prefere uma culinria requintada simples, apostada na preservao dos sabores genunos dos alimentos e, como tal, avessa presena (obrigatria e/ou impositiva) de temperos intensos, que advoga dever serem usados em quantidades modestas (linguagem que modernamente se poderia fazer equivaler ao q.b. quanto baste das receitas de cozinha).

    O prprio denuncia o seu afastamento em relao a esse padro de requinte apostado no excesso de molhos e temperos, que tem por expoentes mximos os Siracusanos e os Italianos do sul da pennsula, territrio colo-nizado pelos Gregos desde o sc. VIII a. C. Disso nos d conta o frg. 46, em que escreve, a propsito da preparao do kephalos, uma espcie de tainha por identificar, e do robalo:

    No deixes que se aproxime de ti nenhum tipo de Siracusa, nem de Itlia, quando esti-veres a confeccionar esse prato. A verdade que no sabem preparar os melhores peixes (); antes os estragam por completo (), pois tm o mau gosto () de acompanhar toda e qualquer () comida de queijo e regam-na com uns salpicos de vinagre e um molho salgado enriquecido com slf io. No entanto so, de todos, os que melhor sabem arranjar os malditos peixes de terceira (), criados nas rochas, e conseguem acompanhar um banquete de todo o tipo de comidinhas () pegajosas () e mal condimentados ().

    (apud Ateneu 7. 311a-c)

    ntido o contraste entre uma verdadeira culinria requintada, apoiada em ingredientes de elevada qualidade, e uma culinria pseudo-requintada, em que se tenta disfarar a falta de qualidade dos ingredientes pelo uso excessivo de gorduras e condimentos intensos. Repare-se que, do ponto de vista lingustico, o poeta se vale repetidamente do uso de diminutivos para transmitir um sentido depreciativo ao seu discurso. Assim sucede primeiro com o substantivo (peixinhos), que preferimos traduzir de forma livre, mas mais fiel ao valor pejorativo que comporta, por peixes de terceira (sc. qualidade), de seguida com o nome (comidinhas). No seu desprezo por uma cozinha base de ingredientes menores, o poeta retoma motivos que j anunciou atrs como caractersticos dessa falsa mesa de delcias, a saber: a sobrecarga de gorduras (pegajoso/os sinnimo de gorduroso/ do frg. 57, v. 8) e a suprflua presena de temperos (ideia contida no hapaxlegomenon , composto do substantivo tempero/ e do adj. ftil/ do frg. 25, v. 1).

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    Nota-se, ainda, neste discurso, traos que confirmam ser clara, para o gastrnomo, a identificao da arte culinria com uma forma de conhe-cimento, ou seja, uma techne com regras prprias. S quem souber que a harmonizao correta entre produtos e temperos (essncia da arte culinria) leva a uma variedade de formas de preparo, condicionadas pelas propriedades (i. e. natureza, gr. physis) dos primeiros, produzir as mesas de delcias da gastronomia mediterrnea cantada por Arqustrato. No se incluem nesse grupo de connaisseurs indivduos que, desrespeitando os particularismos de cada produto, aplicam um nico e mesmo mtodo a todo e qualquer () prato. caso para dizer que a arte da gastronomia no compatvel com a homogeneizao de tcnicas de confeo.

    Nos conselhos que d ao seu interlocutor potico, o amigo Mosco, sobre a mais deliciosa (i. e., merecedora do atributo ariste/a melhor) maneira de preparar um conduto de qualidades organolpticas to excecionais que se torna impossvel arruin-lo, o bonito (frg. 36), deparamos com os motivos recorrentes na sua escrita para definir uma mesa de delcias, ao mesmo tempo simples e farta. Simples porque rejeita tudo o que suprfluo (com particular referncia para o queijo); farta, porque satisfaz plenamente o consumidor (realizao dos sentidos percetvel na adjetivao laudatria do preparado) e no porque o enfarta. A nfase na moderao remete o leitor-intrprete para essa ideia de que o prazer gastronmico avesso saturao e excessos alimentares. Atentemos nos termos em que Arqustrato evidencia essa sua veia de gourmet virtuoso:

    Quanto ao bonito, no termo da poca das colheitas, quando as Pliades se comeam a pr, prepara-o de todas as maneiras (). Por que haveria eu de te fazer um re-lato pormenorizado sobre outras formas de prepar-lo? A verdade que no sers capaz de arruinar () o prato, nem que queiras. Contudo se, mesmo assim, desejas saber, meu caro Mosco, qual a melhor forma de arranj-lo, ei-la: em folhas de f igueira, com orgo no em grande quantidade ( ). Nada de queijo ( ), nem de outras futilidades ( ). Trata-o, antes deste modo ( ): faz um embrulho de folhas de f igueira, atado em cima com um junco, depois coloca-o sob o calor das cinzas, atento ao momento em que est assado e v l no o deixes queimar!(apud Ateneu 7. 278a-d, 7. 313e-314a)

    O poeta, na verdade, lana mo a vrios recursos estilsticos para enfatizar esta condenao do excesso das quantidades de temperos adicionados aos ingredientes base. Se neste passo recorre ltotes, quando em grego escreve com orgo no em grande quantidade, lembremos, noutro passo (frg. 32) o uso que faz da metfora. A a juno de uma boa poro () de queijo e de azeite ao peixe-ctara grelhado leva o autor a apelidar o animal de esbanjador (), pois agrada-lhe ver as pessoas a gastar dinheiro ().

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    Este um ntido caso de transferncia para o produto do comportamento perdulrio do seu consumidor. Embora seja o prprio poeta a recomendar que se adote esta preparao, a mesma s vem no termo da apresentao de outro mtodo mais simples: cozido em gua salgada ( ) pura (), juntamente com umas poucas () de folhas (). Por pura entende-se sem temperos, como se pode depreender da referncia que encontramos no frg. 23 forma de cozer a cabea do peixe-porco, onde se diz (vv. 3-4):

    Coze a cabea, sem lhe adicionar qualquer / tempero (); coloca-a em gua, sem mais ()...

    Ou seja, em Arqustrato o mtodo de confeo por excelncia simples o cozido. Idntico processo de cozedura, s em gua e sal e com ervas verdes (que traduzimos, nesse sentido, por frescas), vem referido para a cabea de outro peixe, o congro:

    Em Scion, meu caro, pega numa cabea de congro gordo, bem constitudo e grande, bem como em toda a parte da barriga. A seguir coze-o lentamente, em gua temperada com sal ( ) e salpicado () de ervas frescas ().(frg. 19 Olson-Sens, apud Ateneu 7. 293e-f )

    Mais elaborada e a requerer a presena de condimentos variados confeo de um estufado. Alis, no h em grego um verbo diferente para os mtodos que em portugus designados de cozer e estufar. Utiliza-se sempre o verbo hepso, com o sentido de cozinhar lquidos28. Quando esse cozinhado conta com a presena de azeite (alm de outros temperos), somos autorizados a traduzir por estufar. Da a insistncia, nos fragmentos que acabmos de analisar sobre a confeo de cabeas de peixe, na presena de gua (simples ou salgada), sem adio de gordura. apenas quando esta ltima comparece que estamos perante um processo de cozedura com lquidos, a que moder-namente chamamos estufado29.

    28 O outro verbo grego usado para indicar a cozedura de alimentos optao, sempre que o processo seco (da traduzir-se por grelhar e cozer, aplicado ao po/bolos). Arqustrato regista para trs peixes o contraste de sentidos no emprego dos dois verbos, a saber: peixe--porco, frg. 23 (vv. 3-4: cozer a cabea versus v. 8: grelhar o resto do peixe); cao, fgr. 24 (v.3: grelhar a barriga versus vv. 7 e 11: estufar o resto do peixe); peixe-ctara, frg. 32 (v. 4: grelhar os exemplares maiores versus v. 3: cozer os outros).

    29 Sobre o sentido de estufar, escrevem Pereira e Perico (2015: 237): guisar, assar em estufa ou vaso fechado. Tipo de tcnica culinria, utilizada para cozinhar carne ou legumes, com uma gordura e pouca gua e que feita em recipiente fechado e a baixa temperatura. Note-se que, se comparada esta definio com a de guisar do mesmo Vocabulrio gastronmico, depreende-se que as principais diferenas residem em que no estufado se cozinha em recipiente tapado e que aos ingredientes se junta um lquido, enquanto no guisado no (cf. p. 278: guisar:

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    No caso do estufado, importa notar que o autor d conta de que, con-soante o tipo de peixe, assim a harmonizao com os temperos pode ditar divergncias ao nvel das opes a fazer. As receitas de estufado de tremelga (frg. 49) e de cao (frg. 24, vv. 7-10) so bem o exemplo dessa diversidade:

    E uma tremelga, cozida em azeite ( ) e tambm em vinho () e ervas verdes aromticas ( ) e um pouco () de queijo ralado.

    (apud Ateneu 7. 314d)Quanto s outras partes do peixe [cao], se os cozinhares numa caoila, no lhes juntes gua alguma da fonte, nem vinagre de vinho, mas to s () azeite () e, por cima, cominho seco e algumas folhas de ervas aromticas ( ).

    (apud Ateneu 7. 310a, b-e)

    Da comparao das duas receitas resulta notria a obrigatoriedade, num estufado, da comparncia de azeite e de aromticas (frescas ou secas), cabendo ao vinho, gua e ao queijo o estatuto de ingredientes opcionais, escolha que, como se deduz do que j percebemos ser o determinismo das caractersticas organolpticas do ingrediente principal, depende do prato em apreo. Ou seja, no caso do preparado de cao, por se tratar de um peixe que sob o efeito da cozedura solta gua, dispensa-se a sua juno aos restantes ingredientes-base do estufado. J na confeo do estufado de tremelga (frg. 49), peixe de carne seca, torna-se necessria a juno de um lquido, o vinho, que seria adicionado tambm pelas suas qualidades em termos de gosto acrescentado ao cozinhado. Neste caso, repare-se, ainda, na recomendao para o uso parcimonioso de queijo, ingrediente indispensvel (em maior ou menor quantidade) para cozinhar os peixes magros. Nestas situaes, uma menor riqueza gustativa do produto-base justifica um reforo dos temperos, que no se limitam oferta das aromticas locais, mas pedem, em nome do sempre buscado prazer da mesa, a presena da planta extica de cheiro e sabor acre intenso, natural de Cirene, o slfio (no frg. 50, de estufado de raia)30. Nunca submetida ao cultivo domstico, esta a aromtica mais dispendiosa da culinria grega (como posteriormente da romana), luxo ao alcance de poucos e reservado, pelo poeta-gastrnomo, a preparaes em que o conduto no apresenta em si a essncia do prazer, precisando de adereos (os temperos) que o estimulem. S nessas situaes, de qualidade natural inferior do produto, a arte culinria deve lanar mo de condimentos mais intensos. Esse um esclarecimento que, a propsito do j aludido estufado de raia (frg. 50), Arqustrato apresenta:

    frigir em cebola e alho dourados em gordura quente, aos quais se juntam tomates e outros temperos. O mesmo que refogar).

    30 Sobre o uso culinrio desta aromtica, leia-se Ardnt 1993 e Dalby 1993 e 2003: 303-304.

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    Cozinha simples, mesa farta.Os requintes da gastronomia mediterrnea grega antiga (Arqustrato, sc. IV a. C.)

    Come raia estufada tambm em meados do inverno, acompanhada no s de queijo, mas tambm de slf io. Qualquer criatura do mar que no tenha a carne suculenta, preciso prepar-la deste modo. J a segunda vez que te fao esta recomendao31.

    (apud Ateneu 7. 314d)

    Aps esta detalhada anlise sobre o requinte do que se serve mesa, e para percebermos como, j na poca, o requinte (ou a falta dele) uma qualidade que se exprime a outros nveis da experincia do convvio em torno da refeio, teremos que ter em conta as, ainda que breves, mas ainda assim esclarecedoras, menes do poeta ao protocolo de mesa e ao ambiente (material e humano) do ato de comer e beber acompanhado.

    Tal como sucede com as descries das receitas, a moderao (leia-se o no excesso) continua a ser uma marca de bom gosto, que se reflete quer no mobilirio da sala de refeies, quer no nmero de convivas, quer mesmo nos servios de mesa que compem um banquete. A aluso expressa a uma elegante mesa individual ( , frg. 4, v. 1), colocada diante de cada um dos participantes do convvio, o reflexo material de um ambiente refinado de refeies, aquele em que se limita o nmero de participantes (a no mais de cinco, ibidem, v. 3), por forma a manter a desejvel urbanidade e comunho entre todos. A forma literria que o poeta encontrou para manifestar o seu repdio por multides mesa foi usar uma imagem bem expressiva do ambiente oposto ao ideal de elegncia apresentado. Para tal compara os convvios que excedam esse quantitativo sensato de participantes a uma messe de soldados mercenrios, uns ruf ias (ibidem, v. 4).

    O comedimento estende-o o poeta ao nmero de servios oferecidos durante uma refeio. Partidrio da tradicional diviso entre primeiras mesas e segundas mesas - as primeiras reservadas sobretudo ingesto de pratos salgados, que constituem a parte substancial da comida servida, e as segundas ingesto do vinho, acompanhado por sobremesas variadas (tanto salgadas como doces) Arqustrato dispensa, uma vez mais, o que considera suprfluo, neste caso o servio de aperitivos. essa rejeio que retiramos do frg. 9: s taas com molhos de bolbos e de caules digo adeusinho, bem como a todo o tipo de aperitivos. Importa sublinhar que a palavra grega traduzida por aperitivo () um composto da preposio para- (ao lado de, para l de) e do substantivo opson (conduto). A etimologia do termo aponta para o sentido de comida que est para alm do conduto. Ou seja, enquanto o conduto o complemento natural da base da refeio (o po ou as papas de cereais) e as guloseimas (tragemata), servidas sobremesa, mesmo na verso platnica da dieta dos Guardies da Calpolis desenhada por Scrates, tm presena

    31 Provvel remisso para o frg. 37 (sobre o sargo), considerado supra.

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    obrigatria num servio completo de mesa, esses suplementos aos condutos so vistos como um excesso descartvel.

    4. Concluso

    Em suma, uma mesa requintada, para ser farta, o mesmo dizer, para satisfazer plenamente os que a ela se renem, no deve enfartar, mas to s proporcionar a fruio moderada dos prazeres. Quando uma certa moda gastronmica reside em pratos condimentados, pode confundir-se fartura com esses excessos. O que os fragmentos de Arqustrato, que sobreviveram, nos permitem perceber que a fartura/riqueza da mesa no deriva do excntrico. O requinte pode residir numa cozinha de mtodos simples, mas que, por recorrer a produtos de elevada qualidade e inacessveis aos consumidores em geral, se reveste dessa aura de requinte.

    Assim, a leitura que propusemos da obra do poeta-gastrnomo siciliano condiz com um ideal de diaita (modo de vida) que ao longo das pocas arcaica e clssica se vai afirmando em diversos quadrantes literrios gregos: o do nada em excesso, da justa medida. Porque o aplica a uma realidade da vida humana tida durante sculos como arte menor, a gastronomia, Arqustrato foi alvo de leituras pr-concebidas e preconceituosas, na sua poca e em sculos seguintes.

    O que procurmos demonstrar com a nossa proposta de releitura foi como, sendo um vanguardista mal interpretado, o poeta continua a merecer ser revisitado.

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