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CowParade Porto Alegre 2011: mercado e representações Tanise Pozzobon, PPGART – UFSM [email protected] Introdução: O presente artigo visa tecer breves comentários sobre a CowParade Porto Alegre 2010, relacionando o evento às reflexões de o que seria arte, a arte e suas representações, e o mercado criado pela exposição. A CowParade torna-se um exemplo de como a arte tem se manifestado na contemporaneidade e de como ela evoluiu em relação aos seus suportes. As novas leituras (ou releituras) promovem um novo dialogo entre arte e vida. A arte está cada vez mais inserida na pluralidade do cotidiano: consumo, publicidade, moda, cultura de massa entrelaçam-se. A CowParade passa a ter um valor substancial e representativo na era da globalização, assim a arte de cada local em que a exposição ocorre (com suas particularidades, tradições, folclores) pode ser identificada e consumida tanto pela população local que se identifica, quanto pelos visitantes ou turistas que podem conhecer mais sobre as tradições do local que estão visitando através das personalizações e pinturas das esculturas criadas pelos artistas locais. CowParade Em dezembro de 1996, o pai do artista plástico Pascal Knapp i , Walter Knapp pediu ao filho para projetar uma vaca ii em tamanho natural, para uma tradicional exposição em Zurique, Suíça. Estas esculturas foram distribuídas para artistas locais as pintarem e serem colocadas à mostra na exposição. Knapp apresentou os atuais três modelos de esculturas de vacas que fazem parte da mostra: uma deitada, um pastando e outro de pé. Foram ao todo 450 vacas que integraram esta primeira exposição, sempre seguindo os três modelos originais: uma deitada, um pastando e outro de pé. A exposição chamou a atenção de Jerry Elbaum, que comprou os direitos autorais das esculturas e de sua exibição em vias públicas fundando assim a CowParade Holding Inc iii . No Brasil, a empresa responsável pelos direitos da CowParade é a TopTrends iv . III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 2746

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CowParade Porto Alegre 2011: mercado e representações

Tanise Pozzobon, PPGART – UFSM [email protected]

Introdução:

O presente artigo visa tecer breves comentários sobre a CowParade Porto Alegre 2010,

relacionando o evento às reflexões de o que seria arte, a arte e suas representações, e o

mercado criado pela exposição. A CowParade torna-se um exemplo de como a arte tem se

manifestado na contemporaneidade e de como ela evoluiu em relação aos seus suportes. As

novas leituras (ou releituras) promovem um novo dialogo entre arte e vida. A arte está cada

vez mais inserida na pluralidade do cotidiano: consumo, publicidade, moda, cultura de massa

entrelaçam-se.

A CowParade passa a ter um valor substancial e representativo na era da globalização,

assim a arte de cada local em que a exposição ocorre (com suas particularidades, tradições,

folclores) pode ser identificada e consumida tanto pela população local que se identifica,

quanto pelos visitantes ou turistas que podem conhecer mais sobre as tradições do local que

estão visitando através das personalizações e pinturas das esculturas criadas pelos artistas

locais.

CowParade

Em dezembro de 1996, o pai do artista plástico Pascal Knappi, Walter Knapp pediu ao

filho para projetar uma vacaii em tamanho natural, para uma tradicional exposição em

Zurique, Suíça. Estas esculturas foram distribuídas para artistas locais as pintarem e serem

colocadas à mostra na exposição. Knapp apresentou os atuais três modelos de esculturas de

vacas que fazem parte da mostra: uma deitada, um pastando e outro de pé. Foram ao todo 450

vacas que integraram esta primeira exposição, sempre seguindo os três modelos originais:

uma deitada, um pastando e outro de pé. A exposição chamou a atenção de Jerry Elbaum, que

comprou os direitos autorais das esculturas e de sua exibição em vias públicas fundando assim

a CowParade Holding Inc iii. No Brasil, a empresa responsável pelos direitos da CowParade é

a TopTrendsiv.

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Não há realmente nenhum outro animal que pode adequadamente substituir a vaca e produzir o mesmo grau de realização artística evidente neste moo-seum. As estruturas da área de superfície e dos ossos são perfeitas, como também a altura e o comprimento.v

A TopTrends foi criada em março de 2004, tem sua sede em São Paulo e desde 2005 tem

os direitos da CowParade Holding Inc. Composta por Catherine Duvgnau e Ester Krivink, a

empresa presta consultoria para o evento CowParade e cuida de todos contatos publicitários

das edições pelo Brasil. A Top Trends banca de 10% a 15% das vacas, as outras são

“adotadas” por patrocinadores do evento. A primeira exibição com o caráter e a denominação

da CowParade aconteceu em 1999 na cidade de Chicago e, desde então já passou por mais de

50 cidades de diferentes países do mundo. A CowParade já arrecadou mais de US$ 21

milhões para ações de responsabilidade social no mundo todo e movimenta US$ 75 milhões

em produtos de licenciamento, como, por exemplo, as miniaturas. Já foi eleita como uma das

10 maiores ideias de Marketing entre 1.000, ranking realizado pela Advertising Age (The

Book of Ten – Ideas of the Decade (2000) e foi considerado pelo prefeito Rudy Giuliani como

o “evento do milênio” quando aconteceu na cidade de Nova York, em 2000.

No Brasil, todas as esculturas são confeccionadas em São Paulo, e seguem os três modelos

iniciais de Knapp. De São Paulo, as esculturas – que exibem dimensões de uma vaca em

tamanho natural –, seguem para a cidade onde serão expostas e produzidas uma a uma pelos

artistas selecionados. Em média, a CowParade tem a duração de dois meses nas ruas, de onde

seguem para manutenção para serem finalmente leiloadas. Há, ainda, uma edição limitada de

miniaturas que é produzida e comercializada em diversas lojas no País e através do site

Submarinovi e um livro, com fotos da exposição.

Somando todas as edições no mundo, a CowParade contou com a participação de mais de

5 mil artistas, entre profissionais e amadores. E cerca de US$ 22 milhões arrecadados nos

eventos foram revertidos para projetos sociais. Na cidade de São Paulo, em 2009, a

CowParade gerou de mídia espontânea mais de R$ 5,5 milhões, apenas considerando a

centimetragem obtida em diversas publicações e mais de 1 milhão de verbetes no Google.

Empresas como a Pirelli, a Ipiranga, Nestlé, Alpargatas/Havaianas, Honda, Gafisa, entre

outros, patrocinaram edições da CowParade no Brasil. No Rio Grande do Sul, em 2010, a

exposição contou pela primeira vez com um patrocinador exclusivo, a Vonpar/MU-MU. No

ano de 2010, ao mesmo tempo em que aconteceu em São Paulo e Porto Alegre, a CowParade

foi exibida em Xiamen (China), Margaret River (Austrália), Roma, Bordeaux (França),

Tunísia e Esmirna (Turquia). A previsão para a exposição em 2001 é CowParade

Florianópolis – SC e CowParade Austin, no Texas – EUA.

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No Rio Grande do Sul a Toptrends realizou o evento em parceria com a Farah Service,

uma empresa focada em Marketing de Responsabilidade Sócio ambiental. Nas cidades onde

acontece, a CowParade, a exposição sempre recebe apoio governamental, seja através das

Prefeituras ou de suas Secretarias de Cultura. O patrocínio exclusivo da Vonpar/Mu-Mu na

exposição em Porto Alegre foi um fato inédito no mundo, pois em outras edições são vários e

até dezenas de patrocinadores, como é o caso da última edição em São Paulo.

A CowParade Porto Alegre 2010 teve número recorde de inscrições durante o Processo

de Seleção, foram quase 800 projetos. Destes, 70 selecionados estão sendo produzidos (ou no

galpão ou nos próprios ateliês dos artistas). Os outros 10 são vacas com suas temáticas pré-

determinas pelo patrocinador (Vonpar/Mu-Mu), totalizando 80 vacas expostas. Após a

exposição, as 80 esculturas vão à leilão, e o dinheiro arrecadado vai para o FUNCRIANÇAvii,

da Prefeitura de POA. A CowParade torna-se um exemplo de como a arte tem se manifestado

na contemporaneidade e de como ela evoluiu em relação aos seus suportes. Diversos artistas

inscreveram seus projetos na exposição CowParade Porto Alegre 2010 adaptando seus

recursos e estilos artísticos as esculturas das vacas.

Arte, representação e mercado

Gombrich (1999)viii sugere que a arte e, consequentemente, a sua história, devem ser

vistas como um experimento feito pelos artistas através do qual suas “aptidões” evoluem

conforme o tempo e a sociedade em que vivemos e, devido a isso, não convém a ninguém

julgar o que é arte ou o que não é, mas sim compreender cada período artístico levando em

conta as características do seu tempo. Mas o fato é que, entre tantas teorias e pressupostos que

tentam definir o que realmente é a arte e a obra de arte, não há um só que possa ser

reconhecido como o significado universal da arte. Deve-se levar em conta que as idéias aqui

expostas não visam encontrar uma definição específica e final para a arte, mas sim clarear o

pensamento das definições que assombram o universo artístico.

Se buscarmos a definição de arte na visão antropológica, Geertz (1989)ix , o autor nos

coloca que o discurso sobre a arte não pode ser meramente técnico. O objeto estético é mais

do que um encadeamento de formas puras, deve ser contextualizado a partir das demais

expressões e modelos de vida cotidianos que em última análise o sustentam. A definição da

arte está inserida no espaço cultura, e deseja ser fruto de um sentimento universal.

Geertz (1989) discorda da visão funcionalista segundo a qual a arte teria uma função

instrumental, sendo elaborada com o objetivo de fortalecer laços sociais. Os sinais ou

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elementos simbólicos que compõem o sistema semiótico não são ilustrações de conceitos já

existentes (função instrumental), mas elementos de primeira mão que buscam um lugar entre

outros elementos de primeira mão (mitos, ritos, organização familiar, divisão do trabalho,

tomados como ações). Ou seja: os elementos simbólicos ou sinais registrados possuem o

mesmo valor de linguagem, de acordo com a cultura e o grupo social. As representações se

originam a partir do recolhimento e da seleção de objetos e imagens que retiramos do nosso

ambiente cultural, social e midiático.

O capital cultural é uma expressão usada por Bourdieu (2007)x para conceituar um

bem simbólico (ritos e mitos) e não somente um bem prático. A noção de capital cultural

surge da necessidade de se compreender as desigualdades de desempenho escolar dos

indivíduos oriundos de diferentes grupos sociais. No seu entendimento, o capital cultural pode

existir sob três formas: no estado incorporado, no estado objetivado e no estado

institucionalizado. O estado incorporado se apresenta sob a forma de disposições duráveis do

organismo, tendo como principais elementos constitutivos os gostos, o domínio maior ou

menor da língua culta e as informações sobre o mundo escolar.

O capital cultural no seu estado incorporado constitui o componente de fundo familiar

que atua de forma mais marcante na definição do futuro escolar dos descendentes, uma vez

que as referências culturais, os conhecimentos considerados apropriados e legítimos e o

domínio maior ou menor da língua culta trazida de casa (a chamada herança familiar)

facilitam o aprendizado dos conteúdos e dos códigos escolares.

É no estado objetivado que encontraremos contribuições para o tema da pesquisa, já

que é neste último que o capital cultural existe sob a forma de bens culturais: esculturas,

pinturas, livros. Para possuir os bens econômicos na sua materialidade é necessário ter

simplesmente capital econômico, para comprar livros, por exemplo, ou uma coleção de

quadros. Entretanto, para que ocorra a apropriação simbólica destes bens é necessário possuir

instrumentos e os códigos necessários para decifrar a apropriação, ou seja, é necessário

possuir capital cultural no estado incorporado.

O bem simbólico é representativo de uma “condição de classe” (poder), definida

previamente pela posse de títulos e dos prestígios que eles são capazes de conferir ao

possuidor, assim como ao conhecimento dos “códigos de deciframento estético”, através do

domínio, em graus diferentes, dos princípios que definem a maneira legítima de abordar a

obra de arte. O sistema de bens simbólicos para Bourdieuxi refere-se a bens representativos da

categoria de "distinções simbólicas" que e capaz de transformar bens em signos.

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Conforme Leonardo Brandt xii o termo cultura pode ser usado tanto para definir algo

de domínio próprio de um indivíduo (o conhecimento adquirido, por exemplo) quanto para o

exercício de poder em relação a grupos sociais distintos (o culto e o não culto, o civilizado e o

não civilizado). Ações e políticas culturais, constituídas em campos públicos e em campos

privado, exercem, inevitavelmente a função de provedores de acesso aos conteúdos cultuais,

permitindo a apropriação, o empoderamento e o protagonismo do cidadão.

Considerando que no mercado a transmutação dos valores equivale ao valor de troca, a

CowParade tem então um valor substancial e representativo na era da globalização, assim a

arte de cada local em que a exposição ocorre (com suas particularidades, tradições, folclores)

pode ser identificada e consumida tanto pela população local – que se identifica- quanto pelos

visitantes ou turistas – que podem conhecer mais sobre as tradições do local que estão

visitando através das personalizações e pinturas das esculturas criadas por Knapp.

A imagem como ficção é o ponto de partida de Georges Didi-Huberman (1998)xiii,

para o autor a imagem não é o reflexo do indivíduo subjetivo, mas sim, o próprio corpo de um

pensamento que carrega suas questões inerentes. Somos seres “imagéticos”, e a sociedade

contemporânea tem a capacidade de potencializar o sentido da visão em nosso cotidiano.

Vivemos rodeados de imagens: televisão, cinema, cartazes, propagandas, fotografias, rótulos,

marcas, revistas.

O que Didi-Huberman irá propor é que toda imagem tem sua origem em um jogo

incessante entre o perto e o distante, que alternaria entre o cheio e o vazio, entre a presença e a

perda. De acordo com Didi-Huberman:

“[...]o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável, porém, é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”. Observar, olhar, perceber, nos remete a questão: não é só “o que vemos”, mas também “o que nos olha.” xiv

Partimos então, para a construção de sentido no jogo que acontece entre nosso olhar

diante das coisas e o olhar destas coisas diante de nós. Há um processo que poderíamos nos

referir como de reconhecimento, ou espelhamento, que seria capaz de nos interrogar, de nos

olhar. A obra nos interpela, nos cativa, e resultamos então em uma permuta entre o que ela

nos propõe e nossas próprias percepções.

Como exemplo, podemos citar a vaca Televisão de Gaúcho (FIG. 01), criada por Thiago

Russel, que representa claramente uma tradição gaúcha: o churrasco no rolete, e a Vaca Ponte

do Cowíba (FIG. 02) de Ana Aita, que se refere a um dos principais pontos da capital Gaúcha,

a Ponte do Guaíba.

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FIGURA 01 – Televisão de Gaúcho, 2010. Fonte:<http://www.fabianopanizzi.com/cowparade>

Acesso:20 de outubro 2010

FIGURA 02 – Ponte do Cowíba, 2010. Fonte: <http://www.fabianopanizzi.com/cowparade>

Acesso:20 de outubro 2010

A partir da imagem das esculturas acima, podemos relacionar o processo de criação delas

com a idéia de “sintoma da memória” de Didi-Hubermanxv que afirma que as imagens são

atravessadas por uma memória que jamais saberá por inteiro o que acumula. Através do

“sintoma da memória”, o autor concebe uma estrutura onde as imagens se desvelam em suas

latências e fundamentos. É o artista apresentando suas raízes ao observador. Didi-

Hubermanxvi nos ensina que o “ver” só se pensa e só se experimenta em última instância

numa experiência de “tocar”. Devemos manter os olhos fechados para ver quando realmente o

ato de “ver” nos remete a um “vazio” que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos

constitui.

Diante de uma imagem, quando a olhamos e somos olhados por ela, vivemos a sensação

de “inquietante estranheza”, de incompletude, de que algo escapa, algo falta. Freud propunha

um paradigma para explicar a “inquietante estranheza”, classificando-a como a desorientação,

a experiência na qual não sabemos exatamente o que está diante de nós e o que não está. O

“estranhamento inquietante” seria algo em que nos vemos totalmente desorientados. No caso

da escultura de Thiago Russel e Ana Aita, a inquietação se dá a partir do momento em que

eles como produtores, em um processo de percepção nos remetem a símbolos tradicionais

gaúchos, como o churrasco no rolete, uma das tradições do Rio Grande do Sul, e da Ponte do

Guaíba, que tornou-se um dos símbolos de Porto Alegre após sua inauguração em em 28 de

dezembro de 1958xvii. A obra passa a fazer parte de nós, e nós, da obra.

As esculturas Televisão de Gaúcho e Ponte do Cowíba se desvinculam dos seus

produtores e tornam-se uma potência em si mesmas, criando sintomas de esvaziamento,

rompendo com o seu suporte, que no caso é a vacaxviii, desmaterializando-se e apropriando-se

de outras imagens recorrentes na temática da artista. Didi-Huberman (1998) coloca que ao nos

depararmos com uma obra de arte, não estamos somente analisando-a, mas também sendo

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analisados por ela. A obra nos inquieta e nos convida a percebermos quem somos num fluxo

contínuo de troca entre a mesma e nossas percepções mais incertas.

Outro exemplo de escultura carregada de informações locais que participou do evento é

a Vacaduto da Borges (FIG. 03) de Suzel Neubarth com ilustrações referentes ao Viaduto

Otávio Rocha, que fica na Rua Borges de Medeiros, centro de Porto Alegre. Existiram ainda

na CowParade Porto Alegre 2010 outras esculturas capazes de remeter a idéias locais, como a

Vaca Gaudéria (FIG. 04) de Amilton Peres Ferrão, a Tricowlor (FIG. 05) de Chico Baldini e

a Cowlorada (FIG.06) de Rodrigo Corrêa.

FIGURA 03 – Vacaduto da Borges, 2010.

Fonte:<http://www.fabianopanizzi.com/cowparade> Acesso:20 de outubro 2010

  FIGURA 04 – Vaca Gaudéria, 2010.

Fonte:<http://www.fabianopanizzi.com/cowparade> Acesso:20 de outubro 2010

FIGURA 05 – Tricowlor, 2010.

Fonte:<http://www.fabianopanizzi.com/cowparade> Acesso:20 de outubro 2010

FIGURA 06 – Cowlorada, 2010.

Fonte:<http://www.fabianopanizzi.com/cowparade> Acesso:20 de outubro 2010

Capazes de concretizar informações, independente da presença ou ausência da forma

física diante de nós, as representações estão ligadas à memória humana, é o resultado da

construção da imagem de um objeto ou idéia na mente humana. Deve-se levar em

consideração que as representações estão acopladas à idéia de produção e reprodução,

podendo ser englobadas desde a ação de produzir uma representação, à de apenas

reproduzi-la.

O retorno as tradições gaúchas, através da escultura de Thiago Russel, e a representação

de um importante símbolo de Porto Alegre através da escultura de Ana Aita é o que deu

especificidade a essas obras produzidas para o evento. Didi-Huberman designa a obra então

como uma imagem dialética: "Então compreendemos que a imagem dialética – como

concreção nova, interpenetração crítica do passado e do presente, sintoma da memória – é

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exatamente aquilo que produz a história. De uma só vez, portanto, ela se torna a origem

[...]"xix. Elementos simbólicos devem ser lidos, interpretados (em seus ícones, índices e

símbolos), como algo que produzem significações a partir de uma relação dialética entre eles

e o meio social. Para tal, uma semiótica da arte deveria abrir mão do discurso estético

(enquanto ele estiver direcionado a descrições conceituais do plano instrumental), pois os

elementos artísticos dialogam antes com sensibilidades do que com conceitos.

A percepção estética do contemporâneo e suas novas técnicas exigem do consumidor

uma postura diferenciada, onde o sujeito, e não o objeto adquire um novo conceito do que

seria a originalidade. Omar Calabresexx também faz suas reflexões sobre os processos de

reprodução e de repetição que ocorre na cultura do final do século XX, e afirma que o

idealismo da originalidade (unicidade) faz com que a obra de arte seja compreendida como

algo que naturalmente não permite a reprodução ou repetição, pois em conseqüência disso, a

sua originalidade acabaria assim por ser reduzida. A reflexão do autor pode ser colocada aqui

como contraponto a repetição ocorrida na CowParade, já que o artista é limitado a utilizar um

dos três modelos de esculturas de vaca oferecidos a ele.

Calabrese xxipropõe três noções de repetição (reprodução) que podem partir do sujeito: a

repetitividade como modo de produção de uma série a partir de uma matriz única

(estandardização); a repetitividade como mecanismo estrutural de generalização de textos

referente à estrutura do produto (dialética entre a identidade e a diferença); e a repetitividade

como condição de consumo por parte do público dos produtos comunicativos, oferecendo ao

público a tranqüilidade se sempre encontrar o que procura (“satisfações sempre iguais”).

Nas esculturas da CowParade a repetição freqüentemente se baseia em um ideal, essa

repetição revela um modelo de estrutura. No caso da CowParade são os três modelos das

esculturas que limitam o espaço artístico, e por mais que os artistas usem os mais diversos

materiais ou recursos, sua arte sempre seguirá um modelo padrão pré-estabelecido de

escultura da vaca. Assim, mesmo na variação, ou seja, pinturas, gravuras, soluções diferentes,

as esculturas da CowParade seguem um modelo que se repete.

As questões contemporâneas são, muitas vezes, tratadas como revoluções culturais

capitalistas, pois, a comunicação, a globalização, as novas segregações sociais e o grande

poder de influência da mídia na construção de culturas e símbolos sociais resultam em uma

nova ordem cultural contemporânea. A sociedade contemporânea é vista como uma sociedade

que valoriza uma cultura baseada no consumo e na massificação.

Podemos perceber nas exposições da CowParade um caráter consumista por termos

várias vacas fabricadas em série, e elitista também, por depender de um patrono

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(patrocinador) para que se possa ter o exercício da arte, mas é sobretudo democrática, por

deixar cada local pintar suas vacas da maneira que melhor lhe convier. É em busca do bem

simbólico, que as empresas buscam o patrocínio cultural, na tentativa de agregar a sua marca

ou serviço uma imagem cultural.

A CowParade extrapola o universo das artes plásticas, rompendo os muros das

galerias de arte, popularizando o elitizado, colocando a população para olhar, mexer,

fotografar (e fotografar-se), montar. A exposição oferece descobertas e seguir o mapa das

vacasxxii virou uma grande brincadeira. Os objetos não são consumidos em si, ou seja, é seu

valor como signo que tem importância, seja para comunicar algo sobre o indivíduo que o

possui ou utiliza, seja para distinguir socialmente.

Sendo assim, percebe-se que a arte contemporânea também tem conquistado seu

espaço dentro de práticas culturais, do mercado e do consumo cotidiano, fazendo com que

sejam criados laços entre arte, mercado de consumo e massificação. A arte contemporânea é

pluralista, tanto em intenção como em realização, o que dificulta o fato dela ser apreendida

em uma única dimensão, é como um laboratório de experimentação.

Emerge então através do exemplo da CowParade Porto alegre 2010 uma discussão

que reflete a diluição das fronteiras entre arte contemporânea a e o mercado de consumo,

juntamente com a questão da reprodução, que acaba tomando o lugar da produção. As novas

leituras (ou releituras) da arte promovem um novo dialogo entre arte e vida. A arte está cada

vez mais inserida na pluralidade do cotidiano: consumo, publicidade, moda, cultura de massa

entrelaçam-se. A arte, no último século se transformou bastante e acompanhou os rumos da

sociedade e por muitas vezes, serviu de contraponto ao pensamento dominante e generalizado.

A análise e a compreensão do evento CowParade Porto Alegre 2010 se constitui numa

espécie de laboratório conceitual para entender o fenômeno representado pela presença da arte

contemporânea no mercado.

                                                            i Disponível em: < http://prague.cowparade.com/general/pascal/> acesso em 20 de janeiro de 2011. ii Na Suiça a vaca é um dos símbolos do país. iii Disponível em: <http://www.cowparade.com> acesso em 10 de outubro de 2010. iv Disponível em : <http://www.toptrends.com.br> acesso em 23 de janeiro de 2011. v There is really no other animal that can adequately substitute for the cow and produce the level of artistic accomplishment evident in this moo-seum. The surface area and bone structures are just right, as well as the height and length. Disponível em: <http://monaco.cowparade.com/about/whycows.php> acesso em 23 de janeiro de 2011. vi Dispoível em: <www.submarino.com.br> acesso em 23 de janeiro de 2011. vii FUNCRIANÇA: fundo criado por lei federal para beneficiar a criança e o adolescente. É constituído por doações de pessoas físicas, jurídicas ou do próprio Poder Público, existe em Porto Alegre desde 2001. Disponível em: <http://www.portoalegre.rs.gov.br/fundocrianca>, acessado em 24 de novembro de 2010. viii GOMBRICH. Ernest H. A história da Arte. Tradução de Álvaro Cabral. 16 ed. RJ: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1999.

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Page 10: CowParade Porto Alegre 2011: mercado e …...CowParade Porto Alegre 2011: mercado e representações Tanise Pozzobon, PPGART – UFSM tpozzobon@yahoo.com.br Introdução: O presente

 

                                                                                                                                                                                          ix GEERTZ, Clifford. A arte como sistema cultural. In O saber local – Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2001. x BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. xi (BOURDIEU, 2007, p.17) xii BRANDT, Leonardo. O poder da cultura. São Paulo: Peirópolis, 2009 xiii DIDI- HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Prefácio de Stéphane Huchet; Tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Ed. 34, 1998. xiv (HUBERMAN, 1998,p.29) xv (HUBERMAN, 1998, p.115) xvi (HUBERMAN, 1998, p. 31) xvii Disponível em: < http://www.concepa.com.br/ponte-guaiba.asp>, acessado em 25 de janeiro de 2011. xviii As vacas são feitas de fibra de vidro e pesam, cada uma, em torno de 60 kg. xix (HUBERMAN, 1998, p. 177) xx CALABRESE, Omar. A idade Neobarroca. Tradução de Carmem de Carvalho e Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1999. xxi (CALABRESE,1999, p.43) xxii O Mapa das vacas esteve disponível no site oficial da CowParade Porto Alegre 2010, sendo no dia do leilão oferecida uma premiação para quem tirasse foto com todas as vacas da exposição. Também foi feito um site especial da Zero-Hora, disponível em: <http://www.fmss.org.br/zerohora/jsp/home.jsp> acessado em novembro de 2010. 

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

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