cosmopolis - interno

25
Cosmopolis - Interno.indd 1 17/04/2014 16:45:38

Upload: myka-vykos

Post on 01-Oct-2015

45 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Livro sobre a história de cosmópolis.

TRANSCRIPT

  • Cosmopolis - Interno.indd 1 17/04/2014 16:45:38

  • Guilherme de Almeida

    3 Edio

    Cosmopolis - Interno.indd 2-3 17/04/2014 16:45:40

  • 5Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    A447c Almeida, Guilherme de, 1929

    Cosmpolis: So Paulo/29 / 8 reportagens de Guilherme de Almeida; So Paulo : Companhia das Letras, 2014.

    49 p.

    ISBN-10: 8504006808

    1. Crnicas brasileiras. I. Ttulo.

    A Alarico Borelli, o sempre-amigo e nestes itinerrios, o guia certo.

    O.C.D.O Autor

    Copyright 2014 Companhia das letrasA publicao desta obra recebeu apoio da Casa Guilherme de Almeida

    Design e ilustrao da capa:

    Nicole Cichovski Begot

    Projeto grfico e diagramao:

    Nicole Cichovski Begot

    Preparao:

    Maria Helena Werneck BomenyRegina Cunha WilkeFernando Carvalheiro

    [2014]Todos os direitos reservados desta edio Editora Schwarcz LTDA.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 - So Paulo -SpTelefone (11)3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasetras.com.br

    Cosmopolis - Interno.indd 4-5 17/04/2014 16:45:42

  • 76

    POR QU? 9

    I RAPSDIA HNGARA 11

    II O BAZAR DAS BONECAS 16

    III CHOPE DUPLO 21

    IV O GUETTO 25

    V A CONFUSO BLTICA 31

    VI UM CARVO DE GOYA 36

    VII OS SIMPLES 41

    VIII O ORIENTE MAIS QUE PRXIMO 45

    Cosmopolis - Interno.indd 6-7 17/04/2014 16:45:42

  • 98

    Porque um amigo me disse, faz muito pouco tempo:Lembra-se daquela srie de artigos sobre bairros es-

    trangeiros de So Paulo, que voc publicou no Estado, se no me engano em 1929, sob o ttulo de Cosmpolis? Voc deve ter guardado os recortes. Nunca pensou em pr isso em livro? Olhe que valeria a pena...

    E, na sua afetiva generosidade, argumentando, observou ele serem aquelas minhas letras, j agora julgadas de uma res-peitvel distncia no tempo (trinta e trs anos!), um depoimento nico, talvez: premonitrio solilquio num dos mais atribulados momentos da nossa histria e sobre certos ltimos lampejos de algumas derradeiras facetas do grande, livre, autntico So Pau-lo que no ano seguinte Delenda So Paulo! iria acabar.

    Por isso...Por isso, desentulhei do passado as longas tiras de papel

    de jornal, amarelas de idade e esquecimento. Desdobrei-as. Fui lendo. Como um estranho. Sensao de novidade. Ento essa cidade existiu, de fato? Assim fcil e pitoresca, com apenas no-vecentos mil habitantes to afeioados a ela e entre si mesmos, bem diferenciados pela origem e costumes, elegendo vontade

    Cosmopolis - Interno.indd 8-9 17/04/2014 16:45:44

  • 1110

    seus quarteires e a eles circunscrevendo-se com gosto e, pois, riscando e colorindo no cho de Piratininga um caprichoso mapa-mndi com este nome com este nome de cartela: Cosmpolis?...

    Sim. Cosmpolis foi o ttulo geral dado s oito reporta-gens que, durante oito domingos consecutivos de 10 de mar-o a 12 de maio de 1929 , foram aparecendo no Estado, e que conservo intactas. A no ser a atualizao ortogrfica, con-fiada ao revisor, nado do texto original foi alterado. Reconheo e respeito o encanto das virgindades que sempre so uma s.

    No se estranhe faltar, entre os ncleos estrangeiros aqui focalizados, o mais importante: o italiano. Ele existia, sim, no primeiro quartel deste sculo, no antigo So Paulo do Brs, do Piques, do Bexiga. Mas, em 1927, o Comendador Martinelli fin-cou, na Praa Antnio Prado, a ponta de um compasso imenso (vinte e seis andares: sessenta e cinco metros de altura!), que descreveu, em torno, a nova Civitas: e, nesta, paulistanos e ita-lianos confundiram-se definitivamente.

    Chamei de reportagens a estes meus escritos. Bem sei que no so eles (to subjetivos!) o que hoje se diz reporta-gem: coisa objetiva. Isto : fotos e legendas. Mas, mantenho a designao. Os olhos da gente tambm so objetivas fotogrficas.

    Por que este livro?Por isso.1

    G. de A.

    1 Cosmpolis uma coletnea de reportagens sobre bairros es-

    trangeiros da cidade, com seus tipos e costumes, publicadas originalmente

    entre 10 de maro e 12 de maio de 1929 no jornal O Estado de S. Paulo.

    O resultado deste trabalho tornou-se um livro em 1962 e teve uma nova

    publicao em 2004.

    ROSA-DOS-VENTOS. Alto da Mooca.2 aqui em cima que moram todos os ventos de So Paulo.Rua do Oratrio: que no rua e no tem nenhum orat-

    rio. Uma subida alongada, cansada, arrastada. Vai, no vai... Em seguida: no vai. Em primeira: vai. Foi. Pronto! O bairro hngaro de So Paulo.

    Domingo. O cu est azul e a terra est seca. E venta e venta no cu e na terra.

    Rosa-dos-ventos.Dos pneus sobe uma nuvem vermelha que fica atrs, mor-

    rendo. O meu cigarro dura um minuto s, todo fumado pelo ar inquieto da altura. De poste a poste os fios danam, sem expresso, a sua dana bamba e paralela.

    Rosa-dos-ventos. O bairro hngaro de So Paulo.De So Paulo? No sei. So Paulo parece que est to

    2 As reportagens de Guilherme persistem por seu valor literrio e

    potico. So, na verdade, um exemplo de jornalismo literrio, que fazem de

    seu autor um precursor dessa modalidade jornalstica.

    Cosmopolis - Interno.indd 10-11 17/04/2014 16:45:45

  • 12 13

    CosmpolisRapsdia Hngara

    longe, to longe, l, muito alm desta planura cor de barro, bem alm daquele arrepio de chamins de fbricas e bales de ga-smetros; um pouco alm daquela verdura de parque que tem uma cobra de gua parada no meio... L, ali onde esto uns cubos altos, oxidados de distncia. So Paulo enorme de casas e gentes. Casas e gentes de todos os estilos. Cosmpolis. Resumo do mundo. Veja, pense: L, alo, por a plantaram a sua vida de trabalho povos de toda a terra, antpodas pela civilizao, ou antpodas pela raa, ou antpodas pelo acaso geogrfico: amigos ou inimigos ou indiferentes todos. Todos. Entretanto, que har-monia, e que equilbrio, e que igualdade! O grande milagre do trabalho. Harmonia, equilbrio e igualdade feitos de diferenas.

    Rosa-dos-ventos. Venta e venta. Deixei ir tambm por a, sem querer, nesse vento irresistvel o meu pensamento. Lou-cura. preciso ret-lo, prend-lo aqui, apenas nisto: este o bairro hngaro de So Paulo.

    Rosa-dos-ventos.Rosa...Sim. bem uma rosa, com muito plen, a moa

    dourada que apareceu porta do quarto. Um quimono de cre-pom cor de fogo. Pequena; alva; maxilares salientes; olhos esti-rados de um azul que... (no preciso comparar com o Danbio Azul, nem mesmo para dar cor local); cabelos que so um cla-ro cortado de repente; boca francamente talhada sobre dentes curtos, brancos, bons. Os dentes... Ela mesmo toda um riso de infncia estagnada. Uma noite em Budapeste... (Paul Morand, por que voc no vem aqui escrever mais um pouco?) Fala comi-go. Fala? Ri, ri, ri.

    Vocs tem tudo aqui? Luz? Gs? gua encanada? Tem tudo. Tem at burro.E, na ponta do seu bracinho cheio e cor-de-rosa...

    ... qui donnait envieDtre ct delle dans les farandoles,

    O lon est tire, ou il faut quon tirePlus uon oserait...,

    na ponta do seu bracinho cheio e cor-de-rosa, seu dedo irnico, de unha pintada, mostra um burro solto, que passeia pela rua (Rua Dias Leme), com uma expresso feliz de proprie-trio e de domingo. Ela est enganada: no tem luz, no tem gs, no tem gua encanada. Ela no sabe. Mulher.

    ... tre cote delle dans ls farandoles..

    A farndola era perto dali, na esquina, pegado a uma ven-da de cigarros e guaran e tudo, menos erzats-Tokay.

    O lon est tire, ou il faut quon tire...

    Numa sala de cal, correntes e bolas de papel, que fo-ram de cor, sobre um estrado altssimo, duas sanfonas dirigem a farndola. Sanfona e domingo: estas duas coisas nasais com-pletam-se. Todas as mulheres esto vestidas de chita. Xale no ombro. Leno na cabea. Colares e colares. Um resto de ciga-nismo longnquo. As saias so extraordinariamente folhudas. E as meias so grossas, opacas demais, de um algodo cauteloso. Todos os homens esto em mangas de camisa, colete desabo-toado e chapu na cabea. Brasileiro no entra. Uma mazurca. Moralidade absoluta,

    ... plus quon noserait...

    AdiantePassam, na rua quente, gorduras femininas. Uma, toda

    azul, da cabea aos ps (parece uma freira), est exata. uma hngara. No: a Hungria. As pernas impressionam-me: pare-cem garrafas de Champagne de boca para baixo. No so. So s pernas. Pernas camponesas. Uma lembrana das plancies de trigo maduro e das granjas cercadas de accias...

    E passam tambm tabuletas imensas, em todo lugar: Prestaes a longo prazo. O cho, a, barato e cmodo. E a vida deve ser longa. Longa e lenta como aquela lengalenga fanho-

    Cosmopolis - Interno.indd 12-13 17/04/2014 16:45:45

  • 14 15

    Rapsdia Hngara Cosmpolis

    sa de sanfona sonolenta que um dos ventos da rosa-dos-ventos ainda me traz de longe... da mazurca...

    E passam casas. Pequenas. Pequenssimas. Terrenos de seis metros por trinta. Construdas todas l no fundo. Apenas o essencial: cozinha e quarto (cozinha, principalmente). Aqui, na frente, jardinzinho, para o qual as paredes da construo termi-nam, mas quinas, em serrilha de tijolos aparentes, esperando. So as pegas para um futuro aumento da casa. Quem sabe? A famlia e o dinheiro podem crescer... Que bonita impresso de esperana, de vontade de vencer, de confiana no tempo aquilo que me d!

    Adiante.Uma praa. Gente em penca em torno de qualquer coisa.

    Essa qualquer coisa , acima de tudo, uma sinfonia. Monto-na, repetida, quase letrgica. Sai de dentro de um violino, que est nas mos de um homem grande, moreno um tzigane? trepado numa cadeira e tambm em mangas de camisa, colete desabotoado e chapu na cabea. Aquele homem melodioso como uma pedra atirada numa gua quieta: vai abrindo, em volta de si, crculos concntricos, cada vez maiores, maiores, at que desaparecem nas margens. assim. H uma roda muito fechada de mulheres e homens mulheres de um lado, homens de outro de mos dadas, srios, convencidos, calados. Ele o centro dessa roda, pouco a pouco, alargar-se, espichar-se cada vez mais... E, enquanto assim se vai abrindo, alargando, e espi-chando, entram, sob os braos dos maiores, bandos de crian-cinhas, que vem no se sabe de onde, e ficam no meio, mudas, imveis, bobas, numa penca, bem pertinho do msico moreno. E a roda que roda num sapateado triste, pesado, vai-se abrindo, esticando at no poder mais. Ento, rebenta. A msica hipn-tica d um gemido e cai em sncope brusca. E a roda se dissolve, calma, como da gua quieta.

    Esta margem uma multido silenciosa. Completamente silenciosa. To silenciosa, que chego a duvidar da existncia da lngua magiar. So umas mulheres de ccoras vendendo peras verdes e tremoos. Uns velhos com tabuleiros de balas e amen-

    doim, jogados ao loto. Parece que difcil obter-se pprica em So Paulo.

    Dizem que grilos so hngaros. No vi, nem ouvi, um s grilo por ali.

    Passa pela praa de cho duro e capim um fotgrafo ambulante.Adiante.Mais nada.Rosa-dos-ventos.No para-brisa do automvel, que desce a Rua do Orat-

    rio, o ar cortado toca Lizst: o velho Lizst que eu no ouvi l em cima, neste domingo hngaro, srio e pesado como a coroa de ferro de Santo Estevo.

    Adiante.

    10 de maro de 1929

    Cosmopolis - Interno.indd 14-15 17/04/2014 16:45:46

  • 17

    Cosmpolis

    16

    COISAS QUE A GENTE imagina...(fazer um poo, aqui, bem fundo, fundo, fundo, que atra-

    vesse toda a terra; cair dentro dele de cabea para baixo, e, num segundo z-z-z-z-z-z pan! Pronto! sair direito, de cabea para cima, l ma outra ponta, no Japo!)

    ... e que acontecem depois de grande.Foi mais ou menos assim. Com a diferena que eu estava

    de automvel e que chovia. Um fim de dia, que dava bem ideia de fim: com esse irremedivel cinzento, esse impossvel pardo, essa pr-saudade de uma coisa que nem sequer foi boa, esse constante Nunca mais! pingado do bico de um corvo invis-vel...; esse vazio, essas negaes todas que s a chuva sabe por em torno de uma vida.

    Mas o interessante que a boca iluminada do poo, pela qual eu, na minha queda, j ia adivinhando o Japo sonhado, to-mou de propsito, para criar ambiente, a forma de um leque. Era aquele leque translcido que o limpador automtico de pa-ra-brisa, oscilando, exato como um pndulo, de c para l, de l para c, abria no cristal todo arrepiado de bolinhas de guas luminosas, todo enfeitado de strass. E nesse leque de vidro foi-

    se pintando a paisagem japonesa de leque. Uma corrida rente aos paredes antigos da Rua da Glria.

    Uma esquina, dobrada esquerda. Outra, derrapada direita...Japo.J? J, sim. Foi ali, numa venda vulgar, igual a todas as

    vendas vulgares de So Paulo, que apareceu a primeira japone-rie: uma lista de preos de gneros giz branco no quadro-negro escrita em japons.

    Um avano mais pela Rua Conselheiro Furtado: e a Rua Conde de Sarzedas rasga, sobre os telhados pretos, velhos, tris-tssimos, da Rua da Boa Morte, l embaixo, o seu corte ngreme e reto. Telhados da Boa Morte... Que ar de Semana Santa, que quietude de defunto, que recolhimento de famlia enlutada, que roxa lembrana do finado Fagundes (tenho a impresso de que na Boa Morte todos os homens se chamam Fagundes e so finados) vivem pasmadas, ali, sobre e sob aqueles telhados pre-tos, velhos, tristssimo da Boa Morte.

    Mas aqui em cima que est o auto molhado, na quase noite confusa de chuva. Aqui, onde comea e acaba o Japo de So Paulo. Comea e acaba de repente. Porque pequenino, pequenininho este Japo: e assim so todos os Japes possveis. Concentrao absoluta: Rua Conde de Sarzedas, toda de casas se fisionomia, como as caras da multido. Nada mais. Pequeno, pequenino, pequenininho como aquelas rvores-ans, pinheiri-nhos seculares, tortos e fortes, plantados nos jardins milion-rios; pequeno, pequenino, pequenininho como as aves finas e detalhadas que Krin pintou nos papis de seda, ou como as geishas de ouro sentadas sobre os ps, tocado o koto e o shami-sen, na tampa das caixas de laca negra; pequeno, pequenino, pe-quenininho como aqueles netzksde marfim velho ou cristal de rocha que as redomas dos colecionadores guardam com avareza e orgulho; pequeno, pequenino, pequenininho como os trs ver-sos breves e o pensamento breve que vive nas dezessete slabas de um haikai; pequeno, pequenino, pequenininho como...

    Mas, ali o Reino do Pequeno. Lilliput Amarela. Bazar de bonecas.

    Cosmopolis - Interno.indd 16-17 17/04/2014 16:45:46

  • 18 19

    CosmpolisO bazar das bonecas

    Veja aquela criancinha que passou na calada: corpo de canela, cabelos rijos, esticados, envernizados de raa e chuva; com uma franja geomtrica pretssima, na testa; dois olhos sem clios, doces, oleosos, de amndoa, mal pousados flor da pele: boneca. E no maior do que a mulherinha ligeira, de l mar-rom, que passou, num silncio medroso, com seus ps exguos fincando-se, firmes, no cimento da calada; e sua figurinha mida cortando a chuva mida: boneca. E nem maior do que ela o homenzinho que tem uma capa de borracha comprida, muito comprida, o chapu desabado e as mos delicadas, e que desce, automtico, direito, apressado, a sua rua cotidiana: boneca.

    O bazar das bonecas.Outra criana. Outra mulherinha. Outro homenzinho.

    Outras crianas. Outras mulherinhas. Outros homenzinhos. Bo-necas. Todas iguais: sempre a mesma franjinha do modelo de Fou-jita; sempre a mesma figurinha ligeira e mida; sempre a capa de borracha muito comprida... Pequeno, pequenino, pequenininho...

    Bonecas sob letreiros. Tabuletas e tabuletas: kakemonos enormes de lata azul com todo o caprichoso silabrio hiragana, branco, vertical. Todos os caracteres so parecidos com os to-riis que fazem o prtico dos templos xintostas, e que os leques, as lanternas, os biombos, os cartes-postais e o cinema j uni-versalizaram. Em baixo as obrigatrias tradues portuguesas (para que traduzir? para que explicar?), em letras bem pequenas, cheias de KY, YY e NN. Penso Familiar. Dentista. Objetos Japoneses. Barbeiro. Principalmente, penses familiares.

    Um restaurante. Pintura alem esponjada, azul-claro; ta-biques de pinho esmaltado de branco; tudo limpssimo; o menu em papeles grandes, pelas paredes, como quadros.

    Que que tem a?E a japonesinha sria, distante, honesta, toda entre corti-

    nas de cretone alegre, de desenhos quase to japoneses quanto ela, informa, seca:

    No tem comida pra branco! E vai-se embora depressa.Artigos Japoneses. Interior: revistas e almanaques, sa-

    bo, xcaras, conversas, discos de gramofone, mariscos em bo-cais de vidro, carpas e polvos defumados, flores de pessegueiro artificiais, ch... Tudo. Outra japonesinha:

    Isto para tomar pinga japonesa. Custa quinhentos ris!E vende, depressa, uma espcie de tigelinha bonita de

    porcelana pintada: verde, preto e ouro. Made in Japan.Atrs de uma prateleira, uma mesa baixa. Em torno, trs

    homens moos. Esto colando sobre folhas de papel de embru-lho uma quantidade enorme de notas estraalhadas: dinheiro circuladssimo. Um puzzle paciente, desesperante. Distrao para dias de chuva.

    Recebe tudo. Fregus tem s dinheiro assim...E os trs rostos lisos, fixos, inteligentes, abrem, ao mes-

    mo tempo, trs sorrisos idnticos, simpticos, rpidos. Trs mscaras risonhas de Dem- Jioman.

    Vai caindo a noite nos pingos da chuva. Quatro bicos de gs distanciados desenham a Rua Conde de Sarzedas: uma luz esverdeada que se suja no calamento molhado.

    Descer a rua trpega.Um barbeiro. H uma boneca de celuloide, cabeluda,

    perfeitamente europeia, sentada na estante das loes, olhando para o barbeiro de sweater.

    Trs luzes eltricas, oito, onze... abrem o seu olho amare-lo e parado atrs dos vidros encardidos.

    Sai de um poro a voz mais que humana de um violino desesperado.

    Noturno no bazar das bonecas. Ningum. Ningum. Ningum.

    Calamento levantado para canos de esgoto: a rua faz parar, de repente, o automvel numa corcova, onde ela comea a descer com voracidade para uma capelinha, trs bombas de gasolina e o telhado, em dentes de serra, de uma fbrica.

    Subir de novo a rua trpega.Noturno no bazar das bonecas. J h uns globos eltricos,

    brancos, com a escrita hiragana negra, pondo luas nas pequenas fachadas comerciais. Ningum. Nin... No: agora h um homem.

    Cosmopolis - Interno.indd 18-19 17/04/2014 16:45:47

  • 2120

    O bazar das bonecas

    Deve vir do trabalho quieto, numa dessas casas de mveis bran-cos que andam esmaltando a cidade toda. No traz na cabea o kasa campnio, nem nos ombros o mino amplo dos arrozais ra-sos. A capa de borracha comprida, o chapu desabado, as mos delicadas. Desceu. Passou.

    Noturno no bazar das bonecas.O velho palacete dos Condes de Sarzedas espia o burgo

    pelas suas arcadas Elizabetianas de tijolos vermelhos e vitrais. No paredo ameaado de sua esquina, encosta-se a Rua Bonita, inexplicavelmente bonita.

    Subir sempre. Ver passar becos de casinhas iguais: as vilas. H coisas estreias e sinuosas, que podem dar ideia de perigo...

    A noite j caiu toda. Agora, uma espcie de medo que comea a cair nos pingos da chuva.

    Mas Shoki, o Caador de Demnios, ventrudo e podero-so, espanta as criaturas que do medo... E que tem medo...

    ...(fazer um poo, aqui, bem fundo, que atravesse toda a terra: cair dentro dele, de cabea para baixo e, num segundo z-z-z-z-z-z pan! Pronto! sair direito, de cabea para cima, l, na outra ponta, no Largo da S, por exemplo!).

    17 de maro de 1929

    O RELGIO ALEMO dos Beneditinos onze longos roncos de bronze encheu de fantasmas a noite. As almas serficas dos pacientes relojoeiros de Strasburgo voaram das pedras bizantinas de So Bento nas notas do cobre temperado onze longos roncos de bronze ; j passaram, espantadas, um viaduto atirado como um arco de aliana de igreja a igreja; roaram o romntico cinzento de Santa Ifignia; ficaram no ar, um instante, rondando, pasmadas, na primeira friagem deste ou-tono; desceram com sono, sonoras, montonas, lentas e tontas; ondularam, miaram, ronronaram como gatos sobre os telhados rasteiros da Rua Vitria, da Rua dos Gusmes, de todas as tra-vessas da Santa Ifignia.

    Que estranho! Agora, parece que aquelas mesmas no-tas lnguidas, que ali tinham descido, dali comeam a subir de novo, desdobradas, desfolhadas, esfareladas. Sobem... Sobem... uma ressonncia envolvente, embaladora, em ascenso. Um canto de onda no cncavo acstico de uma concha. Pianos, pia-nos e pianos. Todos os pianos do mundo marcaram encontro, ali, no bairro rasteiro dos bares. E o bairro rasteiro dos bares toda uma sinfonia s. todo uma valsa alem de opereta:

    Cosmopolis - Interno.indd 20-21 17/04/2014 16:45:47

  • 22 23

    CosmpolisO chope duplo

    caudas e fardas rondando nos palcos, desfiando um novelo re-dondo de sons...

    o bairro rasteiro dos bares. o bairro dos pianos. o bairro alemo. o bairro do chope. Em cada bar h um piano. Em cada piano h um alemo. Em cada alemo h um piano. Em cada alemo h um chope. Dois chopes duplos. Vinte chopes duplos.

    Na comprida rua vazia, uma luz numa bola de vidro leito-so e um sonho de piano: bar. Outra rua, outra luz, outro piano: bar. Rua, luz, piano: bar.

    o bairro noturno. o bairro que s existe de noite, com o medo. Gente, que a gente nunca viu de dia, surge da noi-te e fica na noite de pianos e chopes. Gente, que a gente nunca viu, parecida com aquele Henrique VIII, ou aquele Burgomestre Meyer, pomposos e estufados, que saram do pincel quinhentista de Hans Holbein: parecida com aquelas criaturas apocalpticas O cavaleiro da Morte, ou A Melancolia que o estilete de Albert Durer riscou no cobre brunido; parecida com aqueles diabos delirantes dos Contos Noturnos de Hoffmann; parecida com os Nibelungen subterrneos, os filhos da bruma, os gno-mos barbudos e bochechudos dando risadas simpticas debaixo dos cogumelos molengos da Floresta Negra...

    Imaginaes. Delrios. Literatura. No nada disso, no. apenas uma boa gente que trabalha, de dia, por a tudo, e vem, de noite, beber cerveja no bairro rasteiro dos bares. Gente de disciplina pacfica e profisses poticas floristas, msicos, fotgrafos, ortopedistas, tapeceiros, massagistas... ; de uma suave docilidade ao trabalho e ao mtodo; que tem hora certa para tudo: hora de ganhar dinheiro, hora de gastar dinheiro, hora de ser srio, hora de sorrir... Sorrir, de noite, no bairro rasteiro dos bares.

    Um bar. De longe j se ouve o piano pingando a marcha dos estudantes: Perdi meu corao em Heidelberg. De longe j se v o garom lourssimo, jaqueta branca, na porta, esperan-do. Dentro. Mesas pequenas, quadradas, entre divises de sar-rafos esmaltados cruzados em losango. Fingimento de madeira na parede at a altura de um homem normal (2 metros e 15, por

    exemplo, como era na velha guarda prussiana...). Em cima, cal esponjada. O pianista: um sonhador, com uma cara convidativa de ganso de aldeia. Toca e bebe. O chope ao lado do teclado. Seus olhos so distantes como sua alma: uma alma de organista do Sculo XVII; lirismo burgus do meistersinger Hans Sachs; visionrio procurando dentro da cerveja o cinto de seda e o anel de ouro da Walkyria...

    Sempre ausente. Mas das suas presentes nasce A Prince-sa das Czardas. As ltimas notas vo morrer dentro de outras notas Os Milhes de Arlequim que outro pianista de outro piano de outro bar , ao lado vai tocando. O garom lou-rssimo serve depressa e conta depressa que hamburgus e vi-veu na Arglia e no Senegal. H um casalzinho feliz, esquecendo o mundo, numa mesa de linleo cor de castanha. Sair. O garom lourssimo joga dados, no balco, com o chauffeur importante de uma famlia muy bien.

    Outro bar. porta, um guarda noturno, com cara de pre-sidente da repblica, arrasta o bengalo. Um cheiro enjoado de fermento, manteiga e delikatessen. Tons marrons. Homens tris-tes chupando a espuma da loura de cabelos brancos. Piano...

    ...piano si va lotano. No: ali perto mesmo. Outro bar. Entra-se. E d logo na vista, pintado a leo sobre uma arcada, um demnio de asas de morcego com uma lanterna acesa na mo. Ewige Lampe. Velha lenda germnica. Numa parede, uma coleo de borboletas do Brasil: um desses quadros pacientes e tristssimos, que s vezes existem nos museus, e sempre exis-tem nas casas dos msticos de boa inocncia. (Um pensamento rpido para a Inocncia de Taunay). No fundo, acima do piano, esta tabuleta grande: Aviso Fica dora em diante expres-samente proibido sem distino de pessoas que se cante neste estabelecimento (que se cante est grafada em vermelho.) Ento? Que feito do velho lema da boemia tudesca: Bebida, Mulher e Cano? A bebida est aqui, dupla (hoje chama-se tam-pa), em cima da mesa; a mulher est ali, tambm dupla, com um marido e um filhote rindo junto mesa; a cano... Ah! a cano partiu, fugiu, acabou, morreu... na Guerra, sob o rigoroso olhar

    Cosmopolis - Interno.indd 22-23 17/04/2014 16:45:47

  • 2524

    O chope duplo

    de Hindenburg que est ali, naquela parede. O piano toca e toca muito bem Ay, ay, ay!, Pour um peu damour e Ramona (Ramona a nica inveno yankee que os pianos alemes deste bairro aceitam e exploram).

    Outro bar. Tudo dourado. Sem esprito. O Reino do Bo-nitinho. Um grupo de reservistas nacionais ocupa e preocupa tudo e todos. Um nativo moreno, de olheiras de tango, escuta a vitrola tocar Mamma mia Che v sap. Entra um dogue ale-mo de Ulm, grande, digno, branco, e ardsia; entra como um senhor, passeia entre as mesas e fica no melhor lugar, sentado, com seus olhos azuis vigiando, inteis. Umas garrafas pitorescas de Pippermint, Chianti e Ans Del Mono fazem pose na prateleira.

    Outro bar. Foi indicado pelo guarda-noturno que tem cara de presidente da repblica. Indicado e recomendado: Tem garonetes. Incolor.

    Outro bar. Este interessante. Caricaturas alegres e gran-des pintadas pelas paredes. Uma delas: Um bom bbado gor-do, com seu bom chope gordo e esta legenda: O bleib bei mir und geh nicht fort!. O proprietrio deste bar costuma fech-lo de vez em quando, para Ha! ha! ha! pregar uma boa pea aos fregueses: barra peperr scinha tota que estarr dentrra!

    Outro bar...Mas... para que? Sempre a mesma coisa. Uma noite, um

    piano e um chope.Melancolia. Melancolia do chope. Melancolia do Piano.

    Melancolia da noite.Ah! a noite!Gambrinus cavalga, l em cima, nas nuvens essas gros-

    sas nuvens que esto penduradas sobre o bairro rasteiro dos bares. Cavalga, com sua coroa de cevada, seu cetro de lpulo e seu vaso de estanho e grs, que deixa escorrer, escorrer a espuma branca, branca desta garoa... desta garoa de So Paulo.

    24 de maro de 1929

    QUARTA-FEIRA DE TREVAS.Senti sbitamente esse verdade de calendrio litrgico

    quando o automvel atravessou uma nuvem suja, quase com-pacta, que subia dos trilhos para a ponte de ferro marrom da Es-tao da Luz. Treva: uma treva amarelada, com um cheiro forte de carvo de pedra, e toda cortada de apitos, escapou dos dois lados da ponte, enovelou-se no ar, caiu na rua e asfixiou o carro.

    Quando a nuvem suja se esgarou toda, puxada por um vento quente e horizontal, j comeava a tremer, na tarde escu-ra, o filme da Rua Jos Paulino. Baixa, comprida e cheia.

    De todos os lados, casas de roupas-feitas, casas de m-veis e pelerias. Como eu venho do Centro, os seres que rodam pelas caladas, de volta do trabalho, e que vo no mesmo senti-do em que vou, no tm caras, para mim: tm s costas.

    Costas diferentes, pequenas e grandes, claras e escuras, rpidas e vagarosas, diretas e arqueadas... aquelas costas nas quais o dia bem trabalhando pesa como uma cruz. Aquelas cos-tas largas para desculpa da minha distrada imaginao... Cos-tas, apenas costas. Mas uma s, dentre aquelas mil costas, logo me prende a curiosidade e me arrasta os olhos. negra, ampla-

    Cosmopolis - Interno.indd 24-25 17/04/2014 16:45:48

  • 26 27

    CosmpolisO guetto

    mente negra: uma sobrecasaca esvoaante entre um chapelo pretssimo e duas botinas pretssimas.

    - Siga esse homem!E o auto passou rente da sobrecasaca larga. E a sobre-

    casaca foi-se afinando de perfil, para alargar-se de novo, logo depois, vista de frente.

    Cara a cara com a primeira cara do ghetto paulistano. Cara? Barba: barba e nariz. O primeiro judeu. Andava com um vagar digno da sua sobrecasaca. Essa sobrecasaca seria talvez solene numa outra pessoa: era, porm, natural naquele corpo. Ningum reparava nela. Devia ser extraordinriamente familiar por ali, indispensvel, intrnseca ao bairro. O homem carregava um sorriso para si mesmo: como um pensamento. No via nin-gum; ningum o via.

    Ia. Apenas ia. Cartaphilus, Buttadeus, Ahasverus ou La-quedem: era o Judeu Errante. Ia, ia sempre. E atrs dle, e na frente dele, e ao lado dele, e com ele, e como ele iam outros e outros panos pretos: iam, apenas iam, mas iam sempre, como uma poro de destinos, diretos e devagar; cheios de sorrisos para si mesmos, como pensamentos; sem ver ningum, ningum os vendo Cartaphilus, Buttadeus, Ahasverus ou Laquedens - ; povo de Israel, correndo entre as alas de casas da Rua Jos Pau-lino, como antigamente entre as muralhas da gua miraculada do Mar Vermelho...

    E a gente errante passou sob uma tabuleta oval de vi-dro fsco; e no parou. Eu parei. Li. Caf Jacob: letras negras sob um signo de Salomo ( a estrela de seis pontas, formada pelos dois tringulos equilteros sobrepostos). Entrei. Um caf como todos os cafs de So Paulo, antes da apario da senhora proprietria: uma mulher grande e branca, que serviu um caf pequeno e escuro. Ambos frios. Nos cabides, em vez de cha-pus, uma poro de cartazes em hebraico, pendurados, balan-ando. Os caracteres verticais da escrita, semtica fazem a gente pensar naquelas trs palavras cabalsticas que Daniel decifrou no festim de Baltazar, e que a gente via nas ilustraes dos com-pndios de Histria Sagrada. Impresso em azul ou roxo sobre

    cartolina branca. A judia alva explica: este um convite para um baile da colnia israelita; aquele, para uma reunio de alfaiates numa cooperativa, Rua Amazonas... Pode ser.

    Casas de roupas-feitas, casas de mveis, peleiras. Rou-pas, mveis e peles, sempre e sempre. Poucas tabuletas: pouqus-simas. S as grandes firmas do bairro podem dar-se esse luxo. E, naquelas pouqussimas, sempre nomes prprios com as mesmas desinncias: ... man, ...berg, ...stein, ...schild, ...ow, ...vitch...

    Nas outras lojas so tantas e tantas! nada, absoluta-mente nada: nem um letreiro, nem um nome, nem mesmo o nmero da porta.

    Vejo a Rosa do Ghetto. Vejo Rose Green, de Israel Zangwill, porta da alfaiataria de seu pai. Juro que ela! Rose branqussima, lindssima, num vestido sem moda, feio, de ce-tim preto bordado de horrores. Seus braos ( o vestido no tem mangas), que so alvos e devem ser quentes, escorridos ao longo do corpo mole, descansam um pouco de pesadssimo ferro de passar que o pai maneja l dentro, entre filas de man-teaux com gola de pele falsa, pendurados, e pilhas de pullovers de malha colorida. Rose Green de Zangwill... Ou ser a do Green de Verlaine:

    Sur votre jeune sein laissez rouler ma tet...

    A Rua Solon no existe, naquele momento do dia: ela um amontoado de auto-nibus Bom Retiro.

    Rua Barra do Tibaji. O auto tem que parar, atolado no que a enchente do Tiet andou fazendo por ali. Crianas chusmas de crianas infernais cercam e invadem o carro. So quase louras e muito pingadas de sardas: o Sammy Cohen dos filmes multiplicado por uma lente prismtica (tcnica alem). Lama verde. Desolao. direita, a Travessa dos Aimors: um beco entre um correr de casas lamentveis e um capinzal todo espetado de cercas estragadas. O rio e a montanha ao fundo: fundo de tempestade, quando se fazem de um azul profundo os rios e as montanhas. Uns homens vagos, de cabelos amarelos,

    Cosmopolis - Interno.indd 26-27 17/04/2014 16:45:48

  • 28 29

    CosmpolisO guetto

    atravessam aquilo carregando grandes coisas embrulhadas em jornal: roupas e botinas usadas, que andaram comprando l em cima, na outra ponta da cidade, para consertar e vender aqui embaixo, novinhas.

    Enquanto vai subindo devagar a Rua Capito Matara-zzo, vai descendo devagar um homem de avental branco, apre-goando aos gritos os doces incompreensveis do seu tabuleiro.

    - O senhor russo? - Nada. Estou no Brasil, sou brasileiro. - E esses doces: so polacos, alemes ou italianos? - Nada. Feitos no Brasil, so brasileiros. Intil discutir. A ptria isso: onde a gente est Psiu! Calou-se, parou tudo para ver como que a noite

    vem. Tudo: a vida da rua, o ar, o motor do automvel porta da sinagoga.

    Psiu! Silncio! A sinagoga! Atrs de um porto de ferro, separada da Rua Capito

    Matarazzo por um fosso sobre o qual um passadio atira o seu brao de cimento, uma porta est aberta entre duas colunas. Lustres acesos l dentro. Esse ar de templo, que no engana, nunca. Um menininho em suspensrio guarda o porto como um anjo possvel. Tenho uma espcie de respeito desconfiado ao transpor o terceiro e ltimo degrau da entrada. Num movi-mento instintivo, penso em tirar o chapu; mas vejo no interior homens de cabea coberta e lembro-me, em tempo, de que estou numa sinagoga. Fico direita, na penltima fila de cadeiras austracas. Primeiro, observo o templo. Pequeno, pobre, com uma espcie de balco, ao alto a nave das mulheres -, que me pareceu vazio. Ao fundo, voltado para o Oriente, est o nicho que encerra a theba, a Arca da Aliana, que deve conter a Lei Mosaica: a thora. Uma cortina vermelha esconde esse tabern-culo. o Veu do Templo, todo coberto de signos de ouro: a es-trela de Salomo, em cima, entre inscries; ao centro, o Nome que nunca se diz: o Tetragrama d Aquele que o Ser H W H -, d Aquele que quem .

    direita, um armrio envidraado e a menorah o castial de sete braos aceso a seus ps. Em frente da the-ba, um parapeito coberto por um tapete gasto: o Almemor no qual se debrua o hazen para a leitura. Este leitor um tipo que impressiona: muito pequeno, com uma cara cr de terra, barbuda e quase toda afundada nos ombros da rabona negra, e uma cartolinha meio cilndrica, tem um livro na mo : e l alto. Outras barbas, outras rabonas, outras cartolinhas, muitas, es-to por ali, como que toa, em desordem: de p, ou sentadas, ou de costas para o tabernculo, ou montadas nas cadeiras, ou andando, indo e vindo pela nave e respondem. Penso: Quarta-feira de Trevas ... Devem ser as primeiras oraes do Mazzoth, e festa dos zimos. uma ladainha entrecortada, quase distrada, que me parece um pranto, um soluo de desespero, uma longa interjeio de desnimo. Job teria sofrido assim com essas pa-lavras, nessas vozes. Uma entonao mais alta, e mais longa, e mais resignada, como um lampejo de messinica esperana, sai das barbas do hazen: Jeremias teria lamentado assim, com essas palavras , nessa voz. De repente, um ancio formosssimo, barba branca despencando sobre o taleth negro, sentado ao fundo da nave, responde uma coisa profunda e ondulante: Lzaro, no es-curo da tumba, teria falado assim, com essa voz... Uns homens moos, espigados, de casquette na testa, passeiam, responden-do, respondendo, respondendo. Um deles para a meu lado: e ouo junto a mim um estalar de dedos: esse que os cachorros entendem... Ento, um medo supersticioso o pavor do sacri-lgio comea a entrar em mim: e comeo a temer de repente o Jahveh tempestuoso e terrvel do cume do Sinai, todo coroa-do de relmpagos, colrico, desencadeador de pestes; comeo a temer de repente o Sabaoth dos exrcitos, carregado entre trompas e estrondos de muralhas ruindo; comeo a temer de repente o branco Elohim que passeia no Jardim das Delcias en-tre as brisas da tarde...

    Saio, espavorido, debaixo de um cu de Calvrio: rolos de fuligem sob uma lua quebrada. Mas nessas nuvens de alego-ria, suspensas sobre a cidade, arqueadas sobre o automvel que

    Cosmopolis - Interno.indd 28-29 17/04/2014 16:45:49

  • 3130

    O guetto

    foge, o claro vermelho e azul dos cartazes luminosos do centro inventam o crepsculo que esta tarde de Trevas no teve.

    31 de maro de 1929

    (Sinfonia em U maior)

    TUDO CONFUSO.Esthnia (com h?)... Lettnia (com dois tt?)... Litunia

    (sem h?)... Tudo confuso. Onde? Na Europa Oriental? No Bl-tico? No golfo de Finlndia?... Tudo confuso.

    E a confuso escura da minha geografia caminha comigo em um lusco-fusco de um crepsculo dbio, pelos barulhos da Rua Guaicurus, caminho de Vila Anastcio.

    Porta de So Paulo. Bairro da Gasolina: postos claros e bombas vermelhas, muitos, muitos.

    Tumulto de autos, autos e autos entre sujos bondes ver-des puxando reboques compridos, entupidos de operrios. Ba-rulho confuso sob o cu de madreprola fria. Sempre o Jaragu nariz de So Paulo teimoso na paisagem, enquadrado, l longe, na porta de So Paulo: a porta para o Interior, civilizado depressa a macadam e gasolina. Bairro da gasolina, com o tan-que de zinco prateado da Standard na vrzea do Tiet, esquer-da, entre guas misturadas com terras e trilhos. Tudo confuso. Barulho confuso de autos, bondes e trens, sob o nariz de So Paulo o Jaragu cheirando de longe o cheiro da gasolina queimada, do ozone da Light e da fumaa de carvo de pedra.

    Cosmopolis - Interno.indd 30-31 17/04/2014 16:45:49

  • 32 33

    CosmpolisA confuso bltica

    Tudo confuso.Fogo no cu. Incndio da Igreja do : labaredas cor de

    laranja nas vidraas incandescentes, em cima da colina. E, entre a colina longssima e o olhar pertssimo e implicante destes bun-galowzinhos novos-ricos do Alto da Lapa, ali embaixo, no fundo de uma bacia, est um punhado de vagas casinhas, encolhidas, com medo das torres de ferro da Light, que levam fios de alta tenso; dos trilhos esticados da Sorocabana e da So Paulo Rail-way, que levam trens brutos e soturnos; dos fossos profundos de cimento e dos canos e manilhas das Obras do Emissrio do Tiet, e da massa cinzenta, enorme, de paredes rudes, dos frigorficos da Amour.

    Frigorfico... Gelo... Norte... Bltico... Estnia... Letnia... Litunia... Aquilo, aquele punhado de vagas casinhas encolhidas no fundo de uma bacia o bairro coeso dos estnios (ou es-tonianos?), letos (ou letes ?), lituanos (ou lituanianos?). Tudo confuso. Aquele o bairro esto-leto-lituano. 1918 em diante. Aquele o bairro...

    Aquele? No: este. Porque o auto j passou debaixo da ponte da Sorocabana, sob um estardalhao de ao em dormen-tes acordados, que um trem provocou correndo em cima, num repuxo de fagulhas.

    Agora, uma plancie nua cortada por caminhos curvos e trilhos enferrujados de bitola estreita, que vo indo, indo para o punhado de casinhas encolhidas e vagas.

    Quietude brusca no crepsculo. Na planura absoluta todos os vultos crescem. Tudo confuso. Vo homens grandes, equilibrados, de p na ponta da sua sombra. Vo mulheres altas, com manteaux pretos de gola de astrakan e pernas alvas sobre os brancos sapatos de tnis (as melhores criadas de So Paulo). Os ps so mais ligeiros do que o ar, andando na secura hori-zontal da planura.

    Silncio. Si-ln-cio. Uma ltima lmina de sol corta uma fatia no bolo de casas pequenas e apinhadas: a Rua Alvarenga Peixoto. Comea numa venda vazia e vai. Vai calma toda re-picada de casas pequenininhas, limpssimas, com um jardim de

    dois metros encostado cerca de arame de dois fios. Cada ja-nela tem uma cortina bem lavada e uma lata com uma planta. H uma dlia dobrada, malhada de branco e vermelho, espetada na terra seca de cada canteiro varrido. Varrido: tudo varrido ali, bem varrido, meticulosamente varrido. Passam crianas super loiras empuirrando criancinhas ultra loiras dentro de carrinhos de mo.

    Uma janela e uma porta com uma placa oval, branca e vermelha, como a dlia dobrada do jardim: Agncia do Cor-reio. Espio. Desenhado pela primeira lmpada do bairro um candeeiro de querosene est um homem de cabea raspada e olhos claros procurando cartas. Num relmpago de tempo eu vi toda a paisagem daquela alma exilada neste crepsculo brasileiro: vi dentro daqueles olhos um mar de guas frias puxando navios de Revel, de Riga ou de Polagem, navios que cheiram a resina de pinho, ou a salmo defumado, ou a cordagens de cnhamo, e que cortam gelos finos, e que deviam ter trazido um pedacinho de papel para enxugar um pouquinho de uma lgrima...

    (Rua Alvarenga Peixoto... A evocao deste nome triste de um brasileiro que fez versos num presdio africano, bastou para produzir a tirada lrica desse Noturno da Agncia do Cor-reio do Bairro Bltico de So Paulo...).

    E o candeeiro da Agncia do Correio sugeriu outros can-deeiros atrs de outras cortinas, por ali. De p, no meio da rua, os postes novinhos de cemitrio armado, da Light, cruzam os braos sem fios, um pouco acanhados diante daquelas luzes de petrleo que os refletores estanhados tentam inutilmente animar.

    Vo chegando homens e homens, grandes, de sweater branco, e silenciosos, que ficam apoiados nas cercas das casas, olhando, cansados, sem dizer nada. Vo aparecendo mulheres e mulheres de avental branco e leno branco em touca, silencio-sas, que abanam os fogareiros de carvo nas portas das casas, e deixam o caldeiro em cima, sem dizer nada. Sem dizer nada! Este silncio estrangeiro, este silncio que parece uma injria. Este silncio indiferente. Este silncio que incomoda e confunde.

    Tu confuso. Acho que passou pela rua um bando de gan-

    Cosmopolis - Interno.indd 32-33 17/04/2014 16:45:49

  • 34 35

    CosmpolisA confuso bltica

    sos que yankees nunca deixam de pr nas aldeias europeias dos seus dos seus filmes. Uma sanfona deu dois soluos e morreu, no, no sei onde. Um fongrafo tambm. Bem perto, para fazer ainda maior o silncio, andam barulhos de comboios apitos, manobras, chios de chaves, trepidaes de dormentes. De ca-bea para baixo, no fundo de um aude, rodaram as janelinhas iluminadas de um trem noturno.

    Noturno bltico. Silncio do gelo. Imobilidade plida das paisagens de sol alvo. xtase das floresta speras de rvores escu-ras, em que esquilos brancos roem pinhas com bocas vermelhas. Solido dos pauis frios sob voos geomtricos de patos selvagens...

    Cansao. Grande cansao dos homens silenciosos sem-pre apoiados s cercas das casas, sem dizer nada. Ritmos de mulheres silenciosas, sempre abanando os fogareiros de carvo nas portas das casas, sem dizer nada.

    O olho vermelho dos candeeiros, o olho vermelho dos fogareiros, o olho vermelho dos cigarros nas cercas esto olhando... no esto olhando nada...

    Vejo, na parede de uma casa, entre a porta e a janela, uma velha ferradura pregada. Em outra casa, outra ferradura. Mais outra. Ainda outra... A superstio branca. Penso na alma campnia daqueles ramos confusos da grande famlia finlandesa, toda povoada de coisas assustadoras, que vieram das lendas flo-restais do Norte, ou das runas do Kalewa, o Gigante da Terra, enterrado sob as razes embaraantes do choupo, da btula, do sabugueiro, do salgueiro, dos pinhos da plancie e da montanha as familiares razes do happa, do koivu, do leppa, do pahju, do oravikusi, do habukonka, do petaja...; nos herosmos pitorescos do trovador /wainamoinen e do ferreiro Illmarinen; na seduo do Sampo, o moinho mgico, triturando ouro entre as ms; nos deuses joalheiros e subterrneos; na filha virgem de Louhi, a fei-ticeira, que tinha o marfim dos seus ossos to claro que brilhava atravs da carne, deixando ver a medula...

    Noturno branco.Branco na noite preta.Tudo confuso.

    O farol do auto fura o escuro da Rua Bartolomeu Pais: traa uma curva no ar como um compasso. Meia volta: volver! Voltar. Voltar. Voltar entre ululos surdos de sapos no cncavo turvo dos brejos. Pulos de pneus nos buracos fundos da es-trada. Tumultos bruscos de locomotivas bufando, foulards de fumos voando...

    E o olhar mido de So Paulo na noite nua...

    7 de abril de 1929

    Cosmopolis - Interno.indd 34-35 17/04/2014 16:45:50

  • 37

    Cosmpolis

    36

    TARDE DE NOROESTE na Rua Santa Rosa.Rosa? Cheiro de aniagem e cebola. As sacas abrem as

    bocas de cereais, bocejam panudas, empanturradas, nas portas dos armazns; as rstias escorrem dos tetos, enroscam-se nas paredes sujas, recendem forte como tranas suadas. Montes de sacas, franjas de rstias em todas as casas, em todas. Iguais, to-das iguais: duas portas largas, antigas, de pau pintado de verde; uma balana decimal o bsculo: trono dos atacadistas no lugar de honra, firme sobre o cimento e cercada de sacas e rstias feijo, milho, arroz, batata, cebola e alho ; redes de teias de aranha e picum, frouxas, estagnadas em todos os ngulos das paredes de cal e dos tetos de vigas caiadas; homens em mangas de camisa transpirando dinheiro; carroes e cami-nhes carregando e descarregando sacas e rstias.

    Tudo igual, sempre igual. Tudo assim, sempre assim. Toda uma rua longa feita s de sacas e rstias. E este cheiro poeiren-to, seco, de aniagem e cebola, que pesa em tudo; este bocejo, este bafo balofo que afoga e abafa tudo, morno, enrolado no ar enervado de noroeste.

    O tom castanho. Carroceiros castanhos, de camisa de

    malha castanha, afundados entre sacas castanhas e domando burros castanhos.

    O tom castanho no silncio. Silncio tambm castanho. Silncio de estopa de saco suja de terra. Silncio. Apenas o ran-ger dos dentes das engrenagens no corpanzil pardo dos auto ca-minhes; apenas o raspar de ferro e pedra das patas dos burros nos paraleleppedos bruscos. Nem uma voz humana.

    E, dentro desse silncio comercial, vo chegando e vo passando uns homens do trabalho, lerdos, abobalhados, inex-pressivos como motores parados. No dizem nada. Que ho-mens so esses, que vo chegando e vo passando? De que ptria fugiram? Que msica estrangeira ter a sua fala?

    Te l juro!Antes dos meus olhos, os meus ouvidos j haviam visto

    o primeiro espanhol. O gutural mourisco do j descreveu logo a cala cor de pinho, de saragoa grossa, bambeando as pernas fracas; o tronco atarracado, sem palet, dentro do colete de-sabotoado como um bolero e enfeitado com uma corrente de prata e um dinheiro prata; a camisa de algodo listado; o bon de burel puxado para a nuca; a cara magra, grisalha, raspada, de padre e torero; os olhinhos sem vergonha nem pestanas, con-tando coisas de Quevedo; e a boca estreita jurando.

    Todos os homens em So Paulo, que compram sacos usa-dos, so assim. E moram por ali. Moram nos fundos das casas, entre varais com roupas danando, e cercas de lata enferrujada. E tem uma velha que conserta as estopas furadas com uma agu-lha comprida, um fio comprido e uma pacincia comprida.

    Eles vo chegando. O sino de So Vito cantou ali perto, chamando as crian-

    as para o catecismo. H luzes na igrejinha, entre santos e sobre as cabeas raspadas dos pequenos e a cabea irritada de uma professora antiptica.

    Eles vo chegando. Vagarosos sobre as pernas fracas. Pequenos dentro das saragoas largas. Sofrem dos olhos: mas esses olhos riem sempre entre os bordos vermelhos das plpe-bras, ou, s vezes, muitas vezes, atrs dos culos pretos.

    Cosmopolis - Interno.indd 36-37 17/04/2014 16:45:50

  • 38 39

    CosmpolisUm carvo de goya

    Compradores de sacaria, ou empalhadores de mveis eles vo chegando. Um velho traz nas costas estreitas uma pi-lha marrom de sacos dobrados. Outro velho traz nos ombros sungados uma cadeira austraca e, na mo, um rolo de palhinha.

    Eles vo chegando. a hora do barbeiro. Fgaro mora ali, na Rua Benjamim

    de Oliveira. No quadro de uma porta larga, duas cadeiras diante de dois espelhos. Uma cortina de cretone ao fundo: Reservado para senhoras (o progresso de Fgaro). Na porta, um latago um manolo l um jornal. Fgaro est com Almaviva sob a sua navalha e a sua anedota. Raspa: e a cara freguesa emerge, toda azul, do seu gesto de pera...

    Rua Lucas. As caladas esto cimentadas de crianas brin-cando com tranas de cebola. Por uma porta baixa, em arco, vejo um interior. Pinturas alegres de vinhas na cal da parede; sobre uma mesa, duas moringas frecas, de barro, cobertas por toalhinhas de crochet; quadros: Afonso XIII vestido de rei torce os bigodes, entre um So Jos amarelo e lils e uma folhinha herldica com os cartis de ouro e goles de Espanha, e a estrela verde e amarela do Brasil. Limpeza e frescura. Outro interior. Parece uma igreja: toda a corte celeste litografada cerca o re-trato de um matador pregado sobre papelo e emoldurado de conchinhas e purpurina. Sobre a amarelinha, que a molecada ris-cou a carvo na calada, passa, risonho, irnico, no seu carrinho baixo de madeira, um paraltico. Vai conversando, malicioso, de porta em porta, com as comadres de preto. Sai da porta de um aougue um homem todo negro de barbas, com um leno franjado na cabea: um corsrio do Sculo XVII. Outras barbas cerradas, que zombam de todas as navalhas do mundo, azulam outras caras de maxilares duros.

    Uma aspereza de algaravia abencerragem porta de um armazm. Fala-se em Primo de Rivera, no Jesus del Gran Poder e no jogo do bicho.

    Botequins. Em cada botequim, uma mulher de luto no balco. Em cada mulher de luto no balco. Em cada mulher de luto, uma cara de cartomante. P de arroz sem rouge.

    Mas os meus olhos daquela hora traioeira, enviesada, sinuosa como os caminhos prfidos, escorrem atrs de uma operria moa: muito penteada, accroche-coeurs violentos, oleosos, na testa e nas faces, e uma echarpe verde no pescoo. Uma cigarrera, como Carmem?...

    Cigarrera de mi vida,Lo dicen ls parroquianos,

    El tabaco sabe a gloriaCuando l tocan tus manos...

    Fumo. O fsforo aceso j faz um certo efeito na tarde.Respiro. Estou num largo arejado, todo cinzento de cal-

    amento novo, frente aos portes dos armazns do Pari, e com uma bomba de gasolina e mais de quatro bebedouros para ani-mais. A massa incolor do Mercado em construo, chata e si-mtrica, ao fundo.

    Aqui respiro So Paulo. So Paulo ali, to perto, mas to alto e to diferente, atrs desta trama canadense de postes e fios; alm dessas torres repetidas, de ferro, tranadas em X so-bre o Tamanduate canalizado; So Paulo todo de pontas, es-petado de zimbrios e flechas de zinco pintado de ardsia; So Paulo, crescido para o cu, de andares sobre andares Babel! fundindo e confundindo as lnguas Babel! os sangues e as convices Babel! os interesses e os ideais Babel! e tambm... as ideias dos jornalistas.

    Aqui respiro o pr do sol citadino, pingado de luzes nas janelas sobre janelas e sobre outras janelas e sobre mais jane-las e ainda sobre janelas. Uma luz pequena, numa fachada, vai riscando verticalmente, descendo de janela a janela, os treze andares de uma casa (parece a mecha de um balo caindo): as-censor. Na ponta de um tapume, uma letra azul, imensa, acen-de-se atravessada por um raio vermelho. Vem de uma ponte abaulada, nova, um batalho de grilos salpicados de ouro. Mas os botes se vo apagando e as fardas vo ficando da cor do fim deste dia. Azul-marinho...

    Cosmopolis - Interno.indd 38-39 17/04/2014 16:45:51

  • 4140

    Um carvo de goya

    Volto-me, brusco.Noite na Espanha de So Paulo. Mas noite que no caiu do

    cu: subiu dos telhados rasteiros, negrssimos dos gasmetros, e veio vindo, numa fuligem fosca de crepe, que se esgarou toda no ar baixo. Noite de hulha. Noite preta e pobre que riscou o carvo irnico de Goya. Noite realista de uma Espanha sem rondallas nem luar de prata nas flores de azahar. Noite de fechar as portas dos armazns; de varrer os cimentos dos armazns, de acender a lmpada eltrica triste, tristssima, atrs dos vidros sujos das bandeiras, pendurada num fio de moscas sobre a escri-vaninha do guarda-livros, e parada, amarela, idiota, entre sacas e rstias, toda assombrada de teias de aranha...

    21 de abril de 1929

    UM RISO FINO DE GUISOS no ar arrepiado da manhzinha.Na rua rica, entre palacetes de aventais brancos no por-

    to, vai indo, com uma solenidade assustada, o rebanho das cabras. Pardas, brancas e malhadas, fincam o casco bifurcado nas pedras e nos cimentos e vo arranhando com seu pelo spero de capacho e seu passo sem ritmo o arzinho macio da hora recm acordada.

    Na calada, bragas de burel grosso, colete chocalhante de pratas, casaco de estamenha dobrado ao ombro e chapelo preto batido na testa, o cabreiro descadeirado, vara na mo, conduz a turma. Para no porto de uma casa nova, onde h um doente , o nariz esverdeado contra um vidro de janela; ordenha a cabra espevitada, que cabriola no passeio; enche o copo gran-de de dez tostes, ou o copo pequeno de seis tostes; cata o troco difcil nas algibeiras arreganhadas do colete... Os nqueis cantam. As campainhas brincam, de novo, no pescoo das ca-bras, ao longo da rua rica: e o rebanho segue, arranhando com seu pelo spero de capacho e seu passo sem ritmo o arzi-nho macio da hora recm acordada.

    Cosmopolis - Interno.indd 40-41 17/04/2014 16:45:51

  • 42 43

    CosmpolisOs simples

    Outros cabreiros, com outras turmas, por outras ruas. E outros ainda, e muitos outros, e outros mais... Por a tudo...

    Onde moram, quem so eles, os bons cabreiros da ma-nhzinha?

    Vou num declnio de tarde, pela Rua Correia Dias. A rua reta, plana e bem calada. Mas, de repente, quebra-se e des-camba numa ladeira brusca e trpega, de terra estorricada, e despenca, de buraco em buraco, at uma estrada transversal, vermelha, calma, repousante, que se chama Rua Jurubatuba.

    Rua Jurubatuba. direita, casas novas e boas; esquerda, um despenhadeiro ngreme sobre um vale folhudo. Ar, grande ar aberto e alto. E, no fundo daquele cncavo fresco, meus olhos nadam em felicidade seguindo os caprichos curvos de um ribeiro; mosaico geomtrico das hortas, pintado com todos os verdes; a franja branca nos varais bambos de roupas alvas desfraldadas; os casebres de lata, longos e chatos, cor de metal e ferrugem.

    A fascinao daquele vale... Deso. Dois meninos aloura-dos, em algodozinho listado e suspensrios, sobem. Discutem. Ouo, por acaso:

    Olha que digo ao teu pai!Aquele teu, neste pas do voc, orientou-me logo.

    Aquele teu e mais um escrito a leo amarelo, que leio na ca-lia fresca de uma casa: A. dos Santos Jardineiro e Msico.

    Portugal!Deso ao vale, espremido entre o recorte alto da Vila

    Mariana e o apinhado baixo do Cambuci. Uma frescura serrana. O ar todo uma transpirao fria de guas de folhas. Respiro forte: provo o gosto deste ar, como quem prova o gosto de um primeiro beijo.

    Vem ao meu encontro um homem pequeno, de olhos cla-ros. Fala. Canta. Canta mesmo. Diz a vida simples dos cabreiros (moram muitos ali): a sua antiga estada na Saracura Grande, de onde os tocou uma ordem municipal; a partida atropelada dos rebanhos na manhzinha, para os fregueses; a volta das tur-mas ao estbulo, l pelas onze horas; o pastoreio, durante o dia, por aqueles cerros baldios; o recolher das cabras s baias, pelo

    cair do sol; o preo do milho e do farelo; o esterco, que vendem as chcaras de ao p dali; a vidinha igual das famlias nos casais da Rua Jurubatuba.

    E de onde so vocs? Semos de Brigana...Portugal!Um fado e uma saudade boiaram, um instante, envergo-

    nhados, nos olhos claros daquele homem pequeno.Bragana... O velho Trs-os-Montes... A serrania verde...

    As pedras de Bornes de Montezinho e as guas do Sabor, do Tua, e do Rabaal, entre verduras...

    Bragana... As cidades de nomes longos, fortes e pitores-cos: Torre de Moncorvo, Miranda do Doiro, Macedo de Cavalei-ros, Carrazeda de Ancies, Freixo de Espada Cintra...

    Freixo de Espada Cintra... A cidade de Guerra Junquei-ro... O poeta... Os Simples... Mas, no estava mesmo ali toda a poesia transmontana, campesina dOs Simples? Ali, naquele homem pequeno, de olhos claros, de p, como uma evocao, no fundo fresco daquele vale verde exilado no Brasil?

    Aquele homem... Olhei-o um pouco: e pensei naquele pobrezinho de olhos cor de esprana, descendo a encosta de sementeiras, pastos, olivedos e amendoais... Olhei um pouco a velhinha que, de cima da Rua Jurubatuba, acenou para baixo com um ramo verde na mo: e pensei na moleirinha tangendo toc, toc, toc o seu jeito ruo, com um galho verde de uma giesta em flor... Olhei um pouco a rapariga que vinha tocando uma cabrita por um atalho vermelho, escorrido da Rua Paula Ney: e pensei na boieirinha linda, de agulhada em punho, guiando a carrada cheia entre o canto dos galos e o gemido das noras... Olhei um pouco a pequena nuvem de mosquitos que cirandou, toda acesa de poente, porta do cabril: e pensei nas ceifeiras bailando bailando em torno das espigas , dos bois deitados no celeiro atulhado e das ms douradas nas eiras ao luar ao luar... Olhei um pouco a torre da igreja do Cambuci, espetada no cu cor de vidro: e pensei nas ermidas brancas pelas noites de inver-nada, quando os lobos uivam e as almas rondam em procisso...

    Cosmopolis - Interno.indd 42-43 17/04/2014 16:45:51

  • 4544

    Os simples

    Olhei um pouco o velho que estava sentado ali perto, acertando uma vara com a sua faca de algibeira: e pensei no pastor esca-lando montanhas, o surro a tiracolo e todo branqueadinho a neve e douradinho a sol... Olhei um pouco o chacareiro de cala cor de pinho que corria os seus canteiros azinhavrados, para alm dos arames farpados desta cerca: e pensei no cavador de enxada ao ombro pelos caminhos, com o seu caldo em casa e os seis filhos que Deus lhe deu... Olhei um pouco os pequeninos, l longe, brigando, saltando o regato: e pensei nos pobrezinhos, em alcateias, pelas herdades, pelas aldeias, como trapos levados nas ventanias, dormindo pelos alpendres, pelos currais, e que choram cantando... Olhei um pouco o ponteado alvo do Cemi-trio de Vila Mariana, como um rebanho parado numa distncia esverdeada: e pensei no Campo Santo onde, ao relento, sonham cavadores, pegureiros, boieirinhas e bisavs... Olhei um pouco, no frio cu, a primeira estrelinha, como uma bolinha de gelo olhando tambm para mim: e pensei... pensei em certas velhices que foram muito amigas de certas meninices..., velhas amas fei-tas para cantar cantigas para a gente se lembrar...

    Os Simples...Subo, com pena, do fundo do vale e do fundo de mim

    mesmo para a cidade, l em cima, e para a realidade, l longe. Olho, ainda uma vez, a hora quieta que parou nas coisas para ver a tarde murchar...

    Paz. Nem um estremecimento nas folhas finas dos euca-liptos. Apenas um ladrar quebrado e precipitado de ces. Al-gum acende uma fogueira, l embaixo, no mundo do cabreiros: e um fogo alto e rpido lambe a pequena noite do vale.

    A outra, a grande noite, essa vem descendo, vem des-cendo da cidade sob a forma de uma luzinha triste e vagante, na ponta da lana dos acendedores de lampies. A luzinha escorre, ladeira abaixo: e vai deixando na terra o seu rastro de pingos paralelos, plidos, pensativos, criadores de sombra, inventores da noite...

    5 de maio de 1929

    A COISA COMEA ALI, naqueles cafs da Praa Ant-nio Prado, depois da extrao das loterias.3

    Bigodes, s bigodes. Bigodes contemplativos nas cal-adas; bigodes esperanosos nas portas; bigodes fumegantes sobre os cafezinhos quentes, nas mesas de mrmore fingido; bigodes sonoros, cheios de hh aspiradssimos, entrando , fican-do, saindo, passando.

    Bigodes. Enrosco-me, embarao-me, enovelo-me, ema-ranho-me nesses bigodes pardos de idade e de fumo: e vou com eles, vou neles, enroscado, embaraado, enovelado, ema-ranhado, debatendo-me na tardinha de lama fria e jogo do bi-cho. Vou pela Rua Joo Brcola. Aqui, escorrego no lodo preto

    3 Entre Rapsdia Hngara, O Bazar das Bonecas, Chope

    Duplo, O Ghetto, A Confuso Bltica, Um Carvo de Goya, Os

    Simples, e O Oriente mais que Prximo, Guilherme de Almeida se mo-

    vimenta e tambm nos guia por bairros, ruas, imagens, citaes, cheiros e

    sons, num ritmo to prprio que chega a pintar a prosaica So Paulo como

    pura poesia (ou a film-la....).

    Cosmopolis - Interno.indd 44-45 17/04/2014 16:45:52

  • 46 47

    CosmpolisOriente mais que prximo

    do asfalto e escorro pela Ladeira Porto Geral, de pedra torta e molhada, sob o rha-rha-rha dos bigodes que rodam por ali e dos gramofones que comeam a rodar tambm por ali.

    Bigodes e gramofones. Num rolo de bigodes e num disco de gramofones, vou rodando tambm, rodando... Tontura... A tardinha escura, cheia de fios gris de gua, como um bigode; e gira, escorregadia, como um disco...Tontura... Falam os bigodes, de todos os lados; falam os gramofones, de todos os lados. Tudo spero, rouco, rspido, rasgado, arenoso, e sempre rangendo, raspando, riscando o ar ralo...Tontura...

    Paro. Acordo, pendurado numa vitrina vitrine no meio da ladeira. Livraria. A larga escrita neshki d um ar de Alcoro a todos os livros. E d um ar de marca de cigarros a todos esses retratos de homens ilustres de fez na cabea, e dessas mulheres abundantes, de pera. Adivinho dois livros: a tenebrosa histria de Rasputine, O Monge Negro, e um Livro dos Sonhos, com um So Cipriano vestido de bruxo na capa. Duas janelas pequenas de priso antiga, com barras de ferro grosso, pintadas de verde: l dentro, pilhas de livros, revistas, cartes postais, discos de gramofone e bigodes.

    Vou descendo sob os gritos de um gramofone totalmen-te desesperado. uma msica bamba, muito gemida, com um barulho de gua sacudida dentro de latas. Vejo um ventre e um umbigo danando nessa msica. Bamboleiam ventres e umbigos em todas as portas, chocalhados pelos gramofones dos homens de bigode.

    Chocalhar... A Rua 25 de Maro um shaker de cocktail que So Paulo bate. Produz S um cocktail: turco. Receita para se fazer um turco: coloca-se no shaker da Rua 25 de Maro um srio, um rabe, um armnio, um persa, um egpcio, um Kurdo; bate-se tudo muito bem e pronto! sai um turco de tudo isso. Para So Paulo, assim: quem mora ali turco. Entretanto...

    Rua 25 de Maro: o reino da bugiganga. Gangas e mian-gas. Quinquilharia vistosa. Pechisbeque. Ouropel. Bagatela bara-ta. E armarinhos. Um armarinho: sabonetes, colares de contas, panos, baralhos, xales, canivetes, latas de graxa, agulhas de gra-

    mofone, gravatas, tapetes, berloques, sandlias, malas, alfinetes, cromos, espelhos, carretis, bonecas, narghils, ferramentas... Cores e luzes: cor-de-rosa vivo, azul vivo, verde vivo, laranja vivo e luz eltrica em cima. O reino da bugiganga. Outro ar-marinho entre dois armarinhos: - ningum teme a concorrncia. Idem com os atacadistas estabelecidos paredes meias: - venda em grosso de fardos grossos de fazendas grossas, com homens grosso de grossos bigodes, falando grosso...

    Na larga rua de trilhos e poas, os bondes, os autos e os caminhes patinam como hipoptamos. A lama esguicha numa vaia e escorre numa blasfmia. E os armarinhos, pintados na tarde fosca, cintilam, parecidos com as migalhas de cristal colorido, as ninharias policrmicas contra o vidro opaco de um caleidoscpio.

    A gente que passa, ou para. S homens. Nem uma nica mulher. Acredito levemente na existncia de hrens. Homens di-ferentes e indiferentes. Srios alourados de Beirute, de Damasco, de Jerusalm, abotoados nas capas de borracha, ondulam, majes-tosos, como as guas do Eufrastes, perfumadas de amoras e taba-co... rabes morenos regougando a sua linguagem de consoantes secas, ridas, arenosas como os desertos e como as montanhas do grande planalto... Armnios de olhos impressionantes, oleosos como as avels da Trebizonda...Persas srios, gordos, de respon-sabilidades histricas, com um cheiro arrastante de haxixe no rastilho do seu cigarro filosfico... Egpcios sutis, laboriosos, com uma esperteza de fellah no andar e uma claridade mediterrnea nos olhos cheios de velas, mastros e cordas danando nos tra-piches de Alexandria ou de Port-Said... Kurdos bravios, com seu ar desconfiado de tribo e um esbraseamento de sol estrangeiro na pele rude... Turcos... Mas todos so turcos, em So Paulo!

    A gente que passa, ou para.Esquina. Rua Paj. O trabalho e o descanso em promis-

    cuidade. Trabalho nas sapatarias, nas fbricas de sandlias e al-percatas, com seu cheiro adstringente de tanino e sua chio fino de roldanas e polias de couro. Descanso nos cafs abarrotados de grupos imveis olhando das portas, ou bebendo a sua aguar-dente de erva-doce em torno das mesas.

    Cosmopolis - Interno.indd 46-47 17/04/2014 16:45:52

  • 48

    Oriente mais que prximo

    Instantneo de um caf: - Duas portas. Balco direita, com a mquina de Expresso bufando. ( Antigamente servia-se, por ali, caf-turco nas canequinhas de cobre e o acompanha-mento enjoativo do narghil). Mesas com homens silenciosos, sem colarinho nem gravata, mas de chapu bem colocado na cabea (eles no costumam tirar aquele alinhavo que vem da fbrica para manter a fita e o lao), e uma poro de lapiseiras e canetas-tinteiro saindo da pochette. Bilhar, ao fundo, sobre um estrado. Os tacos batem, secos, esticados como flechas no meio dos corpos curvos como arcos. Movimento de calas de brim pardo, encolhidas e estreitas, gnero salta-pocinhas.Bo-tinas de elstico. Duas garonetes orientais vestidas de verde. Uma bonita, com sua cr de fruta, seus dentes midos, sepa-rados a sua travessa nos cabelos curtos. No entende nada: no sabe o que vinho do Porto, e d risadinhas rpidas quando a gente fala nisso. Entram a todo instante homens magros, mas barbeados, carregando embrulhos enormes e valises. No bal-co, o eterno gramofone geme, molengo, uma dana do ventre. Da melodia montona pula, s vezes, como de um mergulho, o uivo de uma mulher...

    Do meio da rua, olho uma fachada. H um homem pijama branco, um fz amarelo na cabea, quieto, de p, numa sacada. Embaixo, um padre maronita desfralda, entre os batentes de uma porta, a sua barba sagrada, cor de pimenta-do-reino.

    Vou, sob placas e tabuletas, at o fim da Rua 25 de Maro, at o limite extremo do Oriente Mais Que Prximo: o tnel do Anhangaba, a Sublime Porta... Ali em clima esto os hotis orientais e as penses orientais da Rua Florncio de Abreu.

    Volto. Ando tudo de novo. O paredo branco, alto, ilumi-nadssimo da General Electric. Paro diante da igreja sria, amarela, entre ciprestes e cedros. Um gato preto e branco sai do templo, atravessa o jardim e fica no porto de ferro, olhando para mim com o enigma dos seus olhos verticais de opala e fsforo...

    12 de maio de 1929

    Cosmopolis - Interno.indd 48 17/04/2014 16:45:52