cosmologia ciência hoje 216

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F Í S I C A 20 CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 216 Entre o final do século 19 e as primeiras décadas do século passado, estávamos maravilhados com o diminuto mundo atômico e ainda não percebíamos que o universo, em grandes escalas, nos guardava surpresas ainda mais interessantes e desafiadoras. Não sabíamos sequer que existiam galáxias. Os poucos objetos estranhos então observados no céu ganhavam o nome de ‘nebulosas’, dada a sua aparência. Mais tarde, para espanto até da comunidade científica, foram reconhecidos como enormes conjuntos de estrelas, como a nossa Via Láctea. Ironicamente, nessa época, nebuloso também era o nosso conhecimento sobre o universo. Não sabíamos quase nada sobre ele e nos limitávamos às observações ópticas do céu, pois nem mesmo a radioastronomia havia sido criada. A cosmologia – que estuda o universo como um todo, tentando explicar sua origem, evolução e seu estado atual – começava, então, a engatinhar rumo à aventura espetacular da descoberta do cosmos. Thyrso Villela Neto Divisão de Astrofísica, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (SP) A aventura espetacular da descoberta do universo F Í S I C A Cosmologia 20 CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 216

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Entre o final do século 19 e as primeiras décadas do século passado,estávamos maravilhados com o diminuto mundo atômicoe ainda não percebíamos que o universo, em grandes escalas,nos guardava surpresas ainda mais interessantes e desafiadoras.Não sabíamos sequer que existiam galáxias.Os poucos objetos estranhos então observados no céu ganhavamo nome de ‘nebulosas’, dada a sua aparência. Mais tarde,para espanto até da comunidade científica, foram reconhecidoscomo enormes conjuntos de estrelas, como a nossa Via Láctea.Ironicamente, nessa época, nebuloso também era o nossoconhecimento sobre o universo. Não sabíamos quase nada sobreele e nos limitávamos às observações ópticas do céu,pois nem mesmo a radioastronomia havia sido criada.A cosmologia – que estuda o universo como um todo, tentando explicarsua origem, evolução e seu estado atual – começava, então,a engatinhar rumo à aventura espetacular da descoberta do cosmos.

Thyrso Villela NetoDivisão de Astrofísica,Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (SP)

A aventura espetacularda descoberta do universo

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Cosmologia

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A cosmologia contou com vários fatores que contribuíram para o seugrande desenvolvimento no último século: teoriase modelos mais elaborados e observações do céucada vez mais numerosas e precisas. Entre estasúltimas, se destacam a abertura de novas janelaspara o universo – como a proporcionada pelaradioastronomia –, bem como a possibilidade decolocar telescópios no espaço, livres da influênciada atmosfera terrestre.

No início do século passado, os astrofísicos dispu-nham de poucas informações sobre o céu e, conse-qüentemente, não podiam fazer muitas inferênciascosmológicas. Medir grandes distâncias no univer-so sempre foi um enorme desafio para os astrôno-mos. Esse problema começou a ser minimizadoem 1912, quando a norte-americana HenriettaLeavitt (1868-1921), ao estudar estrelas variáveisconhecidas como cefeidas, descobriu que existeuma relação entre o período de variação do brilhodessas estrelas e sua luminosidade intrínseca, deforma que, quanto maior for esse período, maiortambém será a luminosidade.

Assim, passou a ser possível estimar grandesdistâncias no universo, pois essas estrelas podemser consideradas como uma espécie de padrão decalibração para distâncias astronômicas. Espera-seque as cefeidas apresentem sempre o mesmo com-

portamento, independentemente de onde estejam,possibilitando, dessa forma, uma estimativa dire-ta da distância a partir da medida do período devariação de sua luminosidade. Uma contribuiçãofabulosa!

Também a partir de 1912, outro norte-america-no, Vesto Slipher (1875-1969), começou um traba-lho monumental ao fazer observações sistemáticasde nebulosas. Ele desconfiou que as nebulosasespirais e algumas elípticas estavam se afastandode nós com grandes velocidades, de forma queconsiderá-las como membros da Via Láctea passoua ser algo questionável. Eram as primeiras evidên-cias de que o universo estava se expandindo.

Um grande debateSimultaneamente a essas descobertas, baseadas naobservação, outra revolução no campo da teoria es-tava acontecendo. Em 1916, o físico alemão AlbertEinstein (1879-1955) propôs a teoria da relativida-de geral e mudou a forma como encaramos a gra-vidade. Em fenômenos que não envolvem massasgigantes – a partir das solares – e velocidades pró-ximas à da luz (300 mil km/s), as diferenças entrea teoria da gravitação proposta no século 17 pelo

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Representação artísticada Via Láctea, que abriga

o nosso sistema solar.A Via Láctea é uma entre as

bilhões de galáxias do universo

NASA

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físico e matemático inglês Isaac Newton (1642-1727) e a de Einstein são mínimas. No entanto, arelatividade geral conseguiu explicar as anomaliasna órbita do planeta Mercúrio, encontradas 60 anosantes pelo francês Urbain Leverrier (1811-1877),bem como prever com exatidão como a luz é in-fluenciada por um campo gravitacional, o que foicomprovado em um eclipse total do Sol observadopor expedições científicas em 1919 na cidade deSobral (Ceará) e na ilha de Príncipe, na costa oesteafricana.

Assim como outros cientistas da época, Einsteinachava que o universo era estático e, por isso, alte-rou parte das equações de sua teoria – que admi-tiam a possibilidade de expansão do universo –, deforma que ela espelhasse esse consenso. Ele fezessa modificação por meio da introdução de umtermo que ficou conhecido como constante cos-mológica, que serviria para ‘frear’ essa expansão.

Em 1915, Slipher publicou um trabalho no qualmostrou observações de 15 nebulosas, sendo que11 delas apresentavam um deslocamento dessa luzpara a faixa do vermelho. Eram fortes evidênciasde que as nebulosas estavam mesmo se afastandode nós. Como elas ainda não eram consideradasobjetos extragalácticos, esse trabalho sofreu seve-ras críticas, embora Slipher tenha recebido aplau-sos quando apresentou esse resultado na reuniãoda Sociedade Astronômica Americana, em agostode 1914. Em 1917, o holandês Willem de Sitter(1872-1934) obteve uma solução para as equaçõesde Einstein que admitia um universo em expansãoe Slipher publicou outro trabalho, agora com maisdados, no qual cogitou que a Via Láctea não estariaem repouso em relação às nebulosas. Slipher cal-culou que a velocidade desse deslocamento relati-vo seria de 700 km/s e deu um passo intelectualmuito importante ao dizer que as nebulosas espi-

rais são sistemas estelares vistos a grandesdistâncias. Em 1920, um grande debate foiestabelecido entre Herber Curtis (1872-1942) e Harlow Shapley (1885-1972) so-bre a natureza das nebulosas. Curtis de-fendia a idéia de que elas não pertenciamà Via Láctea, enquanto Shapley dizia queelas seriam objetos da nossa galáxia. Pou-co mais tarde, as observações astronômi-cas mostrariam que Slipher e Curtis esta-vam certos e seriam prenúncios das sur-presas que o universo nos reservava.

O átomoprimordialEm 1922, o russo Aleksandr Friedmann(1888-1925) também percebeu que asequações da gravitação de Einstein pode-riam descrever um universo em expansão.Essa solução implicava que o universo teriasurgido em um dado momento no passadoe que os objetos cósmicos estariam se afas-tando de nós. Toda a matéria teria sidocriada nesse momento. De forma indepen-dente, o padre e astrônomo belga GeorgesLemaître (1894-1966) notou, em 1927, que

O astrônomo Edwin Hubble (na imagemolhando o espaço através do telescópiodo Observatório de Monte Wilson)demonstrou nos anos 20 que as nebulosasestavam fora da Via Láctea e queas galáxias se afastavam umas das outrasFO

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existia uma solução das equações de Einstein queindicavam um universo em expansão.

Em meados da década de 1920, o astrônomonorte-americano Edwin Hubble (1889-1953) de-terminou a distância de uma nebulosa na conste-lação de Andrômeda, usando, para isso, uma estre-la cefeida. Estava demonstrado que as nebulosastinham natureza extragaláctica. Em 1929, Hubble,observando mais galáxias e utilizando dados deSlipher, concluiu que elas se afastam mais rapida-mente quanto mais longe estão de nós, estabele-cendo um dos pilares observacionais da cosmolo-gia moderna, conhecido como lei de Hubble.

Na verdade, o que ocorre é um afastamento mú-tuo entre as galáxias: qualquer observador queporventura estivesse em qualquer galáxia observa-ria exatamente o mesmo quadro. É como se todasas galáxias fossem pontos distribuídos na superfí-cie de uma bola que aumenta de volume. Todos ospontos dessa superfície se afastam uns dos outrosà medida que o volume da bola aumenta.

No início da década de 1930, Einstein, depoisde tomar contato com os resultados de Hubble – ouseja, a constatação de que o universo está mesmoem expansão –, considerou sua constante cosmo-lógica como o maior erro científico de sua vida.Mas, ironicamente, resultados recentes – comoiremos discutir adiante – mostraram que Einstein,mais uma vez, podia estar certo. Em 1933, Lemaîtrepublicou um trabalho no qual sugeriu a idéia deum átomo primordial para explicar o início douniverso.

Um começomuito quenteO advento da teoria da relatividade geral e a su-posição do princípio cosmológico – ou seja, a idéiade que o universo, em grandes escalas, é homogê-neo e que as suas propriedades são as mesmas emqualquer direção do espaço – levaram à constru-ção de um modelo para explicar a origem, a evo-lução e a estrutura do universo. Esse modelo ficouconhecido como ‘Hot Big Bang’ – ou, mais popular-mente, como apenas Big Bang –, e faz as seguintessuposições:i) o universo está em expansão, o que explica a

recessão (ou afastamento mútuo) das galáxias,daí a analogia – de certa forma errônea – comuma explosão e o termo Big Bang (grande ex-plosão);

ii) o universo se iniciou em um estado de altas tem-peraturas – daí o qualificativo Hot (quente) –,

o que explicaria a formação de elementos quí-micos leves (hidrogênio, hélio etc.) e a existên-cia de uma ‘energia residual’, ou ruído, que per-mearia todo o cosmos e seria o resquício da épo-ca em que essas altas temperaturas reinavamno universo.Esse modelo ganhou forma na década de 1940,

quando o russo George Gamow (1904-1968), quehavia sido aluno de Friedmann, refinou, juntamen-te com os norte-americanos Ralph Alpher e RobertHerman (1914-1997), a idéia do átomo primordialde Lemaître para explicar a formação dos elemen-tos químicos.

Segundo pilarA nucleossíntese primordial é o processo que ex-plica a formação de elementos químicos no iníciodo universo. Esse processo, segundo o modelo doBig Bang, ocorreu nos primeiros três minutos devida do universo, pois a temperatura e a densidadenesse período eram apropriadas para a formaçãode elementos leves, como hidrogênio, hélio, deu-tério e lítio. Sabemos hoje que cerca de 25% damassa do universo estão na forma de hélio. Contu-do, a maior parte do hélio produzido no universo,pelo processo de fusão de dois átomos de hidrogê-nio (núcleo formado por um próton) no núcleo dasestrelas, continua no interior estelar. Além disso,sabemos que, no máximo, 10% do hidrogênio dis-ponível no universo passaram por esse processo deconversão em hélio nos caldeirões estelares.

Também sabemos que o hidrogênio se encon-tra, geralmente, na forma de átomos simples e nãocomo isótopos mais pesados desse elemento, comodeutério (um próton e um nêutron) ou trítio (umpróton e dois nêutrons). Deutério não é produzidonas estrelas; pelo contrário, é destruído no interiordelas devido às altas temperaturas ali reinantes.Assim, a abundância e a distribuição uniforme deelementos leves no universo são difíceis de serexplicadas, a não ser que seja atribuída a eles umaorigem primordial. As observações das abundân-cias de elementos leves no universo formam, as-sim, o segundo pilar observacional do modelo doBig Bang.

Terceiro pilarEntretanto, uma das observações astronômicas maisfantásticas do século passado refere-se à constataçãode que todo o universo é permeado por um ruído �

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eletromagnético muito fraco. Independentementeda direção em que se observa o céu, esse ruído semostra presente. O Big Bang previa que a ‘energiaresidual’ do início do universo teria uma tempera-tura, hoje, entre 5 e 10 K (kelvin) – entre -268 e-263 oC (graus celsius negativos) – e seria observa-da em qualquer região para a qual se apontasseum detector.

O ruído que se observa hoje no céu tem umatemperatura de 2,7 K, que é muito próxima daque-la prevista pelo modelo. Essa temperatura nos per-mite deduzir que a intensidade máxima dessa ener-gia se encontra na faixa de microondas. Por essarazão, ela é tecnicamente denominada radiaçãocósmica de fundo em microondas (RCFM). A RCFMfoi descoberta, acidentalmente, há 40 anos, pelosnorte-americanos Arno Penzias e Robert Wilson.Essa descoberta é considerada como uma das maisimportantes da história da cosmologia observa-cional e, por isso, Penzias e Wilson ganharam oprêmio Nobel de Física de 1978. Essa evidênciaobservacional é o terceiro pilar que sustenta o Hot

Big Bang.

Estado estacionárioNaturalmente, uma idéia como a do Hot Big Bang

para explicar a origem do universo encontrou for-tes resistências. Na verdade, foi o britânico FredHoyle (1915-2001), que não gostava dessa idéia,quem chamou essa possibilidade, em tom jocoso,de Big Bang, e o apelido ‘pegou’. A tradução do ter-mo Big Bang encerra controvérsias: comumente, otermo utilizado é ‘grande explosão’, mas há varian-tes como ‘estrondão’ e outras. Essa tradução usualleva, em geral, a uma má interpretação da idéia doBig Bang, pois não houve uma explosão em um

dado ponto do espaço, como somos levados a pen-sar. Na realidade, a criação do espaço e do tempocorrespondia à própria criação do universo. Essasduas entidades estão unidas de forma indissociávelno chamado contínuo espaço-tempo, um cenáriode fundo em que os eventos ocorrem. Mas o queimporta é a idéia utilizada para explicar fenôme-nos que saíram naturalmente de algumas equaçõesantes mesmo que as observações fossem feitas!

Os austríacos Hermann Bondi e Thomas Gold(1920-2004), juntamente com Hoyle, desenvolve-ram, em 1948, um modelo de universo que ficouconhecido como ‘estado estacionário’, que pressu-punha a criação contínua de matéria para com-pensar o fato de que o universo se expandia. Aidéia era mostrar que o universo não se alteravacom o passar do tempo. No entanto, as observaçõesastronômicas favoreceram o modelo do Big Bang.

As evidências (ou pilares) observacionais a fa-vor do Big Bang são, como dito anteriormente: i) arecessão das galáxias; ii) a abundância de elemen-tos leves; e iii) a existência da RCFM. Essas evidên-cias, que confirmaram algumas das previsões des-se modelo, fizeram com que ele ficasse conhecidocomo modelo cosmológico padrão e condenaramao esquecimento o modelo estacionário. Entretan-to, o Big Bang ainda está longe de fornecer umadescrição completa do universo. Ele vem sendoaperfeiçoado continuamente e ainda apresenta fra-

Figura 1. Três cenários possíveis segundo a relaçãoentre a densidade atual de matéria do universoe a chamada densidade crítica (relação indicadapela letra �). A densidade crítica é da ordemde 10 átomos por metro cúbico

Figura 2.O satéliteCobe, da Nasa(agênciaespacial norte-americana),investigoua chamadaradiaçãocósmicade fundo

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Dados obtidos pelo Cobe

Espectro de um corpo negroa 2,725 kelvin

gilidades. Mas é o melhor modelo que temos hojepara explicar o que observamos no céu.

O futuro do universoDe modo simplificado, podemos dizer que o futurodo universo depende da quantidade de matériaque ele encerra. Mais especificamente, dependeda relação entre a densidade atual de matéria e achamada densidade crítica do universo. Essa últi-ma tem um valor de aproximadamente 10 átomospor metro cúbico, que é obtido quando se conside-ra a quantidade de matéria necessária para rever-ter o processo de expansão do universo – ou ditomais tecnicamente, para tornar o espaço plano,como veremos a seguir. Ela é calculada em funçãoda taxa atual de expansão. Esse valor é muito baixose o compararmos com o vácuo que se consegueobter em laboratório! A atração gravitacional éque vai decidir se o universo colapsará ou se ex-pandirá para sempre.

A relação entre a densidade atual de matéria ea densidade crítica é comumente denominada pelaletra grega���(ômega), e dela podemos extrair trêscenários:i) se��� for maior que 1 – ou seja, se a densidade

atual de matéria for maior que a densidade crí-tica –, então a gravidade fará com que o univer-so colapse – muitas vezes, esse fenômeno é de-nominado na literatura popular como Big Crunch

(grande esmagamento); neste caso, a curvaturado espaço seria positiva, determinando um uni-verso fechado e sem fronteiras (figura 1A);

ii) se���for menor que 1 – ou seja, densidade atualmenor que a densidade crítica –, a expansão sedará para sempre, o que significa que o univer-so terá um fim escuro e gelado; o fim, nessecaso, está ligado à morte térmica devida àexaustão das fontes de energia, porque, se aindahouvesse matéria disponível, o processo de for-mação estelar poderia continuar, pois galáxiassão sistemas gravitacionalmente ligados e, in-ternamente, não sofrem com a expansão global;para� �� < 1, a curvatura é negativa, determi-nando um universo dito aberto e ilimitado (fi-gura 1B);

iii) se� �� = 1, o universo também se expandirápara sempre, mas a uma taxa que vai se redu-zindo; este é o caso em que a curvatura doespaço é nula e que determina o chamado uni-verso plano (figura 1C).Portanto, determinar a quantidade de matéria

do universo é crucial para descobrirmos o nossofuturo.

Impacto profundoO instrumento Firas (sigla, em inglês, para Espec-trômetro Absoluto no Infravermelho Distante), umdos experimentos que compunham o satélite Cobe(sigla, em inglês, para Explorador do Ruído deFundo Cósmico), mostrado na figura 2, confirmoude forma espetacular, em 1990, que a RCFM real-mente tem as propriedades previstas pela teoria –tecnicamente, diz-se que o espectro de energia daRCFM é semelhante àquele que seria emitido porum corpo negro perfeito (aquele que absorve todae qualquer radiação que incide sobre ele) à tem-peratura de 2,7 K.

Na figura 3, vê-se que os dados coletados peloFiras coincidem de modo muito preciso com aprevisão do modelo cosmológico padrão. Esse re-sultado se tornou uma das mais fortes evidênciasa favor do Big Bang e indica que matéria e radia-ção, quando o universo era muito jovem, estavamem um estado de equilíbrio termodinâmico qua-se perfeito, ou seja, tinham ambos a mesma tem-peratura. Com a expansão do universo e o seuconseqüente resfriamento, a temperatura dessa ra-diação atingiu, hoje, aproximadamente 2,7 K (cer-ca de -270oC), conforme previa o modelo.

Outro resultado obtido pelo Cobe foi a descober-ta de pequenas perturbações, da ordem de 10-5 K,na temperatura da RCFM. Essa detecção foi feita,em 1992, pelo experimento DMR (sigla, em in-glês, para Radiômetro Diferencial de Microondas).Medir um sinal com intensidade tão baixa foi umdos maiores desafios astronômicos de todos os tem-pos. Essa descoberta teve um profundo impacto nacosmologia, pois revelou como era o universo háquase 14 bilhões de anos (figura 4A). �

Figura 3.Espectrode radiaçãode um corponegro perfeitoà temperaturade 2,725 Kcomparadocom dadosobtidos pelosatélite Cobepara a radiaçãocósmicade fundoem microondas

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Eles apresentaram a idéia de um processo no qualo universo, em seus primórdios, teria passado poruma expansão extremamente rápida. Segundo essateoria, a densidade atual do universo deveria sermuito próxima da densidade crítica – 10 átomosde hidrogênio por m3 – e a sua geometria seriaplana (� = 1). Além disso, as flutuações primor-diais de densidade seriam as mesmas em todas asdireções em que se observasse o céu. Até agora, asobservações têm corroborado essa teoria.

Efeito no horizonteComo explicar que partes tão distantes do univer-so visível sejam banhadas por uma radiação defundo com a mesma temperatura, ou seja, 2,7 K?Isso é uma forte evidência de que, em algum mo-mento depois do Big Bang, matéria e partículas deradiação (fótons) estiveram em contato durante umtempo suficiente para que suas temperaturas seigualassem. Na verdade, sabemos que isso ocorreu

Figura 4.Em A, mapada distribuiçãoda radiaçãocósmicade fundoem microondasproduzido pelosatélite Cobeem 1990.Em B, mesmomapa obtidopela sondaWMAP, cercade 11 anosmais tardee com precisão45 vezessuperiorà do Cobe

Os harmônicos do universo

Figura 5. Espectro de potência das flutuaçõesde temperatura da radiação cósmicade fundo em microondas

Para podermos extrair informações dos mapas de flutuações de temperaturada radiação cósmica de fundo em microondas, precisamos compor um gráficoque represente a amplitude dessas flutuações em função da separaçãoangular entre regiões do céu. Esse gráfico é conhecido como espectro depotência angular da RCFM (figura 5). Os picos são reflexos das oscilações queocorreram no universo primordial, quando um tipo de mistura quentíssimade partículas, o chamado plasma primordial, composto por bárions (prótonse nêutrons) e radiação (fótons), oscilava em função da gravidade, que atraíaos bárions, e da ação dos fótons, que ofereciam resistência a essa atração.A expansão do universo agia como um amortecedor dessa situação.

O primeiro pico desse gráfico representa o harmônico fundamental, queé a maior oscilação que poderia aparecer no fluido primordial, composto dematéria e radiação em altíssimas temperaturas. Os outros picos estão ligados

A sonda WMAP (sigla, em inglês, para SondaWilkinson de Anisotropia em Microondas), lançadaem 2001, obteve mapas do céu com uma sensibi-lidade 45 vezes melhor que a do Cobe (figura 4B).Dessa forma, foi possível obter informações maisprecisas ainda sobre o universo primordial.

Teoria da inflaçãoApesar de o modelo do Big Bang explicar a recessãodas galáxias, o espectro da RCFM e a abundânciaatualmente observada de elementos leves, ele apre-senta problemas para justificar, por exemplo, porque o universo é tão homogêneo em grandes esca-las, como se pode inferir da distribuição da RCFM.

Para resolver esses problemas, foi idealizada,entre o final da década de 1970 e início da décadaseguinte, a chamada teoria da inflação pelos norte-americanos Alan Guth, Paul Steinhardt e AndreasAlbrecht, e mais tarde pelo russo Andrei Linde.

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Primeiro pico(harmônico fundamental)Universo plano

Segundo picoMatéria escura

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Terceiro picoMatéria escura

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até cerca de 370 mil anos depois do Big Bang.Imagine uma antena que capte fótons da RCFM

vindos de direções opostas do céu. Cálculos feitosa partir da teoria tradicional do Big Bang mostramque as fontes que geraram esses fótons – e, portan-to, a RCFM – tiveram que, 370 mil anos depois dacriação do universo, se afastar umas das outrascom velocidade muito superior à da luz para ex-plicar a isotropia da RCFM. No entanto, a teoria darelatividade nos garante que nada viaja mais rapi-damente que a luz no vácuo (300 mil km/s). Então,como explicar esse tremendo afastamento entre asfontes geradoras da RCFM, hoje separadas por gran-des distâncias no céu?

Para encontrar uma solução, a teoria da inflaçãopropõe que o universo tenha começado incrivel-mente pequeno e em equilíbrio térmico, ou seja,com uma temperatura extremamente uniforme. Oprocesso de inflação teria estendido essa uniformi-dade para todo o universo observado hoje, ou seja,regiões ou objetos que, aparentemente, não estãoem contato causal para poder entrar em equilíbriotérmico, na verdade já estiveram em contato antesdo processo inflacionário, explicando essa isotropiada RCFM.

Vale ressaltar que não há nenhuma incompa-tibilidade entre a inflação e a teoria da relativi-dade. Esta determina que nenhum corpo – no caso,as fontes da RCFM – pode ultrapassar a velocida-de da luz viajando no espaço. No entanto, não fo-ram as fontes da RCFM que se afastaram comvelocidades supraluminares viajando no espaço. Oque se deu foi um ‘esticamento’ extremamenteveloz do espaço-tempo logo no início do universo,

aproximadamente 10-35 segundo após o Big Bang.Em resumo: quando acoplamos a teoria da in-

flação ao modelo do Big Bang, conseguimos expli-car a isotropia da RCFM.

Expansão aceleradaDados publicados em 1998 indicam que o universonão só está em expansão, mas também faz isso demodo acelerado. Foi uma surpresa – alguns clas-sificaram essa descoberta como uma das mais im-portantes da cosmologia no final do século passado.

Por mais de 10 anos, astrofísicos mediram adistância e o brilho de supernovas do tipo Ia que

aos harmônicos, ou seja, ondas cuja freqüência de oscilaçãosão múltiplos inteiros do harmônico fundamental. Várias in-formações podem ser extraídas dessa representação: porexemplo, as posições dos picos no gráfico – ou seja, asescalas angulares que correspondem às maiores intensidadesdeles – nos dão informações sobre a curvatura do universo;a altura do segundo pico nos dá informações sobre a den-sidade de bárions do universo.

Podemos, com base no número, largura, altura e posiçãodesses picos, determinar alguns dos parâmetros fundamen-tais do universo, como sua idade, composição e geometria.Os resultados de experimentos recentes, que observaram océu com mais detalhes que o Cobe, permitiram inferir queo universo tem aproximadamente 14 bilhões de anos de ida-de, é composto por apenas 4% de bárions, possui uma gran-de quantidade de energia escura e é plano.

aconteceram a grandes distâncias –supernovas do tipo Ia são explosõesque acontecem no final da vida deestrelas anãs brancas que fazem par-te de um sistema binário; elas libe-ram sempre a mesma quantidade deenergia, o que faz delas uma exce-lente ferramenta de medida de dis-tâncias no universo. No entanto, o bri-lho dessas supernovas não se mostracompatível com as estimativas de suasdistâncias. Elas são menos brilhantesdo que o esperado, o que indica queestariam a distâncias maiores.

Os pesquisadores concluíram, então,que a taxa de expansão do universoestá aumentando, o que explicaria es-sas observações, e não diminuindo, co-mo seria esperado caso apenas a gra-vidade atuasse para conter a expansão(figura 6). Esses resultados, juntamentecom outras observações astronômicas,

Figura 6.Concepçãoartísticada expansãoaceleradado universo,descobertapor estudosdivulgadoshá apenassete anos

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sugerem que o universo é permeado por uma formaestranha de energia que está sendo chamada deenergia escura – em outras palavras, isso significaque a constante cosmológica proposta por Einsteinem 1917 é diferente de zero, ou seja, existiria umaespécie de antigravidade em grandes escalas, fazen-do com que os objetos cósmicos se afastem cada vezmais uns dos outros. Uma surpresa total! Se essasobservações estiverem de fato corretas, o universodeve se expandir para sempre.

Vários grupos de pesquisa no mundo vêm cola-borando com o esforço de entender o universoprimordial e de estudar como as grandes estru-turas que hoje observamos no céu (aglomeradose superaglomerados de galáxias, por exemplo) fo-ram criadas. Para isso, são realizados experimen-tos que observam o céu em microondas.

No Brasil, os grupos de cosmologia do InstitutoNacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em SãoJosé dos Campos (SP), e da Universidade Federalde Itajubá (Unifei), em Minas Gerais, também co-laboram com esse esforço e já participaram darealização de experimentos que mediram essasmicroondas cósmicas, como o Hacme (sigla, eminglês, para Transistores de alta mobilidade ele-trônica a bordo do Explorador Cósmico Avançadoem microondas) e o Beast (sigla, em inglês, paraTelescópio de Varredura dasAnisotropias da EmissãoSUGESTÕES

PARA LEITURA

SILK, J. O Big Bang –A origemdo universo(Editora UnB,Brasília, 1985).

WEINBERG, S.Os três primeirosminutos (Gradiva,Lisboa, 1987).

GUTH, A. H.O universoinflacionário –Um retratoirresistívelde uma dasmaiores idéiascosmológicasdo século(Editora Campus,Rio de Janeiro,1997).

VILLELA, T., FERREIRA,I e WUENSCHE, C.A. ‘Cosmologiaobservacional:a radiaçãocósmica de fundoem microondas’in: Revista USP(Dossiê sobrecosmologia)(USP, n. 62, junho,julho e agostode 2004).

Na internethttp://www.das.

inpe.br/~cosmo/http://astro.if.ufrgs.

br/univ/univ.htm

de Fundo). Esses experimentos permitiram a pro-dução de mapas bastante precisos da radiaçãocósmica de fundo em microondas (RCFM).

Foram obtidos mapas detalhados da RCFM –como mostra a figura 7 –, com observações abordo de balões estratosféricos a cerca de 35 kmde altitude (Hacme), e, mais recentemente, foraminstalados detectores em uma montanha a 3,8 kmde altitude (Beast). Os resultados deste últimoexperimento – publicados em The Astrophysical

Journal Supplement Series (vol. 158, 2005)e mostrados na figura 8 – indicam

que o universo é plano, con-forme previsão da teoriada inflação.

Estamos, atualmente, em uma situação muitoparecida com aquela em que estávamos há 100anos: precisamos de teorias e dados melhores quepossam nos ajudar a entender o universo em quevivemos. Pelo que sabemos hoje, 95% do conteúdodo universo são componentes desconhecidos paranós, chamados de energia e matéria escuras. Issomostra nossa grande ignorância sobre a natureza.Por outro lado, isso também nos mostra que pre-cisamos ainda aprender muita física... ■

O céu emmicroondas

Figura 7. Abaixo, mapa da radiação cósmica de fundoem microondas feito a partir de dados coletados peloCobe. Acima, mapas – com precisão superior à dosatélite norte-americano – de duas regiões do céuobtidos com o experimento Hacme, que teve aparticipação de uma equipe brasileira

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Figura 8.Mapa da radiaçãocósmica de fundoem microondas feitopela sonda WMAP.No ‘anel’ emdestaque, mapeamentode região do céu obtidopelo experimento Beast,do qual participaramequipes do INPEe da Unifei

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