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CORPOS DOENTES NA SÃO PAULO DE 1930: INDÚSTRIA, PROPAGANDA E DISCURSO Gabriel Kenzo Rodrigues 1 INTRODUÇÃO O corpo é comumente representado em seus limites extremos, que vão desde a veneração do corpo saudável, hábil, disposto a cumprir a sua função social – seja ela qual for: o soldado pronto para/em batalha, o homem viril trabalhador, a mulher e as diversas representações acerca da beleza e jovialidade, etc. –, e a delimitação do outro extremo, o corpo mórbido, doente, debilitado, como um outro indesejável que se encontra em si próprio (REVEL; PETER, 1976:145), incapaz de se encaixar nas tramas mais cotidianas da sociedade, justamente por não estar apto a cumprir a função social que o seu outro extremo mais honrado realiza com facilidade. Mas o corpo não raramente é anunciado como um vir-a-ser, que se desloca entre este estado ambivalente de doença e saúde por intermédio de agentes de toda sorte. Muitas vezes à incapacidade de controle sobre ele, à falta de previsão sobre o seu funcionamento, sobrepõe-se a tentativa de objetivá-lo, a circunscrição do corpo na regra que permite conter as suas manifestações mais abruptas. A religião cristã, por exemplo, no limite o exorcizará, no cotidiano trará a carestia e a temperança dos prazeres como possibilidade corporal de salvação da alma; o Estado buscará garantir a salubridade e a higiene, principalmente, quando as epidemias ceifarem os corpos trabalhadores, sustentáculos do desenvolvimento industrial. Mas é claramente a medicina que irá objetivar este corpo em um nível que elide a sua perspectiva de sofrimento e prazer, de adequação social ou desqualificação, para lançá-lo em um estudo de “pura corporalidade” (REVEL; PETER, 1976:145). Desta forma, o olhar que pretendemos direcionar no presente estudo não diz respeito somente ao corpo doente classificado segundo um quadro de sintomas, mas, principalmente, sobre estes corpos doentes imersos em suas sensibilidades representadas na década de 1930 em São Paulo. Para tanto, optamos pelo uso da publicidade farmacêutica na análise, por ser um veículo que busca estabelecer um diálogo com o doente a partir dos descompassos sociais que determinadas enfermidades possam produzir – obviamente a propaganda com o intuito da venda em larga escala e produzindo a mensagem a partir de um local específico, mas ainda assim, com 1 Mestrando em História Social pela PUC-SP, orientadora: Mariza Romero, bolsista CAPES.

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CORPOS DOENTES NA SÃO PAULO DE 1930: INDÚSTRIA, PROPAGANDA

E DISCURSO

Gabriel Kenzo Rodrigues1

INTRODUÇÃO

O corpo é comumente representado em seus limites extremos, que vão desde a

veneração do corpo saudável, hábil, disposto a cumprir a sua função social – seja ela qual for: o

soldado pronto para/em batalha, o homem viril trabalhador, a mulher e as diversas

representações acerca da beleza e jovialidade, etc. –, e a delimitação do outro extremo, o corpo

mórbido, doente, debilitado, como um outro indesejável que se encontra em si próprio (REVEL;

PETER, 1976:145), incapaz de se encaixar nas tramas mais cotidianas da sociedade, justamente

por não estar apto a cumprir a função social que o seu outro extremo mais honrado realiza com

facilidade.

Mas o corpo não raramente é anunciado como um vir-a-ser, que se desloca entre este

estado ambivalente de doença e saúde por intermédio de agentes de toda sorte. Muitas vezes à

incapacidade de controle sobre ele, à falta de previsão sobre o seu funcionamento, sobrepõe-se a

tentativa de objetivá-lo, a circunscrição do corpo na regra que permite conter as suas

manifestações mais abruptas. A religião cristã, por exemplo, no limite o exorcizará, no cotidiano

trará a carestia e a temperança dos prazeres como possibilidade corporal de salvação da alma; o

Estado buscará garantir a salubridade e a higiene, principalmente, quando as epidemias ceifarem

os corpos trabalhadores, sustentáculos do desenvolvimento industrial. Mas é claramente a

medicina que irá objetivar este corpo em um nível que elide a sua perspectiva de sofrimento e

prazer, de adequação social ou desqualificação, para lançá-lo em um estudo de “pura

corporalidade” (REVEL; PETER, 1976:145).

Desta forma, o olhar que pretendemos direcionar no presente estudo não diz respeito

somente ao corpo doente classificado segundo um quadro de sintomas, mas, principalmente,

sobre estes corpos doentes imersos em suas sensibilidades representadas na década de 1930 em

São Paulo. Para tanto, optamos pelo uso da publicidade farmacêutica na análise, por ser um

veículo que busca estabelecer um diálogo com o doente a partir dos descompassos sociais que

determinadas enfermidades possam produzir – obviamente a propaganda com o intuito da venda

em larga escala e produzindo a mensagem a partir de um local específico, mas ainda assim, com

1 Mestrando em História Social pela PUC-SP, orientadora: Mariza Romero, bolsista CAPES.

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a necessidade de estabelecer uma comunicação eficiente com o receptor -, trazendo-nos uma

dimensão do corpo doente na sua relação com a sociedade da época e, por sua vez, a relação da

constituição social sobre o sujeito e suas enfermidades.

Como veremos adiante, o anúncio representa o sujeito a partir do que ele pode ganhar

ou perder com o consumo de determinado medicamento em termos de sociabilidade; o que um

neurastênico perde em termos de projeção profissional ao não se tratar, como um sifilítico

desmantela sua família com sua doença, como uma mulher que cuida do seu corpo atrai bons

pretendentes, como uma criança que recebe de sua mãe os fortificantes devidos tem um

crescimento saudável para poder brincar e estudar, entre diversos outros exemplos. E representa

dessa forma como o corpo são ou doente é trespassado pelas exigências de uma sociedade

urbanizada que demanda constantemente deste sujeito o cumprimento de tarefas.

INDÚSTRIA FARMACÊUTICA E ESTRATÉGIAS PUBLICITÁRIAS

O primeiro momento que impulsionou a constituição de um saber técnico

farmacêutico nacional foi o período durante e logo após a Primeira Guerra Mundial. Devido à

queda na importação de produtos – tanto pelo desaceleramento na produção industrial desta

categoria quanto pela elevação dos impostos sobre produtos estrangeiros estabelecida pelo

governo -, os laboratórios nacionais intensificaram a produção de especialidades, embora

dependessem da importação de matérias-primas básicas. No entanto, é estimado que durante

este período a produção de medicamentos oficinais tenha aumentado 150%; também nesta

época há um desenvolvimento de medicamentos biológicos, que não necessitam de uma alta

mecanização para produzi-los, o que auxilia na independência da produção nacional sobre as

importações, sobretudo europeias (CYTRYNOWICZ, 2007: 55).

É a partir da década de 1940 que ocorrerá uma maior diferenciação entre os

produtos nacionais e estrangeiros. Até então, o nível tecnológico alcançado pela indústria

brasileira, embora menos volumoso, se equiparava aos produtos dos Estados Unidos e da

Europa. Mas na década anterior já se encontravam em germe as características que fariam os

produtos estrangeiros se sobressaírem, a saber, o aumento no investimento para pesquisa

científica especializada em medicamentos oficinais – principalmente após a descoberta da

penicilina e a invenção dos antibióticos - e o estudo sistemático para elaboração de estratégias

de comercialização.

Na década de 1930 a Alemanha exportava para o Brasil 70% dos produtos químicos

e farmacêuticos estrangeiros consumidos, e a Bayer desde 1911 já possuía um escritório de

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representação local, de onde podia elaborar propagandas mais próximas à realidade brasileira - é

nesta época que é criado o famoso slogan “Se é Bayer é Bom” pelo jornalista e publicitário

Bastos Tigre (CYTRYNOWICZ, 2007: 63) -, dez anos depois a empresa alemã começaria a

produzir medicamentos em território nacional.

As empresas estadunidenses, vendo uma fatia do mercado brasileiro nas mãos dos

europeus, começam a elaborar estratégias para aumentar o consumo dos seus produtos,

investindo em campanhas publicitárias, distribuição de amostras aos médicos brasileiros –

prática comum às empresas estrangeiras para se inserir no mercado local - e o estabelecimento

de laboratórios no Brasil; este último aspecto servia para driblar a política de elevação cambial

sobre importações e receber os benefícios garantidos à produção nacional (CYTRYNOWICZ,

2007: 61).

OS DISCURSOS DA SAÚDE: O CIENTÍFICO E O “POPULAR”

O ideal de modernização e cientificidade pode ser observado em muitas

propagandas, como por exemplo, esta da Bayer:

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Reclames da Bayer (1911-1942). São Paulo: Carrenho Editorial, 2005, p. 36-37, Careta (1919).

Vemos aqui a perspectiva de transição de “tempos remotos”, em que os remédios eram

produzidos a partir de fórmulas secretas, para os “tempos modernos” que elabora medicamentos

de eficiência comprovada. Note-se que embora seja uma propaganda de aspirinas, estas ficam

relegadas ao segundo plano, a principal mensagem a ser veiculada diz respeito à probidade da

marca e a sua relação estreita com a ciência. De um lado, um alquimista misterioso na escuridão

de seu laboratório, do outro, uma mulher elevada sobre uma rocha, apontando para o céu que se

abre e ilumina uma cidade que se encontra abaixo dela, a qual seu braço esquerdo aponta,

sendo, portanto, a mulher a intermediadora entre a luz e a cidade, conotando a transparência das

composições dos produtos da Bayer em relação às fórmulas secretas. Este anúncio simboliza a

passagem da era das boticas, dos produtos fitoterápicos e magistrais para o tempo dos

laboratórios e da produção industrial de medicamentos oficinais; também neste período, começa

a surgir a preocupação com as “imitações de produtos bem acreditados”, em uma época em que

não havia um cumprimento rigoroso da legislação sobre as patentes, portanto, o reconhecimento

da “Cruz Bayer” nos rótulos dos produtos deveria ser afirmado constantemente nas

propagandas.

Este espaço de disputa entre um conhecimento científico recente e um conhecimento

considerado ultrapassado não é o único foco de tensão criado. Também uma dualidade entre

científico e “popular” se apresenta frequentemente, como podemos ver neste anúncio publicado

em forma de artigo no Estado de São Paulo, em setembro de 1928:

Não ha dona de casa no nosso paiz que não saiba improvisar remedios e

curativos nos casos de necessidade. Todas ellas preparam, com

desembaraço, um chá de herva cidreira ou de herva doce, como manipulam

uma cataplasma de farinha de linhaça. Ha, porém, remedios indispensaveis

em todos os lares e que se não improvisam, como, por exemplo, a Fricção

Bayer de Espirosal. Eis porque não comprehende mãe de familia previdente

sem este medicamento em casa. Elle atalha as dôres rheumaticas com

presteza, sem inconveniente de apresentar cheiro forte e desagradavel ou de

sujar a roupa, como acontece com as fricções commummente usadas para

esse fim (RECLAMES..., 2005: 125).

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Aqui, se considera uma prática de cura “popular” comum a todas as donas de casa –

frequentemente as preservadoras da saúde no âmbito doméstico -, no entanto com a limitação de

não possuírem a Fricção Bayer para complementar o arsenal de produtos terapêuticos. O

científico absorve o “popular”, não o desacredita, mas busca estabelecer um diálogo com todas

aquelas que utilizam produtos fitoterápicos para poder apontar de que forma os seus hábitos

demonstram uma ausência, já que não existe “mãe de familia previdente” que não possua este

medicamento em casa.

A presença da ciência é tão visível que, por vezes, vemos a figura do cientista se

sobrepor à própria autoridade do médico, como podemos observar neste anúncio do Vinho

Reconstituinte Silva Araújo:

Diário da Noite, 20/11/1939, pg. 7.

O principal elemento da mensagem é o Prof. Rocha Vaz, nomeado como um “grande

scientista”, que concede o depoimento para confirmação da idoneidade do produto. Desta forma

é a representação do cientista e não do médico que valida o consumo deste medicamento.

Frequentemente veremos médicos criticando a forma como estas propagandas se

estabelecem, já que sua forma de comunicação se baseia na apresentação de diversos sintomas,

muitas vezes sem nenhum tipo de conexão, que permitem ao leitor identificar-se com uma

determinada agrura e recorrer ao balcão de uma farmácia para se automedicar. Assim,

desaparece a intermediação do olhar clínico sobre o paciente, e a propaganda se apropria da

nosografia para elencar uma série de sintomas, que na sua relação de combinação e sintaxe,

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resultarão sempre no diagnóstico do consumo da terapêutica anunciada, muitas vezes com o

endereço das farmácias autorizadas para revenda do produto. O anúncio busca captar a

percepção do leitor no momento de intersecção entre a dor presente que o aflige e a leitura do

sintoma, ele busca a comunicação neste pequeno intervalo de tempo, como uma aposta, em que

o receptor da mensagem estará naquele instante carregando os sintomas da doença enquanto lê o

seu jornal cotidiano.

O Dr. Galvão Flores escreve um artigo intitulado “Propaganda Popular e Venda de

Remédios sem Receita Médica”, em 1947 na Revista Brasileira de Medicina, onde demonstra a

crítica ao consumo de remédios sem supervisão médica:

Um operário ou uma doméstica que buscam no remédio de anúncio o alívio

para seus males, estão sendo duplamente prejudicados: 1.º) porque gastam

dinheiro em medicamento inteiramente ineficaz para a cura da afecção, a

qual não tratada criteriosamente tende a agravar-se, tornando-se a sua

medicação mais difícil e dispendiosa; 2.º) porque esse dinheiro, ganho

muitas vezes com sacrifícios e talvez retirado da cota destinada à

alimentação da família, seria muito mais útil se empregado em melhorar a

dieta quase sempre deficiente nesse tipo de doente (TEMPORÃO, 1986:33).

O Dr. José Palmério, psiquiatra paulista que defende a consulta clínica

individualizada, a qual ele dá o nome de “Nova Terapêutica”, dirá que:

[...] as pílulas, os xaropes e os elixires, os “fortificantes”, os

“reconstituintes”, os “depurativos”, os “laxantes”, os “expectorantes”, os

“aperitivos”, os “calmantes”, os “dissolventes”, de 50 anos atrás ainda são

hoje rebatizados com nomes esdrúxulos e enfeitados com papeis

transparentes e pinturas exóticas e enchem os balcões das farmácias,

pretendendo “modernizar” a Medicina com seu emprego aos cálices após as

refeições, ou às colheradas, de 2 em 2 horas...

Essa é a medicação que os donos de “preparados”, sobretudo, os

“populares”, querem consagrar em detrimento da terapêutica heróica,

individualizada, da dietética esclarecida, da fisioterapia e da cirurgia

positivas (PALMÉRIO, 1942:19-20).

O psiquiatra citado não se contrapõe à publicidade de medicamentos propriamente

dita, visto que era o diretor de um jornal de medicina intitulado “A Notícia Médica”, onde

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também eram anunciados diversos fármacos, contudo dentro dos parâmetros da concepção

científica da época – enquadrados no que chamamos de propaganda “ética” - e voltados para um

público restrito; o jornal possuía uma tiragem de apenas 12.000 exemplares e sua compra

ocorria apenas por assinatura, sendo a de menor de menor preço a trimestral, que custava 5$000.

A disputa então se dava principalmente entre o que era considerado “popular” e

científico, uma vez que o segundo termo não representava necessariamente o consumo de

medicamentos através de prescrição, podendo ser também OTC2, mas a sua principal

característica possivelmente era a nacionalidade do medicamento produzido, uma vez que “a

entrada no país da indústria farmacêutica estrangeira se dá de mãos dadas com os médicos, sob

a égide e a bandeira do desenvolvimento científico e aperfeiçoamento da prática profissional”

(TEMPORÃO, 1986: 34). Era característico das empresas estrangeiras estabelecerem acordos

com o corpo médico antes ou no início de sua chegada em terras brasileiras, portanto o que

garantia a “cientificidade” para o corpo médico, não era tanto a qualidade do produto – como

mencionado anteriormente, não havia um grande descompasso técnico entre produtos

industrializados nacionais e importados – mas aquilo que distinguia o medicamento estrangeiro

do nacional, e o que aproximava ou distanciava o nacional do estrangeiro, ou seja, a sua forma

de comercialização e a sua técnica de divulgação nos meios de comunicação. A Bayer, por

exemplo, era uma empresa que atuava em uma dupla frente, tanto no estabelecimento de

acordos com médicos quanto na promoção de seus produtos nos meios de comunicação, no

entanto, não era criticada e classificada como vendedora de produtos “populares”.

O MEDICAMENTO COMO POSSIBILIDADE DE REINTEGRAÇÃO

São Paulo desde o início do século XX passava por um intenso processo de

industrialização e urbanização, e a exaltação do trabalho como atividade que possibilita estas

mudanças é inextricável. Assim, recorremos a Foucault (1981), quando trabalha a genealogia da

medicina social, reconstituindo-a em três etapas de formação: a medicina do Estado, a medicina

urbana e a medicina da força de trabalho, sendo principalmente sobre a última etapa que nos

debruçamos, quando “o capitalismo que se desenvolveu a partir do final do século XVIII e

começo do XIX, inicialmente socializou um primeiro objeto, o corpo, em função da força

produtiva, da força de trabalho” (FOUCAULT, 1981:405), e desta forma estabeleceu um

controle sobre o corpo e dentro do corpo. Ora, o sistema capitalista necessita de corpos

2 Over The Counter: todo produto que pode ser comprado em uma farmácia sem a necessidade de

prescrição.

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trabalhadores saudáveis, e a doença figura uma interrupção no andamento dos objetivos

propostos por esta ideologia, a eficiência produtiva encontra-se no polo diametralmente oposto

da debilidade que uma doença pode causar, a despeito do seu grau de intensidade, seja uma

indisposição mental ou uma tuberculose, a questão principal é a soma de tempo “perdido” para

se atingir a cura e voltar ao trabalho com a vitalidade reconstituída.

O medicamento se torna então o “recurso fácil e rápido que permite o imediato

restabelecimento da tarefa” (LEFEVRE, 1991:72), e a publicidade anunciará a solução para o

pronto retorno ao trabalho através do medicamento, também uma forma de controle sobre o

corpo, interiorizada e com rápida eficácia, que subtrai o longo tempo da convalescença, o longo

tempo “necessário para que ocorram as mudanças nas estruturas sociais e produtivas geradoras

de doença; do largo tempo necessário para que ocorram mudanças de comportamentos

relacionados à saúde[...]; do largo tempo para se fazer uma boa consulta médica etc”

(LEFEVRE, 1991: 70).

O anúncio abaixo exemplifica através da sequência de imagens, ao estilo “antes e

depois”, a necessidade de “energia para a luta pela vida” e o restabelecimento rápido e eficaz:

Diário da Noite, 05/05/1939, pg. 4.

Por outro lado, também se anunciam medicamentos que combatem os efeitos desta

própria necessidade do cumprimento de tarefas na vida moderna, a respeito do que ela pode

provocar de descompasso para o sujeito inserido nesta lógica, e começamos a ver o surgimento

dos sofrimentos psicológicos resultantes das exigências da vida urbana:

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Diário da Noite, 03/02/1936, p. 12.

Nesta imagem podemos ver a simbologia da modernidade através dos elementos que

a compõem: prédios, trabalho fabril cronometrado, linhas de trem, e como estes resultam no

cansaço mental e abatimento do sujeito.

Em 1939, o Dr. Mário Rangel publica um livro chamado As Consultas de Todos os

Dias, provavelmente direcionado à classe médica, onde ele classifica as principais doenças de

seu período, trazendo os seus principais sintomas e tratamentos adequados. Ali já podemos ver a

atenção dada a certos distúrbios psicológicos como a insônia, nevralgia e a neurastenia, esta

última especificada como:

Todos os casos de fatigabilidade anormal e de astenia sem causa orgânica

aparente. Na neurastenia há sempre uma relação direta entre a causa

nervosa (emoção, exgotamento) e o efeito orgânico, o que permite

diferenciar nitidamente do nervosismo, considerado simples eretismo

nervoso.

A neurastenia provem sempre de emoções desagradáveis, desgostos,

trabalho intelectual excessivo. A primeira medida do médico será afastar a

causa (RANGEL, 1939:99).

Nove anos após a publicação do livro de Rangel, temos o livro de Antônio Pacheco e

Silva, A Psiquiatria e a Vida Moderna, que aprofunda a questão dos distúrbios psicológicos do

período, onde já se pode observar uma ampliação do quadro nosográfico de descompassos

mentais e o reconhecimento da ubiquidade destes distúrbios na cidade:

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Não há, na realidade, quem se possa vangloriar de não ter, em certos

momentos da nossa atribulada existência, apresentado pequenas desordens

do sistema nervoso, tais como fobias, idéias obsidentes, leves estados de

angústia ou de ansiedade, escrúpulos exagerados ou fases de irritabilidade,

as quais, conquanto não ofereçam maior gravidade, não deixam de pertubar

a tranquilidade do viver, dificultando o trabalho e provocando transitórios

desajustes profissional, familiar e social (SILVA, 1948:6).

Portanto, a cura surge novamente como fator de reintegração do indivíduo na

sociedade, para que ele não tenha “desajustes profissional, familiar e social”; a proposta do livro

será buscar os sintomas e as suas possíveis resoluções.

Desta forma, não existe um questionamento dos descompassos resultantes das

exigências que esta estrutura social realiza, pelo contrário, esta é naturalizada, se torna

atemporal, um dado em si. Ao elencar as formas de terapêutica e possibilitar o acesso dos

indivíduos a elas, seja através dos medicamentos OTCs ou na procura de um tratamento clínico

individualizado, a saúde torna-se uma responsabilidade do sujeito, a causa etiológica não possui

mais tanta importância quanto a iminência de se curar com prontidão para estar apto a cumprir

as tarefas sociais. A garantia da integração se individualiza no esforço do doente para se tornar

são.

FONTES CONSULTADAS

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Reclames da Bayer (1911-1942). São Paulo: Carrenho Editorial, 2005.

PALMÉRIO, José. O Custo dos Remedios e a Economia Medico-Farmaceutica. São Paulo,

1942.

RANGEL, Mário. As Consultas de Todos os Dias. Rio de Janeiro: Tip. Irmãos Di Giorgio & C.,

1939.

SILVA, A.C. Pacheco e. A psiquiatria e a vida moderna. São Paulo: Edigraf, 1948.

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