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Denise Espírito Santo; Júlia Jenior Lotufo - Corpografias Urbanas Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 70-82, jan./abr. 2014. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/presenca> 70 Corpografias Urbanas Denise Espírito Santo Júlia Jenior Lotufo Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil RESUMO Corpografias Urbanas – O presente artigo explora um conceito de dramaturgia híbrida que se produz no fluxo intenso do corpo performativo com a/na cidade. Procura analisar, com base em algumas leituras recentes sobre o corpo e suas dramaturgias, aquelas produções cênicas que, apoiando-se nesta tríade corpo-cidade-performatividade, visam promover o encontro do ator-performer com a cidade, acionando novas possibilidades de intervenção neste espaço público. As corpografias que aí se descortinam, no embate entre o performer, os passantes e o ambiente, constituem foro privilegiado para uma discussão acerca da dimensão política e pedagógica deste trabalho. Palavras-chave: Ator-performer. Cidade. Corporeidade. Performatividade. Pedagogia. ABSTRACT – The Urban Bodygraphy – This article explores the concept of hybrid drama produced in the heavy flow of the performative body with/the/in the city. Based on some recent readings on the body and its dramaturgy, it tries to analyze those stage productions which, supported by this body-city-performativity triad, aim to promote the meeting of the actor-performer with the city, triggering new possibilities of intervention in this public space. The Corpografias [bodygraphies] that unfold within the clash between the performer, bystanders, and the environment is a privileged locus for a discussion about the pedagogical and political dimension of this work. Keywords: Actor-performer. City. Bodiliness. Performativity. Pedagogy. RÉSUMÉ La “Corpographie” Urbaine Cet article explore le concept de dramaturgie hybride qui se produit dans le flux intense de l’échange du corps performatif avec/dans la ville. À partir de quelques lectures récentes sur le corps et ses dramaturgies, il propose une analyse des productions scéniques qui, s’appuyant sur cette triade corps-ville-performativité, cherchent à promouvoir une rencontre entre l’acteur-interprète et la ville, explorant de nouvelles possibilités d’intervention dans l’espace public. Les “corpographies” qui s’y déroulent dans cette confrontation entre l’artiste, les spectateurs et l’environnement constituent un terrain privilégié pour une réflexion autour de la dimension pédagogique et politique de ce travail. Mots-clés: Acteur-interprète. Ville. Corporéité. Performativité. Pédagogie. ISSN 2237-2660

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  • Denise Esprito Santo; Jlia Jenior Lotufo - Corpograf ias UrbanasRev. Bras. Estud. Presena, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 70-82, jan./abr. 2014.D i s p o n v e l e m : < h t t p : / / w w w . s e e r . u f r g s . b r / p r e s e n c a >

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    Corpografias UrbanasDenise Esprito Santo

    Jlia Jenior LotufoUniversidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil

    RESUMO Corpografias Urbanas O presente artigo explora um conceito de dramaturgia hbrida que se produz no fluxo intenso do corpo performativo com a/na cidade. Procura analisar, com base em algumas leituras recentes sobre o corpo e suas dramaturgias, aquelas produes cnicas que, apoiando-se nesta trade corpo-cidade-performatividade, visam promover o encontro do ator-performer com a cidade, acionando novas possibilidades de interveno neste espao pblico. As corpografias que a se descortinam, no embate entre o performer, os passantes e o ambiente, constituem foro privilegiado para uma discusso acerca da dimenso poltica e pedaggica deste trabalho.Palavras-chave: Ator-performer. Cidade. Corporeidade. Performatividade. Pedagogia.

    ABSTRACT The Urban Bodygraphy This article explores the concept of hybrid drama produced in the heavy flow of the performative body with/the/in the city. Based on some recent readings on the body and its dramaturgy, it tries to analyze those stage productions which, supported by this body-city-performativity triad, aim to promote the meeting of the actor-performer with the city, triggering new possibilities of intervention in this public space. The Corpografias [bodygraphies] that unfold within the clash between the performer, bystanders, and the environment is a privileged locus for a discussion about the pedagogical and political dimension of this work. Keywords: Actor-performer. City. Bodiliness. Performativity. Pedagogy.

    RSUM La Corpographie Urbaine Cet article explore le concept de dramaturgie hybride qui se produit dans le flux intense de lchange du corps performatif avec/dans la ville. partir de quelques lectures rcentes sur le corps et ses dramaturgies, il propose une analyse des productions scniques qui, sappuyant sur cette triade corps-ville-performativit, cherchent promouvoir une rencontre entre lacteur-interprte et la ville, explorant de nouvelles possibilits dintervention dans lespace public. Les corpographies qui sy droulent dans cette confrontation entre lartiste, les spectateurs et lenvironnement constituent un terrain privilgi pour une rflexion autour de la dimension pdagogique et politique de ce travail. Mots-cls: Acteur-interprte. Ville. Corporit. Performativit. Pdagogie.

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    Pra comeo de conversa...A cidade, a rua e a poltica dos corpos (in)comuns.

    No mbito de algumas produes artsticas que, nos ltimos anos, se debruaram sobre uma modalidade de teatro fsico ligado histria dos movimentos em dana e teatro que elegeram o corpo em presena do ator/performer/bailarino como motor dos processos de criao na cena contempornea, tem sido recorrente o uso de conceitos como dramaturgia do corpo, teatro fsico, teatro coreogr-fico, entre outros, que apontam para uma constelao de termos que instituem o corpo como eixo gravitacional de uma potica da cena que plasma questes de identidade, territorialidades, memria, produo de presena, subjetividades etc. Dada a amplitude do tema e de suas possveis abordagens, escolhemos como recorte tratar dos sentidos atribudos a uma dramaturgia do corpo que, associada quelas produes especialmente compostas para o espao das ruas e cidades, procura ressignificar as relaes entre o ator-performer e o espectador na arena multivocal das metrpoles contemporneas.

    Foi a partir de uma performance elaborada durante as oficinas realizadas dentro do projeto Zonas de Contato, que teve lugar nas ruas de Barra Mansa em dezembro de 20121, que o tema do corpo e de suas incurses potico-performativas nos espaos pblicos das cidades passou a localizar-se de modo mais presente em nossos en-contros de trabalho. Sob o ttulo Paraba em Liquidao, numa clara referncia ao rio que divide a cidade e tem um histrico assustador de muitas agresses ambientais, a performance tomou as ruas da ci-dade, envolvendo os performers/passantes e convidando a todos para uma experincia liminar2 com este corpo-cidade; no plano privado, interessava-nos refletir sobre o corpo essa testemunha ocular das transformaes dos padres comportamentais, sociais, culturais e polticos de nossa poca em contextos de formao artstica e humana.

    O tema do corpo e/ou corporeidades constituiu uma importante via de investigao para algumas das principais correntes esttico-filosficas que, desde o final do sculo XIX at o incio do sculo XX, reescreveram a arte e alguns de seus postulados em uma espcie de plataforma vital; o corpo validaria aquilo que, para o Zaratustra de Nietzsche, consolidava a superao do modelo estabelecido por sculos de uma epistemologia cartesiana. O corpo, esse ente doador de sinais e de pressgios, fala agora em nome de uma vontade; arauto

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    das transformaes que consolidariam sua remodelagem biolgica e social, o corpo torna-se, assim, a promessa de um mundo novo para o qual ainda se descortina perante ns com toda a sua complexidade...

    Quero dizer uma coisa aos que desprezam o corpo: despre-zam aquilo a que devem a sua estima. Quem criou a estima e o menosprezo e o valor e a vontade? / O prprio ser criador criou a sua estima e o seu menosprezo, criou a sua alegria e a sua dor. O corpo criador criou a si mesmo e o esprito como emanao da sua vontade3 (Nietzsche, 2002, p. 50).

    No campo estrito do teatro e da dana modernos, esse corpo em presena que vimos se intensificar em diferentes trabalhos de atores/bailarinos, coregrafos e encenadores apontaria para questes essenciais como vida/arte, real/simulacro, cotidiano/extracotidiano, visvel/invisvel, acenando para a superao do modelo cartesiano que estruturou boa parte da histria do corpo na civilizao ocidental. Em contrapartida, a relevncia do corpo no contexto de intensas transfor-maes sociais que redundaram em impactantes para a humanidade acenaria para a existncia de um corpo metfora do pensamento (Badiou, 2002); agora, o corpo alava uma nova condio, no mais submetido discursividade sobre o corpo, mas se tornando matria e carne de seu prprio pensamento.

    importante acrescentar que as transformaes ocorridas na esfera do espao pblico das metrpoles modernas, o incremento das relaes produtivas do capitalismo, a tecnicizao do trabalho e a emergncia no sculo XIX de uma espcie de transformao do direito poltico de fazer morrer e de deixar viver, tcnica esta que possibilitaria avanar sobre o controle e a gesto de uma massa de indivduos, desencadeariam notveis e relevantes influncias nessa redescoberta do corpo. Por outro lado, a cidade emerge como o grande teatro dessas transformaes. Com a cidade, novas vias de passagem, de trnsito e locomoo aparelharam os modos de deslocamento dos indivduos e afetaram consideravelmente suas estruturas perceptivas e cognitivas; a compresso das noes de tempo e espao ajudariam a remodelar a bios humana, a prpria ideia de sujeito seria afetada pelos estgios de uma formao subjetiva em constante processo de fixao, porosamente lquida, da constituindo os elementos que inspiraram uma centena de poetas e escritores no esquadrinhamento dessa remodelagem da nossa prpria espcie.

    Se, por um lado, a difuso dos espaos de circulao nas metrpoles favorecia novos meios de convergncia e de sociabilidades

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    de diferentes matizes, por outro lado, ela teria direta influncia na diluio dos espaos tradicionais de encontro, permitindo entrever a formao de microgrupos resistentes e propagadores de novos modos de uso e de pertencimento da cidade. As relaes entre corpo e ci-dade so bem antigas e caberiam, sem dvida, num vasto repertrio, considerando a literatura que se produziu sobre o tema a partir de uma gerao de escritores, poetas e filsofos que configuram essa virada histrica.

    Um conto de Edgar Allan Poe, O Homem da Multido, repre-senta um bom exemplo para a compreenso das subjetividades que so afetadas pelo impacto dos novos meios tcnicos e da acelerao do tempo, da exposio imagtica que transforma irremediavelmente a experincia de homens e mulheres nas sociedades industriais. No conto, Edgar Allan Poe oferece uma panormica afiada sobre as condies de sociabilidade e (re)integrao dos indivduos marginais de uma grande metrpole. Anunciava com certo toque visionrio a condio de deriva ou de abandono daqueles sujeitos excludos da engrenagem poltica e econmica que, no avano do capitalismo, reduziria quase ao extremo outras vias alternativas de integrao com a cidade e de seus espaos pblicos. Nesse caso, prevalecia um tipo de sujeito esvaziado interioridade/exterioridade alternando-se sem muita possibilidade de fixao; na solido e no isolamento, o homem da multido transformava-se num eterno buscador de paisa-gens, de pessoas, de lugares, para ento se perder na densa e povoada fantasmagoria das cidades. possvel seguir com Poe essa aventura da deriva, to cara aos nossos processos atuais de composio cnica com o corpo/cidade, especialmente quando o narrador do conto, um sujeito em estgio de reabilitao e convalescena, resolve investigar um estranho passante que nunca cansa de performar pela cidade; em sua solido irremedivel, apartado da multido, ele compe para si os sentidos de sua prpria deriva:

    Este velho, disse comigo, por fim, o tipo e o gnio do crime profundo. Recusa-se a estar s. o homem da multido. Ser escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respei- respei-to dos seus atos. O mais cruel corao do mundo livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercs de Deus que es lsst sich nich lesn (Poe, 2013, p. 4)4.

    Em um texto que trata das relaes entre memria e subjetivi-dade no sculo XIX, Maria Cristina Franco Ferraz (2010) comenta sobre as transformaes ocorridas no comportamento humano a partir da modernizao da percepo. Para ela,

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    Ao longo do sculo XIX operou-se uma ruptura radical com relao ao estatuto do observador, esvaziando-se o modelo epistemolgico da cmera obscura... A moderniza-o da percepo seguiu inseparvel do desenvolvimento e da disseminao de transportes mecnicos nas cidades bem como da inveno de novas tecnologias de produo e reproduo de imagens (Ferraz, 2010, p. 53).

    Ao mesmo tempo, a intensa estimulao sensrio-motora dos corpos nas cidades operava uma crescente fragmentao da percepo de mundo, favorecendo a configurao de um novo tipo de observa-dor, dotado de uma ateno igualmente flutuante, de uma interio-ridade que passou a ser investigada, esquadrinhada e quantificada, para fins de domesticao e normalizao. com base nessa intensa presena dos corpos na cidade que nossas sociedades contemporneas, governadas por ndices de consumo, por intensa exposio visual e imagtica, aprenderam a condicionar os padres comportamentais dos indivduos.

    Talvez seja nessa linha de raciocnio que devamos pensar a dimenso pedaggica da performance e de trabalhos voltados para uma dramaturgia do corpo/cidade; estes visam explorar, sobretudo, as dinmicas entre um corpo vivido e cotidiano, consumido pelo esforo repetitivo e nada inspirador dos estgios de embrutecimento comuns experincia com a/na cidade, e de um corpo actual e per-formativo, socializando os saberes destes processos que alternam a frequncia dos atos de ver, escutar, perceber e relacionar com a inten-ncia dos atos de ver, escutar, perceber e relacionar com a inten-ncia dos atos de ver, escutar, perceber e relacionar com a inten- e relacionar com a inten- relacionar com a inten-sidade das ruas, processos que possuem o mrito de favorecer uma atrao (que, ao mesmo tempo, poder desencadear o seu oposto, ou seja, a repulso) que desestabiliza e impe uma suspenso nos condicionamentos autmatos dos indivduos atropelados pela pressa e a disperso da ateno.

    A dimenso antropolgica da cultura alcanou estatuto indito na modernidade, sendo resultante disso a superao do modelo es-sencialista da cultura. Uma chave de compreenso para esse fen-se fen-e fen-meno deve-se ao enfraquecimento dos regimes coloniais europeus e a ascenso, em boa parte do planeta, de novas sociedades a partir de processos de liberdade e independncia nacional arduamente con-quistados. Nesse caso, poderamos observar a substituio do modelo essencialista ou seja, da cultura como patrimnio universalmente reconhecido pelo modelo relativista, em que se notam indcios de uma cultura-mais e dos cosmopolitismos vernculos, seguindo a linha

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    de pensamento de Homi Bhabha num dos seus trabalhos mais recen-tes (2013). Nesse caso, implica-se em considerar o descentramento desta ideia de uma cultura universal forjada a ferro e fogo por sculos de colonizao do corpo fsico e do corpo imaginrio.

    Para Michel Agier, a mestiagem da cultura possibilita essa amplificao dos corpos outrora entrincheirados em seus nichos de origem, provocando uma vocalizao desterritorializada que institue uma espcie de babel lingustica, comportamental e poltica.

    Num mundo em que vozes demasiado numerosas falam ao mesmo tempo, um mundo em que o sincronismo e a inveno burlesca passam a ser a regra, no a exceo, um mundo multinacional e urbano do efmero institucional-izado... Num tal mundo torna-se cada vez mais difcil unir a identidade e a significao humanas a uma cultura ou uma linguagem coerente (Agier, 2011, p. 145).

    A subjetividade se delineia assim, como extremamente porosa e flutuante; talvez seja por esse motivo que os encontros com a rua tenham a oferecer caminhos frteis para nos acercarmos das estruturas que influenciam os processos de composio para atores e perform-ers. O que isso tem a ver precisamente com essa investigao sobre as dramaturgias do corpo? A possibilidade de conceber que, no encontro do corpo com a cidade, o ato de performar fornece generosamente os recursos imagticos, textuais, sonoros e arquitetnicos com os quais atores e performers constroem seu trabalho e os sentidos de uma potica muito particular, porm aberta aos estmulos do mundo.

    Imagem 1 Paraba em Liquidao, performance realizada dentro da mostra de artes de rua Tomada Urbana, Barra Mansa, dezembro de 2012. Direo: Eloisa Brantes. Performer: Danilo Nardelli. Fotografia: Denise Esprito Santo.

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    Uma cidade. Um rio em liquidao.

    Em fins de dezembro de 2012, a cidade de Barra Mansa encontrava-se movimentada, mobilizada pelo frenesi tpico dos dias que antecedem o Natal. Os ltimos presentes eram comprados e as pessoas se acotovelavam dentro das lojas, colocando em seus car-rinhos, cestas e sacolas o que ainda restava e o que faltava para sua ceia natalina. Os pedestres, de passos rpidos, tentavam finalizar logo suas compras e sair da multido que se aglomerava em torno. Em meio ao ritmo intenso da cidade, outra presena, em dilogo com esse tempo acelerado, porm no contrafluxo, torna-se perceptvel aos olhos dos transeuntes medida que surge aos poucos, comeando a ocupar os interstcios da paisagem urbana. Corpos que caminham, sentam, deitam e seguem em fluxo at desaguar na praa final.

    A performance Paraba em Liquidao foi realizada em dezem-bro de 2012 na cidade de Barra Mansa, integrando o Projeto Zonas de Contato, vinculado ao ncleo de estudos sobre a dramaturgia do ator/performer do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Com o intuito de investigar processos de criao cnica e de um corpo performtico no cenrio expandido da cidade, a realizao do projeto coordenado por Denise Esprito Santo foi possvel graas ao financiamento da Fundao Carlos Chagas Filho de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), por meio do programa de Apoio Produo e Divulgao das Artes no Estado do Rio de Janeiro.

    O projeto reuniu, atravs de encontros e oficinas, alunos de graduao e mestrado da UERJ, alm de atores e estudantes de teatro da cidade de Barra Mansa e integrantes do Grupo Sala Preta e do Coletivo Lquida Ao. As oficinas foram realizadas por Renato Ferracini, coordenador do Lume Ncleo de Pesquisas Teatrais, vinculado Universidade de Campinas (SP) Carmen Luz, diretora da Cia. tnica de Dana (RJ) e Elosa Brantes, diretora do Coletivo Lquida Ao (RJ), com quem foi realizada a ltima etapa do projeto, momento em que se elaborou a proposta do Paraba em Liquidao, retomando aspectos trabalhados durante as oficinas.

    A referncia ao Paraba do Sul, importante rio do estado do Rio de Janeiro que tambm atravessa os estados de Minas Gerais e So Paulo, explicitada no nome da performance. Esse rio corta a cidade de Barra Mansa, uma das cidades da microrregio do Vale

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    do Paraba, localizado no sul do estado do Rio de Janeiro. Nessa cidade com cerca de 200 mil habitantes, como em outras da regio, a presena do trem e do rio so marcas importantes na constituio dos imaginrios, do senso geogrfico e das histrias e memrias da cidade. A performance coletiva Paraba em Liquidao foi realizada em seu centro comercial.

    Aps escolhido o percurso da performance, que se deu como uma espcie de cortejo silencioso, a cidade teve suas ruas ocupadas por esse corpo coletivo, formado por treze performers. Cada um vestido de sacos plsticos de lixo de cor azul levava consigo uma garrafa de gua. Cada performer havia customizado para si uma vestimenta, efmera, que seria desfeita no final do trajeto, uma espcie de segunda pele, feita com esses sacos rearranjados, rasgados, amarrados.

    Os corpos abriam passagem nas paisagens da cidade e ofereciam outras possibilidades de sentidos a partir de composies em tempo real que se davam na relao direta tempo-espao. O prprio corpo, o corpo do outro e os possveis usos do espao entravam em jogo nas composies que se formavam e se desfaziam em meio ao percurso. A gua se tornara um elemento importante na criao desses encon-tros. Quedas, jorros, fios, respingos, jatos dgua, derramados das garrafas carregadas, alimentavam o imaginrio e as imagens que se formavam. A mesma matria assumia em suas vrias texturas, pesos e intensidades conotaes diversas, amplas e ambguas.

    A complexidade da cidade tomada como matria de criao surgia em sua multiplicidade. O espao urbano entendido como espao homogneo era rompido, e composies criadas a partir de encontros com as disposies e ocupaes das ruas evidenciavam tanto a organizao instituda como a subverso do estabelecido. Gerando composies criadas a partir das relaes estabelecidas de modo macro e micro com o encontrado no tempo-espao especfico da cidade, apresenta-se como proposta que se insere no contexto de intervenes no cotidiano urbano:

    Pero, por otro lado, aparecen prcticas artsticas que varan en procedimientos y proponen con su intervencin reflex-ionar no slo sobre el propio lenguaje, sino tambin sobre el espacio intervenido. Este tipo de intervencin urbana, que desde las ltimas dcadas viene dialogando con su con-texto propone una relectura sobre lo urbano y una tensin al resquebrajar la realidad cotidiana, propone sorprender al transente dislocndolo instantneamente como parte de una ficcin imprevista (Gonzles, 2013, p. 731).

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    As disposies dos corpos e objetos do mobilirio urbano, os detalhes, as [...] maneiras de fazer cotidianas, as prticas pelas quais usurios se reapropriam do espao organizado, como abordado por Michel de Certeau (1994), surgiam dialogando diretamente com as aes e interferindo no percurso traado. Os mapas de uso da cidade eram confundidos e borrados ao mesmo tempo em que repertrios gestuais e procedimentos eram desestabilizados. Os corpos invadiam a cidade afetando e sendo afetados numa relao em que corpo/objeto/espao se misturavam, evidenciando a dimenso poltica da performance enquanto recriadora e inventora do inusitado.

    Uma performance , por sua razo de existir, uma experin-cia coletiva. Nessa acepo, uma dimenso poltica fica mostra quando se experimenta uma ruptura com os saberes j institucionalizados e, sobretudo, com conhecimentos pensados como processos individuais. Qual o contedo de uma Performance? No h contedo programado, no h programa, no h um currculo a ser cumprido. A per-formance pura experincia, ao no mundo, interven-o na vida das pessoas. Intervir, assim, um ato poltico na medida em que deixa de reproduzir comportamentos esperados para produzir e inventar o inusitado (Icle, 2013, p. 19).

    Enquanto experincia coletiva, [...] interveno na vida das pessoas, aes performticas que invadem a cidade permeiam as trocas e fluxos entre o sujeito e o meio em que se encontra, e o processo de criao se d diretamente com a vida da cidade. Nesse momento, o artista sente perder a noo de autoria, se dissolvendo na multido, no coletivo, confundindo sua imagem, passagem do eu para o mundo. Como criao compartilhada, o artista no domina mais os caminhos de sua obra.

    Em termos de composio em tempo real, evidenciado o ins-tante nico em que se d o acontecimento. Em intervenes/perfor-mances realizadas em espaos urbanos, que se pretendem permeveis vida da cidade, as diferentes variaes, interferncias e composies momentneas da rua e de seus habitantes so incorporadas como matria de criao. Um carro que passa, um cachorro que late, o som do trem, a interao com quem se encontra, a relao nica com o tempo, a iluminao, a temperatura, os sons do espao so estmulos que dialogam diretamente com as escolhas feitas pelos performers no processo de realizao da performance.

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    De certo modo, ao dilatar o espao, ampliar o lugar da experin-cia esttica para as ruas, evidencia-se e dialoga-se com as recriaes cotidianas que j acontecem todos os dias nos diferentes lugares da cidade. Como Certeau (1994) ressalta em sua abordagem sobre poticas cotidianas, essas operaes dirias, realizadas pelos usurios e consumidores da cidade, supostamente passivos frente vertigem dos estmulos da cidade, so formas de um fazer criativo dirio. Essa bricolagem cotidiana to visvel nas ruas, esses procedimentos popu-lares, as [...] operaes quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocrticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de tticas articuladas sobre os detalhes do cotidiano (Certeau, 1994, p. 41) so geradas por essa criatividade dispersa, ttica e bricoladora presente em todos ns e muito visvel nos diferentes cenrios urbanos, nas mltiplas negociaes e improvisaes dirias.

    Nesse caso, a criao de novas espacialidades possibilita que o espectador/passante, enquanto sujeito que se depara com a ao performtica sem estar previamente avisado, se perceba envolvido nesse acontecimento, de modo que, mesmo negando ou jogando com, aproximando-se ou afastando-se de, divertindo-se ou se irri-tando, possa criar, observar, selecionar, interpretar ao seu modo o que encontra em meio ao seu caminho.

    Essa abertura, no sentido da ao que se coloca em relao cidade, sem se impor a ela, mas tentando dialogar com as relaes espao-temporais encontradas, possibilita o que Rancire (2010) mencionou como uma terceira via de sentido. O autor critica a trans-misso direta de significados se referindo a uma expectativa de que o transmitido seja o receptado, gerando uma tentativa de identidade de causa e efeito. A opo de investigar e abrir para essa terceira coisa que se d no encontro especfico de cada um com o acontecimento possibilita que associaes entre outras referncias, imaginrios, imagens dos espectadores atuem de modo a fazer parte importante na significao e ressignificao do vivido pelo espectador.

    No es la transmisin del saber o del aliento del artista al espectador. Es esa tercera cosa de la que ninguno es propi-etario, de la que ninguno posee el sentido, que se erige entre los dos, descartando toda transmisin de lo idntico, toda identidad de la causa y el efecto (Rancire, 2010, p. 21).

    O espectador compe seu prprio poema a partir dos elementos visuais, imagticos, sonoros, carnais que tem sua frente; refaz sua

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  • Denise Esprito Santo; Jlia Jenior Lotufo - Corpograf ias Urbanas Rev. Bras. Estud. Presena, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 70-82, jan./abr. 2014.D i s p o n v e l e m : < h t t p : / / w w w . s e e r . u f r g s . b r / p r e s e n c a > 80

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    maneira a ao performtica vista, escolhe a partir de que perspectiva e lugar prefere vivenciar o acontecimento. A multiplicidade de sen-tidos prpria do ato do espectador assume, no caso de aes como Paraba em Liquidao, um grau elevado; como proposta artstica que aposta no dissenso, a descontinuidade entre a forma sensvel criada pelo artista e a leitura do espectador desejada. Desse modo, subverses pontuais e simblicas tomam conta da cidade, abrindo inmeros espaos de possibilidades.

    Aes, intervenes e performances no contexto do espao urbano, em seu carter provocativo e desestabilizador, podem ser analisadas em sua possvel potncia pedaggica. Procedimentos per-formticos se inserem na cidade e potencializam o carter educativo dela. O uso do espao desde o ponto de vista fenomenolgico, a in-vestigao dos fluxos, dos modos de habitao e ocupao do espao urbano pelos diferentes corpos abre possibilidades de experienciar outras composies corporais criadas a partir dos espaos da cidade, de forma que a experincia esttica passe a dialogar diretamente com o corpo social da mesma.

    Performances em contexto urbano, enquanto aes coletivas, atos de reinveno do que est dado, de ruptura espao-temporal, criaes de novas ambincias, de investigao do corpo em suas diferentes interfaces, retomam e aprofundam o sentido da cidade enquanto lugar de experincia.

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    Notas1 Paraba em Liquidao, com a participao dos Coletivos Sala Preta e Lquida Ao, sob a coordenao de Eloisa Brantes. Contou ainda com um grupo de estudantes de Artes Visuais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A mostra de teatro e artes de rua, Tomada Urbana, foi organizada pelo Coletivo Teatral Sala Preta, de Barra Mansa.2 La palavra liminal es usada para referirse a um lugar de transformacin, espacio y sentido de indeterminacin dentro de ls procesos culturales y rituales; esto denota el reino de umbral o um hueco. Entendido como um hueco, lo liminal implica una etapa de transformacin en la que otra etapa, o formas de identidad o relacin, nacen (Torrens, 2007, p. 31).3 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Verso para E-books. E-books Brasil, 2002. Acesso em: 21 out. 2013.4 POE, Edgar Allan. Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe. Disponvel em: . Acesso em: 28 nov. 2013.

    RefernciasAGIER, Michel. Antropologia da Cidade lugares, situaes, movimentos. So Paulo: Terceiro Nome, 2011.BADIOU, Alain. A dana como metfora do pensamento. In: BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inesttica. So Paulo: Estao Liberdade, 2002. P. 79-96BECKETT, Samuel. O Despovoador / Mal Visto Mal Dito. So Paulo: Martins Fontes, 2008.BHABHA, Homi K. Nuevas Minorias, Nuevos Derechos: notas sobre cosmopolitismos vernculos. 1. ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2013.BONDA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experincia e o saber de experincia. Revista Brasileira de Educao, So Paulo, n. 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002.CERTEAU, Michel de. A Inveno do Cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1994.FERRAZ, Maria Cristina Franco. Homo Deletabilis. Corpo, percepo, esquecimento do sculo XIX ao XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla. O Teatro Laboratrio de Jerzy Grotowski 1959-1969. So Paulo: Fondazione Pontedera Teatro/SESC-SP/Perspectiva, 2001.GONZLES, Mara Laura. Intervenciones en el Espacio Pblico: performance, mirada y ciudad. Revista Brasileira de Estudos da Presena, Porto Alegre, v. 3, n. 3, p. 727-741, set./dez. 2013.GREINER, Christine. O Corpo. Pistas para estudos indisciplinares. So Paulo: Anna Blume, 2005.ICLE, Gilberto. Da performance na educao: Perspectivas para pesquisa e a prtica. In: PEREIRA, Marcelo de Andrade. Performance e Educao: (des)territorializaes ped-aggicas. Santa Maria: UFSM, 2013. P. 9-22.

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    Denise Esprito Santo professora adjunta e diretora do Instituto de Artes da Uni-versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do projeto Zonas de Contato (http://zonasdecontato.tumblr.com). Dramaturga e diretora teatral com vrios espetculos encenados nas cidades: Rio de Janeiro, So Paulo, So Joo Del Rey etc. Publicou os livros Poemas de Qorpo-Santo (ContraCapa, 2000) e Miscelnia Quriosa (Casa da Palavra, 2003); organiza o volume (no prelo) Corpoema: o que faz uma esttica do corpo, em colaborao com Gilson Motta.

    Jlia Jenior Lotufo formada em Artes Cnicas (licenciatura) pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), mestranda em Arte e Cultura Contempornea pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante do Coletivo Lquida Ao desde 2011.

    Recebido em 21 de agosto de 2013Aceito em 29 de novembro de 2013

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