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1 Eduardo de Andrade Azevedo CORPO E MÚSICA: presença na escola. Universidade Federal de Minas Gerais Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional Belo Horizonte

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1

Eduardo de Andrade Azevedo

CORPO E MÚSICA: presença na escola.

Universidade Federal de Minas Gerais

Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional

Belo Horizonte

2

2009

Eduardo de Andrade Azevedo

CORPO E MÚSICA: presença na escola.

Trabalho de monografia realizado como

requisito para obtenção do título de

Licenciado em Educação Física, da

EEFFTO/UFMG.

Orientador: Prof. José Alfredo

Debortolli.

3

Belo Horizonte

Universidade Federal de Minas Gerais

Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional

2009

RESUMO

Procurei neste estudo problematizar a presença do corpo e da música na

escola. Voltei meu olhar primeiramente para a escola e suas formas

organizacionais. No desenvolvimento do trabalho levantei questões

relacionadas ao corpo e sua presença na escola e na sociedade, assim como a

importância de se valorizar a cultura inerente a esses corpos. Concluo o

trabalho falando da música como forma de interação, socialização e

enriquecimento cultural, que por sua vez dá sentido e significado na vida dos

jovens.

Palavras-chave:

Música, Cultura, Corpo, Escola e escolarização.

4

‘’ os jovens sentem através da música alguma coisa que não podem

explicar nem exprimir: uma possibilidade de reencontrar o sentido’’

Hans H. Muchow.

5

Agradecimentos

Ao meu grande mestre e orientador Zé Alfredo. Obrigado por me acolher nos

projetos, pelas aulas, pela paciência e compreensão. A Fernanda pelo apoio

incondicional. A todos meus amigos. A minha família. Aos professores e

funcionários da Escola de Educação Física. Deixo aqui meu muito obrigado!

6

O pulso ainda pulsa

O pulso ainda pulsa...

Peste bubônica

Câncer, pneumonia

Raiva, rubéola

Tuberculose e anemia

Rancor, cisticircose

Caxumba, difteria

Encefalite, faringite

Gripe e leucemia...

E o pulso ainda pulsa

E o pulso ainda pulsa

Hepatite, escarlatina

Estupidez, paralisia

Toxoplasmose, sarampo

Esquizofrenia

Úlcera, trombose

Coqueluche, hipocondria

Sífilis, ciúmes

Asma, cleptomania...

E o corpo ainda é pouco

E o corpo ainda é pouco

Assim...

Reumatismo, raquitismo

Cistite, disritmia

Hérnia, pediculose

Tétano, hipocrisia

Brucelose, febre tifóide

Arteriosclerose, miopia

Catapora, culpa, cárie

Câimba, lepra, afasia...

O pulso ainda pulsa

E o corpo ainda é pouco

Ainda pulsa

Ainda é pouco

O Pulso, Arnaldo Antunes

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SUMÁRIO

1 Introdução ................................................................................... 08

2 A Escola ...................................................................................... 13

3 O Corpo ....................................................................................... 18

4 A Música ...................................................................................... 22

5 Considerações Finais................................................................. 26

6 Referências Bibliográficas......................................................... 28

8

1. INTRODUÇÃO

Buscando melhorias no processo educativo, um novo modelo escolar começou

a ser implantado. As chamadas ‘’escolas isoladas’’ foram extintas por não

atender aos interesses educativos impostos pelos governantes. Assim, surgiu

um novo modelo escolar com o qual se pretendia muito mais que apenas

instruir as crianças. Fazia-se necessário educá-las nas boas maneiras e dar-

lhes uma profissão. Uma revolução dos costumes estava sendo iniciada,

visando apenas os benefícios econômicos, pois, teremos em vez de um

exercito de analfabetos, operários suficientemente preparados para cumprir

seus deveres com inteligência e aptidão. Esse novo modelo de escola

provocaria nas crianças mudanças de sensibilidade, de linguagem, de

comportamentos e perspectivas pessoais.

Essa nova forma escolar subestima o conhecimento e o saber que os alunos

portavam, ignora o corpo cultural dotado de sabedorias e práticas culturais

realizadas em outros tempos e espaços sociais, como a casa, a rua, o parque.

Para essa escola o ‘’saber’’ não interessava e deveria ser substituído pelo

‘’saber’’ que a própria escola julgava importante, influenciada por interesses

sociais ainda maiores.

O advento desse novo molde escolar tem em vista

responder à expectativa de formar aqueles que

seriam os cidadãos republicanos - civilizados, de

maneiras amaciadas, disciplinados, sadios e

trabalhadores ordeiros, que assim poderiam

contribuir para o desejado progresso social. (VAGO,

1999).

9

Nessa cultura escolar que surgia, pretendia-se que o cultivo do corpo

começasse já na arquitetura do prédio. Estes deveriam ser próprios para as

escolas, imponentes, majestosos, higiênicos e assépticos, considerados

templos do saber. Os espaços deveriam ser eles mesmos educativos. Surgiam

os grupos escolares providos de "livros didáticos, mobília e todo o material de

ensino prático e intuitivo. Haveria uma organização dos tempos de forma que

garantisse a realização dos programas escolares responsáveis pela

‘’Revolução de Costumes’’.

Em meio a esse caldeirão de transformações a Educação Física se fortalece e

se justifica contribuindo na construção de corpos saudáveis e dóceis que

permitisse uma adequada adaptação ao processo produtivo ou a uma

perspectiva política nacionalista. Posteriormente, com o desenvolvimento

esportivo, agregou-se à Educação Física a função de formar atletas. Esse

caráter esportivista se deu, uma vez que existiam fortes influências políticas

para se preparar novas gerações de atletas representantes do país no campo

esportivo internacional.

Assim, cada vez mais o corpo se tornava retraído, pressionado, menosprezado,

subestimado pelos métodos e processos de educação. A escola se tornara um

local de formação de cidadãos aptos ao trabalho. Sujeitos preparados para

enfrentar as demandas da sociedade trabalhadora, ignorante culturalmente. O

corpo cultural, pensante, histórico, não fazia parte dos interesses da sociedade

capitalista.

Entretanto, basta entrar na escola para sentir a presença do corpo neste

espaço. Mesmo que retraído, o corpo se apropria dos espaços, burla regras e

se faz ativo e vivo naquele contexto. O aluno é dotado de uma história e traz

tudo que foi vivido para dentro dos muros escolares. Porque a escola trata o

corpo sócio-cultural como vazio?

10

A escola existe para o aluno e não para ela mesma e, a partir dessa lógica

podemos começar a pensar em projetos que coloquem o corpo como sujeito e

não o conteúdo como sujeito. Assim, novas formas de organizar os espaços e

os tempos escolares poderão surgir de forma que a escola se torne mais

social, e principalmente mais humana.

Muitas vezes a escola julga os comportamentos fora dos padrões pré-

estabelecidos - por ela mesma - como inadequados. Nos momentos em que

poderiam acontecer relações e interações entre os alunos, professores e

coordenadores entram em cena minando qualquer tipo de tentativa de

expressão. Os alunos são estimulados a ficarem calados, quietos, estáticos

mesmo estando inseridos em um contexto que os induz às relações, à

criatividade, às artes.

Toda escola tem uma classe dominante e uma

classe dominada: a primeira formada por

professores e administradores que detém o

monopólio do saber, e a segunda formada pelos

alunos que detém o monopólio da ignorância

(ALVES, 2000).

Ao olhar mais atentamente para a escola, percebo que o teatro, a dança, a

música, os esportes afloram nos comportamentos e atitudes dos estudantes.

São expressões que vem de dentro da alma, no entanto, são reduzidos e

menosprezados pelo modelo tradicional de educação. Seriam os alunos

incapazes ou impossibilitados de participar ativamente do processo de ensino

aprendizagem? Os alunos não possuem conteúdos interessantes o suficiente

para serem compartilhados e transmitidos a outros alunos? Que escola é essa?

11

Os jovens lançam mão da dimensão simbólica como

a principal e mais visível forma de comunicação,

expressa nos comportamentos e atitudes pelos quais

se posicionam diante de si mesmos e da sociedade.

(Dayrell,2005).

Distante dos olhos dos pais, professores, diretores e coordenadores, o aluno se

mobiliza e deixa de ser mero consumidor da cultura para se tornar protagonista

de sua própria história. Esse processo acontece não somente entre jovens de

classe média, mas também entre alunos da periferia, o que desconstrói a idéia

de que estão apenas vinculados à violência e à marginalidade.

Dentre as tantas manifestações culturais vividas na escola, escolherei trabalhar

com o campo da Música por ser um importante tema da cultura vivenciado

pelos jovens no Brasil. Além disso, estou envolvido com a música desde os

primeiros anos de minha vida, quando escutava meu falecido avô pincelar

algumas notas no Acordeom. Eram freqüentes, também, as ‘’rodas de cantoria’’

embaladas pelo violão tocado por meu pai nas reuniões de família.

O que pretendo nesse estudo é enfatizar a presença - ou tentativa incessante

de estar presente - dessas manifestações culturais nas escolas, principalmente

as musicais e, destacar o sujeito como promotor de cultura e gerador do

conhecimento além do currículo tradicional escolar. Despertar a sensibilidade

na escola acerca do que o corpo é capaz de realizar e desenvolver dentro dos

muros escolares através das artes.

Um passo possível em direção a novas formas de organizar a escola seria

entender o aluno como sujeito sócio-cultural.

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Sujeito é um ser humano aberto a um mundo que

possui uma historicidade; é portador de desejos, e é

movido por eles, além de estar em relação com

outros seres humanos, eles também sujeitos.

(CHARLOT, 2000).

Assim, o aluno não é um ‘’livro em branco’’ nem mesmo um ‘’texto acabado’’.

Possui uma bagagem cultural adquirida no passado e está aberto a novas

experiências e aprendizados futuros.

Acredito que a escola, além de preparar os jovens para o trabalho, seja um

espaço de socialização, de afirmação da identidade, de praticas sócio-

libertadoras. No entanto, muitos são os estudos dedicados aos jovens

relacionando trabalho e educação, deixando de lado o olhar para o jovem

sujeito-sócio-histórico, o que justifica o desenvolvimento desse trabalho sobre

jovens numa perspectiva do corpo e seu envolvimento com as artes (música).

Logo, problematizo a possibilidade de um olhar mais carinhoso para o campo

das artes enquanto ferramenta educacional, podendo essa estar aliada a

outras formas de ensino, fazendo da escola um espaço mais interessante,

motivador e principalmente mais humano.

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2. A escola

Recheada de determinismos sociais a escola se faz. Impera sobre ela a lógica

do controle corporal. Corredores indicam aonde ir. Portões indicam onde entrar.

Sala de aula tem quadro, quadra tem bola. O pátio central, ponto de encontro,

de cumprimentos e despedidas, rápidas. Aluno aprende. Professor ensina.

Português, Matemática, História. Enfim, conteúdos programáticos que devem

ser seguidos a risca. Seja no sul ou no norte, os conteúdos devem ser

seguidos. E as diferenças, onde entram? As artes estão presentes? Porque a

escola continua a ser o que ela é? O que é que se repete? O que faz com que

se imponha um modo de funcionar que, se não cuidarmos para que seja

diferente, se instaura quase que “naturalmente” na escola?

Tentando buscar respostas, no decorrer do trabalho farei uma breve descrição

de duas teorias: a teoria da “forma escolar” (Vincent, Lahire, Thin, 2001), que

acredita num modelo de escola ideal, singular e único, e a proposta da

‘’aprendizagem situada’’ em comunidades de prática (Lave e Wenger, 1991),

que traz conceitos mais amplos e acredita numa educação plural, cultural,

mobilizando seus conteúdos e propostas pedagógicas de acordo com a

sociedade em si.

A Teoria da Forma Escolar se caracteriza por autonomizar o processo

educativo e considerar que a escola seja um espaço por excelência, dedicado

ao ensino aprendizagem. Segundo Gomes (XXXX), as principais

características ou os traços distintivos da forma escolar seriam: a constituição

de um universo separado para a infância; a importância das regras; a

organização racional do tempo; a multiplicação e a repetição dos exercícios,

cuja única função consiste em aprender e aprender conforme as regras ou, dito

de outro modo, tendo por fim seu próprio fim. A escola é pensada como

unidade, ou seja, modelo único que funcionaria independente de tempos,

relações sociais, sujeitos diferentes, práticas diferentes.

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Tempos atrás freqüentar a escola era garantia de um futuro promissor, onde o

aluno concluía os estudos e praticamente garantia sua inserção no mercado de

trabalho. Essa lógica por muito tempo imperou e garantiu a presença dos

alunos na sala de aula, motivados pela certeza de melhoria de vida ao fim do

período escolar.

Com a explosão do curso superior e, conseqüentemente das provas de

vestibular, freqüentar a escola passou a ser importante, uma vez que se fazia

necessário ser aprovado no temido vestibular. A escola era julgada de acordo

com o percentual de aprovação nos vestibulares e não pela qualidade do

ensino, valorização do corpo, ética, respeito. Os pais preocupados com o

futuro dos filhos tendem a reforçar essa idéia e, conseqüentemente matriculam

seus filhos em escolas donas de altos índices de aprovação, pois acreditam

que a formação superior é a única forma de realização profissional.

Em nome do “vir a ser” do aluno, traduzido no

diploma e nos possíveis projetos de futuro, tende-se

a negar o presente vivido do jovem como espaço

válido de formação, assim como as questões

existenciais que eles expõem, bem mais amplas do

que apenas o futuro. (DAYRELL, 2003).

A escola não pode continuar reduzida a ótica cognitiva, conteudista,

homogeneista. Segundo (Dayrell, 1996) “essa lógica instrumental reduz a

compreensão de educação e de seus processos a uma forma de instrução

centrada na transmissão de informações. Reduz os sujeitos a alunos,

apreendidos sobretudo pela dimensão cognitiva”. O conhecimento é visto como

produto, sendo enfatizados os resultados da aprendizagem e não o processo.

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Vejo que atualmente, terminar os estudos não garante a aquisição de um bom

emprego. Desmotivados e descrentes de uma possível aprovação nos

vestibulares de universidades gratuitas, os alunos, principalmente os de

periferia e bairros mais carentes, buscam outras formas de sustentação, muitas

vezes facilitada pela realidade social vivida por eles, o que acaba por

intensificar a evasão e/ou a permanência invisível na escola.

Portanto, cada vez mais a escola se torna desinteressante e ultrapassada.

Tradicionalmente a escola elege conteúdos dados como necessários a

formação dos alunos.

A educação que privilegia a transmissão de

conhecimentos e em que não há quase nenhum

espaço para a expressão pessoal, inviabiliza a

participação efetiva do educando, afastando-o da

responsabilidade que deve assumir pelo processo de

construção do seu conhecimento (PEREIRA, 2000)

O currículo traz o que deve ser trabalhado e ensinado, o que mantém a lógica

de escola que ensina o que ‘’deve’’ ser ensinado. Ignoram a presença de um

corpo que transborda conteúdos e é capaz de se expressar, transmitir,

compartilhar experiências.

"A aprendizagem de conteúdos é uma aprendizagem

sem corpo, e não somente pela exigência de o aluno

ficar sem movimentar-se, mas, sobretudo, pelas

características dos conteúdos e dos métodos de

ensino, que o colocam em um mundo diferente

daquele no qual ele vive e pensa o seu corpo"

(Gonçalves, 1994, p.34).

16

Em uma pesquisa realizada com jovens da periferia de Belo Horizonte,

DAYRELL (2003), observou que a escola é lembrada como um espaço pouco

envolvente e distante dos interesses e necessidades dos alunos. João, um

jovem rapper disse em entrevista: “a escola não me cativava, não me

despertava interesse, era um saco... aí eu fui desinteressando pelo estudo’’. Na

fala deste aluno fica evidente que a escola não desperta interesse nos alunos.

A desvalorização do corpo e a imposição de conteúdos, aliados ao objetivo

menor de preparação para o futuro, fazem dessa escola um espaço pobre,

carente de mudanças e reformas.

Tantas são as formas de se educar pela música, pela dança, pelos jogos, pelas

artes de forma geral. Expressões essas, capazes aproximar a realidade vivida

pelos corpos com o ambiente escolar, valorizando as emoções, os

sentimentos, as formas de pensar, as escolhas pessoais, a criatividade, e

principalmente, dando voz ao corpo, os possibilitando de falar por eles

mesmos.

Faz-se necessário focalizar os processos de aprendizagem que se dão no

cotidiano. A teoria da aprendizagem situada que ‘’mantém o foco da atenção

nos processos locais, onde interessa compreender a variedade de percursos

que se dão em diferentes contextos de aprendizagem para deles extrair

algumas indicações quanto à forma de conceituar a própria aprendizagem’’.

(GOMES, 2007).

“a escola é a água que a criança não quer beber.

Porém, as instituições são criações humanas e

podem ser mudadas. E, se forem mudadas os

professores aprenderão o prazer de beber de águas

17

de outros ribeirões e voltarão a fazer as perguntas

que faziam quando eram crianças” (ALVES, 2003).

Sendo assim, a escola deveria se voltar a novas possibilidades educativas.

Pode e é capaz de inovar e recriar métodos e processos educativos sem que

sejam excluídos os moldes tradicionais de ensino. Isso não significa o

abandono dos conteúdos e sim a abertura a novos olhares sobre o processo de

educação.

18

3. O corpo

Ao mesmo tempo, o sujeito é um ser social, com uma

determinada origem familiar, que ocupa um determinado

lugar social e se encontra inserido em relações sociais.

Finalmente, o sujeito é um ser singular, que tem uma

história, que interpreta o mundo e dá-lhe sentido, assim

como dá sentido à posição que ocupa nele, às suas

relações com os outros, à sua própria história e à sua

singularidade (DAYRELL, 2003).

Entendo, assim como DAYRELL (2003), “que os corpos são sujeitos sociais

que, como tais, constroem um determinado modo de ser jovem”. Corpos,

sujeitos sociais, presentes na escola. Porém, antes de iniciar uma discussão

sobre a presença do corpo na escola, se faz necessário o entendimento que

será dado ao mesmo neste trabalho.

A visão antropológica nos possibilita ver o corpo como uma entidade maior do

que um conjunto de ossos, nervos e células. O corpo é, portanto, biológico,

mas é também cultural, sociológico e histórico. Sendo assim, existe o caráter

natural e o cultural, sendo estes indissociáveis.

Segundo DAOLIO (2001), “o aparato biológico oferece ao homem

potencialidades para seu perfeito funcionamento, mas são as formas

especificas de cultura que vão colorindo os espaços em branco deixados pela

generalidade biológica, dando sentido e direção aos comportamentos corporais

humanos”.

19

A cultura é a própria condição de existência do

homem, exatamente aquilo que o diferencia de

outros animais (GEERTZ, 1997).

Os corpos são todos idênticos na parte biológica. O que diferencia um ser

humano de outro é justamente o comportamento.

Afirmar que um corpo possui cabeça, tronco e

membros ou número definido de ossos é tão óbvio

quanto inútil. Quando tentamos definir uma certa

sociedade com base em seus comportamento

corporal, estamos o tempo todo falando de sua

cultura, expressa no corpo e pelo corpo. Portanto o

que vai ser determinante na definição de corpo para

uma sociedade, além do conjunto de hábitos e

posturas próprias desse grupo, será o próprio

conceito de corpo construído e reconstruído na

dinâmica cultural dessa sociedade (DAOLIO, 2001).

O corpo está presente na escola em sua totalidade – cultural e biológico.

Assim, as praticas educativas deveriam contemplar as duas faces dessa

moeda. No entanto, corpo é lembrado apenas no caráter biológico, e, na

maioria das vezes, apenas nas aulas de Educação Física com forte influência

da Medicina Higienista do sec. XIX.

O aluno ao ingressar na escola leva e traz conteúdos. Segundo DAYRELL

(2003), “o sujeito é ativo, age no e sobre o mundo, e nessa ação se produz e,

ao mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais no qual se

insere”. Porém, a escola insiste em manter um modo de se organizar que

minimiza essa potencialidade do corpo. Desvaloriza as relações humanas,

20

delimita e determina as ações dos sujeitos, ignora a cultura e as diferentes

possibilidades de aprendizado a partir dessa lógica.

A escola padroniza os modos de agir, pensar, sentir. Dissocia a totalidade

humana que o corpo possui. Supervaloriza o biológico, operações cognitivas e

ignora experiencias corporais e culturais. Os livros didaticos, a metodologia, as

disciplinas, a arquitetura minimizam as ações corporais.

Por sua vez, o corpo não foi feito para se calar. Está o tempo todo se

expressando. São os grupos religiosos, os grupos de capoeira, os grafiteiros,

os poetas, as rodas de violão, os skatistas, os atletas, os grupos de rap e de

Hip Hop. O corpo se desdobra, cria e recria formas de se expressar. Às vezes

não são compreendidos, são excluídos, exterminados pela escola, que ainda

busca o modelo ‘’perfeito’’ de aluno. É um olhar míope e ultrapassado, frente a

corpos sedentos por liberdade de expressão e carentes de relações.

Qualquer atitude, por mais estranha que se pareça,

começa a ser compreendida em um universo de

significados que dá sentido aos comportamentos

daquele grupo específico. (DAOLIO,2001)

Quando um aluno quebra - no sentido literal da palavra - a escola, ele

simplesmente dá sinais de que a escola não é interessante da forma como é

organizada. Mesmo que inconscientes do valor dessas atitudes – o que

acredito que ocorra na maioria dos casos – os corpos estão, cada vez mais,

sinalizando que existe algo errado. É necessário rever conteúdos, rever

métodos de inclusão, olhar diretamente para o corpo, valorizar o aluno - sujeito

sócio-histórico - seus pensamentos, suas atitudes, suas escolhas e seus

comportamentos.

21

Assim, longe de confiar e acreditar nesse modelo que ignora a vida para além

da escola e, que ignora o corpo como construtor de conhecimento, os alunos

protestam contra o modelo vertical que a escola impõe pichando as paredes,

quebrando os bancos, fazendo paradas, queimando lixeiras, ‘’matando aulas’’,

dentre outras formas de manifestação. São os alunos – o corpo – pedindo

passagem.

Toda ação humana deve ser considerada um ato

social, que ocorre dentro de uma configuração dada

pelo meio em que o homem vive (MAUSS, 1974).

No entanto, a escola julga essas formas de se expressar e de pedir licença

como atos de vandalismo e violência. Não se preocupa em momento algum em

escutar o que os alunos têm a dizer. Não procura entender quais os

verdadeiros significados das ações, contribuindo assim, para evasão e

desistência dos estudos por parte dos alunos.

22

4. A música

Um dos meios de construção e afirmação como sujeitos sociais é a pratica

musical. A música está inserida de diversas formas na escola e, se apropria

dos espaços na forma de rodas de violão, bandas de rock, grupos de Hip Hop,

grupos de canto (gospel) e, sem pedir licença invade o dia a dia dos alunos.

Vai muito além de notas musicais e técnicas em instrumentos específicos. Ela

influencia atitudes, gera confiança, amizade, respeito. É uma referência na

elaboração e vivência da condição juvenil, dando sentido a vida de cada um,

num contexto onde se vêem relegados a uma vida sem sentido.

Ao falar de música neste trabalho me refiro, principalmente, a grupos de rap,

funk e hip hop, não excluindo outros estilos musicais, uma vez que

independente do estilo tais considerações são perfeitamente aceitáveis.

Os jovens usam a música como forma de se expressar, forma de dizer o que

pensam, de se inserir na sociedade, de serem vistos por outros, entre outros

motivos.

A música acompanha os jovens em grande parte das

situações no decorrer da vida cotidiana. A música

como fundo, música como linguagem comunicativa

que dialoga com outros tipos de linguagem, música

como estilo expressivo e artístico; são múltiplas as

dimensões e os significados que convivem no âmbito

da vida interior das elações sociais dos jovens,

sendo mais vivida que apenas escutada. (DAYRELL,

2005).

23

A música cumpre um papel significativo na vida dos jovens. Eles se envolvem e

passam a construir suas próprias vidas em torno de um estilo. Encontram

grupos e formam suas redes de relações e os seus projetos de vida em torno

desse estilo, o que muito interfere na forma como ele se representa, na visão

de mundo que possui e nos comportamentos e valores que expressa. Oferece

aos jovens a possibilidade de conjugar a trama de um caminho de busca

existencial com os signos de uma pertença coletiva. Para muitos a música

(grupos musicais) é um dos poucos espaços em que encontra apoio,

estabelece trocas e elabora projetos que dão sentido à sua vida.

A música constitui um agente de socialização para

os jovens, à medida que produz e veicula molduras

de representação da realidade, de arquétipos

culturais, de modelos de interação entre indivíduo e

sociedade, e entre indivíduo e indivíduo

(DAYRELL,2005).

Os jovens se constroem como sujeitos sociais numa complexidade de espaços

e tempos, estabelecendo múltiplas relações a partir de seu meio social.

Apropriam-se desse meio, reelaboram práticas, valores, normas e visões de

mundo. São sujeitos que interpretam seu mundo, agem sobre ele e dão sentido

a sua vida. Possuem o direito de ser jovens e precisam que esse direto seja

exercido, não só na escola, mas também na sociedade como um todo.

Demandam escolarização, mas necessitam também de redes sociais de apoio

maiores, políticas públicas que os respeite, desde o próprio viver e ser até o

acesso a bens culturais. No entanto, o que se vê é uma escola que nega essa

prática, ignora esse fenômeno que muito tem a contribuir para a educação e

formação dos alunos.

Em seu trabalho com jovens Funkeiros e Rappers de Belo Horizonte,

DAYRELL (2003) cita o exemplo de Flavinho, um funkeiro (branco) estudante

do primeiro ano que possui apenas a escola como atividade fixa em seu

cotidiano, além de ser a única instituição pública na qual pode ter acesso aos

24

bens culturais e a um espaço de reflexão metódica sobre si mesmo e sobre o

mundo. Porém a atividade se torna maçante e os alunos dizem apenas

suportar estar ali. Acreditam que a escola se fecha às possibilidades de

inclusão de culturas e saberes advindos da rua, ou seja, de fora dos muros da

escola.

Músicos de estilos como Rap e Funk se vêem abandonados pela sociedade e

encontram muitas dificuldades para se constituírem como sujeitos sócio-

culturais perante a sociedade. A escola os ignora, o mundo do trabalho lhes

fecha as portas. São criativos, talentosos, ricos e carregados de valores e

experiências positivas que poderiam ser divididas e compartilhadas com a

sociedade.

A cena cultural rap em Belo Horizonte é ainda frágil.

Mas essa fragilidade tem de ser entendida num

contexto mais amplo. É a expressão do processo de

estigmatização que o rap e as outras linguagens do

hip hop sofrem, quase sempre vinculados à

criminalidade e à violência juvenil, aliado ao

incômodo que provocam por ser um estilo que se

baseia na denúncia social, uma expressão cultural

de "pobres, pretos e raivosos". Isso faz com que

encontre poucos espaços no mercado cultural

(DAYRELL, 2005).

São considerados sujeitos marginais, quando são na verdade sujeitos sociais

buscando seu espaço para além das margens da sociedade. Invadem o

cotidiano escolar mesmo quando são exterminados, expulsos. Sobrevivem a

cada dia às pancadas que a escola os dá. Alguns, por vezes se rendem as

facilidades da vida do crime, ou escolhem o caminho do trabalho assalariado

justificado pela necessidade de sobrevivência não encontrada no meio musical.

25

Alguns, poucos, se tornam produtores, outros poetas. Alguns desistem da

carreira profissional, mas não da paixão pela música.

Poucas escolas valorizam as questões culturais trazidas pelos alunos. Lembro-

me das várias vezes que levei meu violão para a escola e fui aconselhado a

não levá-lo mais, podendo ele ser ‘’tomado’’ pela direção e entregue apenas

aos meus pais. Grupos de funk e hip hop são brutalmente ignorados e

proibidos de atuar gerando a revolta nos alunos e depredação do ambiente

escolar.

Enfim, a escola pouco sabe ou simplesmente nega o caráter socializador das

questões musicais e artísticas. Passa por uma crise e tenta se resolver nela

mesma. Não busca superar seus pontos negativos se abrindo a novos olhares.

Continua alterando suas estruturas internas, afim de encontrar avanços e

melhorias na educação. Acredito que essa mesma Escola, Escolarizada,

Arquitetada especificamente para ser Escola, possa voltar seus olhares para os

SUJEITOS ali presentes e, para o mundo no qual esses sujeitos estão

inseridos e vivem cotidianamente. Devemos, nós educadores, ampliar nossos

olhares sobre as questões da juventude, cultura e sociabilidade. Existem

inúmeras formas de se iniciar esse processo e depende exclusivamente da

vontade de cada um de nós. Precisamos moldar nossas aulas, nossos tempos

de acordo com a sociedade na qual a escola está inserida.

26

5. Considerações Finais

Com esse trabalho chego a algumas conclusões e crio muitas outras dúvidas

em relação ao corpo e a música. Como professor de Educação Física enxergo

o corpo ainda muito retraído e pouco valorizado dentro dos muros escolares.

Em tempos atuais ainda se pratica uma educação do corpo para o trabalho, ou

até mesmo enquanto um processo de transitoriedade da vida jovem para a vida

adulta. Em alguns casos o corpo só tem valor nas práticas esportivas. Valoriza-

se muito o caráter biológico e pouco o cultural. Mesmo escolas que já possuem

um molde de formação voltada para as ciências sociais e humanas, envolvidas

em projetos culturais e que valorizam o corpo em sua totalidade, são frágeis e

pouco conseguem mudar numa dimensão mais ampla. Acredito que faltam

políticas públicas e coragem para superar interesses políticos que freiam o

desenvolvimento da educação para um lado mais humano. As escolas não

encontram apoio do governo nem iniciativas privadas interessadas.

A questão musical é ainda mais complexa. Se transformar a escola em um

ambiente que assuma o corpo em sua totalidade, valorize a cultura, escute os

alunos, e desenvolva conteúdos trazidos por eles já é difícil, fazer com que a

escola entenda o significado de manifestações culturais como hip hop, rap e

funk se torna quase impossível. Ainda conceitos pré-estabelecidos são usados

contra grupos musicais destes estilos, sendo relacionados à criminalidade e

violência, quando muitas vezes estão unidos contra marginalidade em busca

de caminhos diferentes a seguir.

É preciso mudar. No entanto, não se trata de esquecer os moldes de educação

já implantados, mas sim abrir os olhos para as questões sociais que são

trazidas pelos jovens para o interior da escola. Essas manifestações culturais

são ricas em conteúdos e podem sim fazer parte dos conteúdos discutidos

dentro das salas de aula. Os alunos se mantêm na escola por acreditar em um

crescimento pessoal, uma garantia de emprego, ou até mesmo garantia de

27

aprovação no vestibular. Seria possível escutar de um aluno que a escola é

prazerosa? A partir do momento que voltarmos nossos olhares para a vida

desses sujeitos, vindos de diferentes lugares, trazendo múltiplas bagagens

culturais conseguiremos transformar esse espaço desigual e desmotivante em

um lugar mais rico e principalmente mais democrático. Devemos sim ensinar

português, matemática, historia e ciências. Mas devemos também discutir

sobre música, dança, capoeira, futebol, sexo, e tudo que a eles for

interessante. Quem sabe no futuro encontraremos alunos dizendo: ”Eu adoro

vir pra escola”, ou mesmo, “que pena, ano que vem vou me formar’’. É nesse

espaço que os alunos passam grande parte da sua vida e é nele que eles

devem entender o significado de respeito, educação, companheirismo,

amizade, união. As artes são educativas. Estão ocupando diversos espaços

fora dos muros escolares. Estão formando cidadãos, capazes de se manter e

sobreviver a partir delas. Já estamos atrasados em relação a isso. Já passou

da hora de incorporarmos TODAS essas manifestações às nossas estratégias

de se educar. Vamos abrir os olhos. Vamos trazer pra escola o que é da

escola.

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6. Referências Bibliográficas

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