cópia de metaficisa2

109
Padre Jacques D’ARCY, S. pss INTRODUÇÃO À METAFISICA (Adaptação do curso do Padre Peter Henrici SJ)

Upload: lucassmab

Post on 23-Jun-2015

588 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Metafisica

TRANSCRIPT

Page 1: Cópia de metaficisa2

Padre Jacques D’ARCY, S. pss

INTRODUÇÃO À METAFISICA(Adaptação do curso do Padre Peter Henrici SJ)

SEMINARIO MAIOR NOSSA SENHORA DE FATIMABRASILIA DF

PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004

Page 2: Cópia de metaficisa2

ÍNDICEINTRODUÇÃO:O que é a metafísica na busca de uma definição provisional?0.1 No âmbito da filosofia0.2 No âmbito do saber humano0.3 No âmbito da existência cristã

CAPITULO I:MODELOS DE APROXIMAÇÃO À METAFÍSICA

1.1 SÓCRATES E O VALOR ÉTICO INCONDICIONADO1.1.1 O método socrático1.1.2 O diálogo de Eutifrón1.1.3 A norma do agir1.1.4 Sócrates e nós: valor da via socrática para a metafísica

1.2 PLATÃO E O AMOR Á BELEZA1.2.1 A doutrina das idéias1.2.2 A idéia do Bem1.2.3 O conhecimento do Bem1.2.4 Platão e nós: valor da via platônica para a metafísica

1.3 ARISTÓTELES E O FUNDAMENTO « DAQUILO QUE É VERDADEIRO »I O que é o « ser »

1.3.1 A ciência e o ser1.3.2 Analise semântica de « é assim »1.3.3 A analogia do ser1.3.4 As categorias do ser

II A constituição dos seres concretos1.3.5 O ser-múltiplo e a composição de forma e matéria1.3.6 O ser-em-devir e a composição de ato e potência1.3.7 As causas do devir1.3.8 O Deus de Aristóteles

III Resumo sintético

CAPITULO II:A ONTOLOGIA DO SER CRIADO E A METAFÍSICA DO ATO DE SER

0.1 A TRANSFORMAÇÃO DA ONTOLOGIA ARISTOTÉLICA: A COMPOSIÇÃO REAL DO SER (ESSE) E DA ESSÊNCIA2.1.1 Os comentadores árabes e hebreus de Aristóteles2.1.2 A distinção real entre a essência e seu ser (Santo Tomás de Aquino)0.1.2 Como se devem conceber a essência e o ser: distinção real e composição2.1.4 A importância metafísica da doutrina tomista

2.2 O SER ENQUANTO ATO DE SER E A RELEITURA DE ARISTÓTELES2.2.1 O ser enquanto verbo e enquanto « atualidade »2.2.2 Filosofia do ser e não da “ousía”

2.2.3 Reinterpretarão das categorias aristotélicas: substância, acidente, ação, relação, etc.2.2.4 Síntese dos seres deste mundo: comunicação do tipo e da existência aos indivíduos

2.2.5 O Deus de Santo Tomás (“Ipsum Esse subsistens”)0.1.2 A analogia do ser

2.3 O SER ENQUANTO SER-UNO E O PRINCÍPIO DE NÃO-CONTRADIÇÃO2.3.1 As propriedades transcendentais do ser

2

Page 3: Cópia de metaficisa2

2.3.2 Os primeiros princípios2.3.3 A unidade enquanto recolhimento em si2.3.4 O princípio de não-contradição

2.4 O SER ENQUANTO SER-VERDADEIRO E O PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE2.4.1 Verdade lógica e verdade ontológica2.4.2 Identidade de ser e de verdade2.4.3 Os princípios do fundamento: de razão de ser e de causalidade2.4.4 A falsidade, o erro e a mentira

2.5 O SER ENQUANTO SER-BOM, O VALOR E O PRINCÍPIO DE FINALIDADE2.5.1 o ser-bom2.5.2 O valor2.5.3 Prova metafísica do ser enquanto bom2.5.4 O princípio de finalidade

2.6 O SER ENQUANTO SER-BELO E A UNIDADE DOS TRANSCENDENTAIS2.6.1 Descrição do belo2.6.2 A beleza enquanto perfeição dos transcendentais2.6.3 A beleza transcendente (Deus)2.6.4 Os transcendentais e o ser pessoal

2.7 RESUMO SINTÉTICO

CAPITULO III:A CRISE METAFÍSICA E UM ENSAIO DE RELEITURA PERSONALISTA

3.1 A CRISE DA METAFÍSICA NOS TEMPOS MODERNOS3.1.1 Racionalismo e empirismo3.1.2 Nominalismo3.1.3 Kant e o idealismo alemão3.1.4 O fim da metafísica

3.2 ATÉ O REDESCOBRIMENTO DO SER: TU ES, EU SOU, NÓS SOMOS, ELE É3.2.1 Teu ser3.2.2 O ‘eu sou’3.3.3 O ‘nós somos’3.3.4 O ser de nosso mundo

3.3 A FINITUDE DOS SERES E A DIFERENÇA ONTOLÓGICA3.3.1 A precariedade do “nós somos” e a composição de matéria e forma3.3.2 A distinção entre tu e o teu, e a composição de substância e acidente3.3.3 A temporalidade do eu sou e a composição de ser e essência3.3.4 A ambivalência do « ele é » e a diferença ontológica

3.4 OS LÍMITES ABSOLUTOS DO « TU ES - EU SOU - NÓS SOMOS » E A POSSIBILIDADE DE UM ALÉM3.4.1 Tua morte3.4.2 Minha culpa3.4.3 A esperança de uma salvação3.4.4 A fundação da esperança no Transcendente

3

Page 4: Cópia de metaficisa2

BIBLIOGRAFIA GERAL

MANUAIS:ALVIRA, T. /CLAVELL, L. /MELENDO, T., Metafísica, Eumsa, Pamplona 1989.GRENET, P., Ontología, Herder, Barcelona 1973.HENRICI, P., Introducción a la metafísica, Rosario (Argentina), Gregoriana, Roma 1982.JOLIVET, R., Tratado de filosofia, t. III: la metafísica, Carlos Lohles, Buenos Aires 1957.RAEEMAEKER, L., Filosofia del ser, Gredos, Madrid 1968.DE AQUINO, T., De ente et essentia, Aguilar, Buenos Aires 1970.VAN STEENBERGHEN,F., Ontología, Gredos, Madrid 1965,WAHL, J., Tratado de metafísica: ontología, col. BHF 1961.WEISSMAHR, B., Ontología, Herder, Barcelona 1986.

OBRAS FILOSÓFICAS:ARANGUREN, J-L., Implicaciones de la filosofia en la vida comtemporánea, Tauros.BOCHENSKI, J-M., Introducción al pensamento filosófico, Herder, Barcelona 1976.BLONDEL, M., El punto de partida de la investigación filosófica.DEMPF, A., Filosofia cristiana.DEMPF, A., Metafísica de la edad media, Gredos, Madrid 1957.FABRO, C., Introducción al tomismo, Rialp, Madrid 1967.FABRO, C., E OTROS., Las razones del tomismo, Eumsa, Pamplona 1980.GARRIGOU-LAGRANGE, R., La síntesis tomista, DDB, Buenos Aires 1947.GARRIGOU-LAGRANGE, R., El realismo del principio de finalidad, DDB, B. Aires 1947.GARRIGOU-LAGRANGE, R., El sentido común, DDB, Buenos Aires, 1949.GARCÍA LÓPEZ, J., Estudio de metafísica tomista, Eumsa, Pamplona 1976.GILSON, E., El ser e la essência, DDB, Buenos Aires 1951.GILSON, E., El tomismo, Eumsa, Pamplona 1978.GILSON, E., El ser e los filósofos, Eumsa, Pamplona 1979.GILSON, E., El filósofo e la teología, Guadarrama, Madrid 1962.GILSON, E., La unidad de la experiência filosófica, Rialp, Madrid 1960.GONZÁLEZ, A.L., Ser e participación, Eumsa, Pamplona 1979.JOLIVET, R., El homem metafísico, col eo se-eo creo.MARCEL, G., Diario metafísico, Losada, Madrid 1957.MARCEL, G., La filosofia comcreta, Revista Occidente, Madrid 1957.MARCEL, G., El misterio del ser, suramericana, Buenos Aires 1964.MARCEL, G., En búsqueda de la verdad e de la justicia, Herder, Barcelona 1967.MARC, A., El ser e el espíritu, Gredos, Madrid 1962.MARITAIN, J., Los grados del saber, DDB, Madrid.MARITAIN, J., Siete lecciones sobre el ser, DDB, Buenos Aires 1943.MARITAIN, J., Breve tratado acerca de la existência e de los existentes, DDB, B. Aires 1949.MARITAIN, J., De Bergson a santo Tomás de Aquino.MILLÁN-PUELLES, A., Fundamentos de filosofia, Rialp, Madrid 1967.PIEPER, J., Defensa dela filosofia, Herder, Barcelona 1973.PIEPER, J., El descobrimento de la realidade, Rialp, Madrid 1974.RASSAM, J., Introducción a la filosofia de Santo Tomás, Rialp, Madrid 1980.SERTILLANGES, A-D., Santo Tomás de Aquino, DDB, Buenos Aires 1966.SERTILLANGES, A-D., Las grandes tesis de la filosofia tomista, DDB, Buenos Aires 1949.SERTILLANGES, A-D., La idea de creación e sus resonancias filosóficas, B. Aires 1969.SCIACCA, M-F., El acto e el ser, Miracle, 1961.SCIACCA, M-F., La filosofia e el comcepto de la filosofia, Troquel, buenos Aires 1962.TRESMONTANT, C., Orígenes de la filosofia cristiana.TRESMONTANT, C., Las ideas maestras de la metafísica cristiana.

4

Page 5: Cópia de metaficisa2

INTRODUÇAO

O que é a metafísica?(À busca de uma definição preliminar e provisória1)

O.1 NO ÂMBITO DA FILOSOFIA

0.1.1 A definição etimológica de FILOSOFIA provém de um termo de origem grega. Nossa atual civilização técnica científica tem suas origens no pensamento grego. São os gregos os que têm criado a "filosofia" sobre cujos conceitos se fundam a primeira pregação misionária do cristianismo e a elaboração da teologia cristã: dois motivos muitos válidos para ocuparmos desta filosofia.

De fato, a filosofia parece ser um fenômeno tipicamente grego (ou indoeuropeu?). Todas as outras civilizações tiveram e têm sua "sabedoria", mas só na Grécia (e na Índia) a mesma tem sido elaborada em forma especificamente "filosófica". (Está, talvez, este fenômeno vinculado à estrutura particular das línguas indoeuropeas?). "Filosofia" = amor ou desejo da sabedoria. Palavra usada por Sócrates na polêmica com os Sofistas, os quais, durante a crise cultural grega dos séculos V-IV a. C. (ascensão ao poder, dos comerciantes: novos ricos; democratização e dessacralização da vida pública, das leis; crise das tradições e da religião mítica) comerciavam com uma « sabedoria » utilitária: a arte do discurso que sabia persuadir permitindo obter vantagem nas assembléias e diante dos tribunais.

Em contraposição com eles, Sócrates não tinha a pretensão de « possuir » a sabedoria, senão a de se colocar somente na sua busca, demonstrando assim que a verdadeira sabedoria está além da técnica do discurso ensinado pelos Sofistas: es algo que o homem não poderia jamais « possuir » nem « dominar » plenamente.

0.1.2 Enquanto Sabedoria2, a filosofia consiste num saber não somente teórico, abstrato, parcial, senão num saber útil para a orientação total da vida, um saber que não tem só um valor de utilidade técnica imediata, senão que se funda sobre valores. O saber filosófico, "sapiencial", implica:

1 Para este curso de Introduçao à Metafísica, seguiremos o texto do Padre Peter Henrici usado na Universidade Gregoriana. Nos permitimos acrescentar algumas referências e complementos.

2 Cf. Brugger W. DICCIONARIO DE FILOSOFÍA, Biblio. Herder, art. Sabiduría pg.459-460: « A sabedoria não é um saber qualquer, senão um saber que versa sobre o essencial, sobre as causas e os fins últimos do ente, é uma consideração e apreciação do terreno à luz da eternidade (sub espécie aeternitatis), um saber que dá prova de fecundidade porque assina a todas as coisas o lugar que lhes corresponde na ordenação hierárquica do universo, segundo a sentencia de santo Tomás de Aquino freqüentemente repetida:« Sapientis est ordenare »: ordenar é uma coisa própria do sábio. A forma científica não é essencial à sabedoria, mas si a conformidade do agir e do saber. Santo Tomás distingue três graus de sabedoria: o primeiro, é a intelecção modeladora da vida resultante da meditação filosófica, sobre tudo a metafísica. Acima se encontra a sabedoria procedente da fé e da ciência teológica, a qual ordena todas as coisas no conjunto do mundo sobrenatural que compreende céu e terra. O terceiro grau o constitui a sabedoria enquanto dom do Espírito Santo; com essa o homem que ama Deus já não compreende só com o esforço próprio, senão que à luz da divina inspiração, « experimentando o divino », sente-se aderido a ele e persegue com amoroso gozo a ordem que Deus tem querido em todas as coisas. -- De Vries ». Olhar também cf. Gardeil, H-D, INITIATION À LA PHILOSOPHIE DE SAINT TOMAS D'AQUIN, T. IV (Métaphysique), ed. Cerf, Paris 1966, pg.11-17; cf. Floucat, Yves, « A crise contemporânea da verdade e a unidade da sabedoria cristã  », na Revista REVUE THOMISTE, Novembre 1983, pg.5-46.

5

Page 6: Cópia de metaficisa2

- uma certa distância crítica com relação aos acontecimentos, com relação às experiências imediatas (« tomar as coisas com filosofia »);

- uma visão global que permite situar as coisas no seu lugar;- a busca do "porque", que permite dar razão das coisas e dos acontecimentos, explicar o

sentido, todo aquilo pelo qual orienta-se a própria vida e regula-se o próprio comportamento.

Em quanta sabedoria, a filosofia distingue-se, por tanto, das ciências, que se ocupam somente dos aspectos particulares da realidade. As ciências, por sua natureza, são diversas e especializadas; a filosofia, no fundo, é uma sô. As ciências não podem senão constatar fatos (necessários): "É assim", "será sempre necessariamente assim", sem poder formular juízos de valor e de sentido: « aquilo deve ou deveria ser assim», « está bem que seja assim », etc.

Em quanto ser que coloca continuamente a questão do sentido (« porque? ») -- como as perguntas da criança, a busca do sentido por parte do adolescente (« qual sentido pode ter tudo isso? », qual es o sentido da minha vida? »), a crise da idade madura (« no fundo por que tenho vivido desta maneira? ») --, o homem, por tanto, jamais ficará satisfeito pelos únicos resultados e pelas respostas das ciências. Por outra parte, uma civilização exclusivamente técnica, fundada só no saber científico, resultaria totalmente inumana e absurda3.

0.1.3 A filosofia enquanto discurso racional. Respeito às outras « respostas sapienciais » (contidas nos mitos, nas religiões, nas artes...), a filosofia distingue-se por seu método4: mediante um discurso racional, coerente, no fundo necessário, segundo as regras da lógica, a filosofia conduz à sabedoria. Portanto, ela utilizará unicamente meios conceituais (não imagens, símbolos, parábolas, ou provérbios, etc.) rigorosamente controláveis e accessíveis a qualquer

3 Cf. Huxley, A., LAS ANTI-UTOPÍAS y EL MEJOR DE LOS MUNDOS; Wells, H-G., LA CRISIS ECOLÓGICA Y ENERGÉTICA DE LA CIVILIZACIÓN NORTATLÁNTICA, 1984; etc. 4

? Cf. Jolivet, Régis, COURS DE PHILOSOPHIE, Editeur Emmanuel Vitte, Paris-Leon 1959, pg.9-10: « El método de la filosofía:1. O método depende do objeto formal. – Chama-se « método » o conjunto dos procedimentos a utilizar para chegar ao conhecimento ou à demonstração da verdade. O método de uma ciência depende do objeto mesmo desta ciência. Não se usa, no estudo dos seres vivos, os mesmos procedimentos que no estudo dos seres inorgânicos, e a química procede de maneira diferente da física. É assim como é a partir da definição e do objeto da filosofia que se pode deduzir o método que mais lhe convém.

2. O método filosófico é ao mesmo tempo experimental e racional. Temos definido a filosofia como a ciência das coisas por suas causas supremas. Daí segue-se que:- a filosofia parte da experiência. Se a filosofia é ante tudo « ciência das coisas » quer dizer, do homem, do mundo de Deus, deve-se começar por conhecer as coisas que queremos explicar; quer dizer que nosso ponto de partida será normalmente tomado da experiência. Com efeito, é partindo das propriedades das coisas que podemos conhecer sua natureza, e ditas propriedades às podemos descobrir mediante a experiência (vulgar ou científica). É também pelos efeitos da potência divina que nos podemos elevar até a Causa primeira do universo, seja para afirmar sua existência necessária, seja para determinar sua natureza e seus atributos, e seus efeitos são também objeto da experiência. Assim, o método filosófico será primeiramente experimental, neste sentido de que o ponto de partida da filosofia toma-se da experiência.- A filosofia enfoca, pela luz natural da razão, o além da experiência . Mas como a filosofia é, por seus fins, essencialmente metafísica, quer dizer que buscar ir além da experiência sensível e chegar até as causas primeiras, ela fará uso da razão, já que estas causas primeiras, o homem não as vê e não as toca com seus sentidos, nem as pode alcançar senão por uma faculdade superior aos sentidos. Por isso, o método filosófico é também um método racional.

3. A filosofia não usa senão da razão natural. Se a filosofia usa da razão, é unicamente da razão natural. Desta maneira ela distingue-se da Teologia sobrenatural, que se apóia, como sobre seus primeiros princípios, isto é, sobre as verdades reveladas, enquanto que a filosofia não usa senão as únicas luzes naturais da razão. Seu critério de verdade, não é, como na teologia, a autoridade de Deus revelador, senão a evidência de seu objeto: o ser das coisas ».

6

Page 7: Cópia de metaficisa2

que esteja na posse da faculdade de pensar, portanto virtualmente universais (porquanto as outras sabedorias são, mais do que a filosofia, culturalmente condicionadas).

Enquanto só « busca » da sabedoria, o discurso filosófico não pretende dar respostas preconstituídas nem comunicar conhecimentos novos (fatos), senão só dirigir o pensamento, de tal maneira que, procedendo de questionamento em questionamento, situadas convenientemente as perguntas e segundo uma conexão necessária, chega-se entrever em qual direção deve-se buscar uma resposta à pergunta sobre o sentido último (porque esta resposta, disse-nos Sócrates, está além daquilo do qual o homem pode tomar posse, ainda desde o ponto de vista intelectual).

0.1.4 À diferentes tipos de respostas correspondem diferentes tipos de « por quês ». Por outra parte, a pergunta « por que » pode receber muitíssimos tipos de respostas, segundo os diversos significados que ela pode ter:

a. Eu posso perguntar: « por que eu posso dizer: isso es verdadeiramente assim? », e a resposta pode se referir às possibilidades seguintes:

-- seja a minha possibilidade de dizer-o (portanto de conhecê-lo); resposta da qual se encarrega a EPISTEMOLOGIA (a filosofia do conhecimento) com suas diferentes ramas: (fenomenologia do conhecimento, crítica do conhecimento, filosofia da linguagem etc.);

-- seja a possibilidade, de fato, de que isso seja assim (que seja possível, real, cognoscível), resposta da qual se ocupa a ONTOLOGIA (filosofia do ser, dos seres, segundo sua possibilidade de ser) nos sus diferentes níveis:

o nível dos entes particulares, considerados segundo suas diferenças especificas (ontologias « regionais »: filosofia DA NATUREZA ou cosmologia filosófica, DO HOMEM ou antropologia filosófica, DA ALMA HUMANA ou psicologia racional);

o nível do ser enquanto tal, da possibilidade de ser qualquer ente particular (ONTOLOGIA GERAL, que coloca questões como essas: « que significa ver-dadeiramente dizer ser? », « como es possível que algo exista? », « qual tipo de coisas são? », etc.).

b. Mais profundamente ainda, eu posso perguntar: « em definitiva, por que existe algo em vez que nada? », « por que eu posso perguntar, isto é, formular questões? ». Portanto, a pergunta sobre o ser mesmo é uma pergunta sobre a pergunta. Ela implica que eu possa prever que uma resposta seja ao menos possível, que o ser (isso é, o fato de que algo exista) não seja um puro fato, inexplicável, que não possa ser interrogado, senão que possa encontrar uma explicação, um porque, um sentido último, que proporciona a última explicação possível.

Esta pergunta e esta resposta pertencem ao âmbito da Metafísica. Sabemos que este nome foi dado por Andrónicus de Rodas (século I a. C.) aos livros de Aristóteles, que ele tinha situado « depois dos livros da filosofia natural, a física » (tà metà tà phusikà): é uma coleção de 14 livros cujo conteúdo pareceria seguir logicamente aquela seção dos livros da física. Aristóteles mesmo não tinha falado, para designar este conjunto, senão de Filosofia primeira ou de Teologia natural.

Aristóteles, pelo contrário, a tinha chamada « filosofia primeira  », porque ela fala do primeiro fundamento, da « causa primeira » da qual depende todo aquilo que é tratado nas outras partes da filosofia teorética.

7

Page 8: Cópia de metaficisa2

Porém, o termo « metafísica  », em suo significado etimológico, es rico de sentido: se a « phusis » é toda dada da experiência, e a « física », a busca filosófica, a interrogação destes dados por parte do pensamento, a « meta-física » indica uma investigação ulterior que utiliza os mesmos métodos, mas que vai além daquilo que es dado (ou pode ser dado) na experiência.

Esse além dos dados da experiência pode ser provisoriamente definido mediante três características:

-- a metafísica fala de tudo o que é5 (enquanto que a experiência, e portanto a « física », não se refere senão a entes particulares, específicos).5 Cf. Gardeil, H-D., Initiation à la philosophie de Saint Thomas d'Aquin, T.IV- Métaphysique, Ed. Cerf, Paris 1966, pp.9-11 (tradução do Pe. Jacques D'Arcy S. pss): « Na linguagem filosófica universal o termo ‘metafísica’ designa a parte superior da filosofia, isto é, aquela que entende dar as razoes últimas e os princípios últimos das coisas....

O objeto próprio da metafísica será o ser enquanto tal e suas propriedades. Mas esta definição que reterá Santo Tomás de Aquino não ressalta imediatamente da leitura da obra de Aristóteles (Metà tà physikà). Um primeiro inventario permite descobrir nela, com efeito, três conceições sucessivas desta ciência e dos vínculos orgânicos que as relacionam entre si, mas que não se revelam a primeira vista. Santo Tomás, que tinha tomado plena consciência desta ambigüidade, apresenta da seguinte maneira, no Proemium do seu comentário à Metafísica de Aristóteles, esta tríplice conceição:

1. Por oposição às outras ciências, que não remontam senão às causas ou aos princípios mais imediatos, a me taf-ísica aparece ante tudo como a ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios. Esta definição vincula-se manifestamente à conceição geral da ciência, conhecimento pelas causas, que é um dos primeríssimos axiomas do peripatetismo. A denominação de « Filosofia primeira » relaciona-se a este aspecto da metafísica que domina no Livro A.

2. A metafísica afirma-se, logo, como a ciência do ser enquanto ser e dos atributos do ser enquanto ser. Visto subeste ângulo, apresenta-se como tendo o objeto mais universal de todos, as outras ciências não consideram senão um campo particular do ser. Esta conceição toma consistência no Livro G da coleção de Aristóteles e parece impor-se mais adiante. É a ela que responde propriamente o vocábulo de « Metafísica ».

3. Finalmente, a metafísica pode-se definir como a ciência daquilo que é imóvel e separado, à diferença da física e da matemática que consideram seu objeto sempre subum certo condicionamento da matéria. Desde este ponto de vista, a mais eminente das substâncias separadas sendo Deus, a metafísica pose revindicar a apelação de « Teologia (natural) ». Este aspecto prevalece na obra aristotélica a partir do Livro E.

Este prólogo de Santo Tomás é demasiado importante para não ser apresentado a continuação. A metafísica, à que pertence regentar todas as outras ciências, não pode ter evidentemente por objeto senão os mais inteligíveis e não pode ser senão a mais intelectual das ciências. Pois bem, pode-se considerar a mais inteligível desde três pontos de vista diferentes:

« Em primeiro lugar, segundo a ordem do conhecimento. Com efeito, as coisas a partir das quais o intelecto adquire a certeza, parecem ser as mais inteligíveis. Assim, como a certeza da ciência dependendo da inteligência adquirisse a partir das causas, o conhecimento das causas bem parece ser o mais intelectual e, em conseqüência, a ciência que considera as primeiras causas é, segundo parece, ao máximo reguladora das outras.

« Em segundo lugar, desde o ponto de vista da comparação da inteligência e do sentido; já que, o sentido tendo por objeto os particulares, a inteligência parece diferir dele enquanto abrange os universais. A ciência mais intelectual é, pois, aquela que se refere aos princípios mais universais, os quais são o ser e o que é consecutivo ao ser tal como o uno e o múltiplo, a potência e o ato. Pois bem, ditas noções não devem permanecer completamente indeterminadas... nem estudiar-se numa ciência particular... Elas devem ser tratadas, pois, numa ciência única e comum que, sendo a mais intelectual, será reguladora das outras.

« Em terceiro lugar, desde o ponto de vista mesmo do conhecimento intelectual. Se uma coisa tem virtude intelectiva pelo fato de ser desproveste de matéria, é necessário que seja a mais inelegível aquilo que está às más separado da matéria...Pois bem, as coisas mais separadas da matéria são aquelas que não abstraem somente de tal matéria determinada... senão totalmente da matéria sensível: e isso não só segundo a razão, como os objetos das

8

Page 9: Cópia de metaficisa2

-- ela investiga aquilo que faz realmente possível tudo o que é (por quanto que a experiência não pode constatar senão aquilo que é, e a « física » em que modo é « pensável », isto é que não está em contraste com as leis da lógica).

-- ela espera encontrar assim o último fundamento, o sentido último de tudo aquilo que é, aquilo que responde ao último « por que » possível (porquanto a experiência é sempre factual, e a « física » não pode, portanto, senão descobrir necessidades de fato).

0.1.5 A importância e a urgência da reflexão metafísica6. Contrariamente àquilo que alguns têm dito, a metafísica não é um jogo para diletantes, tampouco uma arte para fugir da vida e de suas dificuldades; ela não é ilusória, nem mentirosa, nem sofisticada. Ela se radica verdadeiramente naquilo que há de mais natural na vida do espírito. Pelo mesmo fato, ela é o que se impõe da maneira mais profunda; já que se a inteligência está essencialmente ordenada ao conhecimento do ser, só o descobrimento do ser pode lhe permitir chegar a ser verdadeiramente si mesma.

Mas pode-se provar que a inteligência está essencialmente ordenada ao conhecimento do ser? Para prová-lo, faria falta ir além deste conhecimento; pois, precisamente, o conhecimento do ser é o mais profundo, o mais primitivo, aquilo que pressupõem todos os demais. Então não se pode provar que a inteligência está essencialmente ordenada ao ser; mas isso não quer dizer que não seja verdade! Sabe-se que só as verdades secundárias podem provar-se, e que as primeiras, as mais fundamentais, não o podem. Há que descobrir-las como tais, e então elas impõem-se por si mesmas com toda evidência (é precisamente um dos objetivos da crítica do conhecimento mostrar que o ser é o fundamento do conhecer). Aqui é o caso. Desde o momento que a inteligência descobre aquilo que é enquanto ser, ela capta porque está radicalmente feita: está feita para conhecer a realidade existente naquilo que tem de mais próprio, no seu ser.

O sinal disso, disse Aristóteles, é o gozo que temos ao ver, ao olhar (Cf. Métaphysique, A, 1, 980 a 21 ss); já que este gozo mostra que o conhecimento possui em si mesmo sua própria finalidade. Se for assim para o conhecimento visual, o conhecimento mais radical, o mais profundo, aquilo do ser possui ainda mais profundamente sua própria finalidade. Por conseguinte, conhecendo o que é o ser, a inteligência se descobre a si mesma, e se descobre essencialmente feita para isso.

A última confirmação consiste no fato que só o conhecimento do ser permite ao homem descobrir a existência do Ser primeiro, Deus, e afirmar que esse Ser primeiro é, na realidade, é a fonte de todo ser. É então o conhecimento do ser que permite à inteligência do homem descobrir sua fonte primeira, e o que, na realidade, é o último. Por conseguinte, é este conhecimento metafísico do ser que permite a nossa inteligência descobrir-se enquanto inteligência. Sô a filosofia primeira permite a nossa inteligência ser plenamente ela mesma e se reconhecer como tal.

matemáticas, senão desde o ponto de vista do ser, como Deus e os espíritos. A ciência que trata destas coisas parece, em conseqüência, ser a mais intelectual e gozar com respeito às outras do direito da primazia e da regência ».

Ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios, quer dizer sabedoria, ciência do ser enquanto ser, ciência daquilo que é absolutamente separado da matéria, tal se revela a nos a metafísica... Assim a elaboração aristotélica nos aparece, ao mesmo tempo que uma obra de especulação rigorosa, como o ponto de chegada e a síntese da reflexão sobre os princípios dos três séculos que o têm precedido ».6

? Sobre este aspecto da metafísica, tenho resumido e traduzido o pensamento do Padre M. D. Philippe na sua obra titulada: ¿UME PHILOSOPHIE DE L'ÊTRE EST-ELLE ENCORE POSSIBLE?, t.1 (Signification de la métaphysique), ed., P.Téqui, Paris 1975, pp.142-145.

9

Page 10: Cópia de metaficisa2

Dessa maneira, a inteligência descobre sua Autonomia RADICAL: ela não depende imediata e conscientemente senão do ser, daquilo que é enquanto ser. A opinião dos homens e sua autoridade, por mais importantes que possam ser, não podem se impor diretamente a nossa inteligência e medir-la. Desde o ponto de vista filosófico, a autoridade dos homens é a última das razoes; não se pode filosofar realmente, nem tampouco entrar no conhecimento metafísico, ficando ao nível da opinião dos homens e dos filósofos. A opinião dos homens e dos filósofos pode ajudar a colocar um problema, ou indicar a rota a seguir, mas não pode ser a solução filosófica; faz falta voltar à realidade, à experiência daquilo que é. Porém, os homens vivem ao nível da publicidade (ou propaganda) e das opiniões dos demais, mas faz falta que nossa inteligência, para poder respirar plenamente e ser si mesma plenamente, compreender sua autonomia radical e viver-la. Se não, ela se enfraquecerá progressivamente, por falta de exercício intelectual ao nível que lhe é próprio. Pode-se afogar intelectualmente sub o peso das opiniões dos demais; uma amplíssima erudição histórica pode perfeitamente impedir à inteligência viver enquanto inteligência.

Só o descobrimento do ser permite à inteligência captar sua autonomia radical, isso lhe revela também sua fraqueza congênita. Feita para o ser, ela permanece, porém, no seu exercício, ligada à imaginação e, por esta, ao mundo sensível que com freqüência lhe impede se elevar até o ser.

É este mesmo perigo, característico do descobrimento do ser, que nos faz entender quão importante é aceitar a ajuda daqueles que têm penetrado mais profundamente no descobrimento metafísico, de olhá-los como amigos e companheiros de busca, capazes de nos indicar algumas pistas, para evitar nos perder e, assim, perder menos tempo. Quem conhece mais profundamente sua autonomia é mais livre e aceita mais facilmente esta ajuda do que aquele que, não tendo ainda descoberto a verdadeira fonte de sua autonomia, tem sempre medo de ser influenciado.

O conhecimento metafísico é, por conseguinte, o único que permite a nossa inteligência descobrir sua finalidade própria e última, aquela pela qual está feita: a contemplação. O conhecimento metafísico do ser é, pois, para nossa inteligência, absolutamente vital; sem ele, nossa inteligência fica errante e, sem descobrir sua finalidade, ela se arrisca a se considerar como inútil, vã, o que pode conduzir-la ao suicídio.

Descobrindo a existência do Ser primeiro, do Bem primeiro, supremo, o conhecimento metafísico nos permite captar que nossa alma espiritual é imortal; e, dessa maneira, proporciona à filosofia moral seu fundamento último. Permite-lhe também à filosofia moral se desenvolver em filosofia religiosa; pois o descobrimento da existência do Ser primeiro, Criador de nossa alma espiritual, exige de nossa parte a adoração.

O conhecimento metafísico do ser implica o verdadeiro descobrimento do ato e da potência, descobrimento que, por sua vez, permite captar o que é movimento, o que é a operação vital o, mais radicalmente ainda, o que é a alma relativamente ao corpo.

O conhecimento metafísico do ser não pode ser, pois, algo supérfluo, ou secundário; e ainda muito menos num mundo que tende a relativizar tudo, sendo cada vez mais dominado pelo progresso das ciências e das técnicas. O progresso das ciências, com efeito, não espiritualiza realmente ao homem, precisamente porque o mantem sempre submergido num mundo sensível e quantitativo. Então, é necessário que o homem compreenda o perigo que corre seu espírito: um perigo de anemia progressiva num ambiente que não pode já vivificá-lo profundamente. Anemiando-se cada vez mais, ele toma o risco de não ter já suficiente vigor para reagir e, deste modo, deixar-se inteiramente dominar. Em lugar de ter a força de remontar até sua fonte para

10

Page 11: Cópia de metaficisa2

que ela seja si mesma e possa descobrir sua significação profunda, a inteligência deixa-se levar rio a baixo, para « fazer como todo o mundo », para seguir a moda atual renunciando buscar sempre a verdade - e sabemos que a moda intelectual é a mais terrível das modas que exista!

0.1.6 CONCLUSÃO: quem faz metafísica, quem coloca também só o problema metafísico, pressupõe, portanto, que o ser (simplesmente o fato de que algo exista) não seja um puro fato, inexplicável, mas algo que é fundado e tem um sentido, que pode ser explicado por nosso pensamento; em síntese, que esse fato não se reduz àquilo que pode ser cientificamente constatável ou analisável, mas que tem uma dimensão mais profunda que pertence ao âmbito do valor e do dever-ser.

A conseqüência que segue, pois, naturalmente da metafísica (e só dela) é, portanto uma filosofia do dever-ser, uma ética. Que o pressuposto da metafísica seja legítimo pode-se provar somente fazendo metafísica, e fazendo-la com êxito; igual como não se pode provar a possibilidade do movimento (contra Zenón) senão caminhando...

Uma precisão sobre a nomenclatura impõe-se: o termo ontologia remonta ao século XVII, e foi, num primeiro momento, usado como sinônimo de metafísica. O filósofo racionalista Christian Wolff (1679-1757), quem teve uma influência considerável sobre a neo-escolástica, distingue a « metafísica geral » ou « ontologia », --que trata do ser enquanto tal--, da « metafísica especial » que ele divide, de acordo às três grandes espécies de ser: seja em « cosmologia racional », em « psicologia racional » e em « teologia natural ». Certamente, esta divisão é pouca aprovada, por quanto Deus não constitui uma « espécie de ser », senão que, ao contrário, é seu fundamento e seu sentido último. Aristóteles o tinha compreendido perfeitamente, assinando a sua « primeira filosofia » o nome de « theologikè  » (ciência do divi-no).

0.2 NO ÁMBITO DO SABER HUMANO

O que nos temos visto pode-se enunciar de maneira mais técnica, recorrendo à doutrina clássica dos três graus de abstração7 de Aristóteles.

7 Cf. Gardeil, H-D., INITIATION À LA PHILOSOPHIE DE SAINT THOMAS D'AQUIN, T.VI, éditions du Cerf, Paris 1966, pp.17-19:

1. Origem da doutrina da separação.

A metafísica é a ciência daquilo que é absolutamente separado da matéria. Esta doutrina é o ponto de chegada de um longo esforço de reflexão filosófica.

Entre os Gregos, parece que é Anaxágoras a quem convém atribuir a honra de ter, o primeiro, sepa rado o espírito da matéria. Sem duvida, o “NOUS” que propõe a nossas meditações, não se distingue claramente ainda dos objetos corporais, e sua ação sobre estes permanece ainda mal definida, mas um primeiro passo no sentido da separação de um elemento superior realizou-se. Platão ao chegar é quem, para assegurar ao conhecimento intelectual um objeto estável e idêntico, postulará o mundo das idéias, isto é, realidades puras de toda matéria, às quais a verdadeira ciência poderá referir-se.

Sabemos que Aristóteles, ao mesmo tempo em que acolhia as idéias de Platão, por fidelidade maior à experiência, as colocou na matéria: as coisas corporais são por sua vez matéria e forma. Porém, com ele encontrarão-se ainda substâncias inteiramente separadas, e sobre tudo, na sua filosofia do conhecimento, o princípio de abstração da matéria conserva todo seu valor: a inteligência, faculdade espiritual, não pode diretamente alcançar a « quiddidade » ou a essência abstrata; e um objeto é tanto mais inteligível em si quanto está mais liberado das condições da matéria. O fundamento da intelecção, dirá Santo Tomás de Aquino, é a imaterialidade, dando a estas afirmações todo seu alcance. Fica por precisar como subeste ângulo apresenta-se o conhecimento metafísico!

11

Page 12: Cópia de metaficisa2

0.2.1 Todo saber nosso é necessariamente abstrato, pelo simples fato de usar (ao menos implicitamente) conceitos universais abstratos. Todo saber transcende o dado imediato, concreto, da experiência singular por algo universal, comunicável, « é válido » além desta experiência determinada e sempre fugitiva. Nossa linguagem, que expressa a experiência, apresenta-se sempre inevitavelmente universal e abstrata.

0.2.2 Num primeiro grau, não se abstrai (ou extrai) das experiências concretas senão aquilo que é comum (ou que tem qualidades comuns) a varias delas, sem considerar as circunstâncias completamente individuais de cada uma delas. Assim se constituem, por exemplo, a medicina, a partir da observação de algumas regularidades que se sucedem inevitavelmente nos diversos casos de enfermidade; a história (como ciência), observando as conexões entre os fatos como simples crônica); a crítica literária ou artística, intentando formular um juízo segundo critérios universalmente admitidos (e, portanto válidos para todos e criticáveis por todos), e não somente segundo o gosto pessoal do crítico, etc.

0.2.3 Num segundo grau, se abstrai (ou extrai) dos fenômenos observáveis aquilo que pode ser submetido a uma operação racional: seu aspecto quantitativo é objeto de uma elaboração matemática. É mais abstrato, mais inteligível, mais universal e mais « impessoal ». Deste jeito constituem-se as ciências propriamente ditas, que intentam, de maneira ou outra, encontrar leis matematicamente formuláveis acerca de seus objetos. Porem, a matemática permanece ainda vinculada à imaginação, ao imaginável, à representação do espaço (geometria, mecânica pura, etc.) ou do tempo (« contar » sucessivamente...).

2. Os três graus de abstração.

Contemplando o conjunto das ciências especulativas, Aristóteles tem distinguido três tipos ou três graus de imaterialidade nos objetos para conhecer e, correlativamente, nas operações intelectuais que lhes são proporcionadas. Estes três graus correspondem aos três grupos admitidos por todos e que são: as ciências físicas, as matemáticas e a metafísica. A lógica nos ensina que cada um destes graus caracteriza-se em função da matéria noética abandonada (deixada de lado) pela operação abstrativa ou, inversamente, em função do aspecto material que permanece implicado nas definições das noções mandando as demonstrações.

Assim, ao nível da especulação física, se abstrai (extrai) da matéria, enquanto ela é principio de individuação, a “materia signata”, mas conserva-se a matéria que está na raiz das qualidades sensíveis, quer dizer a “ materia sensibilis”; conservando as qualidades guarda-se, pelo mesmo fato, o aspecto da mobilidade das coisas. Ao nível (grau) matemático, se abstrai desta matéria sensibilis tudo, conservando este fundamento material da quantidade que o peripatetismo tem denominado “materia intelligibilis”. Finalmente, na metafísica se abstrai absolutamente toda matéria e todo movimento; estamos então na imaterialidade pura que compreende, por sua vez, as realidades espirituais (Deus e os anjos), e as noções primeiras (o ser, os transcendentais, etc.), estas últimas sendo independentes dos corpos neste sentido de que se podem realizar fora deles. (Sobre esta doutrina geral dos graus de abstração em Santo Tomás, ver: Metafísica, VI, I.1.; De Trinitate, q.5, a.1 e 3; Ia Pars, q. 85, a.1 ad 2).

3. Características próprias da abstração metafísica.

Tenderemos a ocasião mais adiante, estudando a noção de ser, de precisar o tipo particular desta abstração. De maneira um pouco superficial poder-se-ia representar a atividade mediante a qual o espírito se eleva sucessivamente aos três graus de imaterialidade como uma operação do mesmo gênero uniformemente repetida, enquanto que entre os três procedimentos existe de fato uma simples analogia. Em cada caso, trata-se de um desprendimento da matéria, mas este não se realiza da mesma maneira. Um termo especial, aquele de «  SEPARA-TIO », é reservado por Santo Tomás para designar a abstração metafísica.

Pode-se dizer porém, desde agora, para evitar se perder, que « abstrato », « separado » quando relacionam-se ao nível da reflexão metafísica, não significam de nenhuma maneira isolado ou separado da existência, senão só liberado das condições materiais desta existência. O ser, objeto da metafísica, é eminentemente concreto. O metafísico é, em sentido pleno da palavra, o mais realista dos sábios, seja que considere desde o ponto de vista do ser a universalidade das coisas, seja que se eleve aos objetos mais reais: os espíritos puros e Deus.

12

Page 13: Cópia de metaficisa2

Surge o interrogante de saber se não existe um grau mais « abstrato » de conhecimento que se situe imediatamente acima de todo aquilo que é sensível e imaginável e sobre qualquer experiência possível, no âmbito do inteligível puro.

0.2.4 Este terceiro grau de abstração é necessário para fundar ainda as ciências matemáticas mesmas: essas supõem e implicam a constância e a seletividade de suas regras e, em conseqüência, uma necessidade absoluta (« é necessariamente assim » e não somente: « é sempre assim ») que não pode se fundar sobre a experiência, nem tampouco ser extraída (a experiência não nos oferece senão a constância dos fenômenos, não sua necessidade).

Esse fundamento da possibilidade mesma das ciências não poderá-se descobrir considerando os fatos, senão sua « pensabilidade », isto é, sua inteligibilidade (eu devo os considerar como ordenados, como carregados de sentido, susceptíveis de ser considerados segundo regras imutáveis, etc.). Esse é propriamente o conhecimento de tipo metafísico8, que não prolonga nem amplia o discurso das ciências, mas situa-se acima deste: perguntando-se de qual modo este mesmo discurso é simplesmente possível.

0.2.5 Deste modo vemos de qual maneira o discurso metafísico, ainda que não se refere a nenhum « objeto » de experiência (sensível, imaginável, descritível), porem não é um discurso vazio, nem carente de sentido (« meaningless », como dizem os analistas da linguagem). Esse discurso tem um significado preciso, enquanto coloca perguntas, que não se podem evitar ou não formular, buscando sempre as respostas. Em conseqüência, não existe um saber metafísico preconstituído, uma doutrina metafísica transmissível e comunicável tal qual (que se possa apreender de memória). Igual que a matemática não é suficiente « conhecer de memória » as fórmulas, senão que es preciso saber-las deduzir e demonstrar, com maior razão, não pode-se indicar no ensinamento da metafísica mais do que um método, um « itinerário de pensamento » que cada um deve seguir por conta própria.

Neste curso indicaremos itinerários de pensamento já assinalados na história do pensamento metafísico ocidental, desde os gregos até a idade media e os modernos, tratando de re-elaborar os discursos e os razoamentos de alguns grandes mestres do pensamento.

0.2.6 O ponto de partida de dito discurso metafísico será qualquer ocasião, qualquer experiência, na qual jorra ou pode aparecer uma pergunta de fundo, uma interrogação; isto é, tudo aquilo que se poderia chamar os lugares do estupor, da admiração: o absoluto do imperativo ético (igual como para Sócrates e Kant), a beleza (igual como para Platão), nossa capacidade de conhecer a verdade (igual como para Aristóteles e Tomás de Aquino), a angustia existencial (igual como para Kierkegaard, Heidegger, Sartre ou Marcel), a pessoa humana (igual como para Munier, Nesdoncel, Marcel, etc.).

Isto significa que a metafísica, longe de ser um discurso « escuro », um discurso « entre as nuvens », « fora da vida concreta », pelo contrário, é o discurso mais humano que há. No fundo, todo homem de acordo a seu jeito « é metafísico9 », porque é capaz de se maravilhar, de se fazer perguntas, ainda radicais, e cada um do seu modo, encontra também respostas e tem seus pontos de vista sobre o « sentido último ». Neste curso, trataremos de clarificar esta metafísica

8 Cf. Forest, A., DU COMSENTEMENT À L'ÊTRE, p.265: « Nos elevamo-nos à metafísica, quando não rejeitamos pensar expressamente aquilo que é a condição graças à qual pensamos todo o resto ».9 Cf. a obrazinha do Pe. Régis Jolivet, titulada EL HOMBRE METAFÍSICO, colección (Yo sé-yo creo), Libreria Arthème Fayard, Paris 1958.

13

Page 14: Cópia de metaficisa2

implícita10, vivida (« transformando aquilo vivido em pensamento »: Jean Lacroix), de expressar num discurso conceitual rigoroso, controlável, criticável e comunicável.

0.3 NO ÂMBITO DA EXISTÊNCIA CRISTÃ

0.3.1 A parte mais importante desta metafísica vivida é, para nos cristãos, nossa fé cristã e as respostas sensatas que ela nos dai. Pertence, portanto ao âmbito metafísico; as afirmações de fé referem-se a verdades, ou a realidades que se situam além de toda experiência possível (por exemplo, que o mundo é criado por um Deus de amor, que Jesus Cristo é o Filho de Deus, etc.), e estas afirmações contêm um sentido último, diante do qual não é possível nem necessário colocar ulteriores questões ou interrogantes.

Pertencendo ao âmbito do mistério revelado, é claro que esta metafísica vivida do cristianismo não poderia ser explicada nem « recuperada » por meio de um discurso filosófico. Ainda que pode-se perfeitamente ser cristão sem « fazer metafísica », porem, a fé cristã por duas razões exige11 o discurso metafísico da filosofia.

0.3.2 Para possuir a fé, o homem deve ao menos ter descoberto a dimensão metafísica de sua existência; não tudo se reduz aos dados da experiência, ao quotidiano, ao factual, mas existem questões que se situam além desta mesma experiência. Mas, na nossa civilização industrial e post-industrial, esta dimensão metafísica é com freqüência esquecida, obstaculizada, e inclusive negada; portanto é pre-evangelizar, saber indicar os « lugares do assombro » e os acessos que eles abrem à metafísica (por exemplo, de que modo toda crença religiosa pressupõe que tenha sido realizada a experiência de um amor pessoal do pai ou da mãe).

0.3.3 Para « expressar » nossa fé, para articular-la conceitualmente (e, portanto, de modo que possa-se falar também com os não-crentes) é necessário uma « linguagem » conceitual que não se limite só aos dados da experiência, senão que também seja capaz de dizer aquilo que está além da mesma, isto é, uma linguagem de caráter metafísico.

Por conseguinte a metafísica é, por sua vez, algo muito pessoal que alcança o fundo mesmo de nossa existência, mas que não pode ser feita « de maneira pessoal » ou « existencial » (isto é referendo-se, por exemplo, à vivência imediata), senão logicamente da maneira mais « impessoal » possível, com um esforço de trabalho lógico e conceitual (o « trabalho do conceito » daquele que fala Hegel).

10

? Cf. M. Merleau-Ponte, Sentido e no sentido, pg.188ss: « A consciência metafísica não tem outros objetos senão a experiência quotidiana: este mundo, os outros, a história humana, a verdade, a cultura. Mas, em vez de considerar-los já existentes, como conseqüências sem premissas, e como se procedessem de si mesmos, ela (consciência) redescobrir sua estraneidade (extrañeza) fundamental e o milagre de sua aparição. Assim entendida, a metafísica é o contrário do sistema. Se um sistema é uma disposição ordenada de conceitos que faz imediatamente conciliáveis, compatíveis entre si todos os aspectos da experiência, dito sistema suprime a consciência metafísica ».11

? Recomenda-se fortemente para ampliar este aspecto ler o capítulo titulado filosofia, cristianismo, monacato de H.U. Von Balthasar en ENSAYOS TEOLÓGICOS: Sponsa Verbi T. II, Editorial, Cristiandad, pg.405-449.

14

Page 15: Cópia de metaficisa2

CAPÍTULO I:MODELOS DE APROXIMAÇAO À METAFÍSICA

1.1 SÓCRATES E O VALOR ÉTICO INCONDICIONADO

Com Sócrates, e não com os pré-socráticos, começa a grande tradição da metafísica grega, que continuará interrompida até o medievo. Depois da crise sofista (utilitarismo e relativismo dum discurso, "logos", reduzido a ser somente um falar persuasivo), Sócrates, ainda adotando a perspectiva antropológica (e não mais a cosmológica) dos sofistas, aponta sobre a possibilidade do homem de conhecer um absoluto, um indizível, e sobre a necessidade de orientar a própria conduta moral segundo este absoluto. Como é já sabido, Sócrates não tem deixado nada por escrito; portanto, através dos diálogos de Platão, sobre tudo os do primeiro período, nos devemos reconstruir sua figura e seu ensinamento (não sua doutrina, porque dá a impressão de não ter tido). A personalidade de Sócrates se revelará então mais importante do que seu ensinamento para a metafísica.

1.1.1 Sócrates, em geral, aparece sobre tudo como um verdadeiro educador; enquanto que a educação grega clássica apontava de modo particular à destreza física (esportes, "arte" = técnicas), Sócrates se preocupa unicamente da psychè, isto é da "alma", daquilo que governa ou orienta os atos12.

Esta educação da alma se desenvolve essencialmente segundo duas etapas:

-- a primeira consiste no libertar a alma da ignorância e de uma falsa aparência de saber ("dóxa") por meio duma crise purificadora13, com o fim de estimulá-la à busca da verdade, ao aprofundamento ulterior do saber (cf. a conclusão dos diversos diálogos: « Disso nos voltaremos a falar outra vez »).

-- a segunda etapa, "maieutica"14 fará descobrir ao interlocutor e ao leitor do diálogo um saber que, sem o saber ele, já possuía. Saber de ordem prática que serve para dirigir os atos ("areté", traduzido imperfeitamente como "virtude"). 1.1.2 O diálogo de Eutifrón pode servir de exemplo15. O sacerdote Eutifrón, enquanto acusava a seu pai de ter deixado morrer por negligência a um delinquênte, acusação que ele considerava seu dever religioso ("hosión"), encontra frente ao tribunal a Sócrates, acusado de impiedade por Melito. Os dois, Eutifrón e Melito, portanto, devem saber exatamente o que é e o que no é religioso ("hosión"). Intenta-se de definir e fixar este saber num diálogo que se desenvolve através das seguintes fases:

- 1ª O religioso deve sempre ser igual, idêntico a si mesmo e sempre diferenciado do seu contrário (5c-d) por um caráter único, pelo qual cada ato ímpio é ímpio e cada ato religioso é religioso (6d-e).

12 Cf. APOLOGÍA, 29d-30b; CÁRMIDES, 154d-e; ALCIBÍADES, 128a-130e.13

? Cf. SOFISTA, 230b-c.14

? Cf.TEETETO, 148e-150d.15

? Olhar o comentário de Romano Guardini, LA MORTE DE SÓCRATES.

15

Page 16: Cópia de metaficisa2

- 2ª Eutifrón define o religioso metodologicamente: consiste em agir seguindo o exemplo dos Deuses (5d-a), é « aquilo que é grato aos Deuses » (6e), mas Sócrates não aceita estas "historietas" (6a-c), e, por outra parte, os mesmos Deuses (mitológicos) estão divididos entre si (7b; 8a-b).

- 3ª Semelhante dissensão é possível, porque não se trata de fatos verificáveis, senão de valores (7b-d); e é necessário demais acrescentar que a discussão não se refere à consideração desses valores em si, senão da consideração dos atos particulares, enquanto correspondem ou não a esses valores (8d-e).

- 4ª Se para evitar a dificuldade, se define o religioso como aquilo que é « aprovado por todos os Deuses » (9d-e) o problema se volve a situar sobre o fundamento deste consenso; « aquilo que é religioso ¿é aprovado pelos Deuses porque é religioso, ou mas bem é religioso pelo fato que os Deuses o aprovam? » (10).

Agora, já que é claro que uma coisa é amada pelo fato de que é amável, e não é amável porque ela é amada (de fato), deduz-se então que o religioso é amado pelos Deuses devido a sua própria natureza; isso se impõe, por dizer-o assim, aos Deuses mesmos, e será necessário, portanto, definir esta mesma natureza, esta essência ("ousía" isto é o ser) do religioso (10d-11b).

- 5ª A definição que se intenta segundo o gênero e a espécie ("uma espécie de justo") recorre novamente, mediante uma longa volta (« aquilo que é correto segundo o ritual »), « àquilo que é grato aos Deuses » (15a-e) para definir a espécie de justiça da qual se trata: o círculo vicioso se fecha.

- 6ª Neste ponto Eutifrón abandona o discurso, ainda que Sócrates estes comvencido de que ele sabe perfeitamente porque ele atua assim (estando próximo a acusar a seu pai :15d).

1.1.3 Este diálogo nos faz assistir em pleno à crise da religião mitológica enquanto norma de comportamento: porquanto, ela resulta incapaz não só de fixar normais de ação que se-soster frente à razão (cf. 2º), senão que conduz demais a Eutifrón a uma ação que será desaprovada pela maior parte dos homens (6a) e, a Melito, a acusar a Sócrates.

Sócrates no contrapõe a esta religião outro tipo de saber; nem o juízo da maior parte dos homens, nem uma simples definição em nível da manipulação da palavra à maneira dos sofistas (cf. 5º); senão que se remite àquilo que se encontra no fundo mesmo da religião mitológica: isto é, uma lei que se impõe também aos Deuses (cf. 4º) e que jorra da natureza, do ser mesmo que se trata de julgar (cf. 1º, 3º, 4º).

A natureza mesma do "religioso" não se alcança expressar, definir (também o discurso se mostra inadequado frente a esta realidade), mas não é algo sem importância; na base mesma do diálogo está a firme convicção de que o religioso existe, com sua natureza bem definida (que se opõe de modo determinado e imutável ao ímpio) e que, enquanto tal, é norma para a ação.

Com efeito, é no agir de maneira decidida e definida onde Eutifrón, Melito e Sócrates mostram que eles sabem o que é religioso e como se deve comportar -- em absoluto, até a morte -- o religioso, mais bem que ímpio.

Existe, portanto, um saber certo, inserido na ação, um saber "vivido", que não se deixa expressar ou explicar, porque ele se refere precisamente àquilo que se encontra além daquilo do qual pode-se dispor com o discurso (daquilo que se pode "manipular" expressando-se de uma

16

Page 17: Cópia de metaficisa2

maneira ou de outra): uma norma absoluta que se impõe também aos Deuses míticos, isto é, que dá fundamento ao mito mesmo.

N.B.: - 1º A ironia socrática (dizer o contrário daquilo que se quer dizer, ou mais bem, utilizar a linguagem comum de maneira tal que sua inadequação para expressar o que se pretende dizer sobressalta aos olhos de todos) é um meio para dizer de algum modo, ou melhor, para fazer entrever precisamente este indizível que Sócrates quer mostrar. Para que a ironia não seja uma simples caricatura, ela deve ser, por assim dizer-lo, recíproca ou humilde: por quanto, aquele mesmo que utiliza a ironia deve deixar-se questionar.

- 2º No diálogo "Eutifrón", a ironia se desenvolve, por dizer-lo assim, sobre dois níveis: deixando entrever que o saber a propósito do religioso que possuem Eutifrón e Melito é falso; Platão insinua que é Sócrates, o acusado, quem conhece a verdadeira religiosidade. Nos outros diálogos do mesmo período a coisa é mais simples. É evidente que Laqué, famoso e valioso general, sabe efetivamente que é a coragem, ainda que seja incapaz de expressar-lo16; que Cármides, adolescente de boa família excepcionalmente dotado para a filosofia, possui a sabedoria, ainda que não alcança definir-la17; Lisis, jovem fascinado pela amizade, sabe que é um amigo, ainda que no alcance precisá-lo18. A tese socrática do saber implícito e inexplicável se mostra com mais clareza.

1.1.4 Qual é para nos hoje, para nossa metafísica, o valor desta via socrática? Ela nos faz compreender três coisas:

- que existe um saber inexprimível, que nosso saber não termina onde encontra seus limites nossa possibilidade de discorrer, senão que existem algumas certezas que se possuem sem ter a possibilidade expressar-las e de explicar-las, nem de justificar-las com um discurso lógico.

- que este saber é implícito em nosso modo de agir; que nos exercemos na prática um saber que não somos capazes de explicar teoricamente, porque, enquanto seres humanos, não atuamos cegamente, mas sabemos o que fazemos (aqui está a verdadeira substância da famosa tese socrática de que o vicio não é mais do que erro ou ignorância).

- que, pelo contrário, esse saber inexprimível é norma e regra de nossa ação; nos apresenta o absoluto dos valores da obrigação moral. A moral, consiste em dizer o saber que existem valores e normas que devem ser absolutamente respeitados, é portanto, a primeira aproximação que se abre para nos e para qualquer homem ainda além da experiência, além de tudo o que se pode dizer ou explicar com um discurso puramente teórico. Isto significa, por outra parte, que toda metafísica, qualquer que seja, possuirá inevitavelmente um caráter prático, moral, ainda político (como Sócrates que colocava seus interrogantes com um objetivo evidentemente político: com vista a formar bons cidadãos numa situação de crise).

1.2 PLATÃO E O AMOR À BELEZA

Platão persegue com seu pensamento a mesma finalidade política de Sócrates: a de promover o bem-estar da cidade por meio da educação; mas, procurando fazer-lo com um ensinamento mais continua e sistemática, e através obras escritas, Platão é conduzido a encontrar repostas às

16 Cf. LAQUES, 193e-194b.17

? Cf. CÁRMIDES, 175e-176a.18

? Cf. LISIS, 223b.

17

Page 18: Cópia de metaficisa2

questões de Sócrates que pertenciam abertas, e transformar em doutrina metafísica a pura busca socrática. O "explicar" o saber descoberto por Sócrates com a teoria da preexistência da alma e da reminiscência ("anamnesis"19). Existem sobre tudo três doutrinas platônicas que nos interessam:

1.2.1 A DOUTRINA DAS "IDÉIAS" pode remontar-se, porquanto a terminologia, a Sócrates mesmo20, onde "idéia" indica uma certa configuração visível (de "ideîn"21, ver) fixa e característica, à luz da qual se reconhece uma coisa (por exemplo, uma virtude) por aquilo que ela é. Em Platão a idéia chega a ser uma realidade ontológica, isto é, uma espécie de ser, que se pode explicitar da maneira seguinte:

a. Um protótipo (não só um exemplar), ao qual deve-se assemelhar todos os seres (ações virtuosas, figuras geométricas, existentes) de uma ou outra espécie; é, portanto, o uno (isto é, a natureza, o caráter único) que funda (realmente, ontologicamente, explicando o porque é assim) o múltiplo (isto é, as diversas ações religiosas, os diversos triângulos, etc.). É o dever-ser, então, a norma ontológica que se encontra acima dos fatos da experiência, do qual derivam estes fatos. Esse protótipo é caracterizado como:

b. "Em si mesmo", "sempre o mesmo" ("auto to...", "auto kath'hauton": o mesmo em si mesmo = "é propriamente isso"), querendo significar com isso que não deve ser definido nem em relação com aquele que conhece (contra os sofistas), nem como variável (agora assim, agora diversamente, contra Heráclito) senão que é "imóvel" (isto é, não está sujeito ao cambio, entendendo por "movimento" --"kínêsis"-- qualquer espécie de mudança ou de devir). Platão recupera com isso alguns traços do ser imóvel de Parmênides.

19 Cf. MENÓN, 82-86. Cf. Mondin, B., DIZIONARIO ENCICLOPEDICO DI FILOSOFIA TEOLOGIA E MORALE, ed. Massimo, Milano 1989; cf. o termo « anámnesis », pg.31: « Anámnesis significa reminiscência, como o quer dizer a etimologia grega anámnesis. Está vinculada à filosofia platônica, onde o conhecimento intelectivo do homem explica-se como uma reminiscência de um conhecimento já adquirido pela alma numa vida anterior, quando, antes de tornar-se pesada e cair num corpo, tinha tido uma visão direta das Idéias no "Iperuranio". A experiência sensível não produz as idéias na mente, mas serve, porém para acordar-las do recordo. Proveniente da tradição órfico-pitagórica, a doutrina da anámnesis foi adotada por Platão para demonstrar, no FEDÓN, a tese da imortalidade da alma e para explicar a formação do conhecimento filosófico e matemático.

Uma das doutrinas mais extraordinárias da filosofia platônica é sua doutrina da reminiscência. Ela afirma que nosso conhecimento não é outro que um recordar. A ocasião de este recordar é encontro com as coisas deste mundo material, as quais não são senão copias das Idéias.

O encontro com as coisas deste mundo desperta na alma o recordo (lembrança) das Idéias; p.ex. vendo as coisas belas desperta-se em nos a Idéia de Beleza; vendo as coisas justas, desperta-se em nos a Idéia de Justiça, etc.Além disso, no plano geral do sistema platônico, a doutrina da reminiscência desempenha três funções muito importantes: proporciona uma prova da preexistência, da espiritualidade e da imortalidade da alma; estabelece uma ponte entre a vida anterior e a vida presente; e dá um valor ao conhecimento sensitivo, enquanto se lhe reconhece a este o mérito de suscitar o recordo das Idéias ». 20

? Cf. EUTIFRÓN, 5d; 6d.: "Minha idéia": "um caráter único".21

? A idéia significa primeiramente o aspecto manifesto de uma coisa segundo seus traços característicos; em segundo lugar, designa sobre tudo o aspecto interior ou conteúdo essencial que nele se revela. Enquanto o conceito segue o ser das coisas e representa sua essência, a idéia lhe precede como eterno e perfeito arquétipo, conforme ao qual têm sido elas conformadas. Assim a idéia é essencialmente causa exemplar ou arquetípica. Apreendida pelo entendimento, converte-se em norma (cânon) que serve para julgar as coisas que se lhe apresentam ou se guia na realização da idéia.Platão considerará as idéias como realidades independentes supramundanas que representam um reino próprio por debaixo da idéia suprema do Bem.

18

Page 19: Cópia de metaficisa2

c. A idéia se denomina também "o verdadeiro ser", "a realidade mais real" ("ontôs on"), em oposição à simples aparência ("dóxa"), que recobre agora todo o sensível, todo o mundo das experiências. Pelo contrário, portanto, a nosso modo corrente de falar ("não é mais que uma idéia"), a idéia é, para Platão, algo mais real, mais existente do que as coisas materiais e do que os dados da experiência. Ela é tal enquanto é imóvel, não sendo o devir senão uma maneira insuficiente de ser (o que devem não é ainda plenamente).

Nos trataremos de compreender este modo de ser de Platão, lembrando que toda norma verdadeira para nosso agir deve ser "realista", isto é, adequado à realidade. O dever-ser impõe sua lei também ao ser; é, portanto, mais real do que o realizado na experiência. Neste sentido, a idéia platônica é:

d. "Supra-sensível", isto é, algo distinto daquilo que pode ser objeto de experiência, puramente inteligível, que não se vê senão com o pensamento (não com os sentidos). Com tudo isto Platão nos ensina que existe algo real mais real do que aquilo que nos consideramos habitualmente como a única e sola realidade; mais real do que o que se apresenta a nossos sentidos, do que pode ser visto, ou escutado, etc. (também mais real do que pode ser percebido através de experiências supra-sensíveis, parapsicológicas ou espiritistas; a idéia platônica não se conhece senão com o puro pensamento).

Esse « mais real do que o que nos vemos habitualmente », é descrito de maneira mais clara por Platão na famosa alegoria da caverna22: desde as sombras projetadas sobre a parede pode-se remontar aos objetos dos quais estas são as sombras e, à luz do fogo que as projeta, finalmente, ao sol que é ainda mais "luminoso" do que o fogo.

1.2.2 A IDÉIA DO BEM23 é, por dizer-lo assim, a idéia das idéias, isto é, o princípio supremo do qual estas mesmas idéias tomam seu próprio valor e sua inteligibilidade. De fato, nenhuma virtude é virtude, nenhum prazer é prazer, se não é um prazer "bom", uma maneira de agir "boa"24, e para conhecer-lo é necessário, em primeiro lugar, conhecer o bem enquanto tal25, conhecimento ante tudo necessário para aqueles que são responsáveis de governar a cidade26. A idéia do Bem é, portanto, o principio supremo de unificação do múltiplo; e já que as idéias não são somente princípios de conhecimento (aquilo pelo qual se reconhece uma ação como justa, etc.), senão princípios ontológicos (uma ação é justa por sua semelhança com a idéia de justiça, etc.), a idéia do Bem é o principio ontológico supremo: aquilo do qual tudo o que é (bom) toma seu ser, seu valor; o que explica, em última instância, o "porque" de tudo o que é.

Enquanto tal, a idéia do Bem está « além daquilo que pode ser » ("epékina tês ousías"27) e "reina" sobre o mundo inteligível das idéias28. A idéia do Bem assume assim traços divinos, e a

22 Cf. REPÚBLICA, 514a-516c.23

? Cf. REPÚBLICA, 517b-e.24

? Cf. REPÚBLUCA, 505c-d.25

? Cf. REPÚBLICA, 505a-b.26

? Cf. REPÚBLICA, 505e-506a.27 Cf. REPÚBLICA, 509b.28

? Cf. REPÚBLICA, 509d.

19

Page 20: Cópia de metaficisa2

metafísica, posto que leva a conhecer por meio do discurso (o "logos") esta idéia do Bem, se converte numa "teologia" (o nome mesmo desta ciência remonta ao mesmo Platão).

Agora, enquanto visível à inteligência e ao pensamento, o Bem se identifica com o Belo (a justa medida, a harmonia, a ordem interna do ser); tanto mais facilmente por quanto que para os Gregos virtude e bondade constituem uma mesma realidade ("kalokagathia" - "beleza-bondade", "uma bela ação"), enquanto o vicio é "feio", "vergonhoso".1.2.3 Para chegar ao conhecimento da idéia do Bem, para "vê-la", a "psychè" do homem deve sair deste mundo dos sentidos e da aparência (de acordo à alegoria da caverna), ao limite morrer; morte a qual a filosofia arrasta29 e que ela antecipa com uma purificação progressiva que liberta a alma das cadeias que a atam ao corpo. Platão propõe dois caminhos de purificaçao-ascençao:

a. Por meio do amor ("eros"30) que, atraído pela Beleza, transcende as tendências instintivas da alma, que a empurram até o baixo31. Esse amor é descrito no discurso de iniciação de Diotima no Simpisio, onde Sócrates é iniciado neste amor que, filho de Poros (Abundancia) e de Penia (Pobreza), está na busca do Belo e do saber32 e que, atraído pela beleza deste mundo, se eleva até a « Beleza que existe em si mesma e por si mesma, simples e eterna, da qual participam todas as outras coisas belas »33. O cume desta ascensão seria a êxtase mística diante esta Beleza divina.

b. Agora, a metafísica, não sendo nem experiência mística nem êxtase, deve tratar de recuperar mediante um discurso conceitual, dialético ("deuteros ploûs": o "segundo tipo de navegação", isto é, remando a força de braços quando o vento não sopra mais34) o que o eros faz ver diretamente. Nos não seguiremos mais a Platão neste modo de razoar por meio de proporções e harmonias (e portanto ainda de tipo estético), isso o volveremos a encontrar em Aristóteles, subuma forma mais criticamente elaborada.

1.2.4 CONCLUSÃO. O que devemos apreender de Platão é o que ele transmitiu a toda a tradição filosófica e teológica (e também cultural) de Ocidente: isto é, a experiência não só de um saber senão de uma realidade metafísica, mais real do que aquela mesma que nos vemos e tocamos. Existem, portanto, graus de realidade, mais o menos reais, e a realidade suprema, divina, que é o fundamento de tudo o que existe de bom e de belo neste mundo e, em primeiro lugar, no mundo humano.

29

? Cf. FEDÓN, 661b-d.30

? É conveniente lembrar a significação do termo amor, ainda se Platão se referirá ao primeiro tipo de amor (enquanto « Eros »), no caso que nos interessa. Amor é o nome comum dado a todas as inclinações até qualquer bem. Distinguem-se três tipos fundamentais de amor: amor de concupiscência, de dileção e de benevolência. O amor de concupiscência presente na cultura clássica com o termo Eros, se caracteriza pelo desejo de possuir o objeto amado, pelo qual alguém é atraído por suas qualidades estéticas (quer dizer por aquilo que tem: beleza, juventude etc.). Caracteriza-se pela ternura (carinho); é exclusivista e cioso, mas tende a se-esgotar uma vez satisfeito o desejo de possessão. 31

? Cf. FEDRO, 237d-238c, 253c-254e.32

? Cf. SEMPOSIO, 203c-204d.33

? Cf. SEMPOSIO, 209e-212a.34

? Cf. FEDÓN, 99d.

20

Page 21: Cópia de metaficisa2

Com efeito, enquanto a aproximação ética de Sócrates se poderia contentar com um saber sobre normas e regras morais absolutas, a aproximação estética e amante de Platão à realidade, nos descobre valores reais de beleza e de bondade, que transcendem as coisas materiais que os representam (isto é, melhores, mais absolutos que essas mesmas coisas). Esses valores nos fazem entrever uma realidade que se situa além do simples dado, e que o mundo da experiência não alcançará jamais encarnar ou representar perfeitamente.

Tenhamos presente que a experiência estética e o amor abrem um caminho privilegiado ao campo metafísico.

Finalmente, ainda que o mundo supra-sensível de Platão não se deve conceber de maneira espiritista, como um mundo de espíritos, os mitos platônicos sobre a preexistência e a supervivência da alma, mostram que Platão tomou crenças tradicionais, órficas, que recuperam transformando-las num discurso filosófico.

1.3 ARISTÓTELES E O FUNDAMENTO "DAQUILO QUE É VERDADEIRO"

A "filosofia primeira" de Aristóteles deu à metafísica não só o nome, senão também seu conteúdo e suas estruturas fundamentais. Como a Lógica de Aristóteles, durante mais de dois mil anos, era a Lógica simplesmente, do mesmo modo, a Metafísica de Aristóteles chegou a ser a metafísica. Nossa presente exposição não intentará fazer uma reconstrução histórica daquilo que pudesse ser a metafísica para Aristóteles, senão nos ajudará a fazermos repensar sistematicamente, re-elaborando por nossa própria conta, as doutrinas fundamentais desta metafísica.

I O QUE É "SER"

1.3.1 A "epistesme" o "ciência", à que aspirava Aristóteles em toda sua obra, significa um saber fundado, isto é, um saber que sabe que é necessariamente (e, portanto sempre, "eternamente") assim, porque conhece o porque daquilo que é conhecido, seu fundamento último, sua "causa". Dito saber se adquire por meio do silogismo que relaciona a verdade da conclusão com suas premissas (a proposição maior). Assim, eu sei que sou mortal pelo fato de que todos os homens são mortais, e que todos os homens são mortais porque qualquer vivente que é composto de partes pode deixar de viver, etc. Agora, o silogismo se compõe de juízos que enunciam um "ser": "é assim", enquanto que os conceitos dos quais se compõem o juízo dizem o que é (assim). O lugar próprio da verdade (científica) é, portanto, o ser (assim) daquilo que é, ou, em outros termos, daquilo que é enquanto é ("on hê on", "ens qua ens")... A ciência fundamental, a "filosofia primeira", deverá, portanto, considerar "o que é enquanto é", ou bem, o "ser dos seres"; essa ciência será uma filosofia do ser, daquilo que "é assim".

N.B. Deve-se sinalar que isto só vale para todos os juízos. Com efeito, existem outras expressões lingüísticas, ainda que igualmente completas, que não são juízos e, por este motivo, não são os lugares de um saber fundado nem do ser: por exemplo, a exclamação, a invocação, a ordem, etc. Porem, o que Aristóteles encontra mediante a análise do juízo poderia além disso descobrir-se com uma análise da interrogação, porque esta espera um é assim como resposta. De fato, o saber humano se apresenta, na maioria dos casos, mais sub a forma de interrogação do que de afirmação.

21

Page 22: Cópia de metaficisa2

1.3.2 Uma rápida análise semântica35 deste "ser" mostra que o "é assim" diz-se em modos diferentes ("to on pollachôs légetai"):

a. No caso principal, quando se trata de um saber verdadeiramente científico, necessário e fundado, ser significa o que o sujeito do juízo é em si mesmo, sua essência, ou o que a este lhe pertence necessariamente e enquanto próprio; dizendo "é" se enuncia à verdade profunda daquilo sobre o qual se fala, p. ex., "o homem é mortal". Aristóteles o chama "o ser por essência", em latim, "per se".

b. Podem ser verdadeiros também os juízos que não se fundam sobre esta essência, que não têm nada de necessário (nem de "demonstrável"), senão que se encontram como verdadeiros de fato; por exemplo, "Pedro está resfriado", "este arquiteto é um bom músico". Aristóteles o chama "o ser por acidente", em latim "per accidens" ("o que acontece --accidit-- como verdadeiro").

c. Podem ser verdadeiros igualmente os juízos que não se apóiam sobre algo que é realmente o caso, senão que pode realmente ser o caso: um poder-ser-real; p. ex., "Pedro toca bem o piano", "ele é um excelente pianista", ainda que não o toca neste momento, mas pode tocar-lo; do mesmo modo: "esta montanha é visível desde muito longe", ainda que durante a maior parte do tempo há uma nuvem que a esconde. Isso é para Aristóteles, "o ser em potência", em latim "in potência".

d. Finalmente, "é assim", pode também servir para afirmar o que não existe ou não pode ser o caso, p. ex., "o latim era desconhecido por Sócrates" ou "uma velocidade superior à da luz es impossível". O verbo "ser" tem então uma função puramente lógica, e serve para manifestar ainda uma negação, sem significar de nenhum modo uma existência, um ser; ele não faz senão relacionar, e de maneira absoluta ("copula"), o predicado com o sujeito. Aristóteles o chama "o ser enquanto verdadeiro" (e "o não ser enquanto falso"); em latim "essere copulae", "secundum compositionem et divisionem".

A confrontação dos três primeiros significados com o último mostra que se "ser" tem sempre um caráter de afirmação absoluta ("verdadeira" para todos, em qualquer hipótese, simplesmente), esse significa normalmente também uma existência, segundo as diferentes modalidades sub as quais algo pode "ser o caso" = existir. A lógica manifesta o "ontológico", o "modo no qual se encontra existindo verdadeiramente o mundo real".

35 Cf. Mondin, B., DIZIONARIO ENCICLOPEDICO DI FILOSOFIA TEOLOGIA E MORALE, Ed. Massimo, Milano 1989; cf. o termo Semántica, pg.688 : « Com este termo indica-se, em geral, aquela parte da lingüística que se ocupa do significado das palavras, quer dizer da correspondêcia entre os sinais e o que estes representam. Em Lógica matemática, a semântica é a teoria da interpretação de um sistema formal, no qual um significado pode ser atribuído aos símbolos formais de dito sistema. Pode-se distinguir uma semântica sincrônica: esta define o significado de um termo com respeito aos outros (como acontece no estruturalismo) e uma semântica diacrônica ou histórica: esta estuda as variações dos significados da mesma palavra ao longo do correr dos séculos ».

22

Page 23: Cópia de metaficisa2

1.3.3 A analogia36 do ser deve ser compreendida nesta dimensão ontológica. As análises anteriores têm mostrado que "ser" diz-se de maneira mais ou menos própria: existem portanto diferentes graus de ser (como em Platão), então diferentes maneiras de ser (isto é, de existir) realmente; o que pode ser "é" de modo diverso àquilo que é necessariamente ou que é "per accidens" (não existe senão como um puro fato).

Portanto, o termo "ser" não é nem unívoco (como animal diz-se do cachorro e do peixe) nem equívoco (um puro homônimo, como banco enquanto instituição e banco enquanto assento), senão que é usado num sentido análogo segundo significações diferentes que, porem, tem uma certa relação entre elas (do grego "anàlogon": segundo uma relação). Assim, sano se diz propriamente do bem-estar físico (saúde) do homem, mas um alimento, um clima são "sanos" porque favorecem a saúde, a cor porque a manifesta, e uma leitura porque procura à alma o que a saúde representa para o corpo. Das realidades assim indicadas mediante a palavra "ser", esta convém de modo próprio ao ser por essência ("ousía": "o que é") e de maneira derivada aos outros, conforme à relação com este ser por essência ("é como se...", "aquilo pode ser..."). Portanto, elas são (no plano ontológico), só analogicamente. Podemos notar que o ser por excelência, "o que é propriamente", não é mais em Aristóteles um "ontos on" que está além do mundo da experiência, senão a ousía mesma, "o que é" dos seres deste mundo.

1.3.4 As categorias37 designam, entoa, os modos de ser da (ou na) ousía mesma. Elas se deduzem de novo dum fato lingüístico, da maneira como se enuncia ("Kategoreîn" -enunciar) "o que é", isto é do juízo, sempre composto de um sujeito e dos predicados.O sujeito designa o que é propriamente, a ousía enquanto tal, a "substância" (o que "sustém", "substat" todo o ser; ou bem, o que "é em si mesmo", "ens in se").

Pelos predicados Aristóteles distingue nove aspectos, baixo os quais pode-ser considerar o ser enquanto tal de um sujeito e, portanto, nove maneiras de ser da substância: quantidade (quanto), qualidade (como), relação (com relação a qualquer coisa), lugar (onde), tempo (quando), posição (em qual posição: de pé, sentado, encurvado), ter (provisto de qual coisa),

36 Cf. Mandem, B., Piccolo dizionario dei termini filosofici fondamentali, in IL SISTEMA FILOSOFICO DI TOMMASO D'AQUINO, ed. Massimo, Milano 1992, pg.271: « O termo (analogia) deriva do grego (analogon, analogia) e, en geral, significa semelhança. Em Lógica designa seja uma espécie de razoamento (o razoamento por analogia), seja um tipo de predicação (predicação por analogia). Como tipo de predicação a analogia distingue-se da univocidade. Enquanto que na univocidade um termo vem aplicado a muitos sujeitos em sentido idêntico, e na equivocidade em sentido totalmente diverso, na analogia um termo é aplicado em sentido parcialmente igual e parcialmente diverso. Em geral, distinguem-se dois tipos de analogia: uma de atribuição e outra de proporcionali-dade. A atribuição subdivide-se, por sua vez, em intrínseca e extrínseca, enquanto a de proporcionalidade subdivide-se também em própria e metafórica. Santo Tomás de Aquino é um dos máximos defensores da importância do principio da analogia, e a considera indispensável para determinar o significado da linguagem religiosa e metafísica ».37

? Cf. Mondin, B., IBIDEM, o termo categoria, pg.128: « A categoria significa as classes de predicados (ou predicamentos). Aristóteles foi o primeiro em fixar-lhes a classificação, definindo as categorias como idéias gerais que não são reduzíveis a nenhuma outra. Para Aristóteles há 10 categorias: substância, qualidade, quantidade, ação, paixão, relação, tempo, lugar, posição e o hábito. Para Kant e a escola kantiana, as categorias são os conceitos fundamentais do intelecto puro, formas a priori de nosso conhecimento, que fazem possíveis todas as funções do pensamento discursivo.

Portanto, por quanto em Aristóteles as categorias têm uma dupla função: lógica (gnosiológica) e ontológica, elas são então modalidades fundamentais seja do pensamento seja do ser (e assim, p.ex., substância e causalidade não são simplesmente princípios reguladores do pensamento, senão condições efetivas da realidade); em Kant, estas alcançam apenas a uma função gnosiológica (lógica): são formas que o pensamento impõe aos dados da experiência, a forma da quantidade, da qualidade, da substância, da relação, etc. São formas universais, comuns a todos os intelectos humanos e, neste sentido, podem-se dizer objetivas, mas são formas impostas pelo sujeito ao mundo caótico da experiência e, neste sentido, são de fato subjetivas ».

23

Page 24: Cópia de metaficisa2

atividade e passividade. Essas maneiras de ser não existem "em si mesmas", senão só "em outro" ("entia in alio"), isto é, na substância, como "aquilo que lhe ocorre ser" (accidente).

Portanto, as dez categorias (substância mais nove categorias de acidentes38) são os gêneros supremos de tudo o que é (ou pode ser). Porem, o elenco das categorias de acidentes, varia no mesmo Aristóteles, já que foi estabelecido de maneira totalmente empírica, e não deve ser considerado nem necessário nem exaustivo. Kant intentará estabelecer de maneira mais decidida uma lista de 12 categorias, não partindo mais do sujeito e do predicado, senão do modo no qual esses se relacionam entre si e, portanto, afirmam-se no juízo; da maneira, numa palavra, como eles são.

II A CONSTITUIÇAO DOS SERES CONCRETOS

À luz destes princípios ontológicos, descobertos mediante uma análise lógica "daquilo que é verdadeiro", podemos agora considerar os seres concretos, dados na experiência. Neste ponto, no limite com a física, se apresentam as maiores dificuldades que deve superar a metafísica aristotélica. Com efeito, os conteûdos do saber verdadeiro, são, (e devem ser) universais e necessários, e o "ser" que funda este saber deve, portanto, ser também universal e necessário. Agora, os seres dados na experiência se apresentam a nos sempre e exclusivamente singulares e variáveis (isto é em devir). Como, portanto, e de qual maneira as estruturas ontológicas fundamentais são e podem ser verdadeiras para os seres dados na experiência? De qual modo é necessário conceber estes seres à luz daquilo que nos temos descoberto sobre o ser (o poder-ser-objeito de ciência certa) enquanto tal?

Aristóteles buscou responder a estas questões considerando preferentemente os seres viventes (de fato, seu pai era médico, e ele mesmo sobre tudo zoólogo). Com efeito, os viventes, são os seres que melhor conhecemos, isto é, que reconhecemos mais facilmente enquanto tal ser (um cachorro ou um pássaro, um corvo ou um mirlo), e dos quais é evidente que este individuo permanece sempre idêntico a si mesmo através de todas suas mudanças (esse pino será sempre este pino, desde seu primeiro brote até quando seja derribado).

1.3.5 A composição de "forma" e de "matéria" nos seres singulares responde à pergunta: de qual modo podemos saber que este ser é tal ser? Com efeito, nos reconhecemos um ser singular pelo que ele é segundo um certo aspecto exterior, característico, sempre o mesmo, e que tem em comum com os outros seres da mesma espécie. Um gato se distingue de um cachorro por sua talha, seu cabelo, por seus movimentos que são comuns a todos os gatos. Sua forma ("morphè") especifica, o conjunto estruturado de traços característicos que formam um todo, é algo mais e algo diverso da suma (ou da união) de suas partes (assim, no plano fonético, a sílaba "de" tem uma forma significativa que é algo mais e algo diverso da simples união de uma "d" e de uma "e").

Considerando o argumento mais a fundo, se encontrará que este ser deve ter um principio interno de unidade, em virtude do qual esse apresenta sempre este aspecto específico: é um gato, e não só se assemelha a um gato.

38 Cf. Mondin, B., IBIDEM, o termo “acidente”, pg.10: «O acidente, segundo a definição aristotélica, é todo o que acompanha a substância como algo de não necessário. À diferença da substância, que tem seu próprio ato de ser e, portanto, subsiste em si mesma, o acidente não é um “in se”, não dispõe de um ato próprio de ser, mas o recebe pela substância na qual está inerente. Segundo a classificação de Aristóteles, todas as substâncias materiais estão acompanhadas de nove acidentes principais: quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, situação, hábito ».

24

Page 25: Cópia de metaficisa2

Para os viventes, é seu "principio vital" ("psychè"39) ou "entélécheia" (literalmente "o ser completo"); os produtos artificiais da técnica humana, pelo contrário, não têm nem sequer uma "morphè"; pois, sua "forma" não é senão um "esquema" (uma certa disposição característica das partes, como por exemplo, a de uma mesa ou a de uma cadeira que não estão dotados de unidade interna).

Agora, a "forma" de um vivente não é própria do individuo, enquanto que ele a comparte com todos os indivíduos da mesma espécie. Portanto, de qual modo se distingue de seus similares? Para responder a esta pergunta, Aristóteles recorre insolitamente ao modelo dos produtos artificiais. Assim como se pode multiplicar o mesmo objeto, reproduzindo a mesma "forma" (de uma mesa, de uma estatua, etc.) com material sempre novo ("materia", "A", literalmente: "ma-deira de construção"), assim aconteceria com os viventes: cada indivíduo seria um todo com-posto ("senolon") de "forma"40 (idêntica para toda a espécie) e de matéria41 individual. Esta teoria se chama "hilemorfismo"42 (de "hylè" + "morphè").

Portanto, o que é, o que existe verdadeiramente, não é nem a forma nem a matéria somente, senão o todo, o ser concreto; mas é assim, tal como é, em virtude da forma. E é por isso que se pode dizer que a forma dê o ser. A matéria enquanto tal, tomada em si mesma não é nada, (nem "este" nem "o outro", e, portanto, nem sequer existente), é um puro poder-ser (em latim, "potência pura").

39 Psychè significa alma. Aristóteles foi o primeiro em elaborar uma doutrina sistemática da alma, tratava nela de todos os graus de vida terrestre (vegetativa, sensitivo-animal e intelectual e olhava na alma o principio vital, formal, substancial dos processos vitais).40

? Cf.Brugger, W., Diccionario de filosofía : cf. o termo forma, pg.248-250: « (Em latim: forma, em grego: morphè). Esta palavra designa originalmente a configuração exterior, o contorno, a figura, a estrutura visível de um corpo. Desta maneira a forma, neste sentido, oferece dentro do mundo corpóreo uma importante base de diferenciação e determinação, por isso a « morfologia » lhe dedica especial atenção... »; cf. Mondin, B., IBIDEM, cf. forma, pg.306-307: « É um dos termos chaves da metafísica aristotélica, onde designa "a essência de cada coisa e a substância primeira", quer dizer "o ato primeiro de um corpo". Segundo Aristóteles, todas as coisas materiais são constituídas por dos princípios fundamentais: a matéria que es o principio passivo, e a forma, que es o principio ativo (daí a definição: "ato primeiro de um corpo"). Na filosofia moderna o termo forma tem adquirido um significado menos técnico e tem chegado a ser sinônimo de figura e ainda de estrutura ».41

? Cf. Mondin, B., IBIDEM, o termo matéria, pg.462: « Segundo o significado mais comum, matéria diz todo o conjunto dos corpos extensos. No significado técnico de origem aristotélica e escolástica, a matéria denota o que num ser representa o elemento potencial, indeterminado, em oposição à forma que representa o elemento de determinação e atualização. No uso moderno, matéria opoe-se seja à forma seja ao espírito.

A matéria, não em seu aspecto de entidade experimentável pelos sentidos e pelos instrumentos científicos, senão enquanto constitutiva de cada coisa real física, natural, é uma das máximas conquistas do gênio filosófico de Aristóteles. Ele trata amplamente dela na FÍSICA e na METAFÍSICA, e a apresenta como elemento essencial para a explicação do fenômeno do devir; tema bem discutido e polemizado pelos filósofos anteriores a Aristóteles, sobre tudo, Heráclito e Parmênides... »42

? Cf. Mondin, B., IBIDEM, o temo hilemorfismo, pg.371: « O hilemorfismo é a doutrina aristotélica que considera cada substância material como constituída de matéria (heles) e de forma (morphè). Aristóteles tem introduzido esta doutrina para explicar, por uma parte, o devir das coisas materiais, um devir que supõe um substrato estável, permanente (e isso se deve à matéria) e, por outro lado, a identidade específica entre muitos indivíduos (e isso se deve à forma). Alguns pensadores medievais têm usado esta doutrina para explicar a finitude das criaturas: isso se deve ao fato que todas as criaturas, inclusive os anjos, estão compostas de matéria e de forma. Só Deus é sem matéria, espírito puríssimo. Tomás nega a necessidade de estender o hilemorfismo ao mundo angelical para explicar a finitude dos anjos, porque essa, em sua filosofia, explica-se adequadamente com a composição (ou distinção) de essência e de ato de ser (esse) ».

25

Page 26: Cópia de metaficisa2

1.3.6 Os seres mudáveis e em devir (como o são todos os seres dados em nossa experiência) colocam um problema ulterior. Para explicar como eles podem ser verdadeiros, é necessário não somente responder às dificuldades bem conhecidas de Parmênides e dos eleatas (o que é não devem e o que devem não é), senão também fazer ver de qual modo um ser possa permanecer o mesmo, ainda chegando a ser outro, e de qual modo possa-se afirmar sua forma de maneira absoluta, ainda que se, enquanto mudável, o individuo não alcança jamais igualar-la perfeitamente. A estas perguntas Aristóteles responde analisando o modo no qual nos podemos e devemos pensar o devir ("kínêsis", "movimento"). Pode-se sintetizar o pensamento de Aristóteles sobre o como pensar o problema do devir43 em os seis pontos seguintes:

a. Para que aconteça o devir, é preciso, ante tudo, algo que devem, que ainda mudando, permanece porem sempre o mesmo (de outra forma não se trataria de um ser que devem senão de uma substituição de um ser por outro). Portanto, é necessário em todo devir um substrato ("hepokeimenon").

b. Todo devir desenvolve-se entre dos termos: um termo inicial e um termo final (por ex., a semente que devem a árvore, a ignorância que se torna saber metafísico, etc.). O primeiro se caracteriza pela ausência ("stérêsis": "privação") daquilo que se encontra ("héxis": "ter") no termo final: uma perfeição, um "ser-efetivamente-assim" ("enérgeia": "ato", "atividade"; a terminologia mostra que Aristóteles tinha em vista sobre tudo as perfeições ativas, a vida dos viventes; isso fica expressado claramente nele "efetivamente").

c. No termo inicial, porem, não existe só a ausência deste "ato". Porque o substrato o terá no termo final, ainda permanecendo o mesmo, pode tê-lo desde o principio; ainda mais, está destinado a ter-lo (enquanto o devir se desenvolve de maneira ordenada, numa sola direção: por ex., o ovo não pode chegar a ser qualquer coisa, senão uma galinha, ou um ovo frito). Portanto, no termo inicial do-devir encontra-se um poder-ser determinado ("denamis": "potência"; a terminologia nos remite, de novo, à capacidade de atuar ou agir dos viventes), que se deve descrever não só como o que não é o ato, senão como o que pode passar ao ato, ao qual está ordenado. Portanto, é a partir do ato como se define o poder-ser ou a potência: o ato é "anterior" à potência, mais fundamental do que a potência.

d. Portanto, tudo o que devem está composto de ato e de potência (de ser-efetivamente e de poder-ser) que não só se sucedem (primeiro está a potência, depois o ato), senão que se dão simultaneamente, porque o devir efetivo não elimina o poder-ser senão somente a ausência do ato que se encontra no termo inicial. O poder-ser, pelo contrário, permanece o mesmo, sendo pouco a pouco realizado, "atualizado". (O homem que poe-se em caminho, no ato de caminhar realiza, "atualiza" o poder-caminhar).

e. Uma análise mais profunda do ser em devir servirá para sublinhar esta simultaneidade do ato e da potência naquilo que devem. Com efeito, o que devem não se encontra nem no termo inicial nem no termo final de seu devir, senão entre os dois, isso quer dizer, que tudo o que está em devir, já tem devido ou devirá ainda. Portanto, em cada momento (parte de um movimento) de seu devir, ele se encontrará ao mesmo tempo na situação ontológica de termino final e na de termino inicial (por. ex., como um trem que passa direto a uma estação, parte de ela no mesmo instante no qual chega). Com isso nos compreendemos a definição aristotélica do devir: é "o ato de um ser em potência enquanto está ainda em potên-

43

? Para mais informação e uma boa apresentação sobre a pensabilidade do devir, olhar o artigo devir nos dois dicionários seguintes: Brugger, W., DICCIONARIO FILOSÓFICO, pg.154-157; Mondin, B., DIZIONARIO ENCICLOPEDICO DI FILOSOFIA TEOLOGIA E MORALE, pg.218-219.

26

Page 27: Cópia de metaficisa2

cia"; isto é, é já uma atualização da potência --já não está no termino inicial-- mas esta atualização mesma está ainda em potência em relação ao termino inicial.

f. Em conclusão, ato e potência são distintos como a perfeição e o poder-ser-perfeito: eles são contrários, mas relativo um ao outro. Ainda que distintos, eles não se sucedem senão que existem simultaneamente: o ato de um ser em devir é o ato que "atualiza" uma potência, um ato "recebido em" uma potência. Propriamente falando, ato44 e potência não são; é mais bem por eles que o ser em devir é: não são seres, senão "princípios do ser" (em devir). A partir do ser em devir, a distinção entre ato e potência pode ser transferida analogicamente às outras composições do ser concreto; assim a forma atualiza a matéria (que nos temos definido como um puro poder-ser, uma potência) e a substância45 está em potência para ser atualizada por meio de seus acidentes. Se nos perguntáramos pelo valor ontológico desta distinção, a pergunta poderia se formular deste modo: estão os seres verdadeiramente constituídos por dois "princípios", ou é esta uma pura teoria metafísica para fazer pensável o devir?

Parece que se deve responder que nos não podemos pensar diversamente o devir; e porque o principio de toda nossa investigação era aquilo de buscar o fundamento de nosso saber no ser (real), dever-se-á admitir que este pensamento necessário não parece ser sem fundamento ontológico.

44 Para completar a informação sobre os dois co-princípios de ato-potência ver estes termos em Mondin, B., IBIDEM, pg.63-64 e 584-585: « O ato é categoria fundamental da metafísica aristotélica junto a seu co-relativo, a potência. O ato designa todo o que é perfeição, plenitude, realização, definição, enquanto que a potência indica o que é imperfeito, incompleto, indefinido. Nas coisas materiais o ato não se identifica jamais com o ser mesmo da coisa, senão só com a forma; enquanto que a potência identifica-se com a matéria. Por isso, ato e potência não são seres, senão princípios primeiros do ser: o ato é principio ativo e a potência princípio passivo. Aristóteles distingue dois graus de ato, que chama ato primeiro e ato segundo. O primeiro é a forma substancial de uma coisa; o segundo é o exercício de uma operação. Para Santo Tomás a perfeição máxima e, por conseguinte, o ato de todos os atos é o ser (esse = ato de ser), entendido como ato de ser (actus essendi) »....

« ... Potência, no seu significado mais comum indica a capacidade e a habilidade para realizar qualquer fato, qualquer ação; portanto denota a idéia de atividade e de eficácia, na metafísica aristotélica e escolástica; potência opõe-se ao ato e significa a condição de passividade, a possibilidade de ser produzido por parte daquilo que ainda não está realizado. Todas as coisas finitas são constituídas de ato e de potência; só Deus é ato puro. Mas os mesmos escolásticos, repensando Aristóteles, distinguem esta potência que eles chamam passiva, de outra que se chama ativa. Esta última (potência ativa) denota a possessão da capacidade de realizar alguma coisa. É neste sentido que as faculdades da alma humana são chamadas potências... »45

? Cf. Mondin, B., IBIDEM, ver o termo substância, pg. 714-715: « A substância é o termo que na filosofia e na teologia tem um significado técnico bem preciso: segundo a clássica definição que nos dá dela Aristóteles, a substância « é aquilo que é em si e não em outra coisa ». Substância é qualquer realidade dotada de seu próprio ser, que possui, por conseguinte, sua consistência ontológica. Essa é a contraposição do acidente, o qual precisamente não está em grau de existir por si só, porque não tem seu próprio ato de ser, mas deve se apoiar na substância, enxerir no ser da substância, da qual ela é um fruto mais ou menos necessário ou contingente (por isso distingue-se entre os acidentes que são próprios, que são aqueles necessários dos acidentes que são adventícios ou "acidentes", que são os de pura casualidade). Sendo co-relativo ao acidente, propriamente o termo não se pode aplicar a Deus (enquanto Deus não tem acidentes), mas despojado do aspecto da co-relatividade e reduzido em seu significado a aquilo que é principalmente positivo (quer dizer autonomia no ser, consistência ontológica), o termo acrescenta-se ainda a Deus, o qual pode-se chamar "substância primeira", "substância não-causada" etc. A substância possui uma profundidade semântica diversa seja por essência, seja por natureza, seja por pessoa. Substância diz simplesmente autonomia no ser e função de suporte para todo o que não goza de dita autonomia; enquanto que essência diz aquilo que caracteriza especificamente uma coisa e a distingue das outras; natureza é a mesma essência ou substância vista com relação ao atuar (agir); pessoa é uma substância que é dotada de racionalidade (ou, como diz Santo Tomás: é o subsistens rationale). Em teologia, este termo é insubstituível quando se aproximam y discutem-se os mistérios fundamentais (como Deus, Cristo, homem, sacramentos) numa perspectiva ontológica... »

27

Page 28: Cópia de metaficisa2

1.3.7 A possibilidade real do devir, porem, depende também de outros fatores que Aristóteles chama causa46 ("aitiai": aquilo em virtude do qual algo existe). Com efeito, até aqui, nos não temos estabelecido senão a pensabilidade do devir (que não é absurdo, impensável e, portanto, uma pura aparência enganadora); é necessário ainda ver em virtude de que o devir produz-se realmente. Vejamos, a continuação, os distintos princípios que dão conta do devir real:

a. No ser mesmo que devem são necessárias duas causas "internas": isto é, algo que muda e algo que permanece. Por analogia com os produtos artificiais da técnica humana, a primeira chama-se "causa formal", a segunda "causa material", supondo que o mesmo material (por exemplo, a madeira com a qual se fabrica uma mesa, uma estatua...) receba por meio do processo formativo (o devir) uma nova "forma".

b. Segundo a natureza da mudança que se produz, estas causas podem ser diversas:

-- A ousía, ainda permanecendo a mesma, pode ser mudada "acidentalmente", quer dizer, receber novos predicados (o homem chega a ser filósofo, o pedaço de madeira chega a ser uma estatua). A "causa material" é então a ousía mesma, a "causa formal", os "acidentes".

-- Mas a ousía mesma pode ser destruída ou também constituída, o que Aristóteles chama geração e corrupção (sobre tudo, ainda que não exclusivamente, para os viventes). A "causa material" que permanece está constituída, então, pelos "elementos" ("stoicheia") porquanto a forma é a forma "substancial" ("morphè" o a entélécheia) do ser mesmo.

-- Enfim, supondo que os elementos mesmos podem ser destruídos ou mudados um em outro, não permaneceria como "causa material" senão como substrato universal, absolutamente indeterminado ("nec quid, nec qual, nec quantum, nec aliquid eorum quibus ens determinatum"), o qual, porém, não é nada, porque é um real poder-ser (poder-ser todo, isto é, qualquer coisa). Aristóteles chama aquilo "materia prima"47 ("prôtê hylè", em oposição à "materia segunda" que são os elementos já formados), ingerável e incorruptível, portanto, "eterna".

46

? Cf. Mondin, B., IBIDEM, olhar o termo “causa”, pg.131-132: « Causa, é todo o que de qualquer modo contribui à produção de qualquer coisa. É de Aristóteles a clássica divisão das causas em quatro espécies: material, formal, eficiente e final; as duas primeiras designam a matéria e a forma e, por isso, se chamam causas intrínsecas, por quanto que a causa eficiente indica o agente e a causa final a meta (fim) pela qual uma coisa é produzida ou uma ação realizada. Ao não entrar nos elementos constitutivos daquilo que vem produzido, as causas (agente e final) se chamam causas extrínsecas... ».47

? Cf. Brugger, W., IBIDEM, olhar o termo “materia prima”, pg.330: « Segundo a teoria hilemórfica, a materia prima é a base ontológica comum de todos os corpos, não sendo ela, ainda, um corpo ou matéria em sentido da ciência natural (não é uma "materia segunda"), senao unicamente a parte esencial, determinável de qualquer ente corpôreo, a qual só pela forma substancial que se agrega-lhe passa a ser um corpo determinado (materia ou materia segunda). Aristóteles define-a desta maneira: a “materia prima” é « o primeiro substrato de qualquer coisa (ou corpo), do qual, como de uma parte essencial internamente constitutiva, se produz algo de maneira não simplesmente acidental » (cfr. PHYSICA, 1,9; 192a-31f). Segundo Santo Tomás de Aquino, as palavras « de maneira não simplesmente acidental » obrigam a distinguir a “materia prima” da privação, que é só princípio acidental do devir. A materia prima se considera como fundamento último da passividade e da ocupação do espaço por parte dos corpos. Segundo a conceição tomista rigorosa, a materia prima é pura potência e, portanto, absolutamente indeterminada em si mesma, enquanto que outros lhe atribuem um mínimo de determinação real (atual). Também é controvertida a doutrina tomista que defende que a materia prima "marcada pela quantidade" (materia signata quantitate) determina a individuação, o ser-este, dos corpos ».

28

Page 29: Cópia de metaficisa2

c. Fora do ser que devem, é necessária ainda outra causa, ou também diversas "causas externas", porque no termino final do devir haverá mais ser (quer dizer, um ser mais aperfeiçoado), aumento do qual se deve poder dar razão, neste sentido que deve ser fundado. Recorrendo novamente ao modelo da produção técnica, vê-se que o artista realiza mediante sua atividade ("causa eficiente") uma idéia pre-concebida daquilo que ele quer produzir ("causa final").

No processo de produção, a "causa final" é, portanto, primeira (mas somente a modo de "plano", de "conteúdo mental", de fim a realizar, não enquanto existente); ela determina o obrar da "causa eficiente", e o obrar de tal modo. "Obrar" é próprio "daquilo que" ou de quem "está em ato" e que comunica com o propio obrar algo da própria "atualidade" a outro: ele "atualiza" o que no outro não era senão em "potência". No caso dos viventes que se desenvolvem, sua perfeição final encontra-se já pré-formada na sua "entélécheia48"; essa é, portanto, a verdadeira "causa final" de seu desenvolvimento (que se chama então "teleológico": que se explica com seu fim, termino esse que remonta a Kant e não a Aristóteles), e essa causa final nos aparecerá como uma espécie de tensão dinâmica a realizar-se a si mesma. Essa realizaçao, porém, não pode fazer-se senão sub a influência de uma causa eficiente externa (a chuva, a energia solar; o que Aristóteles denomina globalmente a influência do "céu").

d A necessidade de uma causa externa para explicar o devir está enunciada no famoso principio do movimento: "tudo o que se move (quer dizer, devem) é movido por algo (por outro)", em latim: "Quidquid movetur, ab alio movetur".

1.3.8 O Deus de Aristóteles é descoberto por meio do razoamento, aplicando sistematicamente o principio do movimento (ou causalidade). Em quanto toda espécie de devir sobre a terra é causado, em última instância, pela influência dos "céus", os céus, os mesmos no "devêm" (eles são "ingeráveis" e "incorruptíveis"), se encontram somente num movimento local eterno, o mais perfeito que possa existir, isto é, circular. De onde lhes provêm este movimento? Aristóteles responde: de fato, dos espíritos que animam as esferas celestes (modelo astro-biológico49 do cosmos), já que elas desejam imitar a perfeição do "Primeiro Motor".

Portanto, esse Primeiro Motor é causa (direta ou indireta) de todo o movimento, mas somente enquanto causa final ("kineî hôs erômenon": "move enquanto é objeto de amor"). Para que o razoamento possa encontrar um fundamento, quer dizer, para que tudo o que possa saber-se esteja fundado, não se pode proceder indefinidamente ("anànkê stênai": "é necessário que o movimento se detenha"); é necessário admitir uma causa adequada "primeira" (ou "última") de todo o movimento; causa que, por ser verdadeiramente primeira não pode ser sujeita, por sua vez, a nenhum movimento. Ela deve ser imutável ou imóvel.

Enquanto imutável, este Primeiro Motor deve ser "ato puro", porque toda "potência" diz poder-ser-mudado. E porque a atividade mais nobre é o pensamento, ele será puro pensamento,

48

? Cf. Mondin, B., IBIDEM, olhar o termo “entelecheia”, pg.250: « Entelechia, do grego entelekeia = ser em ato. Em Aristóteles, quem criou o termo, disse que a completa relização da potencialidade dum ente, por conseguinte, é seu ato final e perfeito; é assim como a alma se define como entelechia de um corpo orgánico. Leibniz volta a tomar a expressão aristotélica na MONADOLOGIA (18), chamando entelechia as substâncias simples ou mónadas criadas por quanto têm uma certa perfeição ou auto-suficiência que faz dos autónomos incorporeos uma capacidade de se mover por si mesmos. Na filosofia contemporânea o termo entelechia se usa para indicar o princípio da vida, não reduzível aos elementos físico-químicos e, por conseguinte, espiritual ».49

? Para uma apresentação breve da astronomia de Aristóteles pode-se consultar com proveito a Aubert, J-M., FILOSOFÍA DE LA NATUREZA, Editorial Herder, Barcelona 1970, pg.80-86.

29

Page 30: Cópia de metaficisa2

pensamento que não tem outro objeto que o pensamento puro em si mesmo: puro pensamento que se pensa a si mesmo ("noêsis noêsêos"). E, para imitar esta perfeita identidade consigo mesmo, no mundo material as esferas celestes giram sobre si mesmas.

É evidente a insuficiência desta concepção teológica desde o ponto de vista cristão: o Deus de Aristóteles na é fundamento senão do devir no mundo e não do ser mesmo do mundo. Não é, portanto, criador do mundo (já que o mundo é inevitavelmente eterno, desde sempre e para sempre, pelo tanto, "subsistente" a sua maneira) e ele se desinteressa totalmente do mundo; não existem sinais de providência divina. Precisamente por causa desta insuficiência teológica, o aristotelismo deverá ser profundamente repensado e modificado, quando seja retomado por autores cristãos.

III RESUMO SINTÉTICO

Fixemos em algumas teses as aquisições definitivas que o aristotelismo tem deixado à tradição metafísica:

§ 1. A metafísica é a ciência que explica como e porque o saber pode ser fundado.

§ 2. O saber fundado expressa-se no juízo que diz ser o que é verdadeiro; por conseguinte, a metafísica é a ciência daquilo que é enquanto é (do ser dos seres).

§ 3. O ser necessário (per se), o ser de fato (per accidens), o poder-ser e o ser-impossível afirmam-se de modo diverso no juízo e são, portanto, de maneira diversa: ser es isto é, uma palavra e uma realidade analógica.

§ 4. Do mesmo modo as categorias, isto é, a substância, enunciada pelo sujeito do juízo, e seus acidentes, enunciados pelos predicados, são modos diferentes: em si mesmo (in se) ou em outro (in alio).

§ 5. Todo ser real (que existe ou pode existir), é composto de forma, pela qual é tal ser, e de matéria, pela qual é este ser; o que existe verdadeiramente é o composto, mas existe em virtude de sua forma na sua matéria, que é um puro poder-ser.

§ 6. Todo o que devem, enquanto tal, é composto de potência (isto é, um poder ser real, determinado pelo ato) e de ato (o ser efetivamente). Analogicamente, a matéria está em potência com relação a sua forma, e a substância com relação a seus acidentes.

§ 7. O devir real é possível graças à influência de quatro causas: material (o que devem), formal (o que chega a ser), final (até aquilo que tende), e eficiente (que realiza o devir mediante sua atividade).

§ 8. Desde o ponto de vista das causas internas, distinguem-se diferentes espécies de devir: a mudança acidental da substância, a geração ou corrupção da substância mesma, a transformação substancial dos elementos, onde fica, como causa material, a matéria prima, ingerável e incorruptível, mas totalmente indefinida.

§ 9. Na investigação das causas externas do devir, é preciso chegar até uma causa primeira, por sua vez, não causada e, portanto, imutável enquanto ato puro (sem potência de devir outro).

30

Page 31: Cópia de metaficisa2

Enfim, o que nos devemos apreender de Aristóteles, é que o fundamento metafísico do saber não se encontra (somente) no além (indizível) da experiência, senão no dado mesmo da experiência, e que ele é descoberto não (tanto) num ascenso estético ou num saber profundo sempre presente, senão por meio da análise racional, lenta e laboriosa, de nosso mesmo saber. A metafísica é, então, um saber de tipo reflexivo, um saber do saber.

Desta maneira, Aristóteles descobre a importância do ser (verbo em e além daquilo que é, mas também das estruturas metafísicas necessárias (aquelas que fundam a pensabilidade mesma daquilo que nos conhecemos): as composições de substância-acidente, matéria-forma, potência-ato. E, em outros termos, tudo o que é (tudo o que se pode saber ou dizer) tem em si mesmo uma dimensão metafísica que se descobre no discurso racional. É este mesmo discurso e, só ele, que leva a reconhecer, além do mundo, a existência de uma causa primeira, de um fundamento último de todo ser-tal, mas não do ser enquanto tal, e ainda esta causa primeira permanece totalmente externa ao ser-tal.

Em relação com a transcendência, o além de qualquer experiência possível, o discurso aristotélico aparece particularmente empobrecido respeito ao discurso platônico. Além disso, dada sua estrutura puramente racional, poder-se-ia facilmente desconhecer a dimensão ontológica e metafísica, e considerar-la um simples sistema ou um jogo de conceitos. Porém, em Aristóteles este perigo é evitado, porquanto que seu discurso termina, com freqüência, com aporias (caminhos interrompidos, vias sem saída). Mas, para não perder a autêntica dimensão de transcendência, o discurso metafísico post-aristotélico deverá recuperar algo do ascenso de Platão e, também, daquele de Sócrates.

31

Page 32: Cópia de metaficisa2

CAPÍTULO II:A ONTOLOGIA DO SER CRIADO E A METAFÍSICA DO ATO DE SER

A revelação cristã (e também judaica) tem aportado ao pensamento filosófico uma perspectiva nova: o mundo, em sua totalidade, até suas extremas profundezas, é criado50. Não existe nada nele propriamente "eterno" e absolutamente necessário, senão que ele é radicalmente contingente (podendo não ser ou existir), e Deus é, não somente o bem supremo, ou um demiurgo que plasma o mundo, ou um primeiro motor, senão o criador do mundo: causa de qualquer ser não divino enquanto tal. Esta perspectiva, Já anunciada no livro da SABEDORIA51, onde não se remonta da beleza do mundo à Beleza em si, senão ao Autor da beleza, obriga a repensar e a recuperar, a partir de suas mesmas bases, a ontologia antiga: não terá mais como fundamento último um "ser necessário" (a "moîra" ou "anankê" da mitologia grega), senão uma pessoa livre e amante; e será necessário tratar de compreender os seres finitos não tanto na sua necessidade quanto na gratuidade de sua existência que, propiamente enquanto tal está carregada de um sentido profundo.

2.1 A TRANSFORMAÇAO DA ONTOLOGIA ARISTOTÉLICA: A COMPOSIÇAO REAL DE SER E DE ESSÊNCIA

2.1.1 Quando, no século XIII, a metafísica de Aristóteles é introduzida em Ocidente, ela chega já interpretada e transformada pelos comentadores árabes e hebreus, os quais também creiam na criação do mundo. Assim, Alfarabi52 (século X) e Avicena53 (século XI) tinham já distinguido entre o possível (a essência) e o real (o existente), pensando que a existência nos

50 Para amplar esta afirmação sobre a criação como aporte da revelação judeu-cristã, consultar meu curso de HISTORIA DE LA FILOSOFÍA MEDIEVAL, introducción, no. 6: « El potêncial filosófico del cristianismo » pg.10.51

? Cf. SABEDORIA, 13, 1-5: “São insensatos por natureza todos os homens que ignoram a Deus e que, pelos bens visíveis, não chegaram a conhecer Aquele que é, nem, pela consideração das obras, reconheceram o Artífice. Tomaram por deuses, governadores do mundo, o fogo, o vento, o ar fugaz, o ciclo dos astros, a água impetuosa, os luzeiros do céu. Se, encantados por sua beleza, tomaram estas criaturas por deuses, reconheçam quanto seu Senhor está acima delas, pois foi o Autor da beleza quem as criou. Se ficaram maravilhados com seu poder e sua atividade, concluam daí quão mais poderoso será Aquele que as formou. Porquanto, partindo da grandeza e da beleza das criaturas, se deve chegar a contemplar, por analogia, Aquele que lhes deu origem”.

52 Cf. Fraile, G,. HISTORIA DE LA FILOSOFÍA, Tomo II, olhar Alfarabi (870-950), pg.594-602: « Natural de Farab (Turquestán persa). Estudou em Bagdad com o médico cristão Matta ibn Eumus, e foi co-discípulo do tradutor Abu Bisr Matta, também cristão. Viveu em Alepo e Damasco na corte do emir Saef al-Dawlat. Sua cultura abrange enciclopedicamente todo o saber de seu tempo: filosofia, matemáticas, medecina, música, etc. Seus contemporâneos o chamaram o segundo mestre (o primeiro tem sido Aristóteles, o terceiro foi Avicena). Foi profundamente religioso e esteve afiliado ao sufismo.

Alfarabi indica vários princípios sobre os quais pode-se estabelecer uma demonstraçaõ válida da existência de Deus. Mas adota o procedimento neoplatónico, partindo do conceito do Uno. Deus é o ‘Ser primeiro, causa de todos os seres, exento de toda imperfeição, eterno, subsistente por si mesmo e não por nenhuma causa estrana’[...]. Alfarabi sublinha vigorosamente a transcendência de Deus e sua absoluta distinção das criaturas. O ser de Deus é própio seu e distinto de todos os demais seres. Deus não tem contrário. Mais que essência Ele é uma superessência. Nele se identificam a essência e a existência [...]. Alfarabi introduz um conceito que recolherá Avicena e que tenderá amplas resonâncias em toda a filosofia oriental e ocidental. Buscando um critério para estabelecer a distinção entre Deus e os seres criados, fixa-se sobre tudo na contraposiçaõ de seus caráteres, ser incausado e seres causados, ser necessário e seres contingentes. O que distingue essencialmente uns de outros é precisamente o modo como corresponde a suas essências o ato da existência. Ser necessário é aquele no qual sua existência atual se identifica necesariamente, no conceito e na realidade, com sua essência, de sorte que é impossível concebê-las enquanto distintas e separadas. É um ser existente, no qual sua essência e seu ato de existir são uma mesma realidade. Deus existe necesariamente. Não pode não ter existência nem tampouco a pode perder.

32

Page 33: Cópia de metaficisa2

seres criados não é uma conseqüência necessária da essência, senão mais bem da criação divina. Assim, as coisas existem não em virtude de sua "ousía", senão por seu ser-posto pela vontade divina e, portanto, não existe, naquilo que concerne ao ser criado, um passo sucessivo ou gradual entre a potência e o ser-em-ato, senão mais bem um salto da pura possibilidade à existência, salto54 do nao-ser ao ser. A essência ou o possível não é, portanto, comparável com a "matéria prima" aristotélica que, a continuação de um processo natural, é pouco a pouco "atualizada"; não é um poder ser real (uma potência "subjetiva" = "que existe realmente como substrato do devir"), senão uma pura possibilidade "objetiva" ("que se concebe só como objeto de um pensamento"), algo não real, mas que pode também existir. Por conseguinte, a existência permanece exterior (o extrínseca) à essência: ela é "acidental" àquela. E é em tais terminos, que ditos comentadores expressam a contingência dos seres criados como um ser por acidente, mas

Pelo contrário, não acontece igual com todos os demais seres. São seres contingentes, que existem depois de não ter existido. Suas essências pertenceram primeiramente à categoria de potências ou possíveis e, depois, num momento dado, receberam o ato de existir. Portanto, a existência é neles um acidente que sobrevem a sua essência possível ou potencial (Cf. JOYAS DE LA SABIDURÍA, FUSÚS, § 1-3, tradução de Mlle A.M. Goichon, La distinction de l'essence et de l'existence d'après Ibn Sina, Paris 1937, p.39.133-134.).

[...] Alfarabi não apresenta sua doutrina como um descobrimento novo, senão, com toda naturalidade, ao princípio de suas JOYAS DE LA SABIDURÍA, como uma conseqüência clara da distinção entre o ser necessário e incausado (Deus) e o ser causado e contingente (criatura). Só Deus, ato puro, existe necesariamente. Mas todos os demais seres, misturados de ato-potência, não existem necesariamente, senão que chegam à existência atual recebendo-la de uma causa extrínseca e anterior a eles.

Não se trata, pois, de uma distinção puramente conceitual, a qual é evidente. No conceito de Deus não podemos separar sua essência de sua existência. Mas em todas as demais coisas podemos conceber sua essência, sem que por isso possamos afirmar sua existência. Trata-se, também, de uma distinção com valor ontológico, que diferencia a Deus, -- ser necessário, cuja essência é sempre atual e existe necesariamente--, dos seres contingentes, os quais agora são, mas antes não existiram e, agora, são, mas que podem perder a existência atual e para deixar de ser. Por tanto, em Deus a existência é essencial, enquanto que em todos os demais seres é um acidente que lhes sobrevem, que recebem de uma causa extrínseca que os faz passar da potência ao ato, que têm e que podem perder ou deixar de ter; portanto, nos seres contingentes, quer dizer, em todos exceto Deus, sua essência e sua existência são duas realidades completamente distintas, tanto no conceito como na realidade ».53

? Cf. "O sistema filosófico de Avicena" no meu curso de HISTORIA DE LA FILOSOFÍA MEDIEVAL, pg.42: « ... O ponto de partida da metafísica de Avicena é a divisão da realidade em « seres necessários por si mesmos » e em « seres necessários por força de sua causa ». « Dízimos, então, que o que faz parte do ser pode ser dividido pelo intelecto em dois grupos. Do primeiro grupo fazem parte as coisas que, consideradas em si mesmas, possuem um ser que não é necessário, nem sequer impossível, porque de outra maneira não pertenceria al ser. Se trata, pois, do « ser possível ». Ao outro grupo pertencem as que, consideradas em si mesmas, acontece que têm um ser necessário. Diremos, por tanto, que o que é necessário por si mesmo nã tem causa (NECESSE ESSE PER SE NON HABET CAUSAM), e que o que é possível por si mesmo tem causa; e, além disso, que o que é necessério por si é a razão da necessidade de todas as outras coisas » (Avicena, KITÃB AL-SHIFÃ, I, 7).

Aqui pode-se notar a aparição de uma distinção fundamental que os filósofos anteriores tinham sempre ignorado, a distinçaõ entre essência e existência. Avicena dá a essa distinçaõ a máxima importãncia porque é a que fixa a linha de demarcação entre Deus e as criaturas, entre o ser necessário e os seres possíveis. « Todo o que é, exceto o ente que identifica-se com seu própio ser, adquire o ser por outro e, por isso, não se identifica com o ser » (Avicena, KITÃB AL-SHIFÃ, III, 3). « Todo o que tem uma quiddidade (essência) é causado; e todas as outras coisas, exceto o ser necessário por si, são quiddidades que têm o ser em potência, o qual lhes sobrevem desde fora; pelo contrário, o ser primeiro não tem quiddidade (essência) » (Avicena, KITÃB AL-SHIFÃ, VIII, 4); também pode-se consultar proveitosamente a Fraile, G., HISTORIA DE LA FILOSOFÍA, Tomo II, sobre Avicena (980-1037), pg.602-616.54

? Esse salto do qual fala-se é precisamente o que se chama a criação, quer dizer, o passo do não-ser ao ser, é exatamente ol ponto revelado no primeiro capítulo do libro del GÉNESE. Olhar a nota 1.1 da Biblia de Jerusalém; o autor sagrado, para traduzir a ação criadora de Deus que chama do não-ser à existência todos os seres do mundo incluindo ao mesmo homem, usa do verbo ‘bara’: « O relato (1,1-2,4a) se atribui à tradição ou "documento" sacerdotal (P). Mais sistemático que o seguinte yahvista (2,4b-25) expõe uma classificação lógica dos seres criados, a tenor de um plano enquadrado sobre o modelo temporal de uma semana que culmina no reposo

33

Page 34: Cópia de metaficisa2

o privam, pelo mesmo fato de sua verdadeira substancialidade (cf. supra Aristóteles, no. 3.2: a e b).

Por isso, o comentador hebreu Avicebron55 (século XI), que será seguido por Sao Bom-aventura e outros, têm apresentado uma solução distinta: os seres criados são contingentes, não necessários, enquanto sua substância é composta de forma e matéria. Em quanto tal, sem que o ser lhe seja acidental, esta substância pode "descompor-se", ou perecer. Esta solução, muito elegante, não exclui, porém, que a matéria prima seja eterna, obrigando admitir uma composição de forma e de matéria, também, nos seres espirituais criados (nos anjos; uma espécie de "maté-ria espiritual". Além desta dificuldade, a análise ontológica que esta solução propõe é incompleta, porque se o composto como tal não existe necessariamente, então não é simplesmente enquanto tal ser; seu ser é algo distinto daquilo que ele é. Esta distinção será tematizada por Santo Tomás de Aquino56.

sabático. À ordem de Deus, os seres recebem existência, se fazem realidad, por ordem crescente de dignidade que culmina com o homem, imagem de Deus e rei da criação. A chave do género literário aparece expressada ao final do relato: gerações e orígens (génese, história primeira) e os céus e da terra, enquanto a sua criação. [...] «  Os céus e a terra » são o universo organizado, o resultado da criação. Essa criação expressa-se com o verbo ‘bara’ reservado só para expressar a açaõ criadora de Deus, diferente da ação produtora do homem. Não deve-se introducir, aquí, a noção metafísica de criação ex nihilo, que será formulada mais tarde, não antes de 2 M 7 28:

“Conjuro-te, filho, contempla o céu e a terra e observa tudo que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, quer dizer, Deus os criou do nada, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma”.

Mas o texto afirma que tem havido um começo do mundo: a criação não é um mito atemporal, ela integra-se na história, da qual ela é o começo absoluto ». 55

? Para ampliar o ponto de vista de Avicebron acerca de sua teoria do hilemorfismo universal olhar meu curso de HISTORIA DE LA FILOSOFÍA MEDIEVAL, pg.46: « ...AVICEBRÓN nasceu em Málaga, na Espanha, ao redor do ano 1020 e morreu em Valencia ao redor do ano 1058. Sua obra principal A Fonte da vida é uma obra que o tornou famoso também no ocidente latino, onde foi conhecido como um filósofo árabe cristão. Sua obra foi traduzida em latím com o título Fons vitae. Nessa obra ele apresenta a famosa teoria do HILEMORFISMO UNIVERSAL, segundo a qual todas as realidades criadas são compostas de materia e de forma. "O caráter de sua obra é netamente neoplatónico e a tese essencial que o fez celebre entre os escolásticos ocidentais, é a da universalidade de la materia. Fora de Deus, tudo o que existe compõe-se de materia e de forma. Tal é a doutrina que permanecerá vinculada ao seu nome durante toda a idade media [...]. Sem dúvida, aquí, a materia não significa necessariamente corpo, senão simplesmente, por oposição ao ato. Neste sentido tudo o que é inferior a Deus não saberia ser atualidade pura; mistura-se, então, sempre com o ser finito uma certa dose de potencialidade, que é precisamente sua materia, e que vai degradando-se desde a materia espiritual das Inteligencias e da alma humana até a materia bruta dos corpos.

É precisamente a tese que sosterão os filósofos da escola franciscana e que combaterá Santo Tomás. Acrescentamos que, para evitar o panteísmo, Ibn Gabirol intercala, entre el universo e Deus, a Vontade, causa primeira do ser e do movimento das coisas. É dela que surgem sucessivamente a materia e a forma universais, o Intelecto universal, a Alma universal e todas as outras hipóstases. O universo de Ibn Gabirol é, em fim de conta, um universo neoplatónico que tivesse sido escolhido por Deus" (Gilson, E., LA PHILOSOPHIE AU MOEEN AGE, t.I, --De Scot Erigène a S. Bonaventure--, ed. Payot, Paris 1922, pg. 111-112)»; comsultar também Fraile, G., HISTORIA DE LA FILOSOFÍA, Tomo II, pg.558-561.56 Para ampliar a informação sobre o problema da distinção real entre essência e existência, sobre a história do problema e a formulação da doutrina da distinção pode-se consultar os autores seguintes:

- Roland-Gosselin, M-d., LE "DE ENTE ET ESSENTIA" de Saint Thomas D'Aquin, Revue des sciences philosophiques et thesologiques, Le Saulchoir, Kain (Belgique) 1926, especialmente Estudos: (II- La distinción real entre la essência e la existência), pg.137-205;- Gilson, E., LE THOMISME, introduction a la philosophie de saint Thomas D'Aquin, Edit. Librairie Philosophique J. Vrin, Paris 1965, especialmente el capítulo IV (La reforma tomista: II uma nueva ontología), pg.169-189;- Mondin, B., IL SISTEMA FILOSOFICO DI TOMMASO D'AQUINO, Per uma lettura attuale della filosofia tomista, Edit. Massimo, Milano 1992, especialmente el capítulo III (El problema del ser: no.6 "Los elementos

34

Page 35: Cópia de metaficisa2

2.1.2 A distinção real entre a essência e seu ser significa que a substância (ousía), ainda que perfeitamente constituída (composta de matéria e de forma, perfeitamente "pensável" segundo sua necessidade intrínseca), não é (não existe) pelo fato mesmo; ela pode (ou poderia) não existir, ainda quando existe. Em outros términos, é necessário distinguir, superando Aristóteles, o ato substancial (forma=essência) que faz que esteja esta substância enquanto tal, do ato existencial (o esse) que a faz ser (ou existir). Um ser (substantivo, ou um "existente") seria composto daquilo que é (sua essência, composta por sua vez de matéria e de forma) e do seu mesmo ser (verbo: esse): o fato de que é (existe). Agora, não há aqui só dois aspectos, bastante evidentes, que apresenta qualquer ser: não se refere só ao fato que possa perguntar-se sobre este ser (e de qualquer ser) se ele existe ("an sit") e que é ("quid sit"). A teoria da distinção real afirma, pelo contrário, que se trata aqui de dois co-princípios ontológicos distintos, dos quais

comstitutivos del ser: el ato deser e la essência"), pg.88-98;- Alvira, T.- Clavell, L.- Melendo, T., METAFÍSICA, Libros de iniciación filosófica, Edit. EUMSA, Pamplona 1989, especialmente el capítulo VI (El ser, ato último de los entes), pg.109-119;- Grenet, P-B., ONTOLOGÍA, curso de filosofía tomista, Edit. Herder, Barcelona 1965, especialmente Ia Parte (seccion 1a) cap.III (Estrutura de los existentes finitos), pg.67-89;- Gardeil, H-D., INITIATION A LA PHILOSOPHIE DE SAINT THOMAS D'AQUIN, Tomo IV- Mestaphesique, Edit. Cerf, Paris 1966, especialmente el capítulo VI (La essência e la existência) del cual se puede destacar las páginas seguintes:

« A análise que acabamos de realizar sobre o ser mediante a distinçaõ ato-potência conduz muito naturalmente a uma investigação mais profunda e mais precisa sobre sua estrutura segundo as noções de essência e de existência. Investigação que nos levará a afirmar que, no ser criado, essência e existência são uns princí pios realmente distintos, o que é, segundo o testemunho de Cayetano: "maximum fundamentum doutrinae Sancti Thomae" (Cf. Comentário sobre os Segundos analíticos, c.6).

1. O problema da distinção real.

A distinção no ser de um aspecto essência e de um aspecto existência é umo destes dados imediatos que praticamente é reconhecido por todos. O ser nos aparece como "aquilo que é", quer dizer, como uma certa coisa, uma "essência", que tem a propriedade admirável de ser ou de existir. Se trata-se de eliminar totalmente pelo pensamento umo destes dois aspectos, então, a noçaõ mesma de ser suma-se.

Admitido isso, pode-se buscar logo precisar o que representa exatamente esta relação essência-existência e que lugar ou que função desempenha na estrutura mesma do ser cada um dos termos implicados. Duas posições características podem ser adotadas na solução do problema:

- ou bem, considera-se de entrada o ser como um bloco indiviso do qual a essência e a existência defi nem somente dois aspectos subjetivos. Se afirmará em este caso que entre a essência e a existência não há senão uma distinção de razão, quer dizer que não tem mais realidade, ainda se ela é objetivamente fundada, do que no espírito que a concebe.

- ou bem, se fará da essência e da existência uns princípios ontológicos distintos cuja composiçaõ desse conta da estrutura metafísica profunda do ser. Se afirma, então, que há entre essência e existência uma distinção real, precisando bem, como o veremos, que não trata-se de uma distinçaõ de coisas previamente existentes - o que seria sem sentido - senao de princípios interdependentes.

Desde o ponto de vista filosófico, este problema se coloca pelo fato da multiplicação formal e da limitação dos seres criados e, subsidiariamente, pela questão da relação destes seres com o ser não criado, único e infinito (Deus). Eis aqui, com efeito, seres limitados e múltiplos. De onde lhes vem que sejam assi limmitados e múltiplos? Considerando a multiplicidade dos individuos materiais, temos sido levados a dizer que isso deve-se ao fato de que tais seres são compostos de matéria e de forma: a materia recebe a forma que ela limita e que ela multiplica. Mas, se nos situamos diante uma multilicidade de formas e, especialmente, de formas puras, o que são para santo Tomás as substâncias angelicais, a solução evocada, para o caso dos seres corpóreos, não tem já valor: não há mais, aqui, matéria para limitar e multiplicar. É assim como estamos levados a preguntarmos se, no seio das formas puras mesmas, não existisse uma composição, de outra ordem do que aquela da matéria e da forma, que pudesse dar conta de sua limitação e de sua multiplicação. De outra parte, se considera-se aos seres limmitados na sua referência com o ser não criado e ilimitado, podemos nos preguntar que evitará que toda esta multiplicidade de seres não venha a se perder na unidade panteistica do único ser primeiro? Com toda evidência deve haver entre os

35

Page 36: Cópia de metaficisa2

um não é o outro e que, além disso, propriamente falando, não são, senão que, graças a eles, todo ser finito é de maneira similar àquela teoria pela qual todo ser-em-devir é (ou existe) pelos dois princípios ontológicos de potência e de ato.

Qual é o fundamento desta teoria, bastante sutil, para não dizer complexa, já que dita teoria da distinção não parece resultar, como nas distinções aristotélicas (de substância-acidente, de matéria-forma, de potência-ato) da experiência mesma enquanto se trata de fazer-la pensável?

Para apoiar ou fundamentar esta teoria se apresentam normalmente três argumentos57 que se colocam de verdade, a um nível propriamente metafísico, onde não se interrogam mais

seres limitados e o ser infinito na sua simplicidade uma diferença de estrutura que parece exigir nos primeiros uma complexidade interna.

2. História do problema.

Aristóteles, que não enfocou claramente o problema da multiplicidade formal nem aquela da relação dos seres limitados com o ato puro, não pudo tratar explicitamente da distinção que nos ocupa. Mas nada na sua filosofia opõe-se a dita distinção, ao contrário pode-se afirmar ainda que por sua dupla orientaçaõ até o concreto do individuo existente e até os valores inteligíveis da essência, sua filosofia ia logicamente neste sentido. É com o neo-platonismo que começa-se realmente a tocar o tema. Boecio, num texto do DE HEBDOMADIBUS que mais adelante se mencionará a favor da distinção real, distingue já no ser o esse e o quod est; mas é evidente de que elel não tem dito nada acerca da realidade desta distinção. Há que esperar até a filosofia árabe para encontrar-a explicitamente reconhecida. Avicena irá ainda até fazer da existência uma espécie de acidente da essência, o que santo Tomás, depois de Averroes, lhe censurará vivamente. É incontestavelmente ao Doutor angélico que pertence a honra de ter afinado esta doutrina e de lhe ter sistematicamente desenvolvido as comsequências. Mas buscaria-se em vano nos seus escritos uma justificação explicita e formal da realidade de dita distinção. A controversia sobre o tema não começou ainda. Porém, esta tese encontra-se implicada em todas suas exposições de maneira tal que tudo o conjunto se derrumba se chegasse a interpretar os textos em um outro sentido. A polémica não tomará consistência senao depois de sua morte, quando Egidio de Roma, tendo afirmado não sem enredos a realidade da distinção, atraiu-se as críticas de Henri de Gand. Posteriormente, Duns Escoto e Suárez, negando a realidade da distinção, provocarão um sem fim de discusões. Para toda a história do problema pode-se referir á Introducção da edición feita pelo Padre Roland-Gosselin do DE ENTE ET ESSENTIA DE SANTO TOMÁS ».57

? Para apreciar o valor dos três argumentos que evocarão-se, é muito conveniente comoçar pelas probas apresentadas por o mesmo santo Tomás na sua obra. Faço minha apresentação que faz delas o Padre Gardeil, H-d., na sua obra já citada: INITIATION A LA PHILOSOPHIE DE SAINT THOMAS D'AQUIN, pg.119-120: « Da obra de S. Tomás pode-se extrair duas provas principais da realidade desta distinção: a primeira funda-se na distinção objetiva destes dois princípios, a segunda repousa sobre a constatação de que, em todo ser onde a existência encontra-se recebida, a essência e a existência são realmente distintas.

a.Primeira prova: Tudo o que não é contido na conceição de que forma-se alguém da essência de uma coisa, lhe é sobre acrescentado desde fora; pois bem, fora do caso do ser cuja essência seria existir, quer dizer Deus, a existência de uma coisa não é contida na conceição de que se forma um de sua essência, ela lhe é então sobre acrescentada:

« Tudo o que não pertence ao conteúdo intelectual da essência ou da quiddidade lhe sobrevem desde fora e entra em composição com ela, dado que nenhuma essência pode-se captar pela inteligência sem suas partes. Pois bem, toda essência ou quiddidade pode-se compreender sem que tenhamos conhecimento de sua existência: eu posso, com efeito, compreender o que é um homem ou um fénix e ignorar, porém, se existem efetivamente na reali-dade. É evidente pois, de que a existência é algo distinto da essência ou da quiddidade, exceto o caso de uma realidade cuja quiddidade seria sua existência mesma, e essa realidade não pode ser senao única e primeira... Daí sigue-se que em toda realidade outra que si mesma, outra é sua existência e otro sua quiddidade, ou sua natureza, ou sua forma » (Cf. DE ENTE ET ESSENTIA, cap.5).

b.Segunda prova: Na maioria dos casos, S. Tomás desenvolve seu pensamento pondo em paralelo o caso das coisas criadas, nas quais há uma real distinção entre a essência e a existência, e naquele caso do ser primeiro cuja essência é idéntica a seu ser, o que supõe evidentemente demonstrada a existência de Deus. Esse argumento, cujo

36

Page 37: Cópia de metaficisa2

diretamente os seres dados na experiência, senão o ser mesmo destes seres: de que modo e sub quais condições estes podem ser (ou existir)?

1. Um primeiro argumento (de derivação originariamente teológica, como já tenhamos notado) considera que estes seres existem de maneira contingente, quer dizer que eles poderiam não existir, ainda quando existem (de fato). Sua necessidade de ser (que os submete à lei de não contradição) não lhes provêm pela necessidade de sua ousía, nem deriva dela (porque a ousía seria igualmente pensável ainda se estes seres não existissem). Sua necessidade deve ser atribuída a uma causa (o criador) que lhes tem comunicado seu ser e, portanto, se há de conceber-lo como algo distinto da essência mesma, plenamente constituída.

2. Além disso, a maior parte destas “ousiai” encontram-se multiplicadas em sua espécie (há, por exemplo, diversos seres humanos, diversos gatos, etc., dos quais cada um realiza a ousía, a essência do homem, ou do gato, etc.). Agora, tem-se dito já que esta multiplicidade era possível graças à matéria, que permite a multiplicação da mesma forma. Porém, ainda tendo a mesma forma dos outros, cada individuo permanece distinto: é ele que existe, e não outro. Portanto, não é a forma a que dá o ser, senão que o ser deve se conceber como algo sobre acrescentado à composição de matéria e forma.

3. O terceiro argumento, que se encontra mais freqüentemente nos manuais, é, desde o ponto de vista filosófico, o mais difícil. Não somente a existência singular não alcança esgotar jamais tudo o que diz (e é) sua ousía; o ser é finito, limitado na sua essência; senão que esta ousía não esgota o fato de ser. Não somente ela está no médio dos outros seres, "entre os outros", senão que também, em tanto e enquanto é, ela tem em comum com todos os outros existentes sua afirmabilidade, sua necessidade de ser, seu ser mesmo; ela participa do ser, do existir, ao mesmo título que as outras ousiai. "Ser" é, portanto, algo (ou melhor, um estado das coisas) que não coincide com o ser de tal ousía, nem tampouco se reduz a este ser desta ousía: "ser" não é limitado, nem determinado; isso é algo infinito. Assim, como no primeiro argumento, tivemos que concluir que a ousía não é e que não pode ser o fundamento de seu ser (quer dizer o fato de que essa exista), aqui se tem de concluir que o ser desta ousía não pode ser o fundamento de seu ser-deste-modo, da existência de tal ser, de sua limitação a esta ousía. Portanto, é necessário pensar que a ousía, isto é, a essência, é algo realmente distinto de seu ser.

2.1.3 De qual modo deve-se conceber ou que sentido deve-se dar, de acordo a esta teoria, a essência e o ser (a existência), sua distinção real e sua composição?

fundo é sempre o mismo, pode revestir muitas formas. Eis aqui como se encontra na SUMA TEOLÓGICA, Ia Pars, q. 3, a. 4:

Tudo o que está em um ser fora de sua essência deve ser causado seja pelos princípios de dita essência (...) seja por algo exterior: « Quidquid est in aliquo quod est praeter essentiam ejus, opportet esse causatum, vel a principiis essentiae (...) vel ab aliquo exteriori... ».Pois bem, é impossível que a existência seja causada somente a partir dos princípios essenciais de uma coisa, posto que nenhuma coisa, se ela tem um ser causado, é capaz de por si só ser causada por dito ser: «  Impossibile est autem quod esse sit causatum tantum ex principiis essentialibus rei, quia nulla res sufficit quod sit sibi causa essendi si habeat esse causatum ».É necessário então que o pelo qual a existência é algo distinto da essência tenha seu ser causado por outro: « Oportet ergo quod illud cujus est aliud ab essentia sua habeat esse causatum ab alio ».Daí sigue-se, por sua vez, que em Deus, cujo ser é incausado, há identidade entre a essência e a existência, porquanto que nas criaturas, cujo ser é causado, uma (aliud) é a essência e outra (aliud) a existência.

Pode-se completar a prova observando que o ser cuja essência é idéntica à existência, sendo único, todos os demais seres implicam a real distinção e que o ser que está no primeiro caso é causa da existência de todos os outros ».

37

Page 38: Cópia de metaficisa2

A essência corresponde ao que em lógica, desde Aristóteles, se chama o "ti", ou "ti esti", ou "to ti einai", expressões que os escolásticos transcreveram da maneira seguinte: quid (de onde derivaram "quiddidad"), quod quid est, quod quid erat esse; Aristóteles dizia igualmente "logos": ratio rei. Em filosofia da natureza (cosmologia) chama-se a essência "natureza" e para designar seu elemento formal ou determinante se usa o termo "forma". Há tantas essências quantas naturezas, tantas naturezas quantas formas. Pode-se definir a essência? Pode-se afirmar que em si a essência é: "id quo res est id quod est, et non est aliud", e que, na sua relação à existência, é: "id secundum quod alicui competit esse".

A existência é a realidade da qual todos temos experiência na mesma presença de nosso espírito ao mundo, aos demais espíritos e a nos mesmos. Es impossível definir-la. Santo Tomás insiste no fato que o conceito não apreende nada mais do que a essência; somente o juízo (existencial) alcança a existência: « Apprehensio quidditatis simplicis respicit quidditatem rei »58. « Prima quidem operatio respicit ipsam naturam rei ..., secunda operatio respicit ipsum esse rei »59. Por outra parte, Santo Tomás precisa que normalmente (isto é, excetuando certas experiências místicas), no estado atual da união da alma com o corpo, só aprehendemos a existência através da sensação. O mesmo sustém Gabriel Marcel, que parece coincidir assim com o mesmo Santo Tomás60. Porém, é possível fazer uma descrição da existência; afirmamos, portanto, que o valor, o interesse e a consistência das coisas lhes provêm pela existência); ela é o ato dos atos, a perfeição de todas as perfeições: « Hoc quod dico esse est inter omnia perfectissimum... Hoc quod dico esse est actualitas omnium actuum, et propter hoc est perfectio omnium perfectionum »61. Pode-se lembrar as seguintes fórmulas: para opor-la à essência pode-se dizer que a existência é a resposta à pergunta "An sit?" E não à pergunta "Quid sit?"; e recorrendo à etimologia pode-se dizer que é "id quo aliquid ponitur extra mentem, extra causas, et extra nihilum" (ainda que estes "extras" podem induzir-nos a metáforas muito perigosas).

A distinção real entre essência e existência só pode ser compreendida no seu verdadeiro sentido de acordo a varias condições:

a. Não perder de vista o problema. Como é possível que vários seres existam, isto é, como o ser pode ser uno aqui e outro ali? É indispensável a interpretação do nao-ser real. Os autores das objeções devem resolver de outra maneira este problema: qual solução propõe?

b. Não se servir da imaginação. Não há de imaginar uma massa de existência e uma série de recipientes vazios, nos quais a existência chega a verter-se (derramar-se). O Ato Puro de existir (Ser primeiro: Deus = Ipsum Esse subsistens) não se pode fragmentar, diminui-se. A existência finita só é real quando unida a seu co-principio essencial.

c. Primeira conseqüência: não há que imaginar a essência e a existência como separáveis. O erro de Egidio de Roma consistiu precisamente em confundir a distinção real com a separabilidade. Há de se lembrar que entre A e B há uma distinção se A não é B, e há uma separação se A está sem B. E é evidente que a teoria da distinção real entre essência e existência implica que a essência não seja a existência, mas exige, além disso, que a essência não seja (não

58 IN SENT., I, 19, 5, 1 ad 7.59

? IN BOETII DE TRINITATE, 5, 3.60

? Cf. SUMMA THEOLOGICA, I, q. 84, 7c.61

? DE POTENTIA, 7, 2 ad 9um.

38

Page 39: Cópia de metaficisa2

exista), não seja algo, que não seja jamais sem a existência (quando a essência é pensada, por Deus ou por nos, anteriormente a sua realização, o que existe não é a essência, senão o pensamento que temos dela e a potência ativa e passiva, que a pode realizar ou na qual pode-se converter).

d. Segunda conseqüência: não há que imaginar a inseparabilidade da essência e da existência tomando por modelo a inseparabilidade de duas coisas que são inseparáveis. Assim, por exemplo, no há esposo sem esposa. Se um dos dois deixa de existir, o outro deixa de ser esposo ou esposa, para se converter em viúvo ou viúva. Imaginar uma inseparabilidade desta classe para a distinção real entre essência e existência seria uma petição de principio, quando se trata mais bem dos co-princípios do ser que existe. O exemplo citado vale quando se trata de "coisas que existem", mas não vale quando se trata dos co-princípios do ser. É facilmente inteligível que a capacidade de existir seja constituída como existente por uma realidade distinta de si mesma, pois não sendo está realmente distinta da outra, senão porquanto recebida nela, a constitui como termino real da distinção, não antes de ser recebida, senão precisamente enquanto recebida.

e. É necessário, além disso, compreender bem a doutrina do ato e da potência, da qual a presente teoria não é mais do que uma aplicação. Sobre tudo no há de esquecer que, sub o ato, a potência permanece potência (não dizemos que permaneça "em potência", senão que segue sendo sempre uma potência real). O vaso não, por ser cheio, deixa de ser vazio. A capacidade não deixa de ser capacidade pelo fato de ser cheia. O fato de estar razoando não impede ao um ser de ser razoável. Portanto, o fato de existir não impede que a criatura seja contingente, quer dizer, possibile esse et non esse, segundo a expressão de Avicena. Suárez, sem duvida, esquecia isso quando atacava a afirmação tomista de que, no composto, a essência é tão atual como a existência... A essência é atual, diríamos, no sentido de que não está já somente em potência de existir; mas segue sendo uma verdadeira essência, que de por si não é mais que potência de existir. Por isso a distinção real entre a essência e o ser (a existência = esse) não é comparável de ninhuma maneira:

- nem com a que existe entre a matéria e a forma, não só porque a essência mesma está composta de matéria (pensada) e de forma, senão, sobre tudo, porque, por isso mesmo, a essência é uma potência completamente determinada como o era a "forma" aristotélica.

- nem com a distinção entre substância e acidente, porque o ser, precisamente, não é "acidental" a este ser; pelo contrário, constitui e fundamenta a necessidade substancial. Por outra parte, a essência não é "hiperdeterminada" pelo ser, como o é a substância por seus acidentes.

- nem tampouco com a distinção entre o possível e o real, porque estes dois princípios distinguem-se propriamente nos seres que em realidade existem. Por outra parte, a substância es possível, não em si mesma, senão com relação a um ser possível.

Porém, a essência e o ser (existência ou ato de ser = esse) são concebidos sobre o modelo da distinção entre a potência e o ato: essas não são duas realidades existentes, senão dos princípios do ser, pelos quais um ser é (existe realmente); são princípios ontológicos (do ser que é; e não um modo nosso de conceber o ser: isto é, como princípios lógicos), que não se identificam entre si (isto é, que eles são "realmente distintos"), porque são opostos e relativos um ao outro, como aquilo pelo qual este ser é este ser e aquele outro é aquele outro ser (portanto

39

Page 40: Cópia de metaficisa2

determinado, "limitado") e aquilo pelo qual esse é (absolutamente, a seu modo, e por tanto, virtualmente "infinito").

Estes dois princípios, porém, se encontram não só, de fato, sempre juntos, senão que nenhum de eles se concebe sem o outro, já que eles se concebem com relação ao outro: esta essência é aquela tem (não: é) seu ser, e este ser é o ser de sua essência (como um pai é pai por seu filho e o filho é filho por seu pai: relação inseparável que conserva distintos o pai e o filho, ainda quando os mantém unidos). Porém, no caso que nos interessa, não se trata de dois seres que são um pelo outro, senão trata-se de dois princípios, dos quais, pela relação inseparável entre si, este ser é. E como para o devir, também aqui é necessário fazer notar uma prioridade do ato com relação à potência: a essência é conhecível, e também pensável, só enquanto ela é, já que todo seu sentido é de ser. "Daquilo que é" não se pode jamais deduzir que isso é, porquanto que "ser" é significativo em si, e indica que existe necessariamente "um algo que é", quer dizer algo que é. Caracteriza-se com freqüência a essência como principio de limitação (limitação a não ser mais do que tal ser) e o ser (ou existência = esse) como principio de atualização.

Tudo o exposto anteriormente nos vai permitir, finalmente, pensar corretamente a composição real de essência e existência no ser finito; haverá de pensá-la, certamente, tomando por modelo a composição real de ato e potência; mas, porém, há de deixar bem claro que a composição de essência e existência é um caso absolutamente único de composição real. Assim, quando um ato e uma potência "ordinários", isto é, de ordem "essencial" se unem num composto, sua união realiza um tertium quid (por exemplo, alma + corpo = animal; brancura + substância = algo branco); pelo contrário, quando a existência está unida à essência, não resulta nenhum tertium quid (a essência não sofre nenhuma modificação, nem aumênto, pelo fato de começar a existir).

Finalmente, se perguntarmos sobre o valor desta teoria, há que responder, como para a análise do ser em devir, pelo ato e a potência (ver supra I parte: 3.6.f) que, também aqui, é para nos uma necessidade de distinguir, ao pensar o ser finito e contingente, estes dois princípios como ontologicamente diversos. Portanto, deve-se admitir que tal pensamento necessário tem, pois seu fundamento ontológico.

2.1.4 De tudo o dito aparece claramente a importância metafísica desta teoria: não somente ela permite pensar a contingência radical de todos os seres de nossa experiência (por uma espécie de “platonismo renovado” que relativiza este mundo), senão também essa contingência nos conduz a conceber de maneira mais adequada o fundamento último do saber; não é tanto a ousía, senão algo mais substancial, indizível, inconcebível adequadamente, do qual deriva a necessidade mesma da ousía e a possibilidade daquilo que ela é: o ser, o fato de ser, desta ousía. Este ser deve ser concebido como “per se” infinito, e como ato de ser. E este último aspecto ainda deve ser explicado.

2.2 O SER COMO ATO DE SER E A RELEITURA DE ARISTÓTELES

A distinção real entre a essência e seu ser implica uma nova maneira de conceber o ser mesmo; diz-se que este ser é visto, no tomismo, como ato de ser (actus essendi62), isto é, como

62 Cf. Mondin, B., Corso di Storia della Filosofia, Ed.. Massimo-Milano, 1989: « As doutrinas que fundamentam toda a metafísica de Tomás de Aquino são as seguintes: a perfeição máxima es o ser; a origem dos entes pelo ser acontece por criação; a criação é uma participação da perfeição de ser aos entes; a limitação da perfeição de ser nos entes deve-se a uma potência, quer dizer, à essência. Logo, nos entes há distinção real entre ser e essência; entre os seres singulares, entre os entes e o ser, há analogia, quer dizer, de semelhança, porque todos os seres têm um parentesco com a mesma perfeição (ser). Tratemos de ilustrar brevemente estas doutrinas da metafísica

40

Page 41: Cópia de metaficisa2

uma perfeição que “atualiza” as potencialidades, enquanto o ser não é um dado senão um “evento” que não pode expressar-se senão mediante um verbo (o verbo ser em latim, isto é, “esse”).

2.2.1 O ser como verbo e como “atualidade”. No juízo nos temos descoberto o ser, como fundamento do “é verdadeiro”, “é verdadeiramente assim” que o juízo afirma. Agora devemos, à luz de quanto temos descoberto, considerar mais de cerca o que acontece no juízo. Em primeiro lugar, o juízo se apresenta como uma objetivação. Por meio do conhecimento, o conhecido por mim “entra” de algum modo (que será clarificado mais detalhadamente em epistemologia e em antropologia filosófica) “em mim”; é “esta coisa conhecida por mim”, “é tal como eu a conheço”, “a idéia que eu tenho” (a “forma intencional” desta coisa, dizem os escolásticos, focaliza a coisa, mas ontologicamente se apresenta como um acidente de minha faculdade de conhecer). Agora, no juízo, eu elimino esta referência a mim: no somente eu conheço esta coisa assim, senão que esta coisa em si mesma é assim, independentemente do conhecimento que eu tenho de ela. Enunciando um juízo, fazendo uma afirmação, eu restituo à coisa, por dizer-lo assim, seu ser em si, que ela tinha “perdido” entrando em mim por meio do conhecimento. Em vista deste ser em si da coisa julgada, o juízo reivindica uma verdade absoluta e universal (necessária segundo sua maneira); é verdade não somente para mim, senão para todos, e não somente agora e nesta circunstância, senão para sempre (já que tem sido verdadeiro agora).

Agora, o ser-em-si da coisa mesma, que o juízo compreende e enuncia, está significado por um verbo (“ser”) que se conjuga segundo a situação da coisa mesma e ou segundo a percepção de quem conhece e que, freqüentemente, é substituído por outro verbo conjugado. Dizer “ser aquilo é” (cf. A definição aristotélica do juízo), não é só fazer uma constatação, fixar uma situação de fato; é referir-se a uma espécie de atividade própria da coisa afirmada, em virtude da qual ela é (melhor dito, ela faz-se ser) esta ou aquela. Em que consiste, portanto, esta “atividade de ser”?Numa primeira aproximação, o juízo se nos apresenta como uma síntese; ele expressa a unidade dos elementos diferentes ou dos aspectos que nos, conhecendo-los, distinguimos inevitavelmente: um “aquilo”, um dado sensível, caracterizado por um conceito inteligível, sua forma, e do qual se enuncia uma situação de fato, o predicado. O juízo afirma que estes elementos estão unidos na mesma coisa, e ele o expressa servindo-se do verbo “ser”. Portanto, ele não enuncia uma identidade quase matemática de diversos, senão uma unidade dinâmica, uma “concretização”, um “ter-unido-numa-totalidade-única” (um reunir para ter vinculado)

tomista.

a.A perfeição máxima é o ser: não a idéia de ser, senao o ato de ser . Essa é a grande e genial intuição de Tomás de Aquino, a intuição que lhe permite construir um novo sistema filosófico, distinto àquele de Platón e de Aristóteles; um sistema todo novo, porque as doutrinas que Tomás recebe de Platón e de Aristóteles, ele as mistura com a àgua de sua noção de ser. Para que esta afirmação não seja como gratuita, mencionamos brevemente alguns dos problemas maiores que Tomás está em capacidade de resolver com seu novo conceito de ser. Com este conceito, lhe foi possível precisar em que consiste a natureza de Deus: sua essência é constituida precisamente pelo ser, sendo o ser a máxima perfeição e, então, a que melhor pertence a Deus.

Aplicado às coisas, o novo conceito de ser explica sua origem, sua finitude, sua semelhança e seu agir (e devir): as coisas têm origem por participação da perfeição de ser; são finitas porque sua participação é limitada; são semelhantes porque são todas emparentadas com a mesma perfeição; são capazes de agir porque o agir não é outra coisa que a irradiação do ser que possuem. Com o novo conceito de ser, Tomás pode explicar as relaçoes entre substância e acidentes, entre alma e corpo: o acidente recebe o ser da substância, o corpo da alma. Tendo a alma seu ser próprio, sua imortalitade é facilmente garantida.

Com el conceito tomista de ser é, por fim, possível dar um fundamento objetivo à moral, enquanto cada agir tem como última meta a realização de um modo de ser....».

41

Page 42: Cópia de metaficisa2

efetuada pelo ser. O ser “faz ser” todo o que, em si mesmo, não tem de necessário (porque, normalmente, o predicado não está incluído analiticamente no sujeito: “esta arvore de maça” não diz necessariamente que ela “tem frutos”), e o faz, unindo o que o juízo necessariamente distingue. Disso deduz-se que ser significa muito mais do que ser dado, porque o dado é propriamente esta multiplicidade que o juízo distingue, isto é, a ousía: ele significa este ser-ativamente-um-todo-consigo-mesmo, que realiza ou “atualiza” esta ousía como “este ser concreto”.

Que isso não seja um puro jogo de palavras ou uma extrapolação ontológica induzida a partir da estrutura simpática das línguas indoeuropeas, tem sido provado ao longo de nossas reflexiones sobre composição de essência e de ser (existência). Neste caso, como naquele, o ser nos aparece como o ato que realiza a ousía, que, em si mesma, não é mais do que um simples poder ser; e já que a ousía mesma parece já conter tudo o que se pode dizer de positivo sobre este ser, toda sua “perfeição”, o ato de ser que realiza, faz ser esta perfeição e será, portanto, a perfeição da perfeição.

2.2.2 Esta filosofia é uma filosofia do ser (quer dizer, uma filosofia do ato de ser), e não uma filosofia da ousía, nem do existente (“ens = ente”) que se enuncia deste modo: uma filosofia que coloca suas perguntas, por assim dizer-lo, perpendicularmente às ciências. Estas investigam as “ousiai”, interrogando: “Que é isso?”, “Como é aquilo?”, “De acordo a quais leis isso sucede?”. Aqui, pelo contrário, pergunta-se não somente: “É aquilo?”, “De que maneira é aquilo?”, senão sobre tudo: “Que é ser?”, “De qual modo é possível ser?”, “Por que existe o ser mais bem que o nada?”. Esta última fórmula vem de Leibniz e Schelling, logo retomada por Heidegger; podemos citar também a afirmação de Ludwig Wittgenstein: “A esfera do místico não consiste tanto no modo como se configura ao mundo, senão no fato de que é” (cf. Tractatus 6. 44).

Portanto, se busca um fundamento do saber, mais profundo do que as ousiai, um fundamento que funde a realidade e a possibilidade mesma das ousiai e que, como tal, pertence ao âmbito do mistério, daquilo que é indizível, porque ele funda a possibilidade mesma de todo discurso. Mas, este fundamento não se busca somente (como em Sócrates e em Platão), esse fundamento já está sempre presente no fato do ser (ato de ser = “esse”) dos seres; neste milagre absoluto de que o que poderia também não ser, porém, existe com uma necessidade inerente a seu ser mesmo. É então o estupor frente ao mistério do ser, o “estupor originário”, que percebe o ser mesmo como algo maravilhosamente bom, precisamente, a perfeição de todas as perfeições: “E viu Deus que era bom” (Gn 1, 10. 12. 18. 21. 25. 31). Como o estupor do amor frente à maravilha de “que tu existas”, e a maravilha estética frente à realidade da obra de arte.

Esta filosofia será, portanto, uma filosofia otimista, que descobre no fundo daquilo que existe um sentido profundo; e, dito seja de passo, será uma filosofia dos conceitos63, porque o ser se apresenta como a concretização última. Mas, quiçá, esta filosofia não poderá ser senão a filosofia de um crente, porque talvez só o crente terá a coragem de questionar, ainda radicalmente, a ousía mesma e, provavelmente, só ele terá a percepção intelectiva suficientemente afinada para apreender o ato em toda sua originalidade (cf. Os estudos do Pe. Marechal sobre “o sentimento de presencia nos místicos”).

2.2.3 A reinterpretarão das categorias aristotélicas: substância, acidentes, ação e relação. A doutrina aristotélica da substância e dos acidentes é então profundamente reinterpretada64: já não é somente deduzida da estrutura do juízo, composta de um sujeito (invariável) e de

63 Cf. Forest, Aimes, La estrutura metafísica de lo concreto según s. Tomás de Aquino, Ed. Vrin, Paris; La realidad concreta e la dialéctica, Ed. Vrin, Paris.

42

Page 43: Cópia de metaficisa2

predicados (múltiplos e variáveis) que o determinam ulteriormente (por outra parte, desde o ponto de vista gramatical, sujeito e predicados podem ser invertidos); doutrina que não aparece mais, nem sequer, como um caso particular da composição do ser em devir (caso, portanto, muito particular, pelo fato de que aqui a potência, isto é, a substância seria absoluta, porquanto o ato, isto é, o acidente seria relativo à potência). Pelo contrário, ser substancial e ser acidental aparecem claramente como dois modos diferentes de ser, que se definem como “ato primeiro” e “ato segundo”.

O ser finito, com efeito, permanece ele mesmo, ainda sendo inevitavelmente sujeito à mudança: ele “é”, portanto, de maneira fundamental, estável, em si mesmo (“in se”), este (“é”) é seu ato “primeiro” ou substancial. O que pode se modificar, pelo contrário, por ex., o tamanho, a quantidade, etc., não é propriamente; o cumprido, ou a brancura, ou o grau de inteligência propriamente não existem; são mais bem, aquilo por meio do qual este ser é assim: atos, “perfeições” (algo positivo), que se encontram num ser já existente em si, “hiperdeterminado”, seu ser-aquilo, sua ousía. Como esta, o acidente é, portanto, por (e “nele” ato de ser desta ousía: é um ato “segundo”, isto é, um ato acessório e derivado; um “encontrar-se-em” = “esse in alio”). Sua maneira de ser é, para utilizar um barbarismo, um “ser-tido”. Substância e acidentes “são” de maneira analógica.

Esta maneira de ser própria dos acidentes resultará mais evidente ainda considerando duas categorias de acidentes que, tendo sido pouco analisadas por Aristóteles, ocuparão um posto privilegiado na ontologia dos filósofos cristãos: a ação e a relação.

Com referência à ação, pode-se considerá-la enquanto realiza algo em outro ser (“actio transiens”, por exemplo, fabricar uma estatua); subeste aspecto que não analisaremos aqui, a realidade da ação encontra-se naquilo que é feito por meio dela (“actio es in passio”). Mas pode-se considerar também a ação enquanto perfeição daquele que atua, como expressão

64 S. Tomás de Aquino (cf. In Metaphesica Libro II, lección 9, nº 891-892) não deduz a enumeração aristotélica dos 10 predicamentos, mas, oa mostrar sua exhautividade e sua necessidade da divisão, enuncia um princípio: existem tantas classes irredutíveis de ser quanto há maneiras irredutíveis de atribuir os predicados . Logo, se dedica em aplicar este princípio: um predicado pode-se referir a um sujeito de 3 maneiras distintas:

1ª maneira: quando um predicado é o que é o sujeito: por exemplo digo “Sócrates é animal”. O predicado significa a substância primeira, que é a substância particular à que se atribui todo.

2ª maneira: quando o predicado corresponde ao que é inerente ao sujeito:a) ou seja que o predicado é inerente por si e de maneira absoluta:

1) ou bem dependendo da materia = quantidade2) ou bem dependendo da forma = qualidade

b) ou seja um predicado inerente de maneira não absoluta, senao por relação a outro = relação.

3ª maneira: quando o predicado é tomado daquilo que está fora do sujeito e, isso, de dos maneiras:a) de uma primeira maneira, de modo que o predicado é tomado absolutamente fora do sujeito:

1) se não é medida do sujeito, atribuído por modo de habitus (possesão): por exemplo, Sócrates está calçado ou vestido.

2) se, pelo contrário, é medida do sujeito e, então, sendo a medida extrínseca, isto é, o lugar ou o tempo:a’) o predicado ou se refiere ao tempo = quandob’) o predicado ou se refiere ao lugar = ubi e situs

1’) quando não se considera a ordem das partes no lugar, então, tenemos o ubi2’) quando se considera esta ordem, tenemos o situs

b)de uma segunda maneira, quando o fundamento do predicado considerado se encontra sub certa relação no sujeito ao qual se atribui:

1) se é a título de princípio = ação, porque o princípio da aão está no sujeito.2) se é a título de termino = paixão, porque a paixão tem seu termino no sujeito receptivo.

43

Page 44: Cópia de metaficisa2

dinâmica, como manifestação de seu ato mesmo de ser (“operatio immanens”), já seja que esta atividade realize também algo fora do ser que age, já seja que ela permanece inteiramente limitada a este ser, como seu desenvolvimento orgânico ou espiritual, exercício de suas funções vitais, ou de suas faculdades intelectivas, etc. Com o dito, é evidente que ao menos os viventes e, sobre tudo, os seres humanos, têm sua própria perfeição, a partir daquilo do qual são capazes, precisamente neste agir ou atuar. Eles são aquilo que podem ou devem ser somente na ação (daí a importância da ética ou moral, norma do agir para o aperfeiçoamento da pessoa humana). Isso é verdadeiro sobre tudo para os atos espirituais (o conhecer, o querer...) do homem: ele recupera e realiza algo da infinitude do seu ato de ser. Portanto, aquilo que se chama acidente não é para nada “acidental”, estanho à substância: essa encontra no acidente sua mesma perfeição; é seu “ato último” (além do qual não existe nenhuma outra perfeição possível; não há mais do que a ação mesma que pode ser sempre mais aperfeiçoada). E, porém, esta perfeição não se identifica com a substância: o homem não é seu agir nem suas ações; essas são suas, “encontram-se nele”; ele as possui (por outra parte, de maneira variável). E é precisamente por esta não-identidade com seus acidentes que a substância finita manifesta-se limitada, imperfeita, não absoluta, em devir.

44

Page 45: Cópia de metaficisa2

Um discurso análogo pode-se fazer em referência à relação65: todo ser finito encontra-se com muitos outros seres --(numa relação de dependência: p. ex., filho-pai; ou influençando-os: obreiros-trabalho; ou conhecendo-se entre si, encontrando-se em proximidade, etc.)-- e ele inseri-se assim concretamente na solidariedade global (a “ordem”) dos seres. Agora, existem relações (de dependência) que constituem a substância mesma de um ser (por exemplo, a filiação, a dependência do ser criado por Deus), chamam-se “relações transcendentais” (quer dizer que constituem uma categoria de “predicamentais” que constituem uma categoria de acidentes aparte, como por exemplo: a relação de eu que conhece com a coisa conhecida), encontra-se e deve-se encontrar sempre um fundamento no ser (de este ou de outro modo) da substância. Mas se este fundamento explica já, por si mesmo, o ser (acidental) da relação (seu “esse in” na linguagem escolástica), isto é, se a substância é “em relação” por este mesmo 65 S. Tomás de Aquino opõe-se à tese que reduz as relações a uma simples vista do espírito humano (... )« posto que, como afirma o comentador (Averroes), a relação é, entre todos os predicamentos, a de mais débil consistência ontológica, alguns a têm classificada entre as intenções secundas. As intenções primeiras são as coisas fora do espíritu, às que se dirige o espírito para conhecer-as. Chamam-se intenções secundas às “intenções mentais” constitutivas de nosso modo de conhecer: por este 2º ato da inteligência se capta enquanto se volta sobre si mesmo, conhecendo-se enquanto cognoscente, assim como o modo segundo o qual conhece. Resultaría daquilo que a relação não existisse nas coisas fora do espírito, senao só neste, assim como as noções de gênero, espécie das substâncias secundas (...). Não pode ser assim (...). Em nenhum predicamento põe-se algo a não ser como coisa existente fora do espírito. Pois, o ser de razão opõ-se ao ser dividido em 10 predicamentos, como se diz no Libro V de la Metaphesica. Assim pois, se a relação não existisse fora do espírito, a “referência a” não sería posta como modo predicamental. Além disso, a perfeição e o bem que existem nas coisas fora do espírito são considerados não só como algo absoluto inerente às coisas, senao também segundo a ordem de uma coisa com outra; assim, o bem de um exercito consiste na ordem dos elementos que o compõem; a esta ordem compara Aristóteles a ordem do universo (...)».

Portanto, S. Tomás comclui à existência nas coisas:1) de uma ordem: “Nas coisas mesmas existe, pois, uma certa ordem”;2)e, portanto, de relações: “Essa ordem é uma certa relação. Daí que haja que atribuir às coisas mesmas certas relações segundo as quais uma coisa é ordenada a outra. Assim, pois, é necessário que as coisas que estão ordenadas a alguma coisa sejam realmente referidas a ella (...) e que haja nellas uma realidad que é a relação.3)de uma distinção real entre coisas e relações: “E que haja nellas (coisas) uma realidad que é a relação (cf. De Potentia 7, 9)”.

Mas, ao mesmo tempo, S Tomás constata que certas relações não são senão simples vistas do espírito (o que é o privilégio do predicamento “relação”). Os demais predicamentos intrínsecos (quantidade e qualidade) dizem por sua essência mesma uma realidad inerente a outra. Enquanto que a relação, por sua natureza, não diz senão REFERÊNCIA A; não implica nenhuma inerência de uma realidad numa outra. Algumas vezes a relação é alguma coisa real: cada vez que as naturezas são mutuamente coordinadas ou subordinadas. Outras vezes, a relação falta de realidad (quer dizer, é relação de razão), ainda que nosso espírito pense fundamentalmente aquelas coisas como relacionadas:

a) nosso espírito põe uma relação entre dois termos que sem ella, não teriam referência alguma um com outro: por exemplo, a relação entre ser e o não-ser; entre o gênero e a espécie.b) pelo contrário, o espírito limita-se a comprovar as relações de tamanho ou de atividade que existem entre as coisas, independentemente de toda intervenção do espíritu: relação real.c) finalmente, nosso espírito constata ou comprova uma relação (independente de sua intervenção) entre dois seres que realmente possuem uma relação em um sentido, e põe a relação inversa que não existe na realidade: por exemplo, a relação do cognoscente e do conhecido: cognoscente-conhecido = relación real; conhecido-cognoscente = relação de razão; Deus é “criador”: Deus-creatura = relação de razão; criatura-Deus = relação real.

Finalmente, tudo isso permite a S Tomás analizar a noção de relação com mais penetração que Aristóteles. O que permitirá a seus discípulos posteriores fazer a distinção entre a nota AD e a nota IN na relação. Assim, para S Tomás, resulta que a relação é, entre todos os seres, o (ser) que possui a mais débil consistência ontológica: « A relação, que se acrescenta realmente à substância, possui o último grau de ser e é o mais imperfeito: o último, porque não só supõe o esse da substância, senão também o esse dos outros acidentes que estão na origem da relação (...), o mais imperfeito, porque sendo a natureza mesma da relação “ser até outro”, seu esse próprio que se sobreacrescenta a substância depende não somente do esse da substância, senão também do esse de um ser exterior.» (cf. C.G. IV, 14).

45

Page 46: Cópia de metaficisa2

fundamento, é algo novo (e um puro fato) que esta substância seja realmente-em-relação-com aquilo (por exemplo, eu que conheço Itália meridional). Na linguagem escolástica: o “esse ad” da relação hiperdetermina ao ser da substância, atualiza uma de suas “perfeições” possíveis, isto é, o ser-em-comunicação-com... que não contradiz ao ser em si, nem se lhe acrescenta, senão que o explica.

2.2.4 A síntese dos seres deste mundo: comunicação do tipo de ser (forma) e da existência aos indivíduos. A metafísica aristotélica-tomista nos permite conhecer os princípios ontológicos de todo ser finito; porém, há um problema interessante para resolver: como se resolve a síntese destes co-princípios na constituição dos indivíduos? Como se comunica o tipo de ser, isto é, a forma e a existência concreta aos indivíduos? Por que os seres reais são indivíduos?

O conflito entre o tipo específico e o individuo remonta até Platão. Platão admitia que o ser real e a existência pertenciam a formas, isto é, a idéias; por isso, idéia ou forma é necessariamente única. É verdade que Platão desprezava ao individuo? A resposta é negativa, porque Platão sabia que a multiplicação dos indivíduos está ao serviço do tipo específico (a espécie); é a única maneira de conseguir, ainda nas naturezas mortais nas quais refleta-se a vitória sobre a contingência e a temporalidade (cf. Comvivio, 207d ss...).

Mas Aristóteles, com seu realismo, não se pude satisfazer com um conceptualismo que concedia mais dignidade e realidade ao absoluto do que ao concreto. Ainda que sustinha com Platão, e contra os sofistas, a existência de essências estáveis, --única base possível para a ciência e único dique contra o relativismo subjetivista--, julgou inútil este mundo das essências puras, das puras formas que Platão superpunha aos individuo. Nas coisas sensíveis encontra-se o universal, isto é, uma unidade que é essencialmente multiplicável, graças à matéria: « Todo o que apresenta multiplicidade numérica possui matéria, pois uma sô e mesma definição, por exemplo, a do homem, se aplica a seres múltiplos, enquanto que Sócrates é uno » (Metaphesica, XII, 8, 1174a, 33). Mas não por isso Aristóteles deixa de ser platônico: sustem, como seu mestre, que a geração e a multiplicação dos indivíduos têm como finalidade à perpetuidade do tipo, a eternidade da espécie ao longo do tempo.

S. Tomás de Aquino, recebendo os princípios aristotélicos, os sublinhou com precisão, os quais o levaram a compreender a individuação dos seres segundo as leis gerais da posição do ato na existência. Vejamos alguns textos:

1) A definição: « O individuo é aquele que é indiviso em si mesmo e distinto dos demais» (S. Th., 1, 29, 4c); quer dizer que a ausência de divisão ou a multiplicação em si mesmo é uma realidade positiva expressada em forma negativa; e « um ser dado não é outro » é uma realidade negativa expressada em forma positiva.

2) O principio geral: « Todo ser tem seu esse e sua individuação desde o mesmo ponto de vista; com efeito, os universais não têm esse na natureza mesma das coisas enquanto universais, senão somente enquanto individuados.» Ser um individuo é a mesma coisa que ser, simplesmente: o que não tem individualidade, por exemplo, o universal, não pode ter ser; inversamente, o que tem ser, tem da mesma maneira e na mesma medida a individuação; há que considerar, pois, a individuação de Deus, a do anjo, a do homem, e a dos seres puramente corporais (cf. Q.D. de Anima, 1 ad 2).

3) Primeira aproximação à noção de um principio de individuação: « É evidente que este algo que caracteriza a um ser singular enquanto tal não es em modo algum comunicável a vários.

46

Page 47: Cópia de metaficisa2

» Seria, pois, imprudente deduzir do principio geral anterior à conclusão de que cada ser individualiza-se pura e simplesmente por si mesmo; teria de se assegurar antes que de este ser não comunica realmente nada a qualquer outro no momento no qual entre dois ou mais seres há algo comum, é evidente de que todos estes seres, exceto quiçá um, devem possuir algo próprio realmente distinto daquilo que é comum (cf. S. Th., 1, 11, 3c).

4) No caso no qual o principio de individuação não se confunde com o principio de ser, senão que é só uma parte dele: « O que faz que Sócrates seja homem, pode comunicar-se a muitos seres; mas o que faz ser tal homem, só pode pertencer a uno sô. Se, pois, Sócrates fora homem em razão do mesmo que o faz ser tal homem, disso seguiria então que não poderia haver mais homens como não pode haver mais Sócrates. » O exemplo da humanidade e de Sócrates só propõe-se aqui como caso familiar da multiplicação dos indivíduos na mesma espécie (cf. S. Th., 1, 11, 3c).

2.2.5 O Deus de santo Tomás de Aquino (O “Ipsum Esse subsistens”) é, como o de Aristóteles, “Ato puro”, mas num sentido muito diverso daquele de Aristóteles: ele não exclui somente o poder-ser que funda o devir, senão de modo mais essencial, aquele que funda a contingência e a finitude dos seres. Deus não é “um ser” de tal essência, ele é puro Ato de ser, SER simplesmente, sem outra “essência” do que a de SER. Portanto, não existe “o que” Deus é. Ele é, eis aqui tudo. Por este mesmo motivo, Ele é, segundo a concepção tomista, perfeição das perfeições, e infinito, infinitude que é uma perfeição positiva e não o “apeiron” (o indeterminado, indefinido) dos Gregos; pelo mesmo fato de ser e não por outra coisa, Deus é absolutamente determinado.

Neste curso não é nosso propósito desenvolver estas ulteriores considerações “onto-teológicas” (quer dizer, um discurso sobre Deus que se apóia sobre um discurso acerca do ser). Estas considerações serão objeto da Teologia natural, tratado que constitui o complemento indispensável, ou a “outra metade” da metafísica enquanto ontologia geral, como também a epistemologia (ou crítica do conhecimento em geral). Acrescentamos somente que este ponto de vista sobre Deus como “Aquele que é” sem acrescento, se apóia sobre a Revelação de Deus no livro do Êxodo (3, 1466) (de acordo à tradução da Vulgata).

2.2.6 A doutrina da analogia do ser pode, então, ser apreciada na sua verdadeira dimensão e significação. É claro, agora, que ela se situa imediatamente ao nível ontológico e significa a diferença do ser entre Deus e os seres (finitos) e entre a substância e seus acidentes.

Para definir mais de cerca esta diferença distinguem-se duas espécies de analogia: a analogia de atribuição e a analogia de proporcionalidade. A primeira é aquela que já temos encontrado em Aristóteles: a transferência (ou a “atribuição”) de uma palavra, a partir de seu significado próprio (“analogatum princeps”), a significados menos próprios, mas que estão em relação com o significado próprio (por exemplo: a saúde atribuída a um organismo vivente, ao clima, à cor). A primeira vista isso não parece ser senão um uso impróprio, mas legítimo, de uma palavra. Por isso, para definir a analogia ao nível ontológico, se tem recorrido principalmente à analogia de proporcionalidade que se funda sobre relações de semelhança entre diferentes dados. Mas, aqui, ainda nos encontramos sobre tudo na metáfora, que se encontra ao nível do discurso (fala-se, por exemplo, do sol que ri, porque isto apresenta uma certa similitude de efeitos com um homem que ri). Por outra parte, por debaixo da metáfora se esconde com freqüência uma similitude de ser (quando se compara, por exemplo, o leão com o rei ou o rei com o leão). Acontecerá, por acaso, o mesmo com Deus e os seres, com a substância e os acidentes?

66 Cf. Biblia de Jerusalém, Ex 3, 13, nota c sobre a revelação do Nome divino.

47

Page 48: Cópia de metaficisa2

Uma proporção matemática compõe-se de quatro (4) termos colocados em equação: a/b =c/d. Uma proporcionalidade analógica não coloca em equação, senão que enuncia somente uma similitude: Leão/animais = rei/homens. Não existe, portanto, nada igual ou idêntico, senão uma relação que é semelhante a outra relação. E é precisamente o caso entre Deus e os seres finitos (criados), entre a substância e os acidentes. A “relação” de Deus com o ser (simplesmente) é similar (e nada mais que isso) à relação de uma essência (finita) com seu ser: Deus/ser = substância criada/seu ser. O mesmo pode-se dizer da substância em relação com o ser-em-si e do acidente em relação com o ser-em-outro: substância/ser-em-si = acidente/ser-em-outro. Mas como sabemos que existe uma similitude de relações? Pode-se demonstrá-lo por meio do seguinte razoamento de desenvolvimento dialética. A primeira vista não existe nenhuma semelhança entre o ser divino, simplesmente tal, não proporcionado a nenhuma “essência”, e o ser de uma criatura, simplesmente proporcionado a sua essência. Por isso, é necessário também que esta mesma proporção imite de algum modo o caráter absoluto do ser divino, desde o momento no qual, se a criatura no fosse autenticamente “ens in se”, subsistente em si mesmo, a imitação do “ens a se” (o ser por si mesmo, como se chama a Deus --verdadeiramente de forma muito imprópria porque Deus não é “ens”--), se faria uma relação mutua entre a criatura e Deus: a criatura seria de tal modo dependente de Deus que chegaria a ser uma espécie de “aderência”, e Deus, pelo mesmo fato, não seria mais do que o totalmente-outro. É necessário deduzir que é precisamente por esta proporção interna, mutua, de sua essência com seu ser, que o ser criado subsiste à sua maneira (quer dizer, enquanto “ens ab alio”, dependente de Deus), assim absolutamente como Deus é.

Para a substância-acidente aplica-se um razoamento análogo. Se os acidentes, por seu “ser-em-outro” (seu “ser-tido”) não tivessem algum “ser próprio”, a imitação da substância, eles identificar-se-iam simplesmente com aquela; a distinção mesma entre substância e acidente desapareceria.

Agora, estes razoamentos mostram que a similitude de relação está sempre marcada por uma ainda maior dessemelhança. Se o ser da criatura e o “ser” dos acidentes imitam de algum modo a Deus que é e ao ser da substância, esta imitação acontece de maneira completamente diferente de ser, que se expressa, no caso da criatura, precisamente pelo fato de que existe uma relação entre o ser e a essência, mas em Deus não existe esta relação. Portanto, é necessário reafirmar desde o ponto de vista filosófico, a fórmula do IV Concilio de Letrán: “entre o Criador e a criatura não se pode indicar uma semelhança tal que a dessemelhança não seja maior ainda” (Cf. Denzinger-Sch. nº 806).

Por último, --porque nos temos devido caracterizar ao ser finito como existente em si mesmo, mas em dependência do ser divino, e ao acidente como “dependente” (de outra maneira) da substância--, no fundo da analogia de proporcionalidade reaparece a analogia de atribuição, mas esta vez ao nível ontológico mesmo, como “atribuição intrínseca”, na qual a palavra “ser” é atribuída a coisas diferentes, porque a segunda destas “coisas” (o ser dos seres finitos, dos acidentes) é, ela mesma, dependente da primeira, ela não é (não existe) senão por esta dependência ontológica.

De tudo o que temos visto, resulta que a analogia do ser não se deixa expressar por “conceitos analógicos” nem se reduz a eles (o mesmo conceito aplicado de maneira diferente a coisas diversas, mas semelhantes), porque se trata aqui de modos de ser que não se podem expressar senão com juízos. Mais do que uma propriedade de nossos “conceitos” ou “idéias” metafísicas, a analogia do ser indica uma maneira tal de conduzir o discurso que, afirmando o ser finito,

48

Page 49: Cópia de metaficisa2

alcança-se ao mesmo tempo dizer de algum modo o indizível do ser divino. A Teologia natural mostra como se desenvolve esse discurso.

49

Page 50: Cópia de metaficisa2

2.3 O SER COMO SER-UNO E O PRINCIPIO DE NAO CONTRADIÇAO

2.3.1 As “propriedades transcendentais” do ser (ou “transcendentais”) são aspectos que todo ser enquanto ser apresenta; elas expressam o que “ser” significa necessariamente. O nome deriva do “peroneu” lógico que, ainda não pertencendo à definição de uma coisa (e não formado de sua “essência lógica”), porém, expressa o que pertence necessária e exclusivamente a esta coisa (como a soma dos ângulos retos do triangulo ou a “risibilidade” do homem...) e, por conseguinte, é convertível com sua definição. Esta “convertibilidade” pode-se enunciar de duas maneiras. O diz-se: “Ser significa ser-uno, ser-verdadeiro, etc.” Ou bem: “todo ser, enquanto é, é uno, é verdadeiro, etc.”. O acréscimo “enquanto é” é necessário porque os seres concretos são limitados, implicando o não-ser e, como tal, não são nem uno, nem verdadeiro, etc. Enfim, as propriedades do ser chamam-se “transcendentais” porque, enquanto pertencem ao ser enquanto tal, elas “transcendem” as diferentes categorias, ainda mais, o mesmo abismo entre Deus e os seres finitos. Enumeram-se normalmente três ou quatro transcendentais: a unidade, a verdade, o bem e por vezes também a beleza. Vê-se que estes transcendentais delineam as aproximações mediante das quais, historicamente, o ser foi descoberto: por meio da unidade em Parmênides e Plotino, por meio do bem em Sócrates e Platão, por meio da beleza em Platino, por meio da verdade em Aristóteles. E, de fato, o recorrer aos transcendentais constitui o meio especulativo principal para explicar o que é ser e desenvolver uma filosofia do ser, tanto mais se se considera que destas propriedades do ser derivam os primeiros princípios do ser.

2.3.2 Os primeiros princípios são verdades, proposições verdadeiras, que “fundam” (quer dizer, dos quais dependem) todas as outras verdades (como a verdade da conclusão “funda-se” na proposição maior, no “principio” do silogismo); mas elas mesmas não podem ser reduzidas à outra verdade mais fundamental.

Se esta “fundamentação” se apresenta a primeira vista como uma justificação lógica da verdade, uma regra de conhecimento, porém, pele fato mesmo de que põe ao descoberto o que é o fundamento ontológico daquilo que se conhece, não é senão uma regra do ser. Portanto, estes primeiros princípios são princípios lógicos, porque são ontológicos.

2.3.3 A unidade da qual, aqui, nos ocupamos não é a unidade numérica (um, dois, três.) que indica quantas unidades particulares existem (e se inclui, portanto, na categoria da quantidade); senão a que se chama unidade transcendental que indica que um ser é totalmente uno consigo mesmo, isto é, coerente consigo (“indivisum in se”) e, por conseguinte, distinto de tudo o que é diverso dele (“divisum a quolibet alio”), isto é, algo bem determinado, inconfundível.

Com efeito, um rápido olhar fenomenológico mostra que nos encontramos com uns graus de unidade que parecem coincidir com os graus de ser: uma planta possui uma maior “unidade” do que um mineral, mas menor do que a dum animal, e se dão graus de unidade entre os animais inferiores (por exemplo, um verme) e superiores (um mamífero), enquanto que o homem aparece como o mais unificado de todos os seres dados pela experiência, capaz ainda de um recolhimento mais íntimo. Precisamente em termos de recolhimento parece que deva ser expressa esta unidade do ser, e sua ausência, em termos de dispersão. Isto se observa, de forma crescente, na análise metafísica dos seres finitos: a potência, múltipla e ordenada até mais atos possíveis, é mais “dispersa” do que o ato, sempre determinado; os acidentes, múltiplos e variáveis, mais dispersos do que a substância e, finalmente, a matéria aparece como um puro princípio de dispersão, permitindo a multiplicação da forma; enquanto “materia prima” ela seria tão pouco idêntica a si mesma do que pode ser a mesma em toda a variedade dos seres concretos.

50

Page 51: Cópia de metaficisa2

Para confirmar este ponto de vista com um argumento mais técnico, não podemos deixar de nos referir ao modo como temos descoberto o ato de ser no juízo como um “ter-unido-em-uma-totalidad-única” (cf. 2.2.1). Porém, este argumento necessita ser completado com uma consideração ulterior: para formular o juízo é preciso, ante tudo, distinguir a coisa da qual se fala nos diferentes elementos ou aspectos (sujeito-predicado-ser), e é preciso, ainda para conceber-los exatamente e definir estes diferentes elementos ou aspectos, confrontar-los com o que eles não são, com seu “outro”.

Então, o outro não seria mais originário do que o mesmo, e o múltiplo mais fundamental do que o uno, de modo que o uno não seja senão a negação da alteridade e da multiplicidade? Há que voltar às definições latinas do uno (“indivisum in se” e “divisum a quolibet alio”). Mas isso é uma necessidade inerente a nossa maneira de pensar, irremediavelmente discursiva. Somos nos os que não podemos definir, ou conceber o uno, senão recorrendo ao outro e à multiplicidade. Mas tampouco poderemos fazer-lo, se o dado, ao nível antepredicativo (quer dizer, para nossa primeira percepção, antes que nos alcancemos formular um juízo) se apresentava já a nos como uno, como esse. E, por isso, Martin Heidegger, por exemplo, busca o ser no nível antepredicativo. Acrescentaremos que para conceber a alteridade mesma é necessário reunir o mesmo e o outro, e que para conceber a multiplicidade enquanto tal deve-se ver juntos, ter unificado os múltiplos. Ao respeito, a unidade se revela, portanto, como mais fundamental do que a alteridade e a multiplicidade: o uno é anterior ao múltiplo.

Finalmente, diremos que a unidade, o recolhimento em si, não impede de nenhuma maneira ao ser o encontrar-se em comunicação com outros: duas pessoas, precisamente porque são mais “umas”, mais em si mesmas, relacionam-se e podem-se relacionar muito mais intensamente do que duas pedras que se encontram simplesmente uma junta a outra. Unidade diz também universalidade.

2.3.4 Da unidade do ser, segue-se como primeiro principio, o principio de não-contradição: “tudo o que é, enquanto é, não pode não ser”. Este princípio enuncia a coerência do ser consigo mesmo, excluindo absolutamente a possibilidade mesma de sua negação: o ser, subeste aspecto, se apresenta sempre como algo necessário. A cláusula “enquanto é” é necessária pelas mesmas razoes que no enunciado da convertibilidade dos transcendentais (ver 2.3.1): todo ser finito implica não-ser (não é sempre, não sub todos os aspectos, etc.) que não exclui evidentemente a negação (a flor que hoje floresce, ontem era um broto e, amanha, se murchará).

Como principio lógico segue-se que: “é impossível afirmar e negar contemporaneamente a mesma coisa do mesmo sujeito sub o mesmo aspecto” quer dizer, a coerência do discurso que expressa a coerência do ser consigo mesmo.

Baixo sua dupla formulação, o principio de não-contradição é propriamente primeiro, enquanto que, quem quisesse negar-lo deveria fazer uso dele para que sua negação seja bem determinada e exclusiva. É o famoso argumento “ad hominem” (no qual se mostra que o adversário deve supor o que nega), que aplicava já Aristóteles para demonstrar a verdade inegável dos primeiros princípios.

Alguns opinam que o principio de identidade (“Tudo o que é, é necessariamente o que é”) é mais original ainda. Mas, segundo o que temos dito acerca da estrutura necessária de nosso conhecimento (que se concebe de modo definitivo só por negação), é só subsua forma negativa, como principio de não-contradição, que este principio apresenta originariamente um sentido para nos.

51

Page 52: Cópia de metaficisa2

Pode-se dizer ainda que, no plano teológico, o principio de não-contradição, como a coerência necessária do ser consigo mesmo, encontra seu fundamento último na indefectível fidelidade de Deus a si mesmo (o que a Bíblia chama sua “verdade”: “emet”; ver 2 Co 1, 17-20).

2.4 O SER COMO SER-VERDADEIRO E O PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE

2.4.1 Comumente nos chamamos “verdadeiras” as proposições, os juízos que “dizem ser o que é e não ser o que não é”. Portanto, no seu primeiro significado, a verdade consiste na conformidade de nosso conhecimento com o estado das coisas conhecidas; o que se denomina “verdade lógica”. Mas, nos falamos, também, de um verdadeiro cristão, do “ouro verdadeiro” (não falsos ou semelhantes) etc., indicando uma espécie de conformidade da coisa consigo mesma, com o nome que leva, com sua aparência exterior, etc.; essa seria sua “verdade ontológica”, que parece derivar imediatamente do ser-uno da coisa.

E, porém, a verdade e a unidade de um ser não são idênticas; para ser verdadeiro não basta que um ser seja uno; é preciso também que ele se manifeste ao conhecimento e esta manifestação (seu “aparecer”) seja conforme a seu ser profundo. Portanto, o verdadeiro não se deixa definir sem uma referência ao conhecimento: a verdade ontológica faz referência à verdade lógica (possível), e a afirmação de que o ser enquanto tal é verdadeiro parece implicar que o ser não pode ser sem relação a um espírito (que conhece). De qual modo isto é possível?

Aqui, ainda, partimos de uma espécie de fenomenologia, que nos mostra os graus desta relação do ser com o espírito. Em Deus, enquanto ele se define a Ato Puro, fonte de ação, ser e conhecer não são senão uno: ele é puro conhecimento de si mesmo (¡noêsis noeseôs!). Também nos experimentamos o ser cientes de nos mesmos, de nossos atos, de nossas experiências, de nosso “ser” mesmo. Mas, esta “autoconsciência” não chega a ser jamais um conhecimento perfeito de nos mesmos; há uma opacidade em nosso fundo profundo; e parecermos que essa opacidade não deriva do fato de que este fundo não fosse conhecível, “verdadeiro”, senão deve-se a um defeito de nossa capacidade de conhecer. Nossa autoconsciência, além disso, é sempre um retorno (“reditus”) sobre nos mesmos; nos não somos originariamente autoconscientes, senão que nosso conhecimento é, ante tudo, um conhecimento de coisas conhecíveis. Portanto, parece que existe uma relação originaria entre estas coisas e nosso conhecimento. Essa relação pode talvez constituir a verdade ontológica mesma destas coisas, já que nosso conhecimento (humano) não tem existido sempre e ele não fundamenta o ser destas coisas? Tais reflexões nos preparam para aceitar a solução de ordem teológica, derivada do platonismo, proposta por São Agustinho e Santo Tomás de Aquino. Deus tem criado estas coisas segundo idéias divinas, quer dizer, conhecendo-las, e é por sua conformidade com este conhecimento divino que os seres criados são verdadeiros ontologicamente.

Destas considerações, segue-se uma dupla conseqüência: conhecendo as coisas, nos conhecemos indiretamente as idéias divinas, e nossa verdade lógica é, pela mediação das coisas conhecidas ao redor nosso, conformidade com a “verdade lógica” divina67. Mas, o fato de que um enunciado seja correto (“orthotês”), a verdade deve ser definida como manifestação (“Alêtheia”: pelo fato de não ter nada escondido), como um “vir à luz” daquilo que constitui o fundo mesmo, a interioridade de um ser68.

67 Cf. Tomás de Aquino, De Veritate, q. 1, art. 2-8.

68 Sobre este aspecto pode-se ver Von Balthasar, H. U. Phénoménologie de la vérité, Beauchesne, Paris 1952; La essência de la verdad, Editorial Suramericana, Buenos Aires 1955.

52

Page 53: Cópia de metaficisa2

2.4.2 Para uma argumentação mais técnica deve-se recorrer novamente à análise do juízo e a seu aspecto de objetivação (ver 2.2.1): eu afirmo como verdadeiro não meu conhecimento do objeto, senão seu ser-em-si, e, precisamente, por isso, eu pretendo que meu juízo tenha um valor universal: este ser-em-si é acessível a todo sujeito que conhece da mesma maneira que eu.

Porém, enunciando um juízo, eu atribuo ao objeto as estruturas inteligíveis (expressadas pelos conceitos dos quais compõe meu juízo) que não se encontram formalmente (nem se podem encontrar formalmente) senão num pensamento. E eu pretendo que essa seja a verdade mesma deste ser-em-si, que, portanto, não encontraria sue ser verdadeiro e pleno senão no ser conhecido (como meu espírito, enquanto capacidade de conhecer, não é plenamente, atualmente, senão conhecendo e afirmando um ser em si). Este é o sentido do dito: “Intellectus in actu et intelligibile in actu sunt idem”. Por outra parte, o mesmo vale no nível do conhecimento sensível: as qualidades sensíveis (cores, sons, etc.) não existem formalmente senão numa sensação (qual seria a cor de uma árvore fazendo abstração da possibilidade de que algum o veja?).

É essa somente uma pretensão minha que impõe minha maneira de ver ao ser-em-si? O fato de que eu tenha de buscar a verdade e a humildade desta investigação (que precisamente não pode e não quer se impor ao objeto) mostra que não é assim; mas é também uma lei do ser-em-si, que não é perfeitamente o que é senão no ser conhecido; e ele é, portanto, enquanto é (atualmente) “verdadeiro”.

2.4.3. O principio que segue do ser como verdadeiro, não é imediatamente evidente na sua formulação; poder-se-ia indicar-o como “principio do fundamento”: “Todo ser enquanto tal é absolutamente afirmável e, portanto, fundado”. Se este princípio segue-se imediatamente da relação do ser, enquanto é verdadeiro, com a afirmação num juízo, é também claro que ele assume significados substancialmente diversos se se trata de Deus, que é fundamento em si mesmo, de todos os seres finitos. Em relação com estes últimos encontram-se tradicionalmente duas formulações, segundo o tipo de metafísica que os autores professam:

a. O “principio de razão suficiente” (“para todo ser finito há uma razão suficiente para que ele seja assim e não de outra forma”), subesta formulação, remonta a Leibniz e refere-se àquilo que é, a essência de um ser; e expressa a necessidade de que esta essência, para ser, deva ser plenamente determinada e porque ela não é por si mesma (não sendo necessariamente) é preciso encontrar essa “razão suficiente” (quer dizer, esta explicação determinante) em outro. As dificuldades que jorram contra este princípio são obvias: por uma parte, ele parece introduzir um determinismo universal que não deixa espaço nem à causalidade nem à liberdade e, por outra, não parece que a essência (o ser-assim) seja afirmável de modo tão absoluto; o ser verdadeiro não se enuncia absolutamente senão pelo ato de ser, não pela essência.

b. O principio de causalidade, pelo contrário, se refere propriamente a esse ato de ser, ao existir: “todo ser não necessário existe por uma causa eficiente”. Isso se deduz imediatamente do principio do fundamento: a causa eficiente (que, por sua ação, faz existir outro por si) é este fundamento (o único fundamento adequado) de um ser que não está fundado em si mesmo. Isso significa também que a “causa eficiente” da qual se trata não se pode reduzir a uma “causa do devir” (que teria posto em movimento o devir e posteriormente teria cessado de agir), senão que ela deve “fundar” atualmente (até quando subsista esse ser) sua existência: é, portanto, a menos co-extensiva a ele.

53

Page 54: Cópia de metaficisa2

2.4.4 Finalmente, se o ser enquanto tal é verdadeiro, é falsidade um puro não-ser, uma simples ilusão? Ao considerar-la mais de perto, a falsidade não é a negação pura e simples da verdade (nem, por conseguinte, do ser), senão uma distorção ou um defeito da verdade. O erro (ao nível da verdade lógica) consiste num juízo parcialmente não verdadeiro; a mentira ou a falsa aparência (ao nível da verdade ontológica) consiste numa deformação do exterior de um ser desde seu “interior” (ou, precisamente, desde sua “verdade”). Com outras palavras, dá-se a falsidade ali onde um enunciado correto sobre um ser já não é possível, seja por falta de manifestação do seu fundo, seja porque neste processo de manifestação apareceu um elemento livre que lhe tem “impedido”, “falseado”. Em conseqüência, é claro que uma simples não-manifestação (“secretum meum mihi”) que não dai lugar a um enunciado incorreto não constitui uma não-verdade, senão que, pelo contrário, abre uma perspectiva sobre a liberdade da verdade.

2.5 O SER COMO SER-BOM, O VALOR E O PRINCÍPIO DE FINALIDADE2.5.1 Mais freqüentemente ainda do que uno e verdadeiro nos chamamos o ser “bom”: “uma boa bebida”, “essa é uma boa ação”, “ele é um bom músico”, “vos sois muito bons”, etc. Mas que queremos dizer nos com isso? Qual é a definição do ser bom? À primeira vista, parece que nos qualificamos um ser como “bom” segundo dois aspectos: já seja com relação a nos mesmos (é bom aquilo que convém a nossas necessidades, aquilo que responde a nossas expectativas); já seja com relação a si mesmo (é bom o que é no modo em que deve ser, o que corresponde à justa expectativa que se tem dele).

Estes dois aspectos, ainda que não correspondem perfeitamente um com o outro, porém, tampouco se excluem; no primeiro caso falaremos de um bem; no segundo caso, de um valor. E parece ainda, a primeira vista, que um ser pode-se chamar um bem enquanto tem (ou é) um valor. Que quisemos dizer com isso?

2.5.2 O valor é tudo o que se estima ou busca-se. Desde um ponto de vista fenomenológico, o valor distingue-se nitidamente do ser. Ele transcende o simples fato ou dado, porque não o se constata simplesmente, senão que se o constata porque se estima o: “isso é bom”; e, constatando-lo, tem-se consciência de que o fato não alcança jamais perfeitamente o valor que representa. O valor vale, portanto, ainda (e sobre tudo) se não é plenamente realizado: ele pertence ao âmbito do dever-ser, que não se encontra no dado, nem na totalidade da natureza (a natureza é, era, será tal, ainda com necessidade, mas não se pode propriamente dizer que ela deve ser assim e, porém, dela derivam os juízos de valor).

O valor se apresenta essencialmente bi-polar (quer dizer que todo valor tem seu contra-valor, que não é simplesmente um não-valor: por ex., saúde-enfermidade, beleza-fealdade, virtude-vicio, etc.), enquanto que o ser exclui totalmente seu contrário enquanto não-ser. Finalmente, os valores realizam-se numa hierarquia de valores heterogêneos (não reduzíveis, nem tampouco confrontáveis entre si e, por isso, evidentemente hierarquizados). Nos distinguimos os valores naturais ou “eudemônicos” (que satisfazem uma necessidade, um desejo), como também os valores de utilidade ou de prazer (“deleitáveis”) dos valores morais ou honestos (que se qualificam a si mesmos, não satisfazendo uma necessidade, senão provocando a estima ou o amor). Suboutro aspecto percebe-se facilmente que os valores materiais, vitais, sociais e espirituais (estéticos, morais e religiosos) não são comparáveis entre si (quer dizer, não se pode compensar a falta de um valor superior com um inferior: por exemplo, dar um premio por uma vida ou por uma ação desonesta).

54

Page 55: Cópia de metaficisa2

Portanto, os valores apresentam-se como absolutos: eles devem ser absolutamente, e não baixo uma condição ou outra (salvo os valores íntimos, que são condicionados pela não exclusão dos valores superiores). Não é por casualidade que a metafísica tem buscado o transcendente sobre tudo (como Sócrates e Platão) no campo do valor.

2.5.3 Dado este contraste fenomenológico entre o valor e o ser jorra então a pergunta: o ser como tal pode também ser um bem, quer dizer, uma realização do valor? E, além disso, podem todos os seres enquanto tais se chamar bons? Em síntese, por que não há um grande número de contra-valores existentes? A estas perguntas do sentido comum pode ser dada uma quádrupla resposta filosófica:

1ª Ao nível puramente metafísico, o ato de ser apareceu como a perfeição das perfeições, porque ele é o que atualiza a essência. Portanto, se um ser tem valor, o tem porquanto é. Mas segue-se disso que todo ser, enquanto tal, é bom? O valor não seria atribuível à essência ou, mais bem, a algumas essências, quer dizer, àquelas, e na medida na qual elas correspondam a um certo dever-ser? Mas precisamente, a essência não pode corresponder ao que deve ser senão na medida na qual ela é; e na medida em que é, ela corresponderá, ainda que com freqüência imperfeitamente. Neste sentido, Santo Tomás de Aquino afirma: “É sempre melhor ser assim (defeituoso) do que não ser” (“melius est sic esse quam non esse”).

2ª Pode-se ilustrar esta prova abstrata com as seguintes considerações: em primeiro lugar, o próprio ser é para todo ser um bem supremo; se não o fosse, todos os outros valores desapareceriam. Por isso todo ser tende naturalmente à própria conservação. Além disso, toda substância finita está potencialmente em relação com seus acidentes, que constituem a perfeição co-natural, devida a esta substância; e, portanto, um valor para este mesmo ser: ele tem, diz-se, uma “tendência natural” (“appetitus naturalis”, quer dizer, uma tendência que está inscrita na sua mesma natureza) até esta perfeição.

Subeste duplo aspecto conclui-se que todo ser é um bem por si mesmo (“bonum sibi”).

Agora, enquanto tal, quer dizer, na medida em que ele é (relativamente) perfeito, é também um bem para outros seres (“bonum altri”), podendo satisfazer, duma maneira ou outra, os desejos e as expectativas daqueles.

3ª Duma maneira mais técnica, a identidade do ser (ato de ser) e do ser-bom, demonstra-se mediante uma análise da tendência (“appetitus”) que sustem e segue ao conhecimento. Eu não conheço senão segundo meus conceitos, minha capacidade de conhecer, enquanto o objeto está (“intencionalmente”) “em mim”, e eu o afirmo, segundo esta forma-em-mim como existente em si. Portanto, é precisamente este ser-em-si do objeto ao qual olho em meu conhecimento; aquilo ao qual ele tende: representa, por conseguinte, um valor para mim (que conheço). Mas eu apreendo este ser não somente como um valor-para-meu-conhecimento. Apenas tenho descoberto seu ser-em-si, o percebo (propriamente enquanto ele é em si: que é outro e mais do que o ser-conhecido-por-mím) como um valor em si; já seja que ele possa satisfazer uma necessidade que eu tenho, já seja até a satisfação à qual tendo, portanto, com uma ação real (por exemplo, eu desejo comer esta fruta que vejo e a tomo, não à idéia que tenho dela). Portanto, há em nos outra “intencionalidade” (quer dizer, outra orientação que tomam nossos atos espirituais) que não pertence ao conhecimento, que não nos faz ter somente uma “forma intencional” do objeto, senão que nos leva até ele, como ele é em si mesmo e que nos chamamos tendência, desejo ou amor. E, precisamente, enquanto é em si, um ser corresponde a esta intencionalidade, quer dizer, é bom.

55

Page 56: Cópia de metaficisa2

4ª Segundo o que temos dito, o mal deveria ser um puro não-ser, mas é um não-ser que existe. Então, como é possível? As considerações feitas no segundo ponto podem explicar-lo: é possível que um ser não possa conservar o próprio ser (enquanto limitado, contingente) e essa será a extinção, a morte; é possível que uma substância não tenha os acidentes que lhe são devidos, seja como ser natural (a saúde, a enfermidade, a integridade, a capacidade de agir), e esse será o mal físico; sou, como ser moral, em grau de agir livremente (com ações que deveriam não ser, mas que são pautas por verdadeira causalidade do sujeito) e essa será a culpa. Enquanto carência de uma perfeição devida, o mal se qualifica como “privação”. E desde o momento em que este es um mundo de seres limitados, imperfeitos, compreende-se, de alguma maneira, que o mal aparece como inevitável, não eliminável, não obstante a bondade radical do ser como tal. Pode-se acrescentar que sobre o fundo desta bondade radical, nos percebemos o mal como mal, como o que não deveria ser.

2.5.4 O princípio que segue, do ser como valor, é o principio de finalidade: “todo ser que age, age por um fim”. Definindo o fim (em contraste com o termino ou o simples resultado de uma ação) como um bem em vista do qual faz-se algo, o principio afirma que toda ação é regida por uma tendência, também ela determinada pelo bem até o qual tende. Agora, esta parece uma consideração antropomórfica. Eu constato que em muitas das minhas ações, me proponho um fim, e que depois atuo em vista deste fim e da maneira que este mesmo fim me impõe (quem quer preparar um prato saboroso deve cozinhar-o como tal...). É legítimo estender este princípio a todas minhas ações e, também, às ações dos agentes infra-humanos absolutamente incapazes de “propor-se” um fim? No caso de uma ação conscientemente dirigida até um fim, é uma antecipação consciente deste fim que dirige a ação. Agora, isto se pode dar também a outros níveis:

Ante tudo, estão meus atos mecanizados, “habituais” (por exemplo, escrever com máquina, tecer, digitar no computador...) que eu realizo sem “considerar” um esquema de ação e, por isso, sei que este “desenho” está em mim, eu o tenho incorporado, o tenho interiorizado: ele tem chegado a ser para mim “totalmente natural”. Do mesmo modo, eu posso conceber a “tendência natural” dos seres finitos (ver 2.5.3, 2ª) como um “desenho” dos atos destes seres. Isso é particularmente evidente para a “finalidade interna” dos viventes, em virtude da qual o vivente age para conservar e fazer crescer a própia vida: a “causalidade tripartida” dos viventes regula as reações variáveis segundo os estímulos variáveis, de maneira tal que produz constantemente o bem do individuo, por exemplo, (os tropismos das plantas). Mas, também, a “finalidade externa” dos não viventes, quer dizer, o agir determinado das “leis naturais” parece que se deva conceber à maneira de uma tendência orientada até um fim.

Com efeito, toda causa eficiente (quer dizer, todo agente), e esse será nosso argumento técnico e decisivo, deve ser determinado a agir e atuar de tal maneira; pelo contrário, ela nem sequer atuaria, não produzindo este efeito determinado. Agora, nem o agir nem este atua podem resultar de maneira determinada pela natureza desta causa eficiente que, como tal, é múltipla (quer dizer, aberta a muitos efeitos possíveis) e em pura potência a atuar. Portanto, é necessário que esta potência atue-se em dependência da existência (futura) do efeito, enquanto o agente tende até ele (isto é, enquanto esta existência representa um bem para o agente).

Compreende-se assim melhor por que o bem dá lugar a um principio de agir e não a um principio de ser: no ser finito será o agir que expressa esta tendência até o ainda-não que corresponde ao valor. E compreende-se, também, que o principio não se aplica a Deus que é o Bem, pelo qual ele não poderia ter tendência até..., senão que o último fim do agir divino é a bondade divina mesma.

56

Page 57: Cópia de metaficisa2

2.6 O SER COMO SER-BELO E A UNIDADE DOS TRANSCENDEN- TAIS

2.6.1 Até aqui temos distinguido diversos transcendentais, e o universo nos apareceu como um universo de valor (e não de indiferença ou de mal), um universo de sentido, no qual encontram-se respostas (e não o erro e a mentira), um universo de coerência (e não de dissipação e de confusão). Agora, o sentido mesmo, (a verdade mesma) constitui um valor; os valores dão um sentido, e a coerência do ser exige que sentido e valor, verdade e bem não sejam separados. Esta exigência de unidade satisfaz-se pela beleza, que unifica o conhecimento e a tendência, dirigindo-se aos dois juntos, ou melhor, a um ato “estético” comum que participa de ambas.

Descreve-se ou define-se o belo, como objeto do prazer estético: “é belo o que agrada à vista” ou, em outros termos, a um conhecimento não discursivo e que não termina num ato de afirmação (um juízo), porque a mesma percepção proporciona já tudo o que pode dar: um prazer, uma tendência satisfeita pelo único conhecimento e, portanto, “desinteressada” (Kant). Desde o momento em que o belo é percebido e descoberto de tal modo com um ato totalmente subjetivo de prazer estético (“de gustibus non est disputandum”), o belo mesmo parece ser de natureza subjetiva (a beleza não pode ser demonstrada...), o que constitui uma primeira dificuldade contra sua transcendentalidade.Mas o prazer estético nos provem inteiramente da presença do ser “belo”, “nos estamos em ”êxtase” frente a isso e até isso que nos aparece como um dom gratuito e um milagre. Esta referência ao ser belo pode-se compreender desde o ponto de vista filosófico pelo fato de que o ser é ao mesmo tempo verdadeiro e bom (e uno); esse será nosso argumento técnico para a transcendentalidade do belo.

Mais concretamente, desde um ponto de vista fenomenológico, o belo manifesta sua riqueza interior de uma forma que o faz transparente: o belo natural numa harmonia que manifesta uma certa perfeição do ser aqui presente (dos seres aqui presentes); o belo artístico numa forma apropriada para expressar uma idéia.

O belo pode-se definir como uma “irradiação (esplendor) da forma através da matéria” (“splendor formae”: Sao Alberto Magno), ou como “expressão sensível de uma idéia” (Hegel). Em correlação, o prazer estético é o ato mais integrado de nosso espírito: não somente conhecimento e tendência integram-se nele, senão também a sensibilidade (que aqui é pura receptividade, ser-fora-de-si) e a espiritualidade, porque a sensibilidade mesma apresenta um conteúdo espiritual, centro de um recolhimento (“contemplativo”) que o conhecimento intelectual normalmente ignora. Este componente sensível, que parece indispensável para o prazer “estético” (a palavra mesma --de “aisthêsis”: conhecimento sensível-- parece o dizer), constitui uma segunda dificuldade contra a transcendentalidade do belo.

Acrescentamos, finalmente, uma terceira dificuldade, a fragilidade mesma do belo, sua raridade, que faz da beleza uma maravilha inesperada (por exemplo, o grito de Adão ao descobrir Eva, sua companheira de vida, no instante de sua criação...), e parece exigir, com freqüência, que o belo natural seja “aperfeiçoado” por uma beleza artística.

2.6.2 Agora, está última dificuldade indica, também, o caminho no qual deve-se encontrar uma resposta. Enquanto unidade dos transcendentais, a beleza é a perfeição suprema do ser; mas uma perfeição rara e frágil, porque basta um defeito qualquer na linha dum dos transcendentais (uma ausência de unidade, uma falsidade, um mal...) para danar a beleza. Enquanto perfeição dos transcendentais, a beleza os transcende, por sua vez, de alguma maneira, e

57

Page 58: Cópia de metaficisa2

não se encontra jamais perfeitamente realizada neste mundo (como os seres deste mundo não “são” nunca perfeitamente).

A necessidade que experimenta o homem de embelecer a beleza natural com a arte (o quadro de uma paisagem, a estatua de um formoso corpo, o canto poético das belezas...) mostra também que ele projeta uma beleza melhor, mais espiritual respeito ao belo que lhe é apresentado; portanto, ele mostra-se consciente de que a beleza não se esgota com o que lhe é dado nos sentidos. Esta “espiritualidade” da verdadeira beleza manifesta-se, também, pelo fato de que, precisamente, na esfera humana, a beleza sensível revela-se sempre inadequada (o “insípido” dos “concursos de beleza”, retratos expressivos propriamente enquanto não são “belos”, etc.).

Por outra parte, a arte mais refinada não alcança a simples beleza do dado natural, que se manifesta com freqüência inesgotável na contemplação (ainda que não seja mais o jogo das cores de uma posta do sol). No campo estético, os sentidos dão um algo mais do que o intelecto não alcança igualar: é um sinal de que a fonte e o núcleo da beleza residem propriamente no simples ser-dado (antepredicativo), no qual as ontologias de inspiração fenomenológica buscam o ser.

2.6.3 Como atitude prática segue-se a necessidade da busca de uma beleza além deste mundo, busca que pertence à ordem da admiração contemplativa, do amor puro, desinteressado (que se refere ao belo antes que ao bem, que é objeto de desejo), da religiosidade que reuni estas duas atitudes, dirigindo-las até a esfera do divino. Através da meditação do ser-belo, a metafísica recupera o salto (intuição) platônico que tende à visão (“visão beatífica”, não “conhecimento beatífico”) do invisível; impulso tanto mais necessário já que a beleza terrena, de transcendência relativa, tende a se elevar a ídolo por um estetismo imanentista.

2.6.4 Em conclusão, as propriedades transcendentais do ser nos revelam que a pessoa é o “ser” no sentido mais pleno desta palavra; ela é autenticamente una, verdadeira, boa, bela, mais do que os seres naturais infra-humanos. Portanto, os transcendentais nos invitam a abandonar uma concepção “naturalista” do ser (e da metafísica) por uma concepção “personalista” e, com isso, autenticamente religiosa, enquanto essa concebe “àquele que é” como pessoa no sentido mais alto do termino (cf. Gaudium et Spes, nº 24).

Por outra parte, pode-se notar que os diferentes tipos de religiosidade parecem se medir, por sua vez, sobre os transcendentais: o Deus-unidade, princípio transcendente e bastante longe do mundo; o Deus-verdade, princípio de uma religiosidade na qual predomina uma fé dogmática; o Deus-valor, legislador moral que faz sentir ao homem pecador a distância que o separa de Deus; o Deus-beleza, objeto de admiração e de amor69.

2.7 RESUMO SINTÉTICO

Antes de intentar voltar a considerar, desde o ponto de vista personalista, uma metafísica do ato de ser, resumimos em algumas teses o que a visão tomista nos parece ter proporcionado:

1º O ser dos seres se descobre como aquilo ao qual refere-se o juízo; ele manifesta-se como um ser em-si, um ato e um ser-totalmente-uno-consigo-mesmo.

2º O ser é a perfeição das perfeições e é de por si infinito.

69 Ver sobre este ponto, em um sentido um pouco diferente: Blondel, M. Exigencias filosóficas del cristianismo, Herder, Madrid 1966.

58

Page 59: Cópia de metaficisa2

3º Ser significa ser-uno (segue-se o principio de não-contradição).

4º Ser significa ser-verdadeiro; deriva-se o princípio do fundamento e o princípio de causalidade.

5º Ser significa ser-bom; portanto, o valor e o dever-ser referem-se ao ser; e segue-se o principio de finalidade.

6º Ser significa ser-belo, como perfeição dos transcendentais, raramente realizada neste mundo.

7º Todo ser finito está composto daquilo que é, ou seja, de sua essência e de seu ato de ser, que são dois co-princípios ontológicos distintos; explica-se com esta composição a contingência, a multiplicidade e a finitude dos seres criados.

8º O ser finito se aperfeiçoa por meio de seus acidentes, como o agir e as relações predicamentais, realmente distintas de sua substância.

9º Deus e os seres finitos, a substância e os acidentes são de maneira analógica; esta analogia do ser deve-se conceber como uma analogia de proporcionalidade não metafórica, e como uma analogia de atribuição intrínseca.

59

Page 60: Cópia de metaficisa2

CAPITULO III:A CRISE METAFÍSICA E UM ENSAIO DE RELEITURA PESSOALISTA

3.1 A CRISE DA METAFÍSICA NOS TEMPOS MODERNOS

3.1.1 Racionalismo e empirismo

Na historia da filosofia, os tempos modernos caracterizam-se por uma profunda e geral crise do pensamento metafísico. As correntes filosóficas que dominam os séculos XVII e XVIII, isto é, o racionalismo e o empirismo, não são hostis, mas permanecem simplesmente entreditas frente a uma dimensão autenticamente metafísica do pensamento.

O racionalismo, com sua concepção das idéias inatas, termina reduzindo todo o ser ao humanamente pensável e identificando simplesmente as estruturas ontológicas com as estruturas lógicas (“dogmatismo”), intentando elaborar uma metafísica a partir da única análise das noções (cf. Christián Wolff).

O empirismo, por sua vez, reduzindo todo o conteúdo do pensamento humano ao que pode resultar, direta o indiretamente, da percepção sensível (externa ou interna, isto é, psicológica), termina negando conteúdo e valor a todo conceito que transborde a experiência sensível possível, até (e inclusive) o principio de causalidade (esceticismo de David Hume), substituindo assim o fundamento da ciência mesma.

3.1.2 O nominalismo encontra-se na base destas duas correntes, já desde o final da idade media. Esta filosofia radicalmente criacionista, reduzindo qualquer fundamento dos seres finitos (inteiramente singulares) ao livre querer divino, priva-se de instrumentos conceptuais e especulativos para um autêntico conhecimento filosófico de Deus (“agnosticismo fideísta”, quer dizer, sem negar a existência de Deus, afirmada por meio da única fé, nega-se à possibilidade de conhecer a Deus com a razão). Com efeito, se se nega aos conceitos universais como tal qualquer valor real, reduzindo-los a não ser senão generalizações de conceitos singulares ou símbolos de tipo matemático, então um conhecimento daquilo que está além da experiência já não é possível70.

3.1.3 Kant e o idealismo alemão. Emmanuel Kant, ainda considerando impossível uma “metafísica” de tipo racionalista (e demonstrando a sua impossibilidade), busca dar um novo fundamento ao saber científico-físico de Newton nas estruturas conceptuais mediante as quais o “eu que conhece” organiza necessariamente e “a priori” (isto é, como condição de possibilidade do conhecimento experimental mesmo e, por tanto, sem recorrer a ele) os dados da experiência. Esta fundamentação “transcendental” da ciência nas estruturas necessárias do saber substitui, portanto, uma fundamentação “metafísica” das leis do ser.

No idealismo alemão, que segue a Kant, reconhece-se ao pensamento humano uma dimensão metafísica, permanecendo, porém fiel à filosofia transcendental kantiana, enquanto atribui esta dimensão metafísica ao pensamento humano mesmo, que chega a ser assim “espírito absoluto”, ocupando ele mesmo o posto de Deus criador (Hegel). Estamos, portanto, em pleno “imanentismo”, quer dizer, que o além que buscava a metafísica clássica já não se concebe mais como um verdadeiro “além”, senão que é substituído pelo caráter absoluto, atribuído ao pensamento humano e as realidades terrenas. (O marxismo é uma transposição no plano prático deste imanentismo hegeliano que busca a salvação escatológica na prolongação da historia mesma).

70 Cf. Maréchal, J. El ponto de partida de la metafísica, 5 vols., Madrid 1958.

60

Page 61: Cópia de metaficisa2

3.1.4 O final da metafísica. Parece assim razoável que diversos pensadores, até os fins do século XIX (Nietzsche) e no século XX (Heidegger e, em sentido completamente diverso os neopositivistas), tenham proclamado o fim da metafísica. Depois das vicissitudes do pensamento moderno, podemos nos perguntar se é ainda possível voltar a uma metafísica do ser ou renovar-la?

Nos pensamos que, sim, é possível, com a condição de não conceber-la tanto como uma metafísica, um discurso fundado sobre o dado natural e sobre as ciências, senão como uma meta-antropologia que descobre ao ser na pessoa humana, em seu agir e em suas relações interpessoais. Cremos que assim não fazemos senão explicitar o que se encontra já na origem da investigação metafísica em Sócrates e Platão, e o que tem estruturado o discurso metafísico tomista (por meio de sua situação “teológica”).

3.2 ATÉ O REDESCOBRIMENTO DO SER: TU ES, EU SOU, ELE É

“Ser” é um verbo que se conjuga, e é notável que a metafísica clássica não há feito disso um uso mais amplo. Com efeito, não é na terceira pessoa onde o homem descobre em primeiro lugar o ser, nem na primeira, senão na segunda: por exemplo, em sua mãe (e seu pai). “Tu es”, portanto, a forma originaria de nosso conhecimento do ser.

3.2.1 Teu ser. O primeiro ser que a criança descobre --e que nomeai-- é a mãe: presença que dai seguridade, na qual pode se refugiar e que ele invoca; um bem que ele deseja, ainda antes de amar-lo, um absoluto e um todo. A partir deste “tu” que responde e que por vezes demonstra-se exigente, a criança descobrirá paulatinamente o mundo, e o interpretará: sua concepção do ser (e de Deus) ficará marcada por esta relação.

Sem dúvida, a criança não vive todo isso conscientemente, não mais daquilo que ele possa dar-se conta explicitamente no ser amado por sua mãe; ele é amado, e isso basta. Mas, quando mais tarde, na medida em que se transforme em adulto, descobrirá que é amado e ama, por sua vez, quando comece a amar a outras pessoas (amigos, namorada...), estes “Tu” que ele descobre lhe farão descobrir, ao mesmo tempo, mais autenticamente o ser. Descobrirá neles, contrariamente ao eros platônico, não a beleza, nem nenhuma outra qualidade que “Tu possuis”, senão mais bem tu mesmo, o que tu es, mais ainda, na sua raiz, em profundidade, a maravilha mesma ¡”que tu es”! É teu ser mesmo, o fato de que tu sejas (algo irrepetível, único, incomparável) o que constitui para mim que amo um valor supremo, que não se reduz às explicações que se poderiam dar deste valor (a relação particular que eu tenho com meus pais, uma grande familiaridade, que poderia resultar ainda modesta, enquanto é ainda novo estar-contigo, meu ideal que encontro realizado --imperfeitamente--, uma beleza física...).

Teu ser me aparece imediatamente como algo que transcende à experiência que eu tenho (contra o empirismo) ou aos conceitos que me poderia formar (contra o racionalismo), e certamente não explicável transcendentalmente (contra Kant): é um dado que apresenta um sentido em si mesmo, ainda se, precisamente, no caso em que este sentido não se deixa explicitar, ainda mais, permanece “indizível”; mas é um sentido que, na sua singularidade absoluta, parece ter valor universal (em resposta ao nominalismo): se todos não têm a capacidade de reconhecer-te como amável, eu creio ter o direito de pensar que a amabilidade que eu tenho reconhecido em ti seja válida para todos.

Simples ilusão de amor ou condicionamento psicológico? De nenhuma maneira, senão o descobrimento de uma nova dimensão misteriosa do ser, descobrimento do “ser” mesmo; porque ainda que eu penso que poderia me enganar em relação a meu amor, eu sei, porém que a perspectiva nova de “tu” me abres com teu simples “existir” não poderá jamais ser desconhecida

61

Page 62: Cópia de metaficisa2

por mim. Em termos mais técnicos, teu amor me parece que é o lugar privilegiado onde a percepção antepredicativa do ser chega a ser de tal modo claro e denso, que é evidente que o juízo não é senão uma tentativa de recuperar-la, pelo demais muito imperfeita.

Sempre em termos técnicos, portanto, o “tu” que descobre o amor parece que é propriamente o lugar onde o em-si, a transcendência e o valor do ser são originariamente percebidos, sem se prestar a reduções antimetafísicas da filosofia moderna.

3.2.2 Parece que o “eu sou” se descobre em toda sua densidade ontológica a partir do “tu es”, não tanto a partir do tu que eu amo, quanto de ti que me amas. Enquanto tal, com efeito, tu me interpelas, afirmando-me, e eu me encontro na necessidade de responder-te; eu descubro assim minha “responsabilidade” e me descubro como um “tu para ti”.

Encontra-me assim interpelado “em-mim”, eu reflito sobre mim mesmo mais seriamente do que na simples autoconsciência que acompanha meu conhecimento dos objetos e minhas ações, e me descubro ser (¡verbo!), descobrindo ao mesmo tempo a unidade e a necessidade do meu ser e minha orientação até um dever-ser. E sobre a unidade. É-me impossível, com efeito, separar-me daquilo que tu chamas (e que eu também devo chamar) “meus atos” passados, daquilo que eu represento agora (para ti e para mim mesmo) e daquilo que poderia fazer de agora e em diante. Tudo isso é sempre, e é inseparavelmente um “mim”, algo que me pertence e devo, portanto, reconhecer a chamada a minha responsabilidade como fundada.

Isso implica ulteriormente que eu devo reconhecer que estes atos não são somente “meus”, senão que eles procedem de mim; que existe um “eu” que tu tens razão de invocar como fonte espontânea de meus atos, também, como um em-si único, sólido, “existente”, e no qual eu não posso senão reconhecer-me, ainda que este “eu” não seja plenamente iluminado, e não possa nem sequer ser iluminado por minha consciência, subtraindo-se ao menos em parte de minha liberdade.

Esse “eu” ontológico se me apresenta como uma espécie de necessidade; eu não posso separar-me, pelo fato de que não estou em grau nem de negar nem de destruir meus atos passados, nem de subtrair-me à necessidade de agir agora e no futuro. (Ainda quem não quiser agir, age pelo fato mesmo de não quiser-lo: Blondel). Pelo tanto, eu não posso senão afirmar, acolhendo tua incitação, que “eu sou”, porque eu sou inelutavelmente “isto ou aquilo”, “aquele que tem feito isto ou aquilo”.

E, porém, ainda sendo o que eu sou, percebo que tua invocação, que espera de mim um futuro, me enfrenta com meu dever-ser: eu não posso negar que tuas expectativas são justificadas (ainda sabendo que não poderás jamais encher-las); a mesma necessidade que me obriga a agir para o futuro, me propõe agir não em função daquilo que eu sou ou daquilo que serei (de fato), senão em vista de uma plenitude e de uma medida conveniente do meu ser que eu não posso ainda, porquanto ela está já inscrita em mim: em vista daquilo que eu devo ser.

O “eu sou” que assim descubro, em resposta a tua invocação, não coincide, portanto, nem com a consciência que eu tenho, nem com a liberdade e, nem sequer se apresenta (ao menos originariamente) como centro e ponto de referência do “meu mundo”. Não se trata, portanto, utilizando a linguagem kantiana, nem do eu empírico, nem do eu nouménico, nem do eu transcendental, senão mais bem de um eu ontológico.

3.2.3 O nos somos. Do amor, isto é, do amar e do ser amado, que não somente afirmando o em-si de ti e de mim mesmo, senão que o reclamam e a ele se refere, jorra finalmente o “nos somos”. Com efeito, tu e eu, nós, não nos olhamos (ou “possuímos”) só reciprocamente (numa

62

Page 63: Cópia de metaficisa2

“reciprocidade de consciência”: Nédoncelle), da mesma maneira que dois espelhos refletêm-se mutuamente (imagem, por outra parte, inadequada, porque o conhecimento amoroso orienta-se, também, e, preferentemente, a este fundo de opacidade que parece fazer transbordar quase até o infinito meu ser e teu ser conscientes). Muito mais, nos estamos juntos: “nos somos”, tu e eu, não tanto da mesma maneira (porque no fundo eu não sou como tu es), por quanto estamos “em comunicação”, sobre um plano de igualdade ou, mais precisamente, “ao mesmo nível”, de maneira que podemos-nos encontrar efetivamente e, neste mesmo encontro, produz-se nosso “ser” verdadeiro, ao menos o atualiza, levando-lo a ser luminoso para mim e para ti.

Portanto, o “nos somos” é o lugar da manifestação e da verdade. O estar juntos, a comunhão do “nos somos”, nos faz afirmáveis e, sobre tudo, reconhecíveis um para o outro); este “nos somos” se atualiza ou, por assim dizer-lo, se acrescenta na medida em que o ser-manifesta-um-para-o outro, acrescentando-se permite assim uma mais perfeita afirmação mutua, que é um “ato comum do afirmaste e do afirmado” (ver capítulo II: 2.4.2). Aqui, por outra parte, no caso do conhecimento interpessoal, vê-se claro que a explicação idealista de um ato comum é errônea, porque originário é evidentemente o ato da manifestação do conhecível, e não o ato de afirmação do cognoscente.

3.2.4 O ser de nosso mundo. Finalmente, é neste campo luminoso do “nos somos” e de nossa afirmação mutua onde o “é” adquire plena luz e constitui-se perfeitamente. “É assim”: eis aqui a constatação afirmativa que tu faz para mim (e que eu faço para ti) sobre nosso mundo comum, sobre este terceiro elemento que nos interessa em comum e na afirmação do qual nos temos o mesmo parecer, ao menos, nos esforçamos em pôr-nos de acordo.

É somente esta busca de um consenso a que determina o “é” como pretende uma certa teoria contemporânea da ciência? Segundo o que temos visto sobre o “nos somos” parece que não. “É assim”: isto deve encontrar-se no mesmo nível do encontro ontológico possível que o “nos somos”; e, também, graças ao “é assim”, este encontro entre “nos” faz-se efetivamente possível; porque eu não te encontro (e tu não me encontras) senão “através da relação com múltiplos terceiros: o aspecto físico, a luz, o ar que transmite o som, aquilo do qual nos falamos, os “referentes” que dão sentido à linguagem e, “last but not de least” (último mas não menos importante) todo o mundo humano, a sociedade que tem constituído e transmitido a linguagem mesma. Portanto, a linguagem, --enquanto o lugar de atualização do “nos somos”, o “é assim” ao qual ele se refere--, participa, ao menos, do ser mesmo do “nos somos”. Dízimos: pelo menos, pelo fato de que nos aparece claramente que o “é”, como condição preliminar da atualização do “nos”, não pode ser originariamente condicionado.

Como estrutura da afirmação comum respeito ao “nos somos” tem esquecido a interpretação idealista deste ato, assim o modo de aparecer do “é” no seno desta mesma comunidade desmente, por sua vez, uma fenomenologia transcendental do “mundo”. O mundo não é jamais originariamente “meu mundo”; é sempre “nosso mundo”, e neste ser “nosso” (possível), está todo seu ser: é para mim, porque é em si; porque é para ti também; porque virtualmente é para nos.

3.3 A FINITUDE DOS SERES E A DIFERENÇA ONTOLÓGICA

Nos cremos ter descoberto nas pessoas e nas relações interpessoais que elas são irredutíveis às reduções antimetafísicas do pensamento moderno: seu “ser” não se deixa reduzir a uma ordem conceitual racional, seu ser transborda o simples dado empírico, e não pode ser constituído transcendentalmente. Mas este “ser” pessoal tem uma dimensão metafísica? Constitui um fundamento (último, absoluto), quer dizer a ele nos remite, ou se sua existência não é senão

63

Page 64: Cópia de metaficisa2

puramente factual, puramente contingente? Para responder a esta dupla questão crucial, não podemos transitar imediatamente o itinerário platônico (que reaparece, mutatis mutandis, na ontologia tomista), porque nos temos partido de Platão, e preferentemente de uma análise do amor, mas este amor não se volta até a beleza, senão mais bem a esta pessoa singular e, para ser mais preciso, nosso ponto de partida não está tanto em tu-que-es-amável senão em tu-que-amas, portanto, menos no “eros” do que no amor no sentido pleno de “philia” (amor de benevolência). E não parece que este “tu” singular que ama (nem, por conseguinte, este “eu” singular) nos envie, por sua vez, a um fundamento além de si mesmo. É isso mesmo então um fundamento último?

Isso é o que nos devemos indagar clarificando a finitude dos seres pessoais que temos encontrado. Nesta busca, as distinções aristotélico-tomistas que caracterizam os seres finitos podem-nos servir como principio de interpretação.

3.3.1 A precariedade do nos somos e a composição de matéria e forma. O “nos somos” aparece-nos imediatamente como a mais débil e a mais frágil maneira de ser. Este “nos” e, por conseguinte, seu ser é verdadeiramente real, não é somente uma maneira de expressar-nos? Nos temos descoberto este ser como fundamento de nossa (possível) comunicação; mas esta comunicação não é por casualidade extremamente aleatória, um desejo, antes do que uma realidade?

Considerando a questão mais de perto, parece que nos podemos e devemos distinguir diversas maneiras nas quais “nos somos” e, por conseguinte, diversos níveis de comunicação possível. O “nos” é freqüentemente, mais bem do que um estar-juntos, um “nos”: uma diferença que nos distingue dos outros e, assim, nos une entre nos (“nos jesuítas”, “nos religiosos”, “nos os seminaristas”, “nos os homens”). O estar juntos, por outra parte, permite os mais diversos graus de intensidade e de plenitude, que vão desde o simples se encontrar cotovelo a cotovelo dos corpos até a plena comunhão dos corações (“idem velle, atque idem nolle...”).

Estas observações nos conduzem, por sua vez, à teoria aristotélico-tomista da composição dos seres de matéria e de forma, e da matéria como principio de multiplicação nos seres da mesma espécie. O “nos somos” nos aparece ante tudo como condicionado por nosso ser-material, no duplo sentido de condicionamento: enquanto que a continuidade ou contigüidade material parece fazer possível o estar-juntos e também a comunicação (por meio do ar que nos une e transmite o som, etc.), é, porém este mesmo ser-material que impede a comunicação perfeita, o que nos tem separado, estranhos um ao outro, e que constitui uma primeira opacidade que não se penetra sem dificuldade. Portanto, é profundamente mais do lado da forma onde nos devemos buscar a possibilidade do “nos somos” e do estar-em-comunicação. Esta forma substancial ou acidental comum, idêntica (mas não “uma só”) em diversos, nos qualifica como “nos”, e explica por que “nos somos” fundamentalmente do mesmo modo.

Agora nos podemos formular melhor a precariedade do “nos somos”. A forma substancial comum, entre “nos homens”, não é senão a forma da espécie, e o “nos” permanece, por conseguinte, totalmente genérico (como a linguagem genérica que devem usar os amantes, ainda advertindo o inadequado). Toda forma comum mais específica não seria senão acidental e, portanto, precária, por quanto ela constitui a perfeição individual deste ser que tu es e que eu sou; porque na matéria, principio de diversidade e de dispersão, também estas perfeições se dispersam. Cada vez que se estabelece um verdadeiro “nos somos”, isso é, portanto, uma vitória da forma, concretamente (e não só genericamente) idêntica, de nosso-ser-pessoas-humanas, sobre a dispersão da matéria: uma realização alcançada pelo composto de matéria e forma.

64

Page 65: Cópia de metaficisa2

Poderia-se propor a mesma idéia diversamente: graças a nossa forma substancial, genericamente idêntica, dos seres humanos, existe entre o eu e o tu uma possibilidade radical de compreender-nos. Mas esta possibilidade é obstaculizada e contrariada pela opacidade de nosso ser-material (o aspecto limitativo de nosso corpo enquanto matéria). Agora, desde o momento em que nos alcançamos nos comunicar igualmente, usando o corpo (que é também, enquanto matéria informada, meio de comunicação) como sinal e expressão, é uma vitória da forma sobre a matéria, um êxito do composto segundo sua hierarquia ontológica interna.

3.3.2 A distinção entre tu e o teu, e a composição de substância e acidente. Suponhamos que nos temos alcançado, eu e tu, constituir um autentica “nos somos” além da possibilidade de dispersão do ser material. Então se me apresenta uma segunda limitação do ser: “tu es” (também tu) de maneira não perfeitamente idêntica a ti. Porque todo o que eu conheço e percebo de ti (e que tu es verdadeiramente) não é o que tu es mesmo, senão o que é teu (isto é, teu caráter, teus atos, tuas palavras, teu corpo, como também teu amor): é o que tu tens mais bem do que o que tu es, ainda que tu o tenhas não como algo simplesmente “possuído” do qual poderias desfazer-te (e, portanto, não exatamente no sentido do ter de Gabriel Marcel). Mas é mutável, variável, não és simplesmente tu; e se eu amasse somente isto, não seria a ti, a ti mesmo a quem eu amaria.

Portanto, tu me apresentas, por dizer-lo assim, um “duplo tu”: o que eu conheço e percebo de ti, e o que tu es; mas estes dois não constituem senão uno, pois eu não posso separar um do outro nem opor-los. Es propriamente tu aquilo que eu conheço, através deste “teu”; por este “teu”, tu es para mim alguém em concreto.

Aqui, também, a distinção aristotélico-tomista da substância e dos acidentes nos permite formular de modo mais preciso esta identidade não-identidade de ti mesmo e do teu. Os acidentes não são senão um “ser-tido” em e por meio da substância, este “teu” no é senão um ter, mas só existe em e por meio de “ti mesmo”. O que nossa reflexão atual mostra mais claramente é que a substância existe em concreto em e pelos acidentes, os quais, longe de ser uma perfeição gratuita e acrescentada, constituem a perfeição concreta do ser desta substância, e aquilo pelo qual ela é plenamente ser, plenamente “nos somos”.

Isso indica dois fatos: por uma parte, a finitude da substância finita (do tu) e sua inadequação a si mesma; por outra parte, o devir como execução ou realização concreta deste ser finito. Porque o campo do “teu” é essencialmente variável, é como isso o lugar mesmo do devir: tu deves, tu, em teu ser mesmo. Com a variação de teus “acidentes” que tu tens-para mim. Então, se eu me pergunto: que es tu? Devo responder, todo teu devir, porém, sem identificar-te simplesmente com ele, porque tu es também “tu que deves”.

3.3.3 A temporalidade do eu sou e a composição de ser e essência. Já que eu não alcanço apreender de modo adequado o “tu es” em ti mesmo, senão sempre somente o “teu”, vejamos se apreendo mais facilmente meu “eu sou” em mim mesmo. Meu “mim-mesmo”, ao qual tu amor se orienta, me parece poder distinguir-lo (ainda que não possa jamais separar-lo) de todo o que não é (não era, no será) senão “meu”. Mas, eis aqui, que este mim mesmo esta afeitado por um sinal de temporalidade: “eu sou”, isso me diz, ante tudo, que eu era e que eu serei. Não sou “eu” que permanecerei “debaixo” meus acidentes variáveis; eu sou atualmente quem está emergindo de um passado e caminhando até um futuro. E não é um simples fato de consciência explícita destas dimensões temporais interiores; senão que eu sei com certeza que eu sou porque tenho sido e em vista daquilo que eu serei.

O que eu sou é o resultado e o ponto de chegada de todo o meu passado (que só é imperfeitamente conhecido por mim mesmo) e que compreende também este múltiplo poder-ser

65

Page 66: Cópia de metaficisa2

que não se realizará senão muito parcialmente no futuro (e que eu mesmo ignorarei durante muito tempo), mas que não é menos real. E isto não é (outra vez) somente “meu” variável; pelo contrário é o que constitui a unidade e a continuidade mesma do eu que vem do passado e vai até o futuro: sou eu (passado) que me encontro nestes eventos acidentais e serei sempre eu (futuro) que me encontrarei nestes outros eventos. Há nisso uma distensão temporal do meu ato mesmo de ser, que faz que meu “ser” não seja jamais adequado “ao que” eu sou. “O que sou” é toda minha história que meu “ser” recorre pouco a pouco, porque eu não “sou” senão sucessivamente e, porém, esta história não é senão na medida em que meu “ser” a recorre, e eu sou ela passo a passo.

Esta distensão entre “o que é” e o ser mesmo, enquanto um vai além e “funda” subdiversos aspectos ao outro, nos a temos já encontrado na distinção tomista do ser e da essência. Segundo nossa análise atual pareceria que a essência transborda simplesmente o ser, englobando tanto “aquilo” que “eu sou”, e que o ser não seria senão um intento (por outra parte vã) de recuperar-la pouco a pouco no seu ser-sucessivamente. Tal seria, com efeito, a perspectiva de uma filosofia “essencialista”. Mas, considerando-lo de perto, eu sou “o que” sou somente pelo fato de que (e na medida em que) “eu sou”: portanto, a essência não é senão um desenvolver-se deste ser que é um “ser temporal”. Este segundo ponto de vista de uma filosofia do ser indica a única relação verdadeira de fundamentação, porque é pelo fato de que eu sou e atuo o presente, que eu realizo atos definitivos, que eu “me faço ser” o que terei sido para sempre, ao qual aplica-se o principio de não-contradição e o que, por sua significação universal, se subtrairá a minha inclinação e me transbordará de alguma maneira: “ele é” (e será ou ao menos terá sido) ainda além do fato de que “eu sou”.

3.3.4 A ambivalência do « ele é » e a diferença ontológica. O “ele é” assume de fato, depois destas reflexões, um aspecto extremamente ambivalente. Por uma parte, nos descarregamos sobre o “ele é” (e com justiça parecesse) todas as não-identidades e fragilidades que tínhamos descoberto no “nos somos”, “tu es”, “eu sou”: o “ele é” contem em si as decomposições dos seres em matéria e forma, substância e acidentes, ser e essência; como o “nos”, porém, o “tu” e o “eu” não cessam de ser; o “ele é” parece ser de maneira mais sólida ainda do que estes três modos de ser, porque não aparece alcançado no seu fundo por sus fragilidades “pessoais”: ele se apresenta “sempre assim”, “invariável” (pense-se nas leis da natureza), “supratemporal”. Seria esse, portanto, o lugar do ser (¡verbo!) mesmo? Ou seria, talvez, ao contrário, o lugar em que a “diferença ontológica” (a diferença entre os entes e o ser) está marcada mais profundamente?

Uma reflexão ulterior sobre os limites específicos e aparentemente insuperáveis dos seres pessoais (eu e tu) poderá de algum modo nos iluminar.

3.4 OS LIMITES ABSOLUTOS DO « TU ES - EU SOU - NOS SOMOS » E A POSSIBILIDADE DE UM ALÉM

O que temos visto até aqui nos tem indicado que “nos somos”, “tu es” “eu sou” de maneira finita, limitada; nos fica por ver de qual modo o “tu es” e o “eu sou” deixam de ser, ao menos aparentemente, um para o outro (de maneira que o “nos somos” também parece deixar de ser). Este “deixar de ser” sucede com a morte e com a culpa (que podem também ser minha morte e tua culpa).

3.4.1 “Tua morte” não é jamais uma simples constatação de fato: tu tens cessado de existir. Pelo contrário, ela está constituída por um duplo saber: eu sei que “tu me faz falta” e que “era inevitável”. Neste duplo saber (que só constitui de modo adequado o fenômeno da morte), essa,

66

Page 67: Cópia de metaficisa2

sem deixar de ser um fato irreversível, é, de algum modo, já superada. A morte parece ser o que é só em virtude de um além da morte.

“Tu me fazes falta”, porque “tua morte” não é somente “o fim de uma vida”, nem somente uma “não-existência”, um não-mais-ser”; pelo contrário, é uma laguna positiva. Me falta uma presença, e por esta ausência meu mundo e minha mesma vida têm chegado a ser mais pobres. Agora, esta “falta de uma presença” significa que tu continuas sendo para mim o que já eras (minha mãe, meu amigo...); eu sigo amando-te, e, porém, tu não estas mais aqui: teu “ser” não se esgota, portanto com esta “vida” que acaba de terminar, com este ser que não está mais. É a morte que, cruelmente, mas num sentido muito profundo, me revela a verdadeira dimensão de teu ser, dimensão que eu descubro desde o presente amando-te, afirmando-te “além” da morte”.

Tua morte, porém, não é de nenhum modo acidental; eu sei com certeza que ela é inevitável, assim como sei com certeza absoluta que “eu morrerei também”.

Este saber, modelo de todo saber certo (ver: “Sócrates é mortal”) não é, portanto, uma simples constatação de fato, nem um saber de experiência (eu não posso ter nenhuma “experiência” da minha morte), nem uma construção imaginativa ou conceitual (no fundo eu não tenho nenhum conceito nem imagem daquilo que significa morrer), nem tampouco um conhecimento das leis naturais (porque assim como a morte mesma é certa, assim também sua hora e as circunstâncias nas quais sucederá não são cognoscíveis antecipadamente), nem sequer uma crença (porque freqüentemente eu não creio que deva morrer, ainda que saiba o contrário). Este saber deve ser, em cambio, um profundo saber-me-limitado, como eu te sei limitado, e isso por causa de nossa condição material (eis aqui o fundo de verdade da maior do silogismo clássico: “vivens compositum est mortale”). Este saber-me-limitado me é também confirmado pela experiência quase quotidiana de minhas debilidades, de meu descaimento parcial e progressivo, de todo o que tem “morrido” para mim e em mim, sendo um poder-ser irrealizável de agora em diante: “quotidie morior”.

Agora, não obstante este saber certo da inevitabilidade da morte e de minha morte, eu não a aceito como uma fatalidade, como algo que vem sozinho; tua morte me doe profundamente e caracteriza toda minha vida. Todo o poder-ser futuro se me apresenta sempre como alternativa ao poder-morrer, quer dizer, que todo o que eu sou e faço é, por dizer-lo assim, arrancado à morte. Esta angustia exaspera-se até a rebelião e a resistência desesperada na hora da agonia, que faz evidente o fato de que a morte não é “a conclusão natural de minha vida”.

3.4.2 Por minha culpa eu me faço de algum modo cúmplice da morte; porque assim como a morte implica a desaparição total de minha (de tua) vida e da relação dialogal, assim minha culpa implica uma desaparição parcial, uma “pequena morte”, ainda mais a grande morte mesma, no caso do homicídio e do suicídio (segundo a Bíblia a primeira morte tem sido um fratricídio). Por culpa minha, quer dizer, a continuação de um ato de minha liberdade, eu não respondo a tua expectativa, eu não sou para ti aquele que poderia ser, eu não correspondo a meu dever-ser (meu valor, minha verdade).

Como eu não percebo concretamente a morte senão como “tua morte” e de “minha morte” não tenho senão um saber abstrato, ainda que certo, assim não percebo concretamente a culpa senão como “minha culpa”; eu me reconheço, em consciência “culpável diante de ti”, mas suponho e, com razão, que também tu podes cometer culpas, e as faltas que constato em ti chegam a ser muito dolorosas.

67

Page 68: Cópia de metaficisa2

Eu faço esta suposição com razão, porque sei, por experiência certa, que é impossível evitar todas as culpas e ter sempre uma liberdade inteiramente reta (olhar o “mal radical” segundo Kant); ainda mais, encontro a nos, a mim e a ti, num contexto de culpas (próprias e de outros) sempre e já presentes, de modo que chego a conceber o mal moral com uma visão trágica como anterior ainda às culpas particulares, uma espécie de “destino” que pesa sobre meu agir (olhar a tragédia grega, por exemplo, Édipo e a serpente no relato bíblico do primeiro pecado). O mesmo mal moral, como a morte, aparece-se me como um mistério.

3.4.3 Frente ao mistério da morte e da culpa, a questão do ser coloca-se em termos de salvação. Trata-se, com efeito, já não somente da finitude dos seres. O ser mesmo (e meu e teu poder-agir) se me propõe como fundamentalmente ambíguo. Ainda que a morte, de fato, parece sancionar de maneira definitiva a contingência e a limitação de teu e meu ser, porém aparece como algo que não deveria ser; é duvidoso que ela alcance ao ser mesmo; ela faz aparecer, pelo contrário, dia pós dia, ao “eu sou” e ao “tu es” como um dom maravilhoso e gratuito. A culpa, que resulta uma debilidade aparentemente inevitável de meu (e de teu) poder-agir, exalta esse dom pelo fato mesmo e faz-nos conceber a possibilidade de um agir (e conseguintemente de um ser) inteiramente íntegro, quer dizer, “salvo”. Pode ser superada esta ambigüidade em favor do lado positivo? Existe uma esperança de salvação?

Ante tudo, é certo que nos podemos esperar a salvação e podemos dizer, também, que nos a esperamos seguramente. Se a culpa obstaculiza e destrói parcialmente o “nos somos”, este mesmo “nos somos” pode ser restabelecido pelo perdão que tu concedes a meu arrependimento.

E também, além da morte, podemos esperar que o “nos somos” não seja inteiramente destruído graças a um amor que permanece fiel a ti (e a mim) ainda depois de morridos. “Eu espero em ti por nos” segundo a expressão de Gabriel Marcel.

3.4.4 A fundamentação da esperança no Transcendente. É fundada esta esperança? Tratando-se somente de ti e de mim, não se vê de que modo poderia ser-lo. Porém, constatamos que há um “nos somos” que nos transcende de algum modo; tua morte e minha morte deixam subsistir o “nos somos” de nossa família, de nossa congregação, de nossa pátria, da humanidade. E neste “nos somos” nos seguimos sendo de algum modo presentes. Se existisse um “nos somos” onde esse “de algum modo” alcançasse abranger toda a densidade e plenitude de nosso ser dialogal, se nos fossemos amados absolutamente, seriamos salvos, porque deste mesmo amor poderíamos também esperar o perdão de todas nossas culpas.

Existe este “nos somos”? Nos constatamos do mesmo modo que o “ele é” transcende de alguma maneira o “nos somos”. Ele é, e permanece, não obstante todas as vicissitudes e debilidades do “nos somos”. É por isso que os gregos têm encontrado na “phusis” o ponto de apoio da metafísica; é por isso que Nietzsche queria voltar à “inocência do devir”.

Mas o “ele é”, enquanto tal, não iguala ao “nos somos”, nem (menos ainda) ao “eu sou” e ao “tu es”. Porque, por uma parte, não chega plenamente a sua verdade, portanto a seu ser verdadeiro, senão ao conhecimento que nos temos dele. E, por outra parte, ainda assim não alcança jamais o nível pessoal, dialogal do ser; e era sobre este nível, e sobre este nível somente, onde nos buscávamos a salvação. Portanto, esta salvação não seria possível, ao menos que o “ele é” escondesse em si, “detrás de si”, como seu fundamento, um ser pessoal, um “tu es”, que seria então o “Tu Es” absoluto, Aquele em quem ser e TU coincidiriam. Será tarefa da onto-teologia, da teologia natural, colocar e resolver esta questão, sem a qual a metafísica não seria ela mesma. A teologia natural poderá e deverá colocar esta questão a partir da consciência religiosa popular que coloca e resolve em todo lugar, ainda que de maneira diferente, a questão

68

Page 69: Cópia de metaficisa2

da supervivência depois da morte e do perdão ou da expiação possível das culpas. A estas considerações se tinha referido a busca metafísica desde os tempos de Sócrates e Platão, para sustê-las, criticaras e purificar-las.

69