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Eugenia, princesa von der Leyen Conversando com as Almas do Purgatorio Prólogo de Arnold Guillet Prefácio do editor Dr. Peter Gehring Tradução de Alphons Gilbert JM edições São Paulo 1994

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Eugenia, princesa von der Leyen

Conversando com as Almas do Purgatorio

Prólogo de Arnold Guillet Prefácio do editor Dr. Peter Gehring

Tradução de Alphons Gilbert

JMedições

•São Paulo

1994

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Conversando com as Almas do

Purgatorio

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C A P A : A s pobres alm as, que após a m orte perm anecem n o Purgatorio, sofrem e pedem orações p ara que sua libertação se abrevie, e sua expiação se acabe. D o Purgatorio sairão rumo à luz do Paraíso celeste, com o a fo r te e p oderosa águia, que parece ir de encontro a o Sol.

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<(? 1979 by Christiana-Verlag

ISB N : 3-7171-0748-8

Em língua portuguesa:© 1994 by A M edições Rua Martim Francisco, 656 01226-000 São P a u lo -S P Brasil

ISB N : 85-276-0305-5

Printed in Brazil - Impresso no Brasil Ia edição - 1994 2a edição - 1996(Tradução da 4a edição alemã - 1985)Título original: M eine G esprüche m it Armen Seelen Tradução: Alphons Gilbert

Créditos da1-lotosA 1» fni»sd.Li páginas 1 5 9 ,160c 161 foram IV i lux sobeiu .oineiidj d. i editora. PlIo fotografo Alfrcd Hoffmann, D-8911 Unlcrdicvscn: dneilo autoral sobre o texto. bem com o sobie as fotos das páginas 18U, lh? c 1X3 r e sm am-se à. editora, A^ demais fotos provém do arquivo da princesa í.udovica von der Leven, castelo de Unterdicssen, [.andsberg, Baycrn.

A obra foi publicada em italiano soh o título: l m it i c ollm jiti t on le p o vere anime, pela editora de S ilvio Dcllandrea.

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FOTO/PORG.

Eugênia, princesa von der Leyen, pintura a óleo (50 x 57 cm) do pintor ameri- cano-irlandês John Rieger, Teufen (V. a nota na p. 180). A s pinturas a óleo e seus direitos autorais pertencem ao CHRISTIANA-VERLAG.

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Brasão da dinastia dos von der Leyen

Selo de Nossa Senhora, usado por Simon von der Leyen ( f ¡512), abade de Maria Laach, Arquivo Waal U34, muito ampliado. Desenho de R. Menges.

Oh! Como as Almas do Purgatório sofrem tanto por causa de sua negligência, de sua piedade comodista, de sua falta de zelo por Deus e pela salvação do próximo. Podemos ajudá-las por meio de nossa caridade reparadora que, por elas, oferece atos daquelas virtudes que elas negligenciaram em vida.

Ana Catarina Emmerich

A leitura deste livro produz uma fascinação interior que não se pode expressar por palavras.

Um leitor da cidade de Lucerna, Suíça

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A princesa Eugênia, da dinastia germânica dos von der Leyen, do lado materno, da estirpe dos Thum e Taxis, possuía um carisma todo particular; graças a uma especial disposição da Divina Providên­cia, teve, de 1921 a 1929, contato com Almas do Purgatório. O pároco Sebastião Wieser, seu diretor espiritual, testemunhou:

“Conheci a vidente nos últimos doze anos de sua vida e todos os dias eu ficava ciente dos acontecimentos que se davam com ela e das aparições que lhe surgiam... A vidente levava uma vida santa; sua caridade não conhecia limite?; era prestativa e sempre solícita em ajudar a quem quer que fosse. Era querida por Deus e pelos homens. É verdade que levei a princesa a anotar os fatos que com ela aconteciam; declaro, porém, sob palavra de honra, que nunca, em ocasião alguma, lhe sugeri qualquer opinião minha. Responsabilizo- me, pela veracidade de seu diário, que é totalmente digno de fé...”

Na opinião dos especialistas, seu diário é, em comparação com outras obras congéneres, o que há de melhor. Além disso, pela primeira vez, esse seu diário é editado com extensas informações e fotos de sua família, que nos fazem compreender o mundo em que vivia. A doutrina católica nos ensina que existe não só a Igreja militante na terra e a triunfante no céu, mas também a padecente no purgatório. Segundo os planos salvíficos da Divina Providência, esta precisa de nossa ajuda. No diário, este mundo sofredor da Igreja padecente aparece-nos representado por figuras inesquecíveis, que nos imploram com palavras comovedoras e gestos que nos cortam o coração.

O abalo emocional que o diário provoca em nosso íntimo voltará a sensibilizar-nos por nossa Igreja, no seu cerne católico, e nos abrirá os olhos para o sofrimento indizível das Almas do Purgatório, destinadas, por Deus, a ser nossas poderosas auxiliadoras, contanto que façamos algo por elas.

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O castelo de Waal, com o parque senhorial. À esquerda, embaixo: torre da Igreja da aldeia de Waal.

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Quando um editor apresenta aos leitores um novo autor, dirige- lhe uma das mais humanas perguntas, como o fizeram os primeiros discípulos que se aproximaram de Jesus: “Mestre, onde moras?” {João 1,38). Só chegaremos aconhecer alguém afundo se soubermos qual o país, a região, o ambiente e aépoca que o marcaram, onde estão as raízes de sua força.

Meu projeto de apresentar em nova edição o célebre diário da princesa Eugênia von der Leyen, oriunda da Suábia, começou a tomar vulto com a visita à nossa editora do pároco Dr. Peter Gehring, de Lindau, no ano de 1978. Por acaso chegamos a falar de Eugênia von der Leyen e viemos a saber que o Dr. Gehring é natural da mesma região e que se criou em Blonhofen, distante uns poucos quilómetros do castelo de Waal. Sentimo-nos felizes porque o Dr. Gehring, familiarizado com o genius loci, se prontificou a comentar a obra e a acrescentar-lhe anotações, pois só um profundo conhecedor do caso e da localidade estaria em condições de fazê-lo a contento.

O alto poder explosivo, contido neste diário extraordinário e perigoso, entrou repentinamente no campo visual de dois grandes expoentes da época: Hitler, que chegou a proibir a sua publicação (não o teria feito, se o livro fosse inofensivo); e Pio XII, amigo íntimo dos von der Leyen e que, como núncio apostólico, ficara diversas vezes no castelo de Waal e Unterdiessen, foi presenteado pela família com o original do diário.

Eugênia, oriunda de uma velha dinastia germânica

A autora de nosso diário, a princesa Eugênia von der Leyen und zu Hohengeroldseck, nasceu em 15 de maio de 1867, em Munique. No livro Genealogischen Handbuch desAdels, Fuerstliche Haeuser Band X,C) encontramos a seguinte informação:

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“De religião católica. Dinastia antiquíssima de Trier. Sua ori­gem deriva do castelo de Gondorf sobre a Mosela, município de Mayen. Os documentos mais antigos a apresentam como represen­tante da estirpe Engelbertus de Cunthereve, no ano de 1158; desde 1300 a família adotou o nome von der Leyen... Foi presenteada com o título de Hohengeroldseck, município de Offenburg, no ano de 1705. Aceitou o título de príncipes por serem seus descendentes membros soberanos da Aliança do Reno desde 12 de julho de 1806. Os descendentes fazem jus ao título de príncipes, princesas von der Leyen und zu Hohengeroldseck...”

Eugênia von der Leyen era filha do terceiro príncipe da estirpe dos von der Leyen. Chamava-se ele Philipp II Franz Erwein, nascido em 14 de junho de 1819, em Waal, onde morreu em 24 de julho de 1882. A mãe de Eugênia era Adelheid von Thum und Taxis, falecida em 1888. Pela linha materna, Eugênia descendia, pois, da célebre família aristocrática dos Thurn und Taxis, que durante séculos dirigiu os serviços postais no império alemão.

O irmão de Eugênia era Erwein II Theodor, quarto príncipe dos von der Leyen, morto aos 75 anos, em 1938. A esposa dele, cunhada pois de Eugênia, era Marie Charlotte de Salm-Reifferscheidt-Dijk (f 1944). O sobrinho de Eugênia, príncipe Erwein III Otto Philipp, foi o seguinte na dinastia (Vejafoto na página 119)-, casou-se com Maria Nives Ruffo delia Scaletta, da estirpe dos Borghese, em Roma (Veja foto na página 120). Foi ela quem, firmemente, acreditou no carisma de Eugênia, em contraste com os outros membros da família, de idéias liberais, e foi ela quem entregou ao papa Pio XII os originais do diário de Eugênia. Para que esta aceitasse o seu carisma, a influência da família dos Borghese foi decisiva. Eles eram, por assim dizer, os mecenas espirituais de Eugênia. Para acentuar essa influência, apresentamos uma foto da princesa Ludovica Borghese. (Veja foto na página 181.)

Vivendo de 1859 até 1928, influiu grandemente, através de sua filha e de sua neta, na missão de Eugênia. Sua filha, Maria Nives, que

1. Editora C.A. Starke, Limburg, Alemanha.

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casou-se com um membro do castelo de Waal, protegia Eugênia von der Leyen de modo extraordinário, pois estava convencida de seu carisma.

A princesa Ludovica, que nos convidara e que com muita delicadeza nos mostrou os dois castelos, recebera seu nome de batismo de sua famosa avó, de Roma, a princesa Ludovica Borghese. Existe também, na esfera da graça, um sistema de coordenadas cujo alcance, na maioria das vezes, aparece só mais tarde.

Depois de nova divisão dos domínios pelo Congresso de Viena, o príncipe comprou os dois senhorios de Unterdiessen e de Waal. Em 1924, o interior do castelo de Unterdiessen passou por uma reforma e, em 26 de junho de 1925, o príncipe herdeiro mudou-se para lá. Acompanhou-o Eugênia, que lá permaneceu até sua morte, em 9 de janeiro de 1929. Os trabalhos de reforma continuaram. Em 1923 foram descobertas pedras do tempo dos romanos; tem, pois, funda­mento a presunção de que os romanos construíram lá uma fortaleza.

Visita ao castelo de Unterdiessen

Eugênia von der Leyen passou paite de sua vida no castelo de Waal e, desde 1925, no castelo de Unterdiessen, distante apenas poucos quilómetros do de Waal.

Em 31 de janeiro de 1979, o Dr. Gehring e o editor deste livro foram convidados, pela princesa Ludovica von der Leyen, a visitar os castelos, que ficam na parte da Suábia pertencente à Baviera. Estão situados entre Augsburg e Garmisch-Partenkirchen, 10 km ao sul de Landsberg, no vale superior do rio Lech, 12 km a leste de Bad Wõrishofen, 8 km de Buchloe (atualmente estação da estrada de ferro para aquela região) e a 25 km de Kaufbeuren.

Landsberg é uma velha cidade bávara, acima do conhecido Lechfeld, onde o rei Otão I, em 955, derrotou os húngaros numa vitória que passou para a História. A cidade é célebre pela igreja barroca dos jesuítas e pelo paço municipal renascentista. Na cadeia

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de Landsberg, Hitier esteve preso em 1924, e amesma cadeia abrigou, desde 1945, os condenados no processo de Nurembergue, cinco dos quais foram executados.

À nossa chegada ao castelo de Unterdiessen, havia muita neve no parque senhorial, mas a rua de acesso e o parque de estacionamento estavam perfeitamente limpos. Latidos fortes do canil indicavam que o castelo estava sendo bem guardado. No amplo vão da escada, há muitas gravuras antigas e quadros a óleo, de proprietários dos tempos passados. A princesa Ludovica cumprimentou-nos cordialmente e nos levou ao salão pegado ao grande refeitório. Havia muitas perguntas a fazer, e assim viemos a conhecer novos episódios sobre a vida de Eugênia. Aqui em família, mas também na aldeia, chama­vam-na de “Eschi” (pronuncie-se “exe”, forma adaptada ao alemão do nome “Eugenie”). A princesa Ludovica contou-nos que ouvira muitas vezes a mãe dizer: “Eschi era a bondade em pessoa”.

Estávamos admirando os muitos tesouros de arte, imagens e lembranças, quando um objeto de forma semelhante a um ostensorio nos prendeu a atenção. O Dr. Gehring o identificou como sendo o invólucro de uma partícula da Santa Cruz, mencionada algumas vezes no diário. Descobrimos, ao abrir a cápsula, resíduos de um selo romano. Tratava-se de um trabalho de ourivesaria barroca, ornado de gemas na frente. Era costume, naqueles tempos, guarnecer objetos preciosos de devoção dessa forma; talvez, esse relicário tenha perten­cido aos tesouros de uma igreja secularizada. No centro da custódia há uma cruzinha branca, à qual está presa uma partícula da Santa Cruz. Conforme informações do Dr. Gehring, trata-se, geralmente, de partículas de madeira, que haviam sido tocadas na autêntica cruz de Nosso Senhor e que haviam sido bentas pelo Santo Padre; passam tais objetos por relíquias de muito valor. (Ver a foto da relíquia em questão, na página 159.)

No refeitório admiramos um quadro autêntico de um antigo pintor holandês, e uma grande pintura representando a condessa Maria von Schõnbom, em tamanho natural; também ela é mencio­nada no diário. Durante o almoço, na grande sala de jantar, nossos

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pensamentos giravam em tomo de Eugênia von der Leyen, que passou os últimos anos de vida— três e meio — , nestes recintos e que, há 50 anos, em 9 de janeiro de 1929 aqui morreu.

Mais alguns lembretes históricos: em 1647 nascera, em Unterdiessen, Philipp Konstantin von Thum und Taxis. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi guardada em custódia, no parque do castelo Unterdiessen, a escultura, de fama mundial, do grande artista francês, Augusto Rodin, Os cidadãos de Calais, trazida de Colónia; em 1946, os franceses levaram-na de volta a Calais, e dela se pode ver uma cópia, em bronze, no museu de arte, em Basiléia.

Pio XII, amigo íntimo da família von der Leyen

Na biblioteca do salão, em Unterdiessen, há 24 volumes impo­nentes: as obras completas do papa Pio XII, autografadas pelo próprio Sumo Pontífice e por ele oferecidas à família dos von der Leyen. A mãe da princesa Ludovica, Maria Nives Ruffo delia Scaletta, nascida em 16 de agosto de 1898, aprendera, em sua mocidade, a estimar, como professor de religião, Eugênio Pacelli, que, mais tarde, gover­naria a Igreja como o papa Pio XII.

A primeira família por ele recebida, como Sumo Pontífice, foi essa de sua antiga aluna Maria Nives, e, desde então, todos os anos, ele a recebia em audiência particular. Maria Nives descendia da célebre estirpe romana dos Borghese, que dera à Igreja o papa Paulo V.

A vila Borghese é conhecida por todos os que visitam a Cidade Eterna. Como já mencionamos, foi Maria Nives, mãe da princesa Ludovica, quem entregou ao papa, pessoalmente, o diário da princesa Eugênia, quando, depois da Segunda Guerra Mundial, foi recebida em audiência particular.

Ela morreu em 6 de agosto de 1971, em Roma, e foi sepultada no mausoléu familiar de Waal. Também o príncipe Otto Philipp Erwein Dl von der Leyen, nascido em 31 de agosto de 1884, seu

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esposo, sobrinho de Eugênia, morreu em Roma em 13 de fevereiro de 1970 e foi sepultado no mesmo mausoléu.

Hitler proíbe a publicação do diário

Já dissemos que Adolf Hitler esteve preso, em 1924, na forta­leza de Landsberg e que, em dezembro do mesmo ano, foi anistiado e posto em liberdade. Em Landsberg, visões apocalípticas de ódio o atormentavam e fizeram com que, mais tarde, fossem sacrificados seis milhões de judeus e que tombassem nos campos de batalha milhões de soldados.

Enquanto o cabo Hitler escrevia na fortaleza Landsberg seu livro-programaMe/rt kampf, Eugênia von der Leyen, distante dele 10 km, levava uma vida contemplada misticamente em Deus e escrevia seu diário. Mais tarde, Hitler chegou a ser seu vizinho, por ocasião das visitas no seu “Ninho de Águia”, em Berchtesgaden. Proibiu que se editassem ou que se lessem o diário. Depois de doze anos, o reino milenar de Hitler se esfumou. Sua luta terminou quando se suicidou no abrigo antiaéreo da chancelaria em Berlim. O diário de Eugênia, porém, oferece-nos novas esperanças pelo Reino de Deus, quejamais perecerá.

A igreja da aldeia de Waal

Acompanhados da princesa Ludovica, pudemos visitar, no decorrer da tarde, o castelo de Waal, onde Eugênia passou a maior parte de sua vida e onde escreveu seu diário. Foi aqui, pois, que se deram as aparições das Almas do Purgatório. O castelo de Waal, situado na freguesia que dele recebera o nome, ergue-se numa pequena colina, poucos quilómetros distante do castelo de Unterdiessen. Estacionamos os carros em frente à chancelaria, onde fica a administração do castelo, ao qual pertencem muitas proprieda-

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des em terras e florestas. Numa construção comprida ficam as moradias para funcionários e empregados.

As terras do castelo confinam com a igreja de Waal, cuja torre impressiona pela altura. Aliás, aquela igrejinha destaca-se entre as mais belas que há no estilo neogótico, devido, sobretudo, ao seu interior equilibrado e aos trabalhos artísticos de um mestre marcenei­ro, oriundo daquela região. Eugênia costumava entrar naquela igreja quando vinha do castelo, e nós tomamos o mesmo caminho. Por um pequeno corredor, chegamos ao oratório da família, mencionado, amiúde, no diário. O oratório é um recinto sossegado de oração.

Pelas janelas pode-se ver o altar-mor. Protegida de olhares curiosos, a família podia, ali, rezar sem ser perturbada. Por sobre o altar-mor há uma grande imagem de Nossa Senhora. Interessou-nos, de modo particular, o altar lateral à direita, atrás do qual fica o mausoléu da família dos von der Leyen. Encontram-se também, ali, os restos mortais da princesa Eugênia. Após cada inumação, o mausoléu volta a ser fechado.

Eugênia rezava muito nessa igreja, onde vira algumas aparições, entre as quais um velho cavaleiro, mencionado, amiúde, no diário.

Visita ao castelo de Waal

Subindo uma rampa, encontramo-nos, em seguida, no castelo de Waal. A direita, há uma cervejaria que ainda, na segunda década do século, produzia cerveja. O castelo, notável sob muitos aspectos, especialmente por sua larga escadaria, era visitado depois da Segunda Guerra Mundial por muitos americanos. Ali também se encontra o primeiro elevador da Baviera para o transporte de pessoas. Seu contrapeso fica num estreito poço quadrado e é movimentado a manivela.

O interior do castelo impressiona por seus objetos e peças históricas, destacando-se, entre outros aposentos, o grande e o pequeno refeitórios, a sala de fumar e o escritório. Comoveu-me, de

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modo especial, a grande pintura a óleo do príncipe eleitor Johann VI von der Leyen, arcebispo de Trier (1556-1567).

O quarto de Eugênia ficava a oeste e tinha 5 m2. Não se encontra mais no estado original, como afirmou a princesa Ludovica. Só a estufa de ladrilhos e a posição da cama continuam como naquele tempo.

Quem leu o diário, sabe que Eugênia sofreu muito nesse quarto e que, frequentemente, viu e sentiu coisas terríveis, que a levavam, repetidas vezes, ao desmaio. No entanto, Deus dava-lhe sempre novas forças para aceitar o sofrimento reparador em prol das Almas do Purgatório. Pode-se afirmar sem receio de exagerar: no castelo de Waal e no de Unterdiessen, ela foi amadurecendo até tornar-se santa.

Ao deixarmos seu quarto, deu-se um estrondo ensurdecedor, que fez tremer o castelo todo. A princesa Ludovica disse-nos que, bem perto da residência, ficava um campo de aviação da NATO e que a casa sofria muito com o ruído dos aviões, sobretudo quando rompiam a barreira do som.

A família dos von der Leyen

A estirpe dos von der Leyen deu à Igreja muitos homens e mulheres que representaram na vida eclesiástica relevante papel, entre os quais mencionamos:

• Georg II, bispo de Trier, 1 1533;• Simon, abade de Maria Laach, t 1512;• Bartholomáus II, decano de Trier, 1 1587;• Margarethe, abadessa, t depois de 1553;• Cari Gaspar II, arcebispo e príncipe eleitor de Trier, f 1676;• Damian Hartard, arcebispo e príncipe eleitor de Mainz, t 1678;• Lothar Friedrich, cónego de Trier e Worms, t 1640;• Anna Eleonore, prioresa de Engelpforten, t 1698;• Marie Agnes, abadessa de Marienberg, Boppard, t 1731;

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• Damian Friedrich, cónego de Kõln, Mainz, Würzburg, 1 1817;• Franz Erwein Sylvester, cónego de Würzburg, Bamberg, 1 1809.(2)

Urna bem pesada vida entre dois mundos

Eugênia von der Leyen teve de levar urna vida opressiva entre dois mundos, tão pesada que lhe comprimia o coração. Unicamente o pequeno príncipe herdeiro Wolfram (Veja as fotos ñas páginas 79 e 118.) e os animais domésticos viram algumas de suas aparições, e mais ninguém. E com ninguém podia conversar sobre esses as- suntos, a não ser com seu diretor espiritual. Deve ter sido para essa mulher algo de obscuro e confuso: uma invasão do sobrenatural que só foi possível por especial permissão de Deus. Algo tão espantoso, que não se compara com banalidades, como, por exemplo, um pro­grama de televisão, que também pode informar sobre mundos estra­nhos. Tudo que se passa no ámbito terrestre fica mais ou menos na superficie. O contato com o Além é incomparavelmente mais profun­do, pois fica ligado, por assim dizer, a uma corrente de alta tensão, impossível de ser suportado, até físicamente, por qualquer criatura. Só graças especiais de Deus podem sustentar urna tal sobrecarga do Além, sem consequências letais para o ente que a recebe.

Memorias de uma velha aldeã

Para terminar nossa visita, que nos ocupou o dia inteiro, a princesa Ludovica levou-nos a uma velha aldeã, viúva do professor Josef Feistle, que ainda se lembrava bem de Eugênia. A senhora Feistle contou-nos o seguinte:

“A princesa Eschi — todos a conheciam por esse nome — era alta e imponente, muito piedosa e caritativa. Contrastando com os

(2) Wolfgang Kramer foi agregado na historia da casa dos von der Leyen no século XVI.

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homens da casa dos von der Leyen, de atitudes liberais, era ela uma cristã fervorosa. De uma simplicidade espontânea e cativante, ajuda­va até os camponeses a recolher o feno quando ameaçava uma tempestade. Possuía o dom de acertar sempre com o presente que dava. Para cada um tinha um sorriso. Trabalhava muito pelas Missões, bordava paramentos e organizava coletas. Todos sentiam muita simpatia e profundo respeito pela irmã celibatária do príncipe.”

A sra. Feistle lembrou-se também da hora da morte de Eugênia, fato esse que nos interessava de modo especial. Eugênia von der Leyen morreu em 9 de janeiro de 1929, às quatro da madrugada. Perguntei à sra. Feistle se Eugênia empreendera viagens mais longas. Respondeu-me lembrar de que ela viajava para visitar suas irmãs: a baronesa Aretin(2a), em Adeldorf, e abaronesa JulieFrankenstein, em Ulstatt, Franken. Contou-nos, ainda, pormenorizadamente, que em Waal, de dez em dez anos, era representado um mistério da Paixão de Nosso Senhor, como o fazem em Oberammergau, que dista apenas 80 km de Waal, e que o diretor espiritual de Eugênia, o pároco Sebastião Wieser, montou diversas peças desse género: um mistério sobre São Francisco, um outro sobre José do Egito e outros mais. E terminou dizendo: “Os waalenses são bons atores”.

Em carta de 7 de fevereiro de 1979, a sra. Feistle nos comunicou ainda os detalhes seguintes:

“A princesa Eugênia quis tornar-se religiosa mas, devido à sua fraca saúde, não foi aceita. Antes de viajar para o convento que a rejeitara, despediu-se de cada membro da família... Havia um costu­me em Waal, segundo o qual, cada princesa, antes de morrer, deveria doar seu vestido de noiva à matriz. A mãe da princesa Ludovica Maria Nives Ruffo delia Scaletta, da família dos Borghese, de Roma, doou à matriz um paramento de missa magnífico, azul-claro, bordado de flores e de debruns prateados. O padre conselheiro Pfersich o vestia

(2a) Um filho desta baronesa, Erwein Freiherr von Aretin, é o autor do livro FritzMichael Gerlicli. Ein Martyrer unserer Tage, Verlag Schnell & Steiner, Munique. Gerlich escreveu a grande obra em três volumes sobre Therese von Konnersreuth.

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só em festas de Nossa Senhora. Parece que atualmente tais peças já não combinam com a mentalidade moderna...”

A crença em aparições e em Almas do Purgatório

A região do castelo Unterdiessen é chamada de Fuchstal, vale da raposa. Dois fatos na história local daquele vale merecem menção especial a respeito do diário de Eugênia. Dizem que em tempos passados reinava entre o povo uma forte crença em aparições de espíritos. Pois bem, tal crença, antigamente, era geral em toda parte e entre todos os povos. A parapsicologia tem demonstrado, por meio de provas, que tal crença tem razão de ser; baseia-se em fatos reais. No entanto, parece que os moradores daquela região possuíam uma antena especial para o Além. Em 1694 foi fundada a Irmandade em Socorro das Almas do Purgatório^3), acontecimento que condiz com o que acabamos de dizer. Enquanto vivermos neste mundo, podemos contar com a Misericórdia Divina; no purgatório, porém, prevalece a Justiça de Deus. Num velho restaurante em Oberdiessen, que era considerado a “Casa da Justiça do Povo”, está gravada a frase:

“Olá, juiz, pronuncie sentença justa,Deus é juiz, tu és seu servo.Se tu me condenares embora eu seja inocente,Deus te julgará.”Sem dúvida, os moradores no vale da raposapossuíamum senso

bem desenvolvido de justiça e verdade.

Lorelei e von der Ley

Qual a origem do nome von der Leyen? Segundo a princesa Ludovica, sua família se chamava antigamente “De Petra” (“da

(3) B. Hartenberger, Nossa terra em Fuchstal, 1973.

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Rocha”). Ley era uma palavra do alemão antigo e significa Fels (= rocha). A palavra germânica “ley” ainda permanece na designação “Loreley”. A lenda diz que “Lore” era o nome de urna das ninfas do Reno. Lorelei significa, pois, a rocha da ninfa Lore.

A rocha da Lorelei se ergue entre St. Goarshausen e Oberwesel, numa altura de 132 m, à margem do Reno, e produz um eco extre­mamente forte. O poeta Clemens Brentano introduziu o nome Lorelei na poesia; também Eichendorff e Heine celebraram a Lorelei. Quan­do a ninfa estava sentada naquela rocha e penteava seus cabelos dourados, os canoeiros ficavam enfeitiçados por seu canto, de tal modo que não mais ligavam a recifes e pedras, e seu barco se despedaçava de encontro às rochas.

Eugênia, unida à ninfa do Reno pelo mesmo semantema, “ley”, também tem atraído pessoas, as almas de falecidos, não porém de modo mágico e mortífero, mas como mãe compassiva das Almas do Purgatório, com o coração aberto e dando-se a todas elas. Eugênia perguntava, às vezes, por que vinham justamente a ela, e sempre recebia a resposta: “O caminho que leva a ti está livre!”

Santa Catarina de Génova

Não há nada de especial no fato de, justamente, a filha de um príncipe ter contato com as Almas do Purgatório. Nem é novidade na história da Igreja. Santa Catarina de Génova (t 1510), da estirpe aristocrática dos Fieschi, da qual descenderam os papas Inocencio IV e Adriano V, sofrera muitas aparições das Almas do Purgatório. Também ela nos deixou um escrito, intitulado Tratado sobre o purgatório. Catarina de Génova é considerada como “um gênio espiritual de primeira grandeza”.

O advogado genovês Ettore Vemazza descreveu sua situação do modo seguinte:

“Essa santa alma (Catarina de Génova) encontrava-se, enquan­to vivia ainda neste mundo, no purgatório do amor flamejante de

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Deus. Esse amor a devorava totalmente e a purificava de tudo que nela ainda fosse suscetível de purificação. Isso acontecia, para que, quando saísse deste mundo, pudesse apresentar-se aos olhos de Deus, que era seu doce amor. Devido a esse fogo de amor que ardia em sua própria alma, compreendia em que estado se encon­travam os falecidos que estão no purgatório. Devem purificar-se de toda ferrugem e de toda mancha de pecado de que, em sua vida terrestre, não se livraram. Assim como ela estava unida ao Amor divino — e por isso feliz — aceitando tudo o que esse Amor lhe propiciava, assim também as Almas do Purgatório estão contentes no purgatório^4).”

Santa Catarina é considerada a ‘Teóloga do Purgatório”, e São Francisco de Sales não se cansava de recomendar o livro dela: Tratado sobre o purgatório.

Três irmãs espirituais

Eugênia von der Leyen tinha naquela região onde vivia duas irmãs espirituais que, em 1721, se haviam encontrado em M uni­que, para um colóquio sobre as coisas de Deus: a bem-aventurada Crescência de Kaufbeuren e Maria Ana Lindmayr (1657-1726).

Como o fez Eugênia von der Leyen, assim também Maria Ana Lindmayr escreveu um diário sobre as aparições que viu das Almas do Purgatório^5). Também Crescência tinha visões das almas e contatos com elas, embora seu apostolado não se limitas­se a ajudar essas pobrezinhas. Leia-se a esse respeito o livro de

(4) Citado conforme o prof. Holbõck, Fegfeuer, p. 85, Christiana-Verlag, Stein am Rhein. É deste autor também o livro: Die Theologin cies Fegfeuers, editado também pela Christiana-Verlag, Alemanha.

(5) Sob o título Minhas comunicações com as Almas do Purgatório, o livro foi editado em 1978, 2a edição, pela Editora Christiana, Stein, Alemanha.

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Arthur Maximilian Miller, Crescência de Kaufbeuren, Das Leben einer schwabischen Mystikerin® .

O parentesco espiritual entre essas três mulheres nos surpreen­de. Eugênia von der Leyen, Crescência de Kaufbeuren e María Ana Lindmayr formam uma tríade que constituem uma unidade não apenas geográfica, mas também mental e espiritual.

Pertence ainda a essa paisagem espiritual de Waal um poeta: Petèr Dõrfler, nascido em 1878. Seus romances e histórias Ais Mutter noch lebte e Der Sohn des Malefizschenk se passam naquela região. É interessante que, em três de seus romances, descreva a sorte de três mulheres celibatárias que se tomaram, como Eugênia, uma bênção para todauma comunidade: “JudithFinsterwalderin(1916),Apolônia, filha de um moleiro e, nos companheiros da Jungfer Michline, descreveu três vultos incomparáveis de mulher que, por sacrificarem sua própria vida, se tomaram uma bênção para todos”/ 7)

O mestre do lago de Constança

Para chegar à residência de Eugênia von der Leyen, tive de viajar ao longo do lago de Constança e por um mecanismo de associações mnemónicas, veio-me à lembrança a figura do místico Henrique Seuse (ou Suso), de Constança. Não sei se Eugênia leu os livros de Henrique Seuse (1295-1366). Sabendo-o ou não, foi ele seu grande mestre, pois o tema do purgatório e de suas Almas do Purgatório é longamente tratado em seus escritos, e seus ensinamentos tomaram- se património comum da Igreja. Assim é que lemos no sexto capítulo de sua Vita:

“Naquela mesma época, ele ficou sabendo, em visões, muitas coisas futuras e secretas. Deus permitiu que ele sentisse e, enquanto

(6) 2‘ edição, 1976, Editora Christiana, Stein, Alemanha.

(7) O Grande Herder, 1953.

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fosse possível, compreendesse certas verdades relacionadas com o céu, com o inferno e com o purgatório. Acontecia-lhe freqüentemente que muitas almas de falecidos lhe apareciam e lhe diziam o que lhes havia sucedido, por que sofriam no Além, como podiam ser socorri­das ou como eram suas vidas perante Deus. Entre outros, apareceram- lhe também o bem-aventurado mestre Eckhart e João, da família Futerer, de Estrasburgo. O mestre comunicou-lhe que vivia numa glória transbordante e que sua alma submergira totalmente em Deus. Pediu-lhe então o servo que lhe explicasse duas coisas: primeiro, de que maneira se encontravam em Deus os homens que se haviam esforçado para agradar à Verdade Infinita, querendo, em tudo, cumprir a vontade divina? Recebeu a resposta dé que ninguém era capaz de expressar, com palavras humanas, algo a respeito da submersão dessas pessoas no abismo inconcebível de Deus. E continuou a perguntar: o que o homem devia fazer para chegar a tal união com Deus? Veio-lhe a resposta: Que se renunciasse totalmente a si mesmo, aceitasse todas as coisas e todos os acontecimentos como vindos de Deus e não das criaturas e que tivesse perfeita paciência para com homens cruéis.

O outro irmão, João, mostrou-lhe, em visão, a beleza transbor­dante de gozo de sua alma gloriosa. Seuse pediu-lhe também que respondesse à seguinte pergunta: O que seria mais doloroso e mais útil aos homens? O irmão João respondeu que não havia nada de mais doloroso e de mais útil, e que todos deveriam, com toda a paciência diante de Deus, renunciar à própria vontade e entregar-se plenamente à vontade de Deus.

O próprio pai, que havia levado uma vida mundana, apareceu- lhe depois da morte e, de face dolorosa, mostrou-lhe o castigo inimaginável que sofria no purgatório e que constituía o motivo principal de seus sofrimentos. Disse-lhe, então, como poderia aliviá- lo desses sofrimentos, e Seuse foi imediatamente socorrer o pai. Este mostrou-se-lhe novamente, dizendo-lhe que, devido à sua ajuda, já não sofria mais. Sua piedosa mãe, de quem, enquanto ainda viva, Deus se servia para fazer milagres, apareceu-lhe, mostrando-lhe,

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numa visão, a grande recompensa que recebera. Algo de parecido lhe tem acontecido com muitíssimas outras almas, fato esse que lhe dava grande consolo e o animava a continuar na sua maneira de servir a Deus.”®

Essas quatro aparições, mencionadas expressamente pelo bem-aventurado Seuse, não foram as únicas que lhe foram conce­didas. Aconteceram-lhe por ocasião de sua resoluta conversão a Deus, quando evitava qualquer encontro inútil, preferindo dedi- car-se à oração e a exercícios de penitência extremamente seve­ros. As aparições fortaleciam seus bons propósitos e o consola­vam quando tentado por desânimo ou tristeza. Enchia-se-lhe o coração de alegria e júbilo quando via entrar uma alma no céu. Despertavam em sua mente delicada compaixão e vontade de ajudar quando via no purgatório a alma de pessoa conhecida. Animado pela convivência familiar com as Almas do Purgatório, Seuse fazia muitas meditações sobre o purgatório, que lhe servi­am não apenas para rezar e penitenciar-se pelas Almas, como também para extrair, de suas reflexões, as diretrizes norteadoras de sua vida.

No Livrinho da sabedoria eterna, cap. 24, canta ele também as loas do purgatório e de suas Pobres Almas:

“Senhor, continuo me dirigindo a Vós. Se eu tivesse de morrer agora, e se fosse para eu ficar ardendo no purgatório 50 anos, eu me sujeitaria à Vossa Glória. Louvado seja o fogo que me fará cantar o Vosso louvor.”

“Meu suave Senhor, que suba a Vossos olhos grande louvor, semelhante àquele rico e gozoso louvamento que os Anjos Vos deram depois de terem passado pela prova e se terem alegrado com sua aceitação no céu, depois de terem assistido à reprovação dos Anjos revoltosos. Que o meu louvor suba a Vós semelhante aos hinos de louvor que Vos prestam alegres as Almas quando saem do terrível

(8) Heinrich Seuse, Publicações místicas alemãs, do médio alto-alemão, traduzido por Georg Hofmann, 1966, Editora Patmos, Diisseldorf, Alemanha.

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cárcere e aparecem diante de Vós e, pela primeira vez, contemplam Vossa Face amável, a Fonte de Eterna Alegria^9).”

Podem as Almas do Purgatório aparecer sob a forma de animais?

Muitos leitores do diário de Eugênia não conseguem familiari­zar-se com a idéia de que certas Almas se mostrem sob forma de animais repelentes e nojentos; assim, por exemplo, quando Egolf se mostra em forma de umgrande macaco “de olhos em brasa”, e Maria R. como serpente, pois “ela foi o símbolo de minha vida, juramentos quebrados, tudo mentira e fingimento”.

A isso pode-se dizer: Também outros videntes, homens e mulheres, têm visto as Almas do Purgatório sob a forma de animais. Certa vez, Jesus disse a Santa Brígida da Suécia, numa visão: “O que é espiritual não te aparece tal qual é, mas em forma corpórea; para que tua mente possa compreender as verdades, elas são apresentadas em símbolos e comparações”.

O médico-chefe Dr. Kemer, de religião luterana, escreveu em seu livro Die Seherin von Prevorst, que um espírito disse à vidente de Prevorst(in); ‘T u nos vês como é o nosso caráter”.

O Dr. Kemer fala também de outra mulher, à qual aparecia muitas vezes um espírito sob forma de animais nojentos, com a aparência de coruja, de gato, de feio cavalo etc.

José de Gõrres, o grande especialista em mística, da Universi­dade de Munique, escreve em sua obra Mística cristã( ' de cinco volumes, sobre a Irma Francisca do SSmo. Sacramento, da Ordem das Carmelitas, que “apareciam, às vezes, a essa Irmã, pessoas

(9) Heinrich Suso, Livre to da eterna sabedoria, traduzido por Oda Schncider, 1966, Gegenbauer, Alemanha.

(10) Editora J. F. Steinkopf, Stuttgart, 3a edição, 1973.

(11) Joseph von Gõrres, Mística cristã, v. III, p. 476. Editora Manz, Regensburg, 1840.

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falecidas sob formas terríveis, mais parecendo um animal do que gente. E como, em tais casos, Francisca ficasse tão aterrorizada, a ponto de desmaiar, essas almas, no seu primeiro aparecimento, não se mostravam sob essas formas mas qual sombras flutuantes, até que ela se acostumasse ao seu aspecto animalesco”.

Os fenómenos aqui descritos ocorreram, também, em todos os detalhes, com Eugênia von der Leyen.

Não só castigo, mas purificação sucessiva

Será que no purgatório a alma sofrerá só castigo? Terá ela que suportar dores, quantitativamente medidas, durante um período rigorosamente tabelado? Não seria isso um castigo totalmente mecâ­nico? O Dr. Miguel Schmaus, conhecido professor de Dogmática, da Universidade de Munique, propiciou-nos a verificação desse proble­ma de modo muito mais diferenciado e muito mais profundo. Na sua Katholische Dogmatik, ele escreve:

“A doutrina da Escritura (Mateus 13,22), dos Padres da Igreja, da maioria dos teólogos medievais, a oração litúrgica, a Santidade de Deus e a dignidade da pessoa humana parecem harmonizar-se melhor com a hipótese de se dar no purgatório também uma transformação do homem, uma remissão dos pecados e um acrisolamento da alma, e não apenas um suportar do castigo decretado por Deus. A Igreja pede em suas orações que Deus perdoe aos mortos os seus pecados. A palavra “peccata” significa não apenas os castigos pelos pecados, mas também, e principalmente, pecados. Parece corresponder mais ao poder da Santidade Divina que Deus exerça sua influência na vida do homem, transformando-o, melhorando-o, do que proibir-lhe, por castigo, a entrada no céu, embora esteja totalmente purificado. A imagem de Deus, apresentada pela S agrada Escritura, nos mostra que Ele une a Santidade, a Justiça e o Amor. Parece-me pois ser mais acertado aceitar a hipótese que Ele não só castiga mas também purifica o homem, agraciado e querido por Ele. Condiz também com a dignidade da pessoa humana, elevada ao estado espiritual, que os

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mortos, enquanto não ressurgirem na visão e no amor da Verdade e da Perfeição infinita, e dessa graça não estiverem totalmente penetra­dos, sejam purificados na entrega amorosa a Deus, de todos os resíduos e escórias terrenos. Essa transformação se relaciona com o pecado e com as inclinações más dele nascidas”.

O irresistível fascínio da doutrina sobre o purgatório

A verdade sobre a existência do purgatório começa a atrair irresistivelmente também os não-católicos. O historiador Golo Mann escreveu em longa recensão do livro de Peter Berglar A hora de Thomas Morus:

“Morus, tão bom conhecedor da Escritura quanto Lutero, tem defendido tudo aquilo que ajudara a Igreja no seu crescimento; o historiador o segue sem enrubescer. Quem apenas conhece minha recensão, poderá estranhar que o autor se identifique enérgica e extensamente com seu herói, quando Morus sustenta e defende a doutrina do purgatório e, com isso, as orações e missas pelas Pobres Almas e até as indulgências para socorrê-las. Ora, ninguém, dotado de senso comum e que saiba raciocinar, pode ignorar a existência de uma comunidade e de uma comunhão entre os que vivem, com os que faleceram. Tampouco se pode ignorar também a necessidade de uma purificação da alma antes ou depois da morte. E o leitor talvez se pergunte: Como pode estar errado o que é tão razoável, tão sensato, tão conforme os nossos sentimentos mais íntimos? Ou, ainda, consul­tando a história, propor-se a seguinte asserção: Quando, sob escár- nios e zombarias se deu a desagregação e a destruição dessas profundas verdades vitais, quão terrível deve ter sido o sofrimento da gente boa!”( '2)

Desde o martírio de Thomas Morus, até o dia do falecimento de Eugênia von der Leyen, decorreram 450 anos.

(12) Diário Regional “O mundo”, de 23/12/78.

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Observações a respeito deste livro

Durante o nazismo, o diário de Eugênia passou, em cópias hectografadas, de mão em mão, como se fazia também com as poesias de Reinhold Schneider. Um desses exemplares se encontra ainda com a viúva do professor Josef Feistle. Depois da Segunda Guerra Mundial, apareceu a obra sob o título Erlõste Seelen (Almas Remidas), em doze edições no Schacke-Verlag, Wiesbaden. Há anos, essa editora deixou de existir. O editor belga Markus Schrõder, de Eupen, publicou também quatro edições sob o título Zwischen Himmel und Hõlle (= entre o céu e a terra). Markus Schrõder faleceu em 24 de março de 1976.

Em consideração aos parentes vivos foram omitidos ou menci­onados pelas iniciais os nomes das pessoas citadas no diário. Agora, porém, transcorrido meio século depois da morte de Eugênia, não existe mais razão para se ocultar ou omitir nomes das pessoas às quais se faz menção. Por isso, sempre que possível, e ajudados por testemunhas oculares e por parentes de personagens, que o diário arrolou, temos dado os nomes por extenso. A obra ganha, com isso, mais autenticidade, podendo, assim, ser confirmada a veracidade— e exatidão ■— das informações.

O homem por cuja iniciativa o diário foi escrito e publicado é Sebastião Wieser, confessor e diretor espiritual da princesa. A nosso pedido, respondeu o Ordinariato de Augsburg que ele morreu em 11 de outubro de 1937, em Augsburg-Oberhausen. Pelo elenco do clero daquela diocese, sabemos que foi pároco em Waal, de 1916 a Io de junho de 1926(12a).

Uma prova da autenticidade

Geralmente, o Bom Deus não é pródigo com testemunhos de autenticidade pelo simples motivo de não nos eximir da prova de

(12a) Outros estágios de sua prática: pároco em Dezenacker, 1908, pároco em Kreuzthal, 1911, pároco em Steinheim, 1931, pároco em Seehausen, 1934.

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nossa fé. Todavia, em casos de agraciamento místico, há um ou outro sinal que nos faz reconhecer a autenticidade da atuação divina.

Na sexta-feira santa de 1949, morria em Gerlachsheim, Baden, após 68 anos de sofrimentos expiatórios pelas Almas do Purgatório, com a idade de 86 anos, Margarete Scháffner. Como escreve o professor Georg Siegmund, ela pedira ‘ ‘a Deus um sinal de que ela não era vítima de um engano^13), de sua própria fantasia ou de um logro diabólico. Apareceram-lhe então, duas vezes, Almas do Purgatório, que deixaram gravada num pano a marca dos dedos da mão, que parece ter estado em fogo, fornecendo, pois, um sinal visível que ela havia pedido. O Ordinariato de Freiburg exigiu e recebeu para exame aqueles panos...”

Outra prova interessante de autenticidade carismática devemos a Ana Caterina Emmerich. Com base em suas visões, foram feitas importantes escavações e descobriu-se a última morada da Mãe de Deus, em Éfeso.

A prova da autenticidade do carisma de Eugênia consiste no fato de ter recebido a predição do dia de sua morte que, embora tivesse sido feita de forma enigmática, foi bem clara. Confirma- o o professor da Universidade de Munique, Dr. Antón Seitz, que analisou pormenorizadamente o fato no estudo: Prinzipielle wissenschaftliche Beurteilung des Tagebuchs von Eugenie von der Leyen(14) (= Apreciação conforme os princípios científicos do Diário de Eugênia von der Leyen). Num dia de Finados, Eugênia perguntou a um padre dominicano: “Sabes quando eu hei de morrer?” Respondeu-lhe ele: “Três vezes nove”. Ela disse: “Não te entendo” . Retrucou a alma: “Também não é para ser entendido por ti!” Eugênia veio a falecer em 9 de janeiro de 1929, data em que ocorre três vezes o número nove.

(13) A respeito de nossos mortos, Mensageiro bendito, fevereiro de 1979, Wels, Áustria.

(14) BrunoGrabinski, Almas salvas, 1958, Editora Max Schacke,Wiesbaden, Alemanha.

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A opinião do cardeal Luciano

João Paulo I, quando era ainda patriarca de Veneza e se chamava Albino Luciano, concelebrou, em 10 de julho de 1977, a santa missa, com Dom J. Venancio de Leiria-Fátima. No dia seguinte visitou-o, no Convento de Leiria, Irmã Lúcia, a vidente de Fátima. Naquela ocasião deu uma brilhante resposta a todos aqueles que desdenhosa­mente desprezam aparições marianas ou encontros com Almas do Purgatório, por serem revelações particulares. Comentando sua entrevista com a Irmã Lúcia, ele escreveu:

“Alguém poderia perguntar-me: Mas terá um cardeal interesse em revelações particulares? Não sabe ele que o Evangelho já contém tudo? E que nem as aparições aprovadas são artigos de fé? Certamen­te, bem o sei. Existe, porém, um artigo de fé na Sagrada Escritura (Marcos 16, 17): ‘aqueles que crêem serão acompanhados por milagres! ’ Hoje está na moda investigar ‘os sinais do tempo’. Há uma verdadeira inflação e uma praga de sinais. Por isso, eu acho ser conveniente ligar às coisas que são postas em evidência por um determinado sinaK15).”

Até o Concílio Vaticano II advertiu que não se devem desprezar tais carismas:

“Esses dons devem ser aceitos com gratidão e alívio porque se adaptam de modo especial às aflições e necessidades da Igreja, tanto faz, se esses dons são de extraordinária intensidade ou se têm um caráter simples e comum... Quem julga sobre a autenticidade e as conseqiiências práticas deles são os que governam a Igreja e que têm o dever de não apagar o Espírito e de examinar tudo e ficar com o que ébom (16).”

(15) Citado conforme à revista ¡I Cuore delia madre, janeiro de 1978.

(16) Vaticano II, Constituição sobre a Igreja, 13.

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O livro tem uma tarefa e missão a cumprir

O diário de Eugênia é uma provocação para o nosso tempo, é um livro que tem causado horas insones a muitas pessoas, e a inúmeras outras, conforto e alívio, pois nos mostra que até mães assassinas de seus filhos e outros grandes pecadores podem ser salvos pela mise­ricórdia divina. Não se trata de histórias baratas de horror, fabricadas para mexer com os nervos de leitores enfadados; trata-se de fatos, de relatos de aparecimentos de pessoas falecidas, que causaram verda­deiro sofrimento existencial a Eugênia von der Leyen. O leitor pode assim lançar um olhar ao mundo do Além, que, algum dia, será o nosso também.

Hoje em dia, muitos católicos já não possuem mais a verdade toda. Há paróquias em que certas verdades não são mais assunto de catequese e pregação, como, por exemplo, mandamentos, pecado grave, purgatório, inferno, anjos, demónios, Maria Santíssima, e, deste modo, verdades importantes da nossa Fé são relegadas ao esquecimento. Na Igreja formou-se um grande vácuo; apresentam- nos apenas a Igreja terrestre, o povo de Deus em marcha, mas da Igreja triunfante, dos santos no céu, e da Igreja padecente, das Pobres Almas no Purgatório, não ouvimos quase nada. Parece-me que, por isso, este diário tem uma tarefa e missão providenciais: com a força de um autêntico carisma pode sensibilizar-nos novamente para o mundo do Além e abrir-nos os olhos para os novíssimos, que atualmente são relegados por gente tola. Se nos faltasse a convicção de estarmos unidos a nossos irmãos poderosos no céu, união essa que nos faz tão felizes, unidos a nossos companheiros de dor no purgatório, que tanto precisam de nossa ajuda, se nos faltasse essa convicção, sentir-nos- íamos extremamente pobres na nossa religião e nos nossos sentimen­tos mais elementares. As Almas do Purgatório não podem rezar por si mesmas, podem, porém, conseguir tudo em nosso favor junto a Deus, se fizermos algo por elas. E este um dos mistérios mais admiráveis da economia de salvação do nosso Deus.

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A admirável economía de salvação

O conhecido jesuíta Comelius Lápide van Steen (1567-1637), professor de exegese em Louvaina e em Roma, explica-nos a economia de salvação de modo muito claro, ao tratar da passagem do segundo livro dos Macabeus, cap. 12, versículo 43:

“O sacrificio pelos falecidos é sagrado porque está sendo oferecido ao Deus Santo, em santa atitude espiritual. É santo e piedoso também quanto às Almas do Purgatório que, por meio dele, são libertadas dos tormentos terríveis e das chamas do purgatório. Santo é o sacrifício em relação aos Santos e Bem-aventurados, cujo número e cuja alegria e glória aumentam principalmente em relação à Igreja, a qual nos concede advogados e intercessores junto a Deus e, também, em relação ao celebrante, a quem, as almas, salvas por intermédio dele, mostram-se gratas, implorando ele graças para a sua própria salvação^17).”

No diário procuram-se em vão conselhos leves; é a aflição, é o sofrimento indizível das Almas do Purgatório, que gritam por socorro. Escreve Ana Catarina Emmerich, uma das maiores místicas da Igreja:

“Oh! E triste que tão pouco se faz para ajudar as Almas do Purgatório! Toda obra que se oferece a elas, esmolas ou sacrifícios, alivia-lhes imediatamente as dores, ficam, por isso, alegres e felizes quais homens morrendo de sede, que recebem as gotas salvadoras de água cristalina.”

Advirta-se sobre o advérbio “imediatamente”. Dizemos que os moinhos de Deus moem morosamente, mas por que, então, tanta pressa em aplicar às Almas do Purgatório nossas boas obras?

Quem pensa com o coração acerta a resposta: É que Deus, para usarmos linguagem humana, anseia, com infinito amor, para que as almas, feitas conforme sua imagem e semelhança, fiquem totalmente

(17) Comentários ao Segundo Livro dos Macabeus, Antuérpia, 1693, p. 302, em Símbolos da Eucaristia no Antigo Testamento, de Severin Grill, Klosterneuburg, Alemanha, 1960.

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puras, para que Ele as possa estreitar em seus braços e apertá-las ao Seu Coração. Essa é a explicação do grande poder das Almas do Purgatorio. Se nós lhes prestarmos ajuda, alcançam mais depressa a purificação. Deus não hesita, falando em termos humanos, de pagar um alto preço por esse nosso interesse. Compreendemos, pois, que as Almas do Purgatório não podem ajudar-se a si mesmas, no entanto, podem alcançar junto a Deus grandes graças por nós.

Merece menção o que disse a já mencionada bem-aventurada Crescência Hõss de Kaufbeuren: “Se quero receber de Deus uma graça bem importante, invoco as Almas do Purgatório e sempre sou atendida.”

Seremos tolos se não nos convencermos destas verdades. Se os nossos pregadores, em vez de se dedicarem tanto à psicologia e a obras sociais, dissessem aos homens as verdades sobre as Almas do Purgatório e sobre as outras grandes realidades da religião, em breve, as nossas igrejas vazias se encheriam de fiéis, ávidos de ouvirem e meditarem sobre essas verdades, ao invés de reduzidas, como se encontram hoje, a uma existência meramente museulógica.

E tu, alma querida, que estás lendo estas frases, se tu não acreditas nessas verdades expressas porcada linha deste diário, faze um teste: Se precisas de uma grande graça, oferece um sacrifício a valer pelas Almas. Reze para que se cumpra a vontade de Deus e verás que a ajuda vem. As Almas do Purgatório não deixarão de te ajudar. São as mais amigas, as mais fiéis de todas as pessoas que Deus te deu neste mundo.

Arnold Guillet editor

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As fontes onde nascem os misterios nunca se encontram lá, onde instituições e poder reivindicam direitos sobre a posse desses misté­rios; elas irrompem em algum lugar onde ninguém o espera. Pessoas agraciadas — artistas, santos, músicos — surgem em tempos e lugares qual presente do Espirito Santo, e seu aparecimento nos faz. rezar: “Nós Vos agradecemos por todas essas magnificencias que provêm da Vossa Fonte de Luz e Amor epelos homens se revelam ”.

Nós, que pormuito tempo esperávamos a salvação pela ciência, e que estamos agora diante de grandes bibliotecas que nos torturam qual um coro loquaz de dissonâncias selvagens, temos percebido, tarde demais, que esses professores funcionários eram teólogos do Estado, e que Gõrres, sob a deijicação do Estado por Napoleão e pela Prússia, clamava por um novo Atanásio. Pois este, enfrentando a oposição dos poderosos bispos da corte e do Estado no século IV, restabeleceu os direitos de Deus por não permitir, a nenhum poder do mundo e a pessoa nenhuma, de se erguer por cima clo Altíssimo. Toda a luz que há no mundo éLuz. de Deus. Toda a verdade brota de uma só fonte. Tudo e todos devem dobrar os joelhos diante do Senhor Jesus Cristo. Nem as instituições eclesiásticas podem dispor, a seu talante, desse único Senhor e Deus, pois não sãofonte, mas agraciadaspelafonte.

Quem nos ajuda contra a montanha de areia movediça?Depois de, no século XIII, ter alcançado o apogeu, a academia

teológica deu ensejo a queixas ininterruptas. Henrique Seuse, o grande místico, lamenta que ela não fosse capaz, de lhe dar verdadei­ra satisfação e paz da alma, e que deixasse sua mente inteiramente desconcentrada. A arrogante confiança na capacidade científica do homem tem se desmascarado justamente nos tempos atuais, qual esforço para assimilar a tnontanha de areia movediça de conceitos académicos. Cristo e a Sabedoria Eterna já não são aceitos plenamente.

PREFACIO

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Quem nos conseguirá sabedoria concentrada ? Lemos no capítulo sete do Evangelhode São João: "No último dia, ornais importante dafesta, Jesus veio a público e exclamou: Se alguém tiver sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, do seu interior correrão rios de água viva”.

Possuir espírito quer dizer preocupar-se, com infinita inquieta­ção, para com a eternidade. O filósofo Sõren Kierkegaard censura os que acreditam possa o espírito meramente terreno, que governa a técnica e a política, solucionar as profundas preocupações existen­ciais do homem.

Impulsionados pelo mesmo pensamento do filósofo dinamar­quês, apresentamos, aos espíritos investigadores, a mais importante obra sobre aparições de pessoas falecidas, reconhecida pelos maiores especialistas da mística religiosa como a mais pura e a mais autêntica documentação desta doutrina. Trata-se dos apontamentos que anotava em seu diário, entre 1921 a 1929, a princesa Eugênia von der Leyen. No transcurso daquele período, sofreu ela as mais extraordinárias aparições de pessoas falecidas. Nós, que vivemos entre duas épocas, e assistimos ao definhar do reinado de uma teologia racionalista e mumificada, assistimos, igualmente, à decadência dos hábitos burgueses e de uma época em que boa parte dos cristãos perdeu a fé na vida eterna.

Que ninguém seja tão simplista a ponto de pensar em um ressurgimento da velha Fé, só porque a teologia racionalista está em agonia; tampouco cantem vitória os fiéis, só por se sentirem tentados a proclamar que estavam com a razão. Pois já entramos na segunda época há pouco referida. Agora se levantam forças poderosas que, apesar de estaremfora da religião católica, tratam da preocupação mais íntima do homem, e fazem declarações a respeito dos mistérios escondidos no findar da vida e na morte.

Associações de parapsicologia na Europa e nas Américas, médiuns de talento indiscutível, sociedades místicas secretas em toda a parte buscam, com avidez, desvendar os mistérios do Além. E fazem-no valendo-se de recursos científicos e experiências clínicas. Todavia, essa curiosidade do homem moderno — ela própria— nos

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adverte que não estamos em condições de solucionar facilmente, e sem perigo de errar, o problema da morte. O príncipe deste mundo, do qual fala o Salvador, não é apenas político mas quer ser também “diretor espiritual Ele pretende tomar inofensivas as perguntas, e

justamente as mais íntimas, aquelas que, depois do malogro do racionalismo, intentam fazer. Ele as teme, e não as podendo respon­der, joga-as no remoinho da confusão. Não se sente incomodado pelos teólogos católicos, entre os quais muitos estão ocupados em expor o Corpo Místico da Igreja católica a bacilos perigosos, devido às monstruosas experiências que com ele fazem.

Temos que esperar pelos poetas?

São os poetas que devem avivar nossa consciência ? Temos que esperar por eles para alguém nos dizer que devemos preocupar-nos, apaixonadamente, com a sorte das almas dos nossos falecidos? Escutemos as palavras suplicantes do grande poeta alemão Friedrich H ebbel(I8l3-J863):(W

“Alma, não os esqueças,alma, não os esqueças, os falecidos!Vê, eles esvoaçam em torno de ti, tiritando de frio, abandonados, e se também tu, arrefecendo perante eles, fechares tua alma, então seu íntimo mais profundo gela-se e agarra-os o turbilhão da noite ao qual, em espasmos se torcendo resistiam no seio do Amor e, qual implacável caçador, os persegue com violento furor por sobre a mortalha do deserto sem Jim que cobriu a vida;

(18) Hans Urs von Ballhasar: Prometeu, Estudos sobre a história do idealismo alemao, 1947, 2a edição inalterada, Editora F.H. Kehrle Heidelberg, Alemanha.

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lá ruge o combate de forças soltas em procura de uma renovação de seu modo de

[ existir,de seu modo de existir- de seu modo de existir...Alma, não os esqueças,alma, não os esqueças..., os falecidos.

Temos que rejeitar qual monstruoso erro a sentença: “Nada sabemos de urna vida depois da morte, pois ninguém voltou de um mundo no além”; ou aquela outra sentença: “Crer significa não saber nada”.

Há muito que homens da têmpera de um Ludwig Klages se opuseram a essa visão do mundo, divulgada entre o povo simples por marxistas, liberais e jovens, — estes por aqueles doutrinados — que defende a existência de uma alma racionalista e mecânica. Klages sentiu que a mente cometera urna separação catastrófica, distanci­ando-se do resto do corpo. Mas, reconhecer um erro não significa, necessariamente, conhecer a verdade e, por isso, esses pensadores desiludidos não encontraram o caminho ci sabedoria dos génios religiosos, istoé, dos santos. E, em sua cegueira, enveredaram, pela antroposofia, pelo espiritismo ou pelas drogas, pretendendo alcançar regiões mais vastas, já que haviam sentido a irremediável limitação de seus conhecimentos. Nesse sentido, o escritor Aldous Huxleyfez experiências com a mescalina e via vultos heróicos, seres fabulosos, fantasmas, regiões fantásticas, e constatou que a produtividade do cérebro “perturbador ” é amortecida pelos entorpecentes, que con­seguem passar pela parede que, antes, era protetora e indevassáivel. As drogas foram desmitijicadas e mostradas, na realidade, como forças que destroem o homem, não se podendo, em sã consciência, delas esperar nenhuma revelação do Além.

Claudel nos fornece a explicação

Desprezando as cavernas diabólicas das drogas e as sessões ameaçadas por influências igualmente demoníacas, procuramos o

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poetafrancês Paul Claudel, para lhe perguntar por que é tão estéril o nosso espírito.

Claudel era um alto funcionário do Ministério do Exterior. Podia colher experiências em todas as partes do globo. Num esforço dramático lutava para se santificar. A história que ele nos conta do “animas "eda “anima ”(= cabeça e alma) nos mostra as dificuldades de sua caminhada. O leitor não acostumado a símbolos — é o que comumente ocorre com o homem da nossa época — atenta para o trágico fato de estar o nosso íntimo dividido, e, por isso, despojado de conteúdo humano. Claudel quer demonstrar o desenvolvimento errado do nosso espírito e explicar por que, contentando-nos com os conhecimentos superficiais da cultura moderna, temos fechado as fontes da ciência do divino amor. Escutemos a história de Claudel:

“Não está dando certo o casamento de Animus com a Anima, do espírito com a alma. A lua-de-melfoi de curta duração. Naqueles dias, Anima podia à vontade dirigir-se a Animus que, encantado, a escutava. Mas há muito tempo que isso se dava. Aliás, fo i ela quem trouxe o dote que mantinha a casa. No entanto, Animus não agiientou sua posição de subalterno e, em breve, mostrou seu verdadeiro caráter: injlado, pedante e tirânico. Ele acha que Anima é uma bobinha que nunca frequentou escola, enquanto ele é sabido, pois tem lido tanta coisa nos livros e Iodos os seus amigos dizem não haver ninguém que jale melhor que ele. Anima nem pode mais abrira boca— ele sabe melhor que ela o que ela quer dizer. Animus não é jiel, o que, porém, não o impede de ser ciumento. Pois no fundo ele sabe (desculpem, ele, enfim, o esqueceu) que todos os bens da casa são dela e que ele é um mendigo e só vive daquilo que Anima lhe dá. Por isso, ele constantemente a explora e a tortura para extorquir-lhe dinheiro. Ela continua em casa, calada cuida da cozinha e fa z a limpeza do lar, do melhor modo possível... Outro dia, porém, algo de estranho aconteceu... Certa noite, Animus voltou para casa inesperadamente e ouviu que Anima, lá dentro, de porta fechada, cantava, sozinha, de si para si, uma canção esquisita, algo que desconhecia. E não houve meio de encontraras notas ou as palavras ou a chave. Era uma canção rara e maravilhosa. Desde então ele tem

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tentado, perfidamente, conseguir que ela a repetisse; Anima, porém, fa z de conta que não o compreende. Basta que ele olhe para ela, e já se cala. A alma cala-se. Enfim, Animus ideou um truque: ele consegue arranjar as coisas de tal modo, que ela chega a supor não estar ele em casa... Aos poucos, Anima se acalma: ela olha para o alto, escuta atentamente, respira, julga estar só e, baixinho, vai ci porta e abre a seu amado divino”.

E, pois, devido à nossa condição mundana que já não compre­endemos a intimidade da nossa vida com Deus; seu Amor para conosco tomou-se algo de estranho. O que fo i que nos iludiu e nos imbuiu da vã suposição de que seríamos capazes de decifrar os enigmas da vida pela nossa esperteza? a cobiça de possuir? a sofreguidão pelo poder? a cupidez de satisfazer o sexo? Seja o que for, o fato é que nos separamos da humanidade inteira. Sabe-se, no entanto, que os mortos continuam a viver no Além. A experiência dá testemunho de que os falecidos continuam vivos. Nunca se ignorou que os seres humanos têm uma vida eterna e pode-se dizer que as relações com os mortos não se trata de uma crença, mas de um saber, de conhecimentos de todos os povos e de todas as comunidades tribais.

Osm'istériosdoEgitogiravamsomente,numapreocupaçãoinjinita, em tomo da sobrevivência eterna do Homem. Ele sentia sua grandeza e sabia ter recebido um destino, uma vocação especial. E este seu saber produziu todas as culturas. Mas a situação particular em que se achava, trazia consigo preocupações, inquietação e melancolia, pois sentia que não era deus e que ele, no Além, estaria sujeito a um julgamento, e que seria julgado conforme o objeto de seu amor. Mas o amor é sempre participação no amor divino. E um caminho áspero que deve ser tomado por aqueles que procuram conhecer a verdade: o duro caminho dos mortos que recebem a graça de aparecer a santos deste mundo.

Para Eugênia não havia muroFoi uma cruz pesada que a princesa Eugênia von der Leyen teve

de carregar, padecendo os sofrimentos das almas que, em sua vida terrestre, muito fracassaram na prática do amor a Deus. Para

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Eugênia, na muralha entre a Igreja padecente e militante, havia muitas brechas. Seus sentidos percebiam a horrenda realidade do pecado e, com isso, sofria terrivelmente sua alma amorosa. Foi documentado que ela via mortos, pois estes chegavam a dizer-lhe como se chamavam, e isto ocorria até com pessoas desconhecidas, cuja vida terrestre podia ser averiguada. A pessoa da vidente é, hoje, muito conhecida, e, para o leitor desta obra extraordinária, será gratificante conhecer melhor a personalidade de quem a escreveu.

A princesa (por seu caráter humilde e amoroso preferiríamos chamá-la simplesmente “essa cristã”) nunca falou a ninguém sobre o que se passava com elci, nem a seus familiares. A única pessoa a quem se dirigia a respeito dos casos por ela vividos, era o pároco, homem inteligente e culto, que lhe recomendou escrever um diário. Antes de morrer, em 9 de janeiro de 1929, com a idade de 62 anos, ela entregou o diário ao seu diretor espiritual; este, ao deixar a paróquia, levou-o consigo, e, por sua vez„ confiou-o, antes de sua morte, ao escritor Bruno Grabinski, pessoa muito versada em mística e parapsicologia, a quem devemos a publicação do diário.

O diretor espiritual de Eugênia era bastante crítico. Ele, que também faz. jus ¿i nossa gratidão, declarou sob juramento:

“Eu conheci a vidente durante seus últimos doze anos de vida; todos os dias tinha conhecimento de seus encontros com almas. A meu conselho, ela anotava o que via num diário. Nem ela e, no início, nem eu, tivemos a intenção de publicá-lo... A vidente levava uma vida santa. Era de uma piedade autêntica, humilde como São Francisco, zelosa na prática do bem e desmedidamente generosa: sempre prestativa e pronta a renunciar à própria vontade, disposta aos maiores sacrifícios, querida por Deus e por todos que a cercavam. Quem a conhecia, venerava-a. Jamais desejou atrair a atenção de quem quer que fosse. Tinha um talento especial para prestar favores e proporcionar surpresas agradáveis aos outros. O caráter da princesa é a mais sólida garantia de que merece crédito. Declaro, sob juramento, que a aconselhei a anotar, clara e integralmente, suas experiências reais, mas nunca, e em parte alguma, lhe sugeri quaisquer opiniões minhas. Sob qualquer ponto de vista, respondo

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pela credibilidade do diário e peço ao leitor lembrar-se da princesa que, certamente, está agora fruindo a visão de Deus; ela merece nosso respeito e nossa gratidão. ”

Um seu primo, o príncipe C. L., confirma a declaração do pároco Sebastião Wieser:

“Subscrevo plenamente a apreciação de sua personalidade, feita pelo pároco Wieser. E totalmente exata. Ela vivia sacrificando-se pelos outros, efazia-o gostosa e alegremente, sem fazer caso disso. Era de uma simplicidade total, sem afetação, e sem quaisquer pretensões pessoais. Tinha muito senso de humor e comicidade, pois era inteligente, muito viva e alegre. Era querida em toda parte, e muito procurada para fazer companhia. As crianças eram loucas por ela. ”

Uma empregada escreveu a Bruno Grabinski:“A princesa era amiga de todos, alegre e desprendida de si

mesma. Todo o mundo gostava muito dela. Desconhecia totalmente caprichos; continuava sempre amiga e carinhosa. Acho que a idéia do sacrif ício e da reparação pelos pecados já, a conduzia naquele tempo em que a conheci. ”

Arrasta-me uma felicidade nunca imaginada

A s experiências da princesa não foram de natureza parapsicológica; provam-no as frases que lançou no seu diário, em 4 de maio de 1924 e em 18 de março de 1925. São comovedoras, pois demonstram que ela experimentou a tomada de posse do Espírito Santo totalmente perplexa e sem entender a felicidade íntima que gozava. Com toda humildade pede, em seu abandono, explicação daquilo que se passa em sua alma. Não se trata de visões, de êxtases, é a vivência íntima da união com Deus, do mais alto grau daquela que ama, daquela que carrega a cruz.

“Tenho de adorar e amar— não sei como descrevê-lo: é como um desfazer-se em algo de divino. Eu lhe peço— eu. Eu não o quero, mas aquilo vem e se apodera de mim numa felicidade inconcebível. ”

Essa experiência, como Amor Divino, sem qualquer colaboração da parte delci, e sem que ela consigafòrmular qualquer palavra, não tem

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explicação natural. A anima (= alma) está sendo agarrada, impregnada de calor e de claridade de Deus. O amor de Deus arde no imo da alma, depois de ela ter feito cruz sua vivência e sua forma de pensar.

Dos escritos da doutora eclesiástica, Teresa de Avila, e de outros místicos, podemos depreender essa felicidade, constatando, ao mesmo tempo, com tristeza e pavor, o quanto os teólogos hodiernos, neste ramo da teologia, nos têm defraudado. “Como acreditarão Naquele do qual nada ouviram?” (Romanos 10, 14).

Muitos leitores do diário, homens que queriam conhecer o realismo eaveracidade da religião, descobrem, justamente nisso, revelações cujos frutos são fé, amor e humildade e que fazem que a alma se volva a si mesma. Num mundo como o nosso, torturado por todos os amargores do mal, rebaixado até o animalesco, roído pela lepra do pecado, ainda bruxuleia a esperança. “Chego a ti, qual um enfermo ao médico da vida, qual cego à Luz da Eterna Claridade ”, reza S. Tomás de Aquino.

Não existe editor que consiga descobrir um autor capaz de escrever uma tal obra. Inúmeras vez.es o mundo em que vivemos fo i pesquisado. Mas é esse o mundo verdadeiro em que vivemos? E só isso que nos cerca? Estamos rodeados por pessoas falecidas que, indizivelmente tristes, querem comunicar-se conosco enquanto olha­mos unicamente para o mundo terreno. Oh! que miserável escravidão em que nos metem os sentidos!

Em harmonia com o ensino da Igreja

Para que o lei tordo diário entenda um pouco o mistério da alma e a escravidão do nosso espírito às coisas do mundo, mencionare­mos, na abundância dos mistérios, duas noções que derivam das aparições: música e beleza.

Eugênia escutava sons surgindo de algum lugar indefinido. Embora não possamos confiar no espiritismo, sabemos, porém, que um médium dificilmente pode concentrar-se sem música religiosa. Até um povo que sofre catástrofes ou pranteia mortos queridos, deve mudar de programa de rádio e televisão, pois é impossível guardar o amor e a dignidade ao som de música selvagem, que apela para os

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músculos. Dizem que Elvis Presley, aofim de sua vida, tinha reconhecido que boa parte da música moderna estragara a alma da mocidade. Por isso, a liturgiaprecisa de música sublime, pois em lugar sagrado, a música dos músculos é com razão considerada blasfema. A alma, “anima ”, anseia pela melodia que ¡he abre osolhospelo “celeste esposo ”, e que lhe dá uma felicidade que não é deste mundo. Ela vê também, aterrada, a feiúra do homem em pecado, e, na subida da alma à Luz, a beleza readquirida da imagem de Deus.

Os sábios gregos viam três possibilidades para participar da Divindade: pela bondaile, pela beleza e pela verdade. O que nos apresentam como cultura nos tempos atuais é aquilo que éfeio, grotesco, estúpido, perverso e imoral. O que aconteceu conosco? Tomaram- se nossos guias os filhos das trevas? O estupro da beleza da criação deve apenas horrorizar-nos e advertir-nos para não considerarmos a feiúra da arte como algo que nos possa elevar espiritualmente.

O diário está em harmonia com a doutrina da Igreja. Mesmo a teologia conservou, até há pouco, tudo quanto a princesa experimen­tou. Só que tudo isso seria como que um ferro em brasa, no qual não se toca. Mas agora chegamos a reconhecer por que as universidades não compreenderam a alma humana, por que Kierkegaard — com toda a razão — protestava contra a renúncia ci sabedoria viva, e por que Henrique Seuse se sentia totalmente “desconcentrado ”, incapaz, de se recolher. Quem no-lo ensina, por meios audiovisuais, é a mocidade e até alguns adultos, que se contaminaram com o mundo desorganizado das seitas, das “religiões da juventude" e até do marxismo, e que abandonaram o Salvador Crucificado e procuraram refúgio no mundo selvagem e cruel. Nietzsche via nisso o arroubo faminto das profundezas do ser contra o Crucificado.

Pilatos perguntava: “O que é verdade ? ” As realidades vividas pela princesa e confiadas ao diário são verdades que nos tomam capazes de solucionar as secretas preocupações pela nossa sorte na eternidade, e compreender a virtude da esperança qual presente divino.

Dr. Peter Gehring

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■ DIARIO DA PRINCESA EUGENIA VON DER LEYEN

A freira

• 9 de agosto de 1921 — Cinco horas da tarde. Vi no jardim, entre duas árvores, uma freira. Parecia estar me esperando. Pensei tratar-se de uma velha conhecida e apressei-me a ir ao seu encontro. De repente, ela desapareceu sem deixar vestígios. Retomei o caminho para ver se uma sombra de árvore me ocultara a visão. Mas não descobri nada de especial.

• 13 de agosto — Dirigindo-me à igreja, a freira veio ao meu encontro.

• 19 de agosto — Ela passou ao meu lado; vi, claramente, pelo hábito que vestia, pertencer às Irmãs de Mallersdorf/1)

• 25 de agosto — Encontrei-a na escada que leva à capela.• 30 de agosto — Ela me esperava à porta.• 11 de setembro — Avistei-a no jardim.• 14 de setembro — Dei com ela na capela. Antes da missa, vi

algo refletir-se na vidraça dajanela à minha frente. Pensei que a janela atrás de mim não estivesse bem fechada. Virei-me, e lá estava ela. Examinei-a detalhadamente. Ela tinha os olhos grandes, escuros e muito tristes. Nãoestava pálida, e tinha ojeito de qualquer pessoa com quem topamos todos os dias, mas era-me totalmente desconhecida. Parecia não ter braços, e causou-me uma sensação horrível porque estava pertinho de mim.

• 17 de setembro— No jardim, ela deslizou rápida ao meu lado.• 19 de setembro — Eu brincava de bola com urna criança,

I. As Irmãs de Mallersdorf (As Pobres Franciscanas da Sagrada Família) são uma congregação feminina muito espalhada na Baviera; a casa-mãe está cm Mallersdorf (Baviera).

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quando, de repente, a freira passou entre nós duas. Devo ter feito uma cara muito assustada, pois a criança perguntou-me o que eu estava vendo.

• 22 de setembro— A freira estava sentada na escada da capela.• 2 de outubro — Eu estava colhendo flores. Lá estava ela na

minha frente, de tamanho sobre-humano. Faltou-me ainda coragem para dirigir-lhe a palavra, e quando me havia resolvido a falar-lhe, ela desapareceu.

• 7 de outubro — Infelizmente, entrou também no meu quarto. Com uma sensação desagradável, acordei. Acendi a luz; ali estava ela junto à minha cama. Transida de medo, faltaram-me forças para lhe falar. Defendi-me contra ela com água benta. Passou por cima de mim e entrou na parede. Que susto, meu Deus!

• 11 de outubro— Fui deitar-me por volta de dez horas da noite. A conversa com os hóspedes fora muito boa; era a época da caçai la) e, nem de longe, pensava nela. Acendi a luz; ali estava ela, junto à minha cama. Passei rente a ela, fui à pia de água benta, dei-lhe algumas gotas elhe perguntei: “O que queres que eu faça?” Com olhar penetrante, fixou-me e disse, sem mexer os lábios: “Deixei de enviar vinte marcos às Missões^1 b)”. Não me lembro se lhe prometi mandar aquela soma às Missões ou se apenas lho dei a entender por um gesto afirmativo de cabeça. Naquele momento, eu estava impressionada demais. Em todo caso, ela estava satisfeita, pois se aproximou muito de mim, como se quisesse dizer-me alguma coisa. Causou-me tanto medo, que a borrifei depressa com água benta, e ela desapareceu janela afora. Embora tudo tenha sido tão excitante, dormi muito bem.

(1 a) As caças, para as quais se convidavam parentes e amigos, eram sobretudo aconteci­mentos sociais.

(1b) Ao ler estas linhas, muitos ficam surpresos e comovidos anteo fato de alguém, por causa de vinte marcos, tivesse que sofrer tanto. Parece que tais leitores se enganam, pois não se esclarece qual a razão do sofrimento da freira nem sc mencionam os pecados que a levaram àquela situação. Em todo caso, aqueles 20 marcos são sinal de sua maneira errada de viver.

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Os vinte marcos foram enviados às Missões e pela pobre alma foram rezadas santas missas.

Tive sossego até o dia 3 de novembro, data em que me foi concedida uma grande alegria. Quando, pelas onze da noite, fui deitar-me, vi o meu quarto iluminado. Pensei que havia deixado a luz acesa, e entrei. A freira estava no mesmo lugar em que ficara na vez anterior. Mas, que diferença! Saiu dela como que uma luz radiante. Seu hábito escuro estava como que envolto em brilho. Mas o mais reluzente era a expressão de seu rosto. Acho que seus olhos já haviam visto o Bom Deus. Ela me olhou, sorrindo feliz. Pela pri­meira vez, vi suas mãos; estavam cruzadas sobre o peito. Seu rosto só era comparável a uma opala; não encontro outra comparação; tive uma surpresa e um susto muito grande, e tão alegre e estarrecida me senti, que não me lembrei de perguntai' outra coisa a não ser: “Como te chamas?” Muito solene, ela fez o sinal-da-cruz; o quarto ficou escuro e ela desapareceu. Por conseguinte, não fora a luz elé- trica que o havia iluminado. Estou certa de que não me enganei. E impossível sentir o que eu senti se tais coisas não tivessem aconte­cido realmente. A aparição me parecera bem mais alta que nas outras ocasiões e, pela primeira vez, seus pés não tocavam o chão. Foi a última aparição da freira e que, por assim dizer, me abriu, talvez, os sentidos do corpo e da alma para novos encontros.

A condessa Maria Schonborn(2)

• 4 de fevereiro de 1922 — As nove horas da manhã, encontrei- me com uma senhora de vestido marrom, gola branca de rendas e touquinha do mesmo feitio, bastante alta e esbelta, à moda da segunda metade do século passado. Não a conhecia.

(2) Como já mostramos na apresentação deste livro, a princesa Eugênia von der Leyen escreveu em seu diário todos os nomes por extenso, motivo pelo qual o livro alcançou grande veracidade.

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• 17 de fevereiro — Vi-a na escada.• Io de março — Outra vez na escada.Estive ausente até 20 de maio. No dia de minha volta, eu a vi

entrar na biblioteca do segundo andar. Outra vez, em 26 de maio.Quando, em 28 de maio, domingo, voltei da primeira missa, ela

subia a escada à minha frente e entrou novamente na biblioteca. Já que eu havia tomado a comunhão, tive coragem de segui-la. Quando fui abrir a porta, estava ela voltada para mim, como se me esperasse. Perguntei-lhe: “Quem és tu?” — “Maria Schonborn”.

Era, pois, a irmã de uma t i a minha que eu não chegara a conhecer. Perguntei-lhe: “O que queres de mim? Por que não encontras paz?”— “Aqui pequei!”, respondeu-me, e desapareceu. Rezamos por ela, muito; e nunca mais a encontrei.

Já mencionei que estive fora em março e abril. Em O., fiquei no quarto de uma querida parenta minha, que falecera. Naquele quarto, não a vi. Certo dia, num passeio, em meio a um prado, ela veio ao meu encontro, de ancinho no ombro, muito suada, e ria para mim. Quase que não acreditei no que meus olhos me mostravam. Ela me aparecera como sempre o fora, e se eu não me encontrasse em companhia de outros, teria gritado de alegria. Infelizmente, pouco depois, ela desapareceu. Nada falei do acontecido em casa. Contei apenas aonde tinha ido. Disseram-me: “Oh! lá em cima! a Hortense costumava ajudar uma pobre mulher a fazer feno.”

Tive a impressão de que ela não precisava de minhas preces. Antes, vi nesse encontro um sinal, pois nós éramos muito amigas e eu lhe contara ahistória da freira e deixado a seu critério aceitá-la ou não. Ela me respondeu não poder acreditá-la sem falar comigo a esse respeito. No entanto, antes de trocarmos idéias, faleceu.

Os “onze” e o pároco Schmuttermeier

Em 4 de julho de 1922, vi, pela primeira vez, as onze sombras que me aparecem constantemente. São colunas de neblina clara, de

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tamanhos diferentes. Vejo-as sempre no terraço da frente e no morro que desce atrás da cervejaria. De quando em quando, chegam bem perto de mim. Não se reconhece que se trata de vultos humanos, antes se parecem com aspargos gigantescos, envoltos em neblina. Vejo-as tantas vezes que já não ligo, nem anoto a data em que se mostram.

Na festa do Natal, depois da primeira missa, chegaram perto de mim; disse-lhes: “Se sois Almas do Purgatório, adorai o Menino Jesus”. No mesmo instante, curvaram-se como que atingidas por um raio, e desapareceram. Estranho, aquilo! Pois até agora nunca haviam reagido a qualquer palavra minha.

• 27 de dezembro de 1922 — Vi o pároco Schmuttermcicr® aproximar-se de mim quando me achava no jardim. Foi por um instante apenas, mas estou certa de que não me enganei/4)

•9dejaneirode 1922— Ele me esperava próximo à capela. Seu aspecto não era nada bom. Perguntei-lhe: “Sr. vigário, posso ajudá- lo?” Ele pediu que eu mandasse rezar uma santa missa; o que foi leito na primeira oportunidade. Apareceu-me à noite daquele mesmo dia.

• 25 de janeiro — Foi pela quarta e última vez que o vi. À noite, fui à igreja. Vi no confessionário a branca manga de uma sobrepeliz. Achei estranha a presença do vigário no confessionário, pois não havia gente na igreja; pensei comigo, porém, que não demoraria e chegariam pessoas para se confessar. Veio-me a idéia de eu também aproveitar a ocasião, e me confessar. Passados uns cinco minutos, ouço abrir-se a porta do confessionário — e sai o pároco Schmutter- meier; passa perto de mim, sorri-me cordialmente, caminha pelo corredor do meio e ajoelha-se no degrau debaixo da lamparina. Pouco depois, vem o sacristão para tocar as ave-marias. Acho que vai tropeçar no pároco. Naquele instante, acendeu-se a luz elétricae pude

(3) O pároco Schmuttermeicr, o antigo diretor espiritual da princesa, morreu cm 1899.

(4) Depois de ter saído a primeira edição desta obra, Maria Feistle, de Waal, nos escreveu: “O pároco Schmuttcrmeier foi vigário de Waal, de 1926a 1935;por isso não pode ter sido o professor de religião da princesa Eugênia. E possível que se trate do vigário Mathias Sollweck, falecido em 1899 ou 1900 (?).”

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ver tudo bem direitinho. Foi muito esquisito o que aconteceu. O sacristão continuou andando e passou através do vigário, como se fosse apenas uma sombra. Vi claramente os dois. Pouco depois, o pároco sumiu e nunca mais o vi.

Bárbara e Tomás

Vi a alma de nosso velho empregado dezessete vezes, mas somente no hospital. Nunca falei com ele.

• 31 de janeiro de 1923 — Passei alguns dias num quarto do terceiro andar. Ao olhar no espelho, de dia, vi nele refletida a cabeça de uma senhora. Virei-me, lá estava ela, uma dama vestida de rosa; desapareceu, porém, no mesmo instante. Trajava à moda do século XVI; percebi, porém, que o jeito do penteado não combinava com o traje. Fui dormir com uma sensação desagradável, pois ouvi, do quarto vizinho, que não tinha ocupante, uma voz de timbre muito especial, que a gente nunca mais esquece. Dormi razoavelmente bem até às três da madaigada. Então, despertei com uma sensação ruim. Eu sabia que ela estava perto. Acendi a luz e, pronto! ela e um homem em trajes de cavaleiro estavam à porta. Recorri à água benta e perguntei: “Quem és tu?” — “Bárbara.” — “O que queres?” Não obtive resposta. Ela pôs o dedo nos lábios e me convidou, com um gesto, para sair com ela. Tudo era tão natural, que senti vergonha de pular da cama na presença daquele cavaleiro que a acompanhava. Partiram, pois, e notei uma ferida na cabeça de Bárbara, no occipício. Era esse o motivo de ela ter o penteado tão estranho. Não tive coragem de os acompanhar, mas depois de terem saído, fui ver aonde iam. Entraram na alcova. Eu nem podia ter entrado lá, pois a porta estava trancada à chave.

• 5 de fevereiro — Estive ocupada no corredor de cima. Lá chegou ela, Bárbara, e entrou na alcova. Desci correndo, busquei a chave e corri atrás dela. Entrei na alcova. Lá estava ela, encostada à parede, esperando por mim. (Havíamos pesquisado nas crónicas e encontrado duas pessoas de nome Bárbara). Perguntei pois: “És a

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Bárbara de L.?” — “Sou.” — “Queres rezar comigo?” De olhos duros, fixou-me e acenou um sim. Rezei “Alma de Cristo” etc. Ao dizer a frase: “Água do lado de Cristo, lavai-me”, ela começou a chorar e a soluçar terrivelmente, com as mãos diante do rosto. Depois, ainda de olhos duros, saiu torre afora. Durante algum tempo, não mais subi àquele andar. E ela tampouco apareceu. Em seguida, urna pintora se instalou num quarto lá em cima. Subíamos, então, muitas vezes, para ver seus trabalhos, e Bárbara não reapareceu.

• 21 de fevereiro — Uma hora da noite. Acordo com aquela sensação que sempre experimento quando as Almas do Purgatório vêm procurar-me. De fato, Bárbara e seu companheiro haviam chegado. Fiquei aborrecida, e bastante, porque julgava estar protegi­da contra suas visitas. Exclamei: “Por que não ficam vocês lá em cima?” — “Porque eles não nos podem ver.” Perguntei ao homem:— “Como te chamas?” — “Tomás”, respondeu Bárbara em lugar dele. — “O que queres que eu faça?” — “Uma santa missa”, respondeu Bárbara. Rezo cómeles e digo: “Não venham mais; eu lhes prometo que será rezada uma missa por vocês.” Eles se foram e não mais os vi.

Estranho! Sai tanta força das almas! Sua simples presença desperta-me. É uma sensação esquisita quando, ao acordar, a gente sabe perfeitamente o que nos espera. No escuro, nada enxergamos. Quando Bárbara ainda v in h a l , fechei uma vez os olhos para verificar se minha vista estava normal; mas, então, não vi mais nada.

Nossa velha cozinheira Crescência e a mãe assassina

Naqueles dias em que Bárbara vinha, deu-se outra aparição. Em Io de fevereiro de 1923, estava eu com a cozinheira na despensa. De repente, entre nós duas, se interpuseram duas almas, uma, aCrescência, que esteve conosco 42 anos e que havia falecido em 1888; e, a seu

(4a) Ela temia, talvez, ser vítima de uma alucinação. Por isso examinou a capacidade de sua vista.

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lado, uma desconhecida, de aspecto desagradável. Crescência pare­cia a mesma que fora em vida: bastante simpática. Dois dias depois, eu a encontrei embaixo, no corredor. Eu. .'stava em companhia de alguém e não me foi possível falar com ela.

• 24 de fevereiro — Às quatro da manhã acordo e acendo a luz. Junto à minha cama está Crescência e, a seu lado, aquela desconhe­cida. Perguntei: “Crescência, querida, donde vens?” — “Do espaço intermediário.” — “Como me encontraste?” Ela fez um gesto como para dizer que veio pelo ar. Digo-lhe: “Não venhas mais me procurar. Prometo que será rezada uma missa para ti. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!” Ela se foi e, com ela, a desconhecida.

• 28 de fevereiro— Às 4:30 vem a desconhecida®. Que horror! Ela fica mais de dez minutos. Dou-lhe água benta. Rezo. Ela nem se mexe; apenas me olha como que zangada comigo. Tenho muito medo, nem sei por quê. Não dá resposta nenhuma. Por fim, ela sai. Parece ter sido pessoa muito desleixada. Na cabeça, um pano; seu avental parece indicar que é operária. Não gosto dela. Ela me lembra certa mulher que vi em A...; disso falarei mais tarde. Tenho medo porque tem os traços de uma pessoa viciada; não encontro outra explicação.

• 3 de março — Acordo às duas da madrugada. Sensação esquisita, a minha. Sei o que me espera. Sou covarde e demoro para acender a luz. Lembro-me, porém, que o Bom Deus me ajuda, e aperto o botão elétrico. E já está curvada sobre mim essa figura detestável. Depois, se afasta um pouco. Digo: “Em nome de Jesus, ordeno-te que me respondas: ‘Por que estás vagueando por aqui em vez de encontrar paz?”’— “Matei meu filho.”— “Como te chamas?”— ‘’Margarida”. — “Será rezada por ti uma santa missa. Não me esquecerei de ti. Não precisas vir nunca mais.” Rezo com ela. De repente, desaparece. Foi duro suportá-la, mas seja tudo como dispõe

(5) Perceberá o leitor ao meditar sobre as páginas deste diário, desde a primeira até à última, quão realistas são as declarações religiosas: “O pecado é feio, a virtude c bela.” A máscara da feiúra do pecador transparece em todas as aparições. Vale a pena refletirmos sobre as ofertas da vida moderna: a pecaminosidade planejada da vida e a fealdade planejada da música e da pintura modernas condicionam-se mutuamente.

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o Bom Deus! No entanto, se as almas têm que visitar-me, preferiria que fosse durante o dia claro.

Miguel, o marceneiro

No verão, em A..., vi, por três vezes, andar de um lado para o outro, urna senhoracujo rosto manifestava urna tristeza inexprimível. Quando a interroguei, respondeu apenas: “Ninguém reza por mim”. A outras perguntas minhas, não deu resposta. Naquela época, eu ainda não sabia que tinha de rezar com as Almas do Purgatório. Desse modo, a visita delas se torna mais breve e a reza com elas, um alívio para mim; por isso, já não sinto tanto medo.

• 11 de março de 1923 — Onze da noite. Apenas me havia deitado quando alguém entrou no quarto. Pensei ser minha irmã, e demorei em acender a luz; mas logo senti que se tratava de uma alma. Na porta estava o Miguel, nosso velho marceneiro e antigo sacristão. Não sei quando tinha falecido. Perguntei-lhe: “Então, Miguel, o que queres?” Ele deu um grito e desapareceu. Preocupo-me com ele, pois agora vem todas as noites, e é horripilante, já que nada se consegue com ele. Ficou comigo meia hora, das quatro às 4:30. Gemendo em voz alta, anda agitado pelo quaito. Não é bonito o aspecto dele, mas o Bom Deus há de ajudar-me.

• 15 de março — 11:30 da noite. Ele voltou. Digo-lhe: “No sábado será rezada por ti uma santa missa. Deixa-me em paz! O que é que tens feito? Responde, por favor.” — “Sacrilégio!”, grita ele. — “Posso ajudar-te?”, pergunto. Ele faz que sim com a cabeça e some.

Muitas mulheres e muitos homens

•21 de março — Veio ViktorB... procurar-me. Muito triste, me olhou. Não respondeu às minhas perguntas e desapareceu.

• 22 de março — A uma hora da noite, acordei. Alguém me perguntou: “Queres ajudar a esses como ajudaste a mim”? Acendi a

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luz e vi junto à minha cama o pároco S...; não o posso dizer com toda a certeza, pois mal havia ele formulado a pergunta, e já desaparecera. Só então eu vi quanta gente enchia meu quarto, homens e mulheres — e o Viktor também estava. Foi muito pesado para mim; no entanto, não demoraram muito; fora impossível contar quantos eram.

• 23 de março — De noite. Outra vez aquela gente. Dezesseis pessoas. Demoraram longo tempo. Cinco deles eu conheço: Viktor, Maria M..., Perpétua R..., aquele sapateiro que vivia dizendo: “Ai, meu Deus!” , Baptista B...; perguntei-lhes: “O que querem vocês?” Nenhuma resposta. Então eu disse: “Vamos rezar por vocês. Não precisam voltar mais.” Aí, diz o Viktor: ‘Temos de vir!” “Quem o quer?”, perguntei. Não responderam. Ficaram mais um pouco; todos cravaram os olhos em mim, e se foram. Aparecem noite após noite, mas não posso fazer nada; rezo e depois de pouco tempo, todos eles se retiram.

• 26 de março — Vieram apenas nove. Todos, desconhecidos. Indago: “Onde estão os outros?” Não respondem®. Esses nove vêm agora todas as noites. Não sofro muito com eles. Faço aprece e depois de algum tempo se retiram.

• 29 de março — Voltaram todos os dezesseis. Uma alma daquele grupo — não a conheço — se aproxima de mim e diz: “Nós te agradecemos.” Falta-me coragem para apertar-lhe a mão, mas ela estende ambas paia mim. Pergunto-lhes: “Podes ir pela Páscoa ao céu?” Ela responde claramente, e não se podia entender outra coisa: “A Luz!” Em seguida, todos eles se achegam a mim, o que não é muito agradável. Dou-lhes água benta e logo se retiram. Achei estranho que os dezesseis precisassem de tão reduzido espaço. À minha frente, pareciam um montículo de gente, mas na realidade havia entre eles vultos pequenos e outros bem grandes. Aquela que falou comigo era muito jovem, de expressão cordial; vestia saia preta e avental branco; todos traziam roupa de operário.

(6) As perguntas que visavam apenas à indiscrição e ao sensacionalismo não foram respondidas. Esses fatos levam sempre o leitor a averiguar novamente.

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Nos últimos tempos, vejo Nicolau, que havia sido criado particular de meu avô. Encontrava-me com ele apenas no primeiro andar do castelo, onde passeava pelos quartos. Parecia procurar alguma coisa. Mas não consegui falar com ele porque nunca aconte­cia de estar sozinha quando se dava o encontro.

De noite, porém, sofro terrivelmente. É sempre o mesmo horror, todas as noites desde a Páscoa. Tenho a sensação de que há muitas almas junto a mim, mas nada vejo; ouço, porém, passos e respiração arquejante pertinho de mim; em seguida, um barulho estranho, como se alguém batesse na parede. Apenas ouço e percebo esses ruídos, o que, para mim, é pior do que ver e assistir seja ao que for. Certa noite, essa situação começou por volta das onze horas e só terminou lá pelas cinco da manhã. Levantei-me e fui sentar-me no corredor. Mas vieram atrás de mim. Perguntei: “Vocês não podem comunicar-se comigo?” Algo tocou-me no ombro e senti muito medo.

Babette

•21 de abril de 1923 — Pela segunda vez vi hoje, na igreja, duas senhoras. Ficaram ajoelhadas enquanto rezávamos o terço. Desapa­receram e voltaram. Mais tarde, ao entrar na igreja com o vigário, desejava, no meu íntimo, que também ele visse as duas almas. Elas lá estavam, mas quando quis abordá-las, desapareceram.

• Quatro vezes encontrei o Nicolau. Mas passou ao meu lado, sem me ligar.

Durante alguns dias, sempre à noite, tive febre. Não conseguia conciliar o sono. Nessas ocasiões, nada via e nada escutava. Agora que estou boa, parece que voltam.

• 26 de abril— A uma hora da madrugada apareceu a governanta. Faz um ano que ela faleceu. Não me lembro de seu nome. Ela parece estar muito triste. Mas não demorou muito comigo. Andava constan­temente de um lado para o outro.

Nicolau, o criado particular

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• 27 de abril — Hoje, ela ficou comigo bastante tempo. Insistentemente cravava os olhos em mim, mas não respondia às perguntas.

• Duas vezes vi o Nicolau; ele está sempre à procura de alguma coisa.

• 29 de abril — A governanta ficou comigo das três às 4:30. Estava muito triste. Ela queria falar, mas não foi capaz. Não aprecio sua companhia porque me olha com muita fixidez.

• Vi também as onze “colunas de neblina”.• 1 ° de maio— Ao entrar no quarto para deitar-me, vi novamente

a governanta. Apresentei-lhe um pano para que ela nele imprimisse o sinal de sua mão. Ela chegou pertinho de mim, mas nada fez.

• 4 de maio — Eu estava nesta noite deitada em meu leito e ela veio duas vezes e se curvou sobre mim. Não gosto disso.

• Vi também o Nicolau.• Perguntei à governanta® como ela se chama. Já lho havia

perguntado muitas vezes sem ter recebido resposta. Emitiu, agora, um som abominável, parecido a Ba... e. Ela mostra uma grande tristeza. Gosta muito de receber água benta; fica agitada, quando não a ganha.

• 5 de maio — Ela veio outra vez. Agora sei que se chama Babette. Ela me cansa muito porque fica demasiado comigo. Anda de roupas rasgadas. E sofre da boca, mas não sei o que é, pois não o observei distintamente.

• 9 de maio — Duas vezes nessa noite ela voltou.• Tornei a ver os “onze”.• 12 de maio— Encontrei-me no corredor com o Nicolau; estava

de cara bastante cordial.• 13 de maio — Voltou a governanta. Sua fisionomia é muito

desagradável. Ela curvou-se sobre mim. Sua boca abominável é como uma grande úlcera; o lábio inferior, totalmente preto; os olhos,

(7) O pároco Sebastião Wieser conhecia bem a falecida (Bárbara Z.) quando viva. Disse ele que ela fora uma mulher solteira, aparentemente piedosa, mas muito histérica e sensual, que escrevia longas cartas aos padres e caluniara um deles do modo mais maroto e astuto possível. Por fim, ela morreu ao dar à luz.

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sumamente antipáticos. Eu ficaria contente se a fizesse falar, mas não consigo. Ela gostaria de expressar-se por palavras, mas também não consegue.

• 14 de maio — Ela voltou e abriu a porta que eu, de propósito, havia fechado para ver a sua reação.

• 15 de maio — Avistei o Nicolau.• 18 de maio — Da uma às 3:30 da madrugada, a governanta

esteve comigo, correndo pelo quarto. E terrível, pois não sei como ajudá-la. Tenho rezado, sim, mas não posso rezar desse jeito o tempo todo. Sua boca é um horror.

• 19 de maio — Outra vez, mas apenas por pouco tempo.• 21 de maio — Ela veio no lusco-liisco da madrugada, às 4:30.

Despertou-me fazendo muito barulho. Haviam-me falado da partícu­la da Santa Cruz; apresentei-lha e perguntei: “Es uma condenada?” Fez que não meneando a cabeça. Continuei: “Eu te conjuro, dize- me o que queres! Não te quero mais ver.” Saíram dela, então, alguns sons quase ininteligíveis: “Vigário... sempre mentido a ele.” Pedi-lhe que repetisse a frase, pois não entendia o sentido; ela, porém, abriu a porta e saiu.

• 22 de maio — Ela veio como que fugindo de qualquer coisa. Estava muito perturbada e de fisionomia horrenda. Disse-lhe: “Eu te ordeno: dize-me, por que tomas a procurar-me?” Achegou-se a mim e apontou para sua boca. Senti grande pavor; em seguida, ela sumiu.

• 23 de maio— Mal havia caído no sono, e ela reapareceu. Disse-lhe: “Se não me disseres o que queres, não mais rezarei por ti.” Durante longos minutos, nenhumaresposta. Depois, ummurmúrioininteligível.Exclamei: “Dize-me outra vez o que disseste a respeito de mentiras!” Ela chega pertinho de mim e diz em voz bem clara: ‘Tenho de sofrer. Tenho caluniado, tenho mentido muito; dize isso ao vigário.” Retruco: “Por que não vais tu mesma?” Nenhuma resposta.

• 24 de maio — Ela voltou com um outro vulto, que não pude identificar. Fiquei apavorada. Estendi-lhesapartículadaSantaCruz,elhes disse: “Por favor, não voltem mais. Será rezada por vocês uma santa missa.”

• Tomei a ver na igreja aquelas duas mulheres.

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A mulher no cercado das galinhas

• 28 de maio de 1923 — Ao passar pelo cercado das galinhas, vi uma pessoa procurando algo num monte de lenha. Pensando que aquela mulher era uma mendiga, aproximei-me dela. Ela deu alguns passos em minha direção, mas de repente se desfez no ar.

À tarde, junto ao Açude do Rosário^73), veio ao meu encontro um homem trazendo uma trouxa, como esses mendigos à procura de mantimentos. Uns poucos passos à minha frente, dissolveu-se em nada.

Outro dia vi, na igreja, ajoelhadas, aquelas duas mulheres. Veio então uma senhora, de carne e osso, e sentou-se naquele mesmo banco em que estavam as duas almas. Havia pouco lugar naquele banco e percebi, então, claramente, que aquelas duas almas eram como neblina que não ocupa lugar.

• 29 de maio — Por poucos instantes, vi a mulher no cercado das galinhas.

Aproxima-se a redenção

• 30 de maio — Eu estava ajudando as Irmãs do Hospital no arranjo de flores. (Era véspera da festa do Coipo de Deus.) Por algum tempo, fiquei sozinha, quando veio Benedito e se pôs ao meu lado. Perguntei-lhe: “Benedito®, sofres muito?” Ele fez que não com a cabeça. Continuei: “Em pouco tempo estarás no céu?” Meneou a cabeça afirmativamente. — “Costumas andar por aqui?” Outra vez o gesto afirmativo com a cabeça. Parecia estar muito à vontade, tal como em vida, de avental azul e de mangas arregaçadas. Ficou olhando algum tempo, saiu porta afora, até a casa, e sumiu.

(7a) Na vizinhança do castelo de Waal há dois açudes, um é chamado Açude do Rosário; o outro, em honra às Chagas de Jesus, Açude das Cinco Chagas.

(8) Em vida, Benedito pertencia ao grupo dos criados; era factótum no castelo.

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Graças a Deus que a governanta não vem mais; posso dormir sossegada.

• 31 de m aio— Durante a procissão do Corpo de Deus, quando estávamos ajoelhados junto ao altar do marceneiro Fischerhaus, saiu da casa o marceneiro Miguel. Mas que transformação que se dera com ele desde à última vez que o vira! Nele, tudo era claridade e que olhos alegres! Parecia estar envolto em pano branco. Durante o evangelho ficou na minha frente. Não entendo por que os outros não o perceberam.

• 4 de junho— Outra vez aquela mulher no cercado de galinhas. Parece estar muito triste. Agora, durante a noite, há bastante barulho— no entanto, não vejo nada. E o ruído de pés que, pesadamente, se arrastam pelo quarto; estala o chão, estalam os móveis. Francamente, preferiria ver tudo isso em vez de ficar apenas escutando.

• 7 de junho — Novamente a mulher do cercado de galinhas. Ela crava em mim uns olhos ardentes. Até agora nunca a tinha visto tão nitidamente. Mas não consigo falar com ela.

• Continua o barulho noturno, mas não é um ruído contínuo, há intermitencias.

Fritz, o pastor assassinado

• 11 de junho de 1923 — Quando despertei, curvou-se sobre mim um vulto comprido, cinzento, totalmente envolvido por neblina. Não posso dizer se era homem ou mulher, mas em todo caso foi antipático. Fiquei muito assustada.

• Cessou o barulho.• 14 de junho— Aquele fantasmajá se achava no quarto quando

quis deitar-me. Em voz alta rezei a oração da noite, enquanto “Aquilo” veio achegando-se a mim. “Aquilo” possuía braços — se não fosse isso, diria que se assemelhava a um tronco de árvore ambulante. Ficou comigo uns vinte minutos, mas pelas quatro horas voltou.

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• 16 de junho — Foi duro, muito duro. Sacudiu-me os ombros. Que horrenda situação! Dei-lhe um soco e disse: “Tu não me deves tocar!” “Aquilo” retirou-se a um canto. Ao lhe dar o soco, não senti a resistência de um corpo, mas algo como se fosse um pano quente e úmido. Acho que, dificilmente, suportaria mais vezes tal pavor.

• 18 de junho — “Aquilo” é simplesmente “o” horror. Ele procurou estrangular-me. Transida de medo, rezei e agarrei a partí­cula da Santa Cruz. Com todo o seu tamanho plantou-se diante de mim. Longamente, assim ficou, sem dar resposta às minhas pergun­tas. Por fim saiu, deixando a porta aberta.

• 19 de junho— Posso ver agora que se trata de um homem. Fi­cou só pouco tempo.

• Na igreja tornei a ver aquelas mulheres. Parecem ser de um século passado. Não respondem. Perguntei-lhes se furtaram velas.

• 21 de junho — Por mais de uma hora, aquele homem terrível ficou comigo esta noite. Sem parar, corre pelo quarto. Tem cabelo preto, desgrenhado, e olhos abomináveis.

• Vi sentada no cercado de galinhas aquela mulher. Seu jeito é sempre amável. Mas ela não responde. Tendo ido ao galinheiro, pude observá-la bem. Um gato veio andando em direção a ela. Ao enxer­gá-la, deu um pulo, assustado, para o lado. Senti-me feliz por cons­tatai’ que, ao menos, o gato vê o que eu vejo/9)

• 22 de junho — Desde à uma hora da noite até depois das cin­co, esteve “ele” no meu quarto. Foi medonho. Curvou-se sobre mim diversas vezes e sentava-se junto ao meu leito. Chorei de tanto pavor. Para não ter que olhá-lo, rezei as Horas do Ofício divino. De quando em quando, levantava-se e corria pelo quarto, gemendo de modo abominável. Parece-me que conheço esse homem, mas não consigo lembrar-me de quem se trata. Estou ficando bastante covar­de, pois custa-me, às vezes, ao anoitecer, entrai' no meu quarto. Mas consigo pegai' no sono depressa.

(9) É fato que animais demonstram medo de lugares onde foram constatadas aparições de pessoas mortas. E célebre a aparição, documentada numa casa paroquial, onde um cão não passava pelos últimos degraus de uma escada porque, ali, por diversas vezes, houvera uma aparição. O cão acompanhava o dono a qualquer lugar, menos ao da aparição.

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• 24 de junho — “Ele” voltou. Agarrou-me os ombros. Excla­mei: “Por favor, dize-me o que queres, e não voltes mais!” Nenhuma resposta. Correu algumas vezes pelo quarto e sumiu. Não consegui acalmar-me. Voltou pelas seis da manhã. De dia claro, seu aspecto é ainda pior; é repugnante. E da categoria das almas mais “relaxadas” quejá vieram ver-me. Disse-lhe: “Não me perturbes; quero preparar­me para a santa comunhão.” Achegou-se a mim, levantando, supli­cante, as mãos. Fiquei com tanta pena dele que lhe prometi toda a ajuda possível, e lhe perguntei: “Não consegues falar?” Fez que não com a cabeça.— “Sofres muito?” Saíram dele gemidos pavorosos. Dei-lhe muita água benta e ele se foi.

• 27 de j unho— Ele voltou durante a noi te. Devo conhecê-lo mas não consigo lembrar quem poderia ser. E muito antipático.

• 28 de junho — Voltou.• Tornei a ver aquelas duas mulheres na igreja.• 29 de junho — Outra vez estava ele no meu quarto quando

fui deitar-me. Poderia ser, talvez, aquele pastor Fritz que fora assas­sinado. Perguntei-lhe se era o Fritz que havia sido morto. Mas ele não reagiu. Rezei com ele, mas meu sinistro visitante mantinha os olhos cravados em mim, com tanta maldade, que fiquei apavorada. Pedi- lhe que me deixasse só e, realmente, ele se foi.

• 30 de junho — Seus gemidos pungentes me despertaram, mas logo foi embora.

• Io de julho — Estou convencida de que ele é o pastor Fritz. Seu rosto está tão escuro que mal o reconheço, contudo, a estatura, o nariz e os olhos são dele, do velho pastor, com quem tantas vezes me encontrara enquanto vivia.

• 2 de julho — Ele voltou. Seu aspecto é um pouco mais “civilizado”; ficou só pouco tempo. Chamei-o pelo nome: “Pastor Fritz!” E ele reagiu com toda naturalidade.

• 3 de julho — Voltou por poucos instantes. Perguntei-lhe: “És o pastor Fritz, que foi assassinado?” Respondeu-me claramente: “Sou.”

• 4 de julho— Veio ver-me pela manhã. De olhos tristes, ele me fitava. Nada respondeu a minhas perguntas e logo saiu.

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• 5 de julho — Percebo que nele tudo se torna mais claro. Fez o sinal-da-cruz ao rezarmos nossa prece.

• 6 de julho — Estou muito feliz porque, agora, ele consegue falar. Perguntei-lhe: “Por que procuras justamente a mim?” — “Porque sempre rezaste por mim.” (É verdade, pois sempre senti compaixão por esse pobre de Cristo. Já na infância, ele tinha um jeito esquisito.) — “O que te salvou?” — “Compreensão mais clara dos meus pecados e arrependimento.” — “Não tiveste morte instantânea quando foste assassinado?” “Não.” — “Sairás do purgatório em breve?” — “Falta muito, muito!” Permiti-lhe viesse ver-me se isso lhe desse algum alívio. E interessante que alguém, bruto em vida, fale dessa maneira quando separado de seu corpo^10). Já não me inspira medo. Gostaria de ajudá-lo o mais possível. Quão misericordioso é o Bom Deus!

• 8 de julho — Veio por alguns instantes apenas.• 9 de julho — Despertou-me com um forte empurrão nos

ombros. Eu teria perdido a missa, se ele não me tivesse acordado.

(10) O pároco S. W. observa: “O comportamento dessa pobre alma é qual eco da vida terrestre. Eu o conhecia bem, o pastor Fritz. Era como um bode entre as ovelhas. Não adianta estender-me sobre a vida dele. Digo apenas que as palavras da Escritura nele se realizaram: “A árvore, caindo para o sul ou para o norte, no lugar onde caiu, lá fica.” (Eclesiasies 11,3); mas também causa admiração a misericórdia infinita de Deus. Fritz freqiientava raras vezes a igreja. Tinha um único filho que na escola era conhecido como patife e mentiroso. Causava muito desgosto a seus superiores. Quando era necessário castigá-lo na escola, o pai ficava revoltadíssimo contra professores e contra o vigário. Eu lhe dizia que, algum dia, ele receberia uma surra de seu próprio filho. Aos 16 anos, esse seu filho era um rapagão de muita força física. Numa desavença, pela meia-noite, o velho foi derrubado e morto pelo próprio fil ho, que, depois, foi condenado à morte. O pastor Fritz entrou na eternidade, vítima de uma tragédia familiar. Não se soube se ele teve morte instantânea ou se teve tempo de arrepender-se, mas, provavelmente, antes de expirar, deve ter recuperado os sentidos, pois o assassino, depois de o ter abatido, deixou-o entregue à sua sorte, naquele rancho. Dia claro, foi descoberto o cadáver. Agora ele volta como Alma do Purgatório, mas do jeito como estava em vida: de cabelo preto, desgrenhado e de olhos abomináveis, irreconhecível até o dia 27 de junho. Desde então, sua aparência se torna, sempre, mais clara e, em 6 de julho, ele diz que não teve morte instantânea e que a compreensão e o arrependimento o preservaram da condenação. Em 12 de julho ele confirma: “Estou ardendo” e imprime um dedo na mão da princesa, deixando uma marca vermelha, de mão em brasa, sinal que vi com meus próprios olhos.

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Perguntei-lhe: “Tens tanto interesse em que eu tome parte na santa missa?” — “Pela missa podes ajudar-me bastante”, disse ele.

• 11 de julho — Veio apenas por poucos instantes.• 12 de julho — Rezamos juntos e depois perguntei-lhe: “Em

que consiste teu sofrimento?” — “Estou ardendo.” Aproximou-se de mim, e antes que o pudesse impedir, o dedo dele tocou na minha mão. Fiquei tão assustada, e aquilo me doeu tanto que gritei de dor. Ficou na minha mão uma mancha vermelha e faço votos para que ela desapareça quanto antes. É uma sensação esquisita ter no corpo um sinal visível feito por alguém do outro m undo/1 •)

No abandono

• 15 de julho de 1923 — Eu estava para me deitar. Ao entrar no meu quarto, ele lá estava. Tive a impressão de que se achava com ele mais alguém. Todavia, não posso afirmar com certeza.

• 18 de julho — Nesse dia encontrei-o já no quarto, na hora em que ia dormir. Pareceu-me, quando estava ao lado dele, que era apenas um vulto, embora não possa dizer exatamente. Ele rezou comigo, isto é, murmurou ao meu lado. As minhas perguntas, não me deu nenhuma resposta.

• 21 de julho — Chegam agora os dois juntos. Não posso imaginar quem seja esse novo; é abominável e sujo, tem os cabelos desgrenhados e não fala. Vi na igreja aquelas duas mulheres. Ajoelhei ao seu lado. Não teria havido espaço para mim ao lado delas se fossem de carne e osso. Não pararam de me fixar. Não pude falar com elas porque havia reza do rosário com o povo.

• Vi também a mulher do cercado de galinhas. Enfim, ela

( I I ) Há di versos 1 ¡ vros cm que as Almas do Purgatório deixaram impressos sinais visíveis de fogo. E conhecido o livro de orações em que a mão de uma pobre alma deixou seus contornos eseu moldeem muitas páginas daquele manual. O editor deste livro teve aquele manual de orações em mãos.

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consegue falar. Chama-se Adelgunde. Agora tem boa aparência e me olha com cordialidade. Veste aqueles trajes característicos da Suábia, de tempos passados. Parece uma velhinha de antigamente. Perguntei- lhe por que veio procurar-me. — “Rezar”, ela disse.

• 24 de j ulho —■ Fritz e aquele outro vieram esta noite duas vezes. Não falaram mas, assim mesmo, a situação era desagradável.

• 29 de julho— Nada de especial. Aqueles dois aparecem todas as noites. Acho esse novo detestável. Fritz irradia claridade, sempre mais viva.

• Perguntei a Adelgunde de quanto tempo já sofre no purgatório.— “Três vezes oitenta”, respondeu.

• Io de agosto — Agora sei quem é o outro, é o G .../12) que morreu de varíola há poucos anos. Quando perguntei a respeito dele ao Fritz, este me respondeu: “Olha tu mesma!” Ele achegou-se a mim e eu escondi depressa as mãos.

• 4 de agosto — Ambos ficaram comigo bastante tempo. Perguntei a Fritz por que G. também vem. Respondeu:— “Ele esteve à tua procura.”

• 9 de agosto — Não tive sossego durante a noite toda. Reapareciam a cada instante. G. me causa medo. Pedi-lhes para me deixar sossegada. Fritz respondeu: “Faça por nós alguns sacrifícios.” Sinto vergonha por ter sido tão dura de coração.

• 10 de agosto— Fritz aproximou-se de mim. Tinha a fisionomia cordial e atraente; por isso lhe perguntei: “Não precisas mais sofrer tanto?” — “Não.” — “Já podes rezar por mim?” — “Ainda não.” — “Onde te encontras?” — “No abandono.” — “Virás visitar-me ainda muitas vezes?” — “Não.” — “E por que não?” — “Não mais receberei permissão.” — “Tens recebido alguma ajuda de mim?” — ‘Tenho.” E sumiu. G. ficou. Foi uma sensação sinistra. Ele geme, geme e sua fisionomia exala maldade. No entanto, sentir-me-ei feliz se puder ajudá-lo.

(12) G. recebeu os sacramentos dos agonizantes do pároco Sebastian Wieser e foi este mesmo vigário quem encomendou seu corpo.

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• Esqueci de anotar que vi no hospital, pela segunda vez, urna antiga superiora. Parece estar muito triste.

• 11 de agosto— G. veio quatro vezes esta noite. Não responde nada. Não fica quieto nenhum instante. Está sempre correndo pelo quarto. No fundo, estou triste porque Fritz não vem mais. Ultimamen­te era como um protetor para mim. G. causa-me um certo pavor; no entanto, quero de bom grado ajudá-lo.

Em geral, meus nervos estão em estado melhor do que antes. Acostumei-me plenamente a esses visitantes intrusos e depois de terem sumido, pego logo no sono.

• 12 de agosto — Ele veio só por poucos instantes.

Sou feliz

• 13 de agosto de 1923 — Sentí urna grande alegria. Ao colher groselhas, apareceu, de repente, ao meu lado, a velha lenhadora que sempre havia catado lenha para o castelo. Exclamei: “Oh, minha querida lenhadora! Tu não te esqueceste de mim?! Como estás?”— “Sou feliz!”, respondeu, e desapareceu. Como foi boa essa aparição! Nós duas havíamos frequentemente colhido groselhas e, certa vez, ela me havia dito: “Acho que depois de minha morte terei que passar meu purgatorio na horta.” Rimos bastante e eu Ihe havia dito: “Tu virás ver-me, não é?” E agora, de fato, ela v e io /13)

Um cavaleiro em sua armadura de gala

• 14 de agosto — Vi, na igreja, ajoelhado diante do altar, um cavaleiro metido em sua armadura. Pensei que se tratasse de um

(13) O vigário Sebastian Wieser disse que ela esteve doente durante muitos anos e se purificara através dos mais diversos padecimentos. Há nisso um grande consolo para muitas pessoas simples, que, além de suas preocupações por causa de sua humilde condição de vida, ainda são provados por muitas doenças. Mas o amor de Deus os envolve.

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engano meu. Para ver melhor, aproximei-me mais e cheguei pertinho dele. Examinei-o durante algum tempo; depois, ele sumiu.

• G. ficou um bom tempo comigo. Anda terrivelmente inquieto.• 17 de agosto — G. voltou. Já presta atenção quando rezo.• 19 de agosto — Ele veio duas vezes esta noite. Quando estou

na capela, batem à porta. Quando vou ver quem é, não há ninguém.• 20 de agosto — Vi aquele cavaleiro na igreja junto ao altar. E

um gigante de estatura. Talvez seja a alma daquele homem cujo sepulcro fica no coro da igreja, quando foi feito o novo pavimento. Foram encontrados ossos de tamanho descomunal.

• 23 de agosto — Passei uma noite desagradável. Senti a presença de G., mas não havia energia elétrica; eu estava no escuro e ouvia e sentia a presença dele. Não poder vê-lo, aumentava meu pavor. Não tive a coragem de levantar-me e buscar fósforos. Depois de uma hora, eu sabia que ele não estava mais. Não foi o ouvido que me deu essa certeza, mas uma espécie de sexto sentido — uma sensação nova para mim.

• 24 de agosto — Batem à porta da capela com mais força. Quando vou atender, não vejo ninguém, mas apenas retorno ao meu lugar, as batidas recomeçam. Isso me incomoda muito, pois gostaria de ter sossego.

• 26 de agosto — G. ficou comigo por muito tempo. Rezei a ladainhalauretanae ele me acompanhou. Sua aparência melhora. Seu rosto já não está tão escuro.

• 30 de agosto— E sempre a mesma coisa. Às vezes, o barulho à porta da igreja é insuportável. Chamam-me e batem à porta. O cavaleiro mostra-se quase diariamente.

• Na capela do hospital vi a Irmã H edw ig/14)• 2 de setembro— Ao voltar do jardim, vi G. parado à janela do

meu quarto, me olhando. Senti uma sensação estranha e hesitei em entrar; estava com medo. Mas quando entrei, não havia ninguém. Que alívio!

• 6 de setembro— G. tem enfim permissão de falar. Perguntei:

(14) Waal tem um pequeno hospital, onde a irmã Hedwig Ostertag exercera o cargo de superiora.

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“Por favor, o que tu queres?” — “Ajuda!” — “Por que tu sofres?” — “Porque não fiz bastante penitência dos meus pecados.” — “E por que vens justamente a mim?” — “Porque a passagem por ti está desimpedida.” — “Como desimpedida?” Não obtive resposta, infe­lizmente, senão eu poderia, talvez, ter fechado essa tal passagem.

• 7 de setembro— Vi G. em frente de sua casa. Já não me inspira tanto horror; torna-se mais e mais cordial. E para mim um mistério essa transformação. Minha ajuda é mínima.

Retiro o que escrevi ontem. Mesmo se fosse possível, eu não trancaria a passagem pela qual as almas chegam a mim. Seria uma atitude extremamente egoísta da minha parte. Devo dar graças a Deus em poder ajudar um pouco.

Duas irmãs que deram escândalo

• 8 de setembro de 1923— Foi um dia de muita excitação. Após longo tempo, tornei a ver aqueles “onze” que recebem mais e mais formas humanas.

• Na igreja vi o cavaleiro e aquelas duas mulheres que, final­mente me deram resposta. Perguntei-lhes: “Por que estais sempre aqui?” — “Porque demos escândalos”.— “Quem éreis em vida?” — “Éramos irmãs.” Sumiram. Têm má fisionomia. Seus olhos pare­cem penetrar como punhais.

• Vejo Adelgunde no cercado de galinhas. As galinhas perce­beram-na e, assustadas, fugiram. De perto, o rosto dela não parece velho como eu sempre o supunha. Segurou algo na mão, talvez um punhal, mas não posso afirmá-lo com certeza.

Quando vejo tantas almas, tão diferentes entre si, num só dia, convivo com elas mais do que com as pessoas vivas ao meu redor. A gente não esquece facilmente o que vê. E, para mim, esses fatos parecem-me, por vezes, uma carga tão pesada de suportar, que me cansa, à exaustão, disfarçar o que se passa comigo.

• 9 de setembro — Encostado na cerca que fechava a praça

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de armas(14a), estava o velho Henrique. Fiquei assustada porque estava muito perto de mim. Apresentava um aspecto horripilante. Faço votos para que fique longe de mim.

• G. esteve longamente comigo durante a noite. Ficou bem manso. Começamos a rezar e em seguida conversamos. Perguntei- lhe: “O que te aproveita mais da minha ajuda?” — ‘Tom ar parte na missa.” — “Já viste o Bom Deus?” — “Vi.” — “Estás vendo-O ainda?” — “Não.” — “Por que não?” — “Estou sujo.” — “Em que consiste teu sofrimento?” — “Estou ardendo.” (Talvez fosse outra palavra, pois não a entendi bem; foi uma fala balbuciante.) — “Sabes onde está Fritz, o pastor?” — “Não.” E sumiu.

• 13 de setembro — Ele veio só por poucos instantes.• Vi na igreja o cavaleiro.• 15 de setembro— Por longo tempo, os ‘ ‘onze’ ’ andaram ao meu

lado. Tenho a impressão de que se trata de almas de mulheres, mas estão ainda totalmente envolvidas em neblina.

Tia Maria Sch...

• 16 de setembro de 1923 — Ao buscar à noite um livro na biblioteca, vi, de repente, ao meu lado, tia Maria Sch... rindo alegremente. Dirijo-lhe a palavra: “Tudo bem?” Responde-me: — “Eu te agradeço.” Acenou-me um adeus e desapareceu. Fiquei feliz com a sua visita. Acho estranho que agora voltem os velhos conhe­cidos. Nestes últimos dias, exigiram muito de mim quanto às obriga­ções sociais e eu fora tão expansiva que, nem de longe, pensava naquilo que se passara na biblioteca.

• Muito barulho na capela e constantes chamadas: “Tu! Tu!” mas nada se via.

(14a) Pedimos à princesa Ludovica que nos mostrasse a praça de armas que servira para exercícios de tiro. Ela fica ao lado dos prédios da horticultura do castelo de Waal. Agora está toda plantada de árvores frutíferas.

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• 19 de setembro — G... está todo transparente. Ficou longo tempo comigo. Indago-lhe: “Dize-me, por favor, por que está livre o caminho justamente a mim?” — “Tu nos atrais.” — “Por meio de qué?” — “Por meio de tua alma.” — “Podes vê-la?” — “Sim.” — “Mas não gosto de que venhas. Vai a pessoas melhores que eu!” — “Eu não volto mais, porque outros estão esperando sua vez.” — “Estás melhor?” — “Sim.” Fitou-me meio sorrindo e desapareceu. O que virá agora? Confesso que tenho medo. Leva sempre algum tempo até que uma Alma do Purgatório não assuste mais, devido ao seu aspecto horroroso. Mas parece que tem de ser assim.

Adelgunde, a mãe assassina

• 21 de setembro — Adelgunde esteve comigo. Ela tem realmente uma faca na mão. Rezou comigo. Pergunto-lhe: “Por que tens essa faca?” — “Matei!” — “A quem?” — “Meu filho.” — “Como posso ajudar-te?” — “Dá-me tua mão.” Eu estava tão apavorada que não fui capaz de fazê-lo. Sou muito covarde e agora me arrependo de não tê-lo feito. Ela foi logo embora. Quero superar­me quando ela voltar; no entanto, para mim, isso é terrível, pois sei que aquilo faz arder minha mão.

• Vi os “onze” e o cavaleiro. O encontro com eles até acalma meus nervos. Na capela há, de vez em quando, uma neblina cerrada diante da porta e nos degraus, mesmo quando não descubro nevoeiro em qualquer outro lugar. Ignoro se existe alguma ligação com o barulho, que continua sempre com a mesma intensidade. É pena que outras pessoas não o percebam.

• Vi o Nicolau andar pelos quartos, quando me encontrava em companhia de pessoas vivas. Ele parecia estar bastante alegre.

• 23 de setembro — Adelgunde voltou. Cresce em mim a repugnância por ela. Mesmo, não estando perto de mim, seus olhos me perseguem.

• 27 de setembro — Ela voltou. Procura agarrar minha mão.

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Não posso estendê-la a essa alma. Tudo dentro de mim se revolta contra isso.

• 30 de setembro — Esteve comigo quase duas horas. Foi mui­to pesado para mim.

• Durante a missa solene na igreja, vi o cavaleiro ajoelhado junto ao altar, no meio dos coroinhas.

• 2 de outubro — Adelgunde continua me torturando. Como uma mulher furiosa, corre pelo quarto e crava em mim seus olhos ardentes, procurando agarrai- minha mão. Sou muito covarde; não consigo superá-la.

• 4 de outubro — Perguntei-lhe o que quer de mim. Respondeu: “Tua mão.” No entanto, não fui capaz de estendê-la a essa mulher. Rezei com ela, mas ela nem ligou. Perguntei-lhe, entre outras coisas, onde foi enterrado seu filhinho e se ela antes de morrer conseguira confessar os pecados. Mas não respondeu coisa alguma.

• 5 de outubro — Quando acordei, ela estava sentada na minha cama, mas ficou só por poucos instantes.

• 6 e 7 de outubro — Não passei bem essas noites porque me senti bastante mal. Ela não veio; no entanto, eu havia contado com sua visita.

• 8 de outubro — Graças a Deus! Consegui superar aquele sentimento. Ela veio e eu lhe perguntei: “Como posso ajudar-te?” — “Dá-me tua mão!” Estendi-lhe ambas as mãos. Não é possível descrever a luta que se travava no meu interior. Desta vez, não fui queimada. Sentia, porém, os ossos da mão dela. Ela não soltou suas mãos imediatamente. Tive a impressão de que esses momentos duravam muito tempo. Finalmente ela disse: — “Agora não volto mais.” E desapareceu.

As aparições de almas de mulheres impressionam-me e me parecem muito mais repugnantes que as de homens. Achei algo de estranho em Adelgunde. Nela tudo parecia um conjunto de trapos, mas assim mesmo parecia ser um vestido de sua alma. Nunca havia visto ou imaginado algo semelhante.

Agora gostaria de ter um pouco de sossego, pois muitas vezes

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me sinto tão cansada que poderia dormir de pé.Diminuiu o barulho na capela. Acontece ainda um pouco,

porém só de quando em quando.

Eu tinha ideias muito mundanas

• 12 de outubro — Estava sentada à minha secretária quando, de repente, uma neblina espessa, ou algo como uma fumaça inodora, me envolveu. Apesar de ser dia claro, não conseguia mais distin­guir nem imagens na parede. Perguntei se eram os “onze”, mas não recebi resposta. Aspergi o quarto com água benta, e tudo voltou a ficar claro. • Na igreja, vi o cavaleiro. Desci da capela e lhe perguntei: “Posso fazer alguma coisa por ti?” Continuou a rezar sem olhar uma só vez para mim. De perto, ele dá a impressão de ser muito bondoso. Sua armadura é bonita. A figura toda parece sair de um museu. Não tenho conhecimentos suficientes para situá-lo num determinado século.

Estou com medo de que tornem a acontecer coisas graves. Minhas anotações devem corresponder à verdade. Por isso, devo di­zer também que eu não suportaria tudo isso sem a santa comunhão.

• 13 de outubro— Tive uma noite extremamente agitada. Havia muito barulho naquela neblina. No hospital, vi a Irmã Hedwig. Falei com ela na escada: “Por que voltas constantemente?” — “Tenho alimentado pensamentos demasiado mundanos.” Ela entrou na despensa. Já não tem a aparência tristonha que costumava ter.

• 15 de outubro — Os “onze” estão como que pairando à minha frente. Não respondem às perguntas que lhes faço. De noite, ouço um estrondo terrível. Aparecem três vultos, difíceis de reconhecer.

• 17 de outubro — Outra vez, essa neblina ao meu redor e a sensação de que há almas abandonadas que me procuram.

• 19 de outubro — Um grito estridente, pertinho de mim, despertou-me; em seguida, ruídos, estrondos e uma confusão de sons indescritíveis, e, outra vez, aquela neblina.

• 20 de outubro — Um vulto indefinível.

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• 21 de outubro — Vultos nevoentos estão se agitando no meu quarto. Não posso comunicar-me com eles. Correm pelo aposento; mexem-se e agitam-se enquanto estou rezando. É impossível des­crever essa confusão de vultos e de formas vaporosas e nevoentas. Não sinto pavor, mas tudo é tão estranho e irreal. Essas formas em movimento se parecem com os “onze”; no entanto, são diferentes, mais densas, mais espessas. • Tomei a ver aquele cavaleiro. Ele pertence a uma outra categoria de almas e é bem diferente de todas as que tenho visto. Parece estar feliz e reza sem parar.

• 24 de outubro — Uma daquelas formas está ficando mais nítida. Tenho a impressão de que se trata de uma mulher. Os três vultos nevoentos não se mostram mais.

• 25 de outubro — Muito ruído e muita confusão. A situação começa a tomar-se desagradável.

Catarina

• 27 de outubro — Posso ver distintamente que se trata de uma mulher. Está muito inquieta e seu vulto um tanto velado.

• 28 de outubro— Essa mulher é abominável. É, sobretudo, sua boca que é horrorosa; está muito inchada e é simplesmente nojenta. Está furiosa; seu vestido é um farrapo cinzento.

• 29 de outubro — Ao anoitecer, encontrei-a no meu quarto. Seus olhos me perseguem; ela não consegue falar-me.

• 30 de outubro— Apenas me havia levantado, e elajá chegara. Eu disse-lhe: “Vai-te embora, tu me incomodas.” Mas ela nem ligou. Rezei com ela a oração da manhã e, em seguida, ela se foi. Tenho medo dela. Ela me enoja. Eu poderia ser dura para com ela. Onde está minha caridade? Esta situação me oprime mais e mais. O dia todo tenho de ficar em meio às pessoas que me cercam e nem posso pensar naquilo que me interessa. Sinto-me como que dividida. M i­nha alma está no outro mundo, isto é, estou ocupada com ele, e a outra parte do meu “eu” deve fingir um interesse que realmente

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não existe. Esta dissidência, esta fissão no meu interior me cansa, me enerva.

• 31 de outubro — Passei uma noite medonha. Ela veio duas vezes, e por muito tempo. Encostou-se à parede e me fixou um olhar insolente. A expressão de seu rosto é execrável. Não reage a nada, mas quando rezo, mantém-se tranqiiila. Suaboca é medonha; é apenas um inchaço vermelho e purulento. Tem o cabelo preto, desgrenhado. Todo o seu aspecto é sempre inominavelmente sinistro.

• Io de novembro — Passei metade da noite me defendendo dela. Não quero que se aproxime de mim. Mas nada a impede. Ameacei-a de não mais rezar por ela se continuar me maltratando; então, ela se foi.

• 2 de novembro — Esta foi a noite mais terrível. Ela parecia estar possessa; agitava-se e corria como louca pelo quarto. Tenho de sofrer sozinha, pois não quero acordar ninguém. Saí e ela veio correndo atrás de mim; voltei ao quarto, já que não havia outra so­lução. Tentei rezai', mas fi-lo mal; o pavor me esmaga. A cada ins­tante, ela chega pertinho de mim; quase não consigo suportá-la. Há nela algo que me provoca tão grande nojo e pavor que não encon­tro palavras para descrevê-lo, por mais que o tente. Ela ficou comigo das onze da noite às cinco da manhã. Fui muito covarde.

• 3 de novembro — Ela só veio pelas cinco da manhã; por isso passei a noite bem melhor. Rezei com ela sem olhá-la. De repente, sua cabeça estava encostada à minha. Sussurrou-me algo ao ouvido, mas não consegui entendê-lo. Disse-lhe: “Se tu queres que reze por ti, fica longe de mim. Não suporto a tua presença.” Ela deu um grito alto e desapareceu. Agora estou muito triste por causa de minha falta de compreensão, pois não duvido que a fiz sofrer.

•4de novembro— Estou tãocontente! Ela voltou em e perdoou. Mexeu sua boca horrorosa para falar, mas não entendi nada. Disse- lhe: “Se posso realmente ajudar-te, dá-me um sinal e desperta-me pelas cinco horas. Farei por ti o que puder.” Dormi muito bem. Às cinco horas em ponto acordou-me um grito. Ela estava ao meu lado. Fiquei muito contente com isso. Quero, novamente, suportar tudo

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quanto Deus me enviar. • Os onze vultos nevoentos, meus velhos conhecidos, estavam outra vez na encosta do morro; já não tenho medo deles.

• Na igreja, aquele cavaleiro se mostra quase continuamente.• 5 de novembro — Noite sinistra; aquela alma de mulher vem

a cada instante, e sempre muito agitada. Fiz-lhe diversas perguntas, mas não obtive resposta. De repente, ela achegou-se a mim e sus­surrou-me algo ao ouvido. Disse-lhe que eu nada entendia do que me falava, e ela prorrompeu em soluços, tão fortes que quase me partiam o coração. Prometi fazer tudo por ela, e ela se foi.

• 6 de novembro — Ao cair da noite, ao toque das ave-marias, ela veio ver-me. Ficou junto à pia de água benta, onde me esperou. Dei-lhe água benta, e ela desapareceu. Voltou durante a noite. Parece tornar-se mais clara e mais pura. Cresce minha coragem. Quanto mais sacrifícios faço por ela, tanto mais alívio ela sente e tanto mais se torna minha amiga.

Até agora tenho evitado entrai- em detalhes, mas já que o diretor espiritual o deseja, tenho de fazê-lo. Por isso, há mais um assunto que tenho de mencionar. Peço que me digam meus diretores se há algo de errado em minha atitude e conduta.

Nos últimos tempos, em meio ao meu trabalho, e mesmo estando com outros, algo se apodera de mim que não sei explicar. E uma sensação de profunda felicidade, é como que mergulhar em algo totalmente diferente daquilo que costumamos experimentar; é uma presença de Deus, impossível de descrever. As vezes, essa sensação me surpreende até nos momentos em que nem penso em Deus. Sempre reagi contra tudo que possa ser extravagante, mas agora tenho de suportar o que supera toda a imaginação e experiência humana, pois aquilo simplesmente se apodera de mim. Mudou também minha vida de oração; nem sei se ficou melhor ou se piorou. Estou como que me precipitando no infinito sem que possa formular orações. Estou totalmente penetrada do meu nada perante Deus.

• 7 de novembro — A desconhecida achegou-se a mim sussur- rando-me algo ao ouvido, mas não entendi nada. No entanto, posso,

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agora, vê-la, claramente, nos seus trajes de cavaleira de fím do sé- culo XVI. Perdi o pavor perante ela. Sinto a presença de uma alma mesmo que eu não ouça nem veja nada. Até no escuro sinto a pre­sença de alguém, quando se trata de uma visita do outro mundo.

• 8 de novembro — Ela esteve comigo quase a noite toda, mas conservou-se calma. Formulei uma oração que lhe agradou muito. Seu olhar ficou mais suave, mas ainda não tenho coragem de dormir quando ela está comigo.

• 10 de novembro— Outra vez murmurou-me coisas ao ouvido. Se entendi bem, foram as palavras “sem paz”. Perguntei-lhe, mas apenas meneou tristemente a cabeça.

• 11 de novembro — Durante a missa cantada, do começo até o fim, estava presente o cavaleiro, velho conhecido meu. Já é a segunda vez que vem em dia de domingo. Será que há alguma ligação com a relíquia da Santa Cruz, que se expõe à veneração nestes domingos? • E ela também, a Catarina, apareceu.

• 12 de novembro— Finalmente, ela está em condições de falar. Recomeçou a andai- pelo quarto, agitada, muito inquieta, quase como louca repetindo sem parar: “sem paz, sem paz! ” • Vi também de novo os onze vultos nevoentos.

• 13 de novembro -— Catarina esteve comigo durante longo tempo. Comecei diversas orações para ver qual delas lhe agradava mais. Ela fez com a cabeça que não gostava, até que comecei aquela que já lhe agradara outro dia. Ela ajoelhou-se ao meu lado. Foi a primeira vez que uma Alma do Purgatório fez isso. Senti uma sensa­ção muito especial. Em seguida, perguntei-lhe: “Viveste neste caste­lo?” -— “Vivi.” — “Seu coipo foi enterrado aqui?” — “Não.” Fiz-lhe outras perguntas, mas não obtive resposta.

• 14 de novembro — Algo de estranho me aconteceu. Eu havia resolvido a faltar, na manhã seguinte, à missa diária, porque me sen­tia muito cansada e achava que deveria dormir mais um pouco até despertar-me por completo. Sonhei então com uma pobre senhora que me pedia e implorava lhe desse alguma coisa. Acordei assus­tada. Catarina estava ao lado de minha cama, de mãos suplicantes.

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Eugen ia von d er Leyen, no N ata l de 1912, aos 45 anos. É característico o je ito de seu penteado. Todas a s fo to s m ostram o cabelo enrolado fo rm a n d o com o que um a coroa na cabeça.

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Eugenia, com a sobrinha A de lheid von d er Leyen, fa lec id a em 17 de ju lh o de 1975, no castelo de Waal.

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E ugenia, no castelo d e U nterdiessen, com o pequeno príncipe W olfrani e com o cão de guarda Tobanno, em 1926, três anos antes de sua m orte. C om o ela diz nos apontam entos, só o pequeno e a lguns anim ais dom ésticos viram, a lgum as vezes, as A lm as do Purgatório.

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Disse-lhe: “Obrigada que me acordaste. Como soubeste dos meus pensamentos?” — “Estou unidaati.”— “Através de quê?” Nenhuma resposta. Em vez disso, a pergunta dela: “Queres sacrificar-te ainda por mim?” — “Quero; o que mais posso fazer para te ajudar?” — “Dar-me a paz!” — “Como posso te dá-la?” — “Pelo amor!” Pobre da Catarina! Agora cuidarei bem de minha amiga. Infelizmente, ainda me ocupo demais com meu próprio conforto. Se não fosse o ambiente confortável que me cerca, poderia fazer muito mais sacri­fícios. Tudo seria bem mais fácil, se pudesse viver apenas pelas Almas do Purgatório. Mas estou rodeada de pessoas de carne e osso. Sinto-me bastante frágil para lidar constantemente com gente que pertence a mundos diferentes. Sinto alívio em lançá-lo no papel, pois ainda não estou em condições de dispensar consolo humano — e a sensação de que alguém não me perde de vista, me dá segurança.

Preferiria calar tudo o que se refere a mim mesma, mas se um quadro quer expressar a realidade, não se podem omitir detalhes e matizes. Quero viver em obediência a meus diretores. Enquanto lanço no papel estas notas, surgem no meu íntimo pensamentos egoístas. Pergunto-me por que só eu tenho que passar por tudo isso e por que não percebem também outras pessoas o que se passa comigo? Mas quero esforçar-me para rejeitar essas idéias, pois devo refletir mais sobre a minha vocação peculiar; assim encontrarei o contrapeso necessário.

• 15 de novembro — Ela ficou longamente comigo sem falar. Se a sua boca não fosse tão repelente, não causaria impressão desagradável. Acho que ficará mais comunicativa ainda. • Vi os “onze” e o cavaleiro. • Na horta vi o velho Henrique com sua aparência hedionda. Como posso ajudar a todas essas almas? • Eu estava com meus familiares quando, repentinamente, Catarina se mostrou à minha frente. Fez-me um sinal com a mão para ir com ela. Mas eu não podia abandonar meus familiares; eles não enxergavam o que eu via.

Ver tantas almas naquele dia foi uma grande alegria para mim, pois na santa missa eu pedira ao Bom Deus que me mandasse hoje

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diversas almas, se minha solicitude para com elas fosse do agrado dele. Agora estou em paz. Foi um belo presente que ele me deu para o meu onomástico.

Eu sempre desunia os homens

• 16 de novembro— Catarina veio à uma da noite. Longamente, rezamos juntas. Perguntei-lhe: “Podes dizer-me o que tens na boca?” — “Vês isso?” — “Sim. Dize-me por que tua boca sofre desse jeito.”— “Eu sempre desuni os homens.” E começou a soluçar terrivel­mente. Disse-lhe: “Tenho muita compaixão de ti. Ainda tens que sofrer por muito tempo?” — “Tenho!” — “Encontras alívio quando me procuras?” — “Encontro.” — “De que modo?” — “Paz!” — “Não entendo, explica-me melhor.” — ‘T u me dás paz.” — “Mas de que modo?” Ela achegou-se muito a mim e sussurrou-me algo ao ouvido. E sumiu.

Interessante como o tempo passa tão rápido, quando a gente está com as Almas do Purgatório. Ela chegou à uma e pouco e me deixou às 4:30. E eu tive a impressão de que se passara meia hora no máximo. Ela está bem vestida e traz uma corrente comprida de ouro. Pena que eu não saiba desenhar. Não tem muita idade. Parece ter uns 40 anos. Faço votos para que volte; quase que começo a gostar dela.

• 17 de novembro — Ela começa a procurar-me também em outros quartos. Até agora, veio nove vezes.

• 19 de novembro — Dois dias de descanso completo. Quebom!

• 20 de novembro — Catarina passou comigo quase a noite toda. Estava muito calma. Ficou simplesmente de pé. • Henrique veio também. Aparência terrível. Tudo se vê nitidamente. Ele está muito inquieto e geme de modo horroroso. Perguntei a Catarina: “Vês a pobre alma que está ao teu lado?” — “Não.” — “E por que não?” — “E que estou ligada somente a ti... ”. Ela disse ainda algo que eu não entendi. — “Voltarás ainda muitas vezes?” — “Se

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receber permissão.” — “Quem pode dá-la?” — “A misericórdia.” E se foi.

• À tarde vi o cavaleiro na igreja. Aproximei-me dele para interrogá-lo. Ele não se mexeu e continuou rezando. Apalpei-lhe a armadura. É dura qual armadura real. Não tem muita idade o corpo que a aceitou. Tem os cabelos longos e louros.

• 21 de novembro— Henrique ficou comigo longamente. Mui­to inquieto, tem a aparência de um homem mau. Está ganindo e gemendo sem parar. A reza o toma mais inquieto ainda, ou, por as­sim dizer, mais malvado. • Ao nascer do dia veio Catarina. Fiquei aliviada por não precisar permanecer sozinha com Henrique. Sem esperar por mim, ela começou aquela oração de que mais gosta, por si mesma. Fiquei tão comovida que chorei. Arrependi-me bastante de ainda pensar tanto em mim mesma. Henrique ficou de pé assistindo a tudo. A diferença entre as duas almas é grande, como entre luz e sombra, entre ira e meiguice. Com Catarina deu-se uma grande mudança. Perguntei-lhe: “Estás melhor?” — “Vejo a claridade”, me respondeu. Continuei: “Posso então dedicar-me agora somente às outras almas?” — “Não me abandones ainda!” E ambas as almas me deixaram.

Oh, se eu pudesse fazer mais para socorrê-las! E verdade que eu poderia jejuar mais, mas então não conseguiria ajudar devida­mente a todos os outros, já que não me é possível esconder, durante o dia, as conseqiiências dos sofrimentos da noite.

Catarina morreu em 1680

• 22 de novembro — Sinto muita vontade de riscar o que anotei ontem. Deixo de fazê-lo para que se saiba quão grande é a minha falta de amor e a minha covardia. Como poderia eu duvidar que o Bom Deus me daria toda a força de que preciso para seguir suas inspirações?

Voltaram ambas as almas; vê-se no rosto de Henrique quanto

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detesta a oração. Não ligo para essa sua atitude e continuo, como sempre, com a minha reza de costume. Notei certa mudança na boca de Catarina. Às vezes, ela até sorri. Pedi-lhe: “Dize-me, por favor, quando morreste.” — “No mês de fevereiro de 1680.” “Onde está enterrado teu corpo?” — “Em Kempten.”(14b) — “Por que está tua alma aqui?” — “Trouxe desunião para cá.” — “Conheces a Bárba­ra?” — “Conheço.” — “Fala, por favor, mais um pouco.” Então, ela sumiu. • Henrique deve tê-la visto, pois enquanto ela falava, foi-se aproximando cada vez mais.

• 24 de novembro — As duas almas estiveram comigo durante longo tempo. Mas não reagiram a perguntas e convites para rezar comigo. Fico contente quando Catarina também aparece; é terrível ficar sozinha com Henrique.

• 25 de novembro— Foi só Henrique que se mostrou. Compor- tou-se de modo tão arrebatado que receei acabasse por cair na banheira. Perguntei-lhe: — “Tens algo a me dizer?” Aí ficou muito furioso. Saiu correndo, voltou e gemia de maneira abominável. Não foi nada agradável.

• 26 de novembro— Vieram Henrique e Catarina. Disse a esta: “Pensei que tua padroeira te fosse remir, pois ontem não me vieste ver.” — “Minha padroeira é Catarina de Sena”, disse ela de um jeito tão explosivo que quase dei uma gargalhada.

• 27 de novembro — Não me sentia bem e não consegui adormecer, pois eu contava com a visita de minhas amigas. Mas não veio ninguém, o que, aliás, costuma ocorrer quando sofro muito. E interessante essa delicadeza das Almas.

• 28 de novembro — Sofro; as Almas não vêm.• 29 de novembro — Veio apenas Henrique. Mostra-se aborre­

cido com minhas rezas e perguntas.• 30 de novembro — Quando entrei no meu quarto, Catarina já

estava me esperando. Rezamos juntas. Terminada a oração da noite,

(14b) Kempten é a capital do Allgaeu bávaro, famosa pela basílica de São Lourenço e pelo castelo residencial, ambos construídos pelo conhecido mestre da arquitetura barroca, Michael Beer.

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perguntei-lhe: “Por que não vieste este tempo todo?” — “Eu estava contigo.” — “Por que não te vi?” ■— “Tu me deste muito. Olha!” Ela apontou para sua boca. Desaparecera tudo quanto de abominável a desfigurara. Não sou capaz de descrever a alegria que senti. Pergun­tei: — “Já não sofres tanto?” — “Não.” — “Dize-me de que modo posso ajudar-te ainda mais?” — “Se não pecares nunca.” — “Infeliz­mente, isso ainda não consigo.” Aí ela me sussurrou algo ao ouvido. Mas não o entendi. Parece que foi “união” ou “boa intenção”. E se foi.

Viver sem pecado algum. Oh, se o conseguisse! De vez em quando está tudo fervilhando dentro de mim. Sou também fingida porque não mostro aos outros o que sinto dentro de mim.

Henrique torna-se brutal

• Io de dezembro — O velho Henrique ficou longamente comigo e comportou-se de modo abominável. Perguntei-lhe se havia sido ele quem atirara em meu avô(|4c). Aí ficou fulo de raiva. Atirou- se contra mim e me apertou a garganta com tanta força que pensei morrer estrangulada. O gesto não levou mais de um segundo, no entanto, foi terrível e me perturbou tremendamente^15). Jamais esque­cerei aquele seu olhar furioso.

Fui agredida pelas Almas três vezes até agora. Quando isso acontece, não é tanto a dor que sinto, mas um noj o indizível— é como se eu tivesse que pegar em sapos ou cobras... Faltam-me palavras para descrever tal sensação.

(14c) Seu avô chamava-se Cari Eugen Damian Erwin I (1798-1879). Fora casado com Sophie Therese von Schõnborn-Buchheim ( t 1876). O retrato dele está no salão.

(15) Essa atitude violenta é um mistério da malícia que a alma leva consigo ao estado purificador. Em vida, ela queria praticar o mal; no estado de purificação, arrasta consigo esse mal sem que o queira, reconhecendo toda a feiúra abominável de seus atos. Compreendemos, assim, melhor, a atitude de muitos pagãos que sentiam um pavor indizível dos defuntos e que procuravam expulsá-los, por meio de barulho e de máscaras, do lugar onde haviam vivido e morrido. Daí a explicação da palavra “barulho infernal”, em alemão: barulho dos pagãos.

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• 2 de dezembro— Henrique esteve no meu quarto, das duas até às seis. Mostrou-se tão agressivo que só a custo consegui defender­me. Apresentei-lhe a partícula da Santa Cruz. Aí se recolheu a um canto, onde ficou rosnando como um cachorro bravo. Foi terrível. Tive saudades de Catarina.

Durante a missa toda, o cavaleiro esteve presente. Vi também os onze vultos nuviosos; não sei o que pensar a respeito deles.

• 3 de dezembro — Primeiro veio Henrique; em seguida, Catarina. Perguntei-lhe: — “Ainda não enxergas a alma que está comigo?” — “Não.” — “E por que não” — “Não estou mais na fase dele.” — “Por favor, dize-me se é uma Alma do Purgatório ou se é um espírito do inferno.” — “Salva-a!” Durante longo tempo rezei com ela. Henrique estava calmo, mas sua figura continua abominável.

• 4 de dezembro — Ao subir a escada, uma sombra acompa­nhou-me à frente até dentro do meu quarto; em seguida, desapare­ceu. À noite, Henrique retornou. Rezei com ele, mas ele nem ligou.

Quando uma alma me aparece, seu rosto, nos primeiros tem­pos, está totalmente escuro; começa a clarear aos poucos e só então passo a distinguir contornos e detalhes até tornar-se reconhecível. Isso sempre me impressionou. O rosto começa a clarear, quando as almas recebem permissão para falar.

• 5 de dezembro — Veio só Catarina. Perguntei-lhe: “Podes rezar por mim?” — “Posso.” — “Não queres pedir para que eu não mais receba visitas de Almas do Purgatório, pois gostaria tanto de ter novamente sossego.” — “Não!” — “Mas por que não queres rezar por essa minha intenção?” — “Deus não quer que eu peça isso.” Fiquei profundamente emocionada ao ouvi-la, pois então tratava-se de uma ordem do próprio Deus para que eu recebesse visitas das almas. De hoje em diante devem acabar as perguntas tolas e os “por­quês”; deve terminar qualquer consideração pessoal e pensamentos egoístas.

Mostrei uma relíquia da Santa Cruz à minha amiga Catarina, e perguntei-lhe: “Conheces isso?” — “Conheço.” — “O que é?” — “É coisa santa.”

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• 6 de dezembro — Aquela sombra, aparentemente uma Alma do Purgatório, ainda impossibilitada de se manifestar claramente, continua mostrando-se na escada. Tem certa semelhança com os onze vultos nevoentos. Será que ela faz parte do grupo? • Henrique esteve comigo a noite toda; a relíquia da Santa Cruz é a minha proteção. Agora ele já não se aproxima tanto de mim.

Salva por dar esmolas

• 7 de dezembro— Durante muito tempo esteve comigo minha querida Catarina. Perguntei-lhe: “Por que sofres no purgatório já há tanto tempo? Fizeste muito pecado por tua fala?” — “Fazia, e não me arrependia e não me confessava.” — “Como foi que te salvaste?”— “Eu costumava dar esmolas.” — “Por que morreste sem ter recebido os sacramentos?” — “Morri afogada.” — “O que posso fazer por ti?” Ela murmurou-me algo ao ouvido. Entendi apenas: “participação” e “de Cristo”. Talvez tenha dito: “Participação no corpo de Cristo” (= oferecer por ela a santa comunhão). E desapare­ceu. • Logo em seguida veio Henrique. Ele não mudou quanto ao comportamento. Faço bem pouco por ele, é a verdade. Estou como que dividida entre as coisas do mundo e o meu dever de ajudar as almas. O pouco que consigo fazer por elas não basta, evidentemente, para ambas, para Catarina e Henrique.

Estou percebendo que j á não fico assustada quando vem alguém do outro mundo. Enxergo as almas até no escuro, mas prefiro que me apareçam na claridade do dia.

• 8 de dezembro — Henrique reapareceu furioso; parecia um demente. Jogou-se no chão. Rezei à Mãe de Deus; aí se acalmou um pouco. No entanto, minhas orações não são bem boas; rezo como que maquinalmente, pois todo o meu pensamento está ocupado com a Pobre Alma que está comigo e que me dá tanto medo. Ele se foi às três da madrugada, mas voltou pelas cinco. Disse-lhe: “Vai embora. Quero ir à igreja. Lá posso rezar melhor por ti.” Em vez de me res­ponder, gritou de modo abominável, e, comovida, voltei a rezar com

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ele. Soluçou tanto que tentei dizer-lhe algo que o alegrasse. Lem- brei-me que, quando eu era ainda criança, me passara ele, algumas vezes, por cima da cerca, muitas ameixas. Disse-lhe, então: “Agrade­ço-te, pois muitas vezes me proporcionaste favor e alegria. Não te esqueci. Dize-me de que modo posso ajudar-te, eu o farei de boa vontade.” Saiu então de sua garganta um som trémulo, balbuciante. Ele me estendeu a mão. Apertei-a; estava quente. Seu rosto ficou mais humano; havia nele algo de amável, por assim dizer, embora seu aspecto continuasse bastante repelente. Disse-lhe: “Agora deves ir. Tenho que ir à igreja.” Parece-me que fizemos amizade, pois sem­pre que venço o medo pelo amor, sinto-me melhor, e a própria situa­ção muda para melhor.

Na encosta do morro esperavam-me aqueles onze vultos ne­bulosos. Diante do fundo de neve, pareciam de um cinzento muito escuro.

Não me podes contar nada do Além?

• 9 de dezembro — Veio Catarina. Eu estava acordada. No momento em que me aparece uma Alma do Purgatório, tudo quanto está em meu cérebro fica totalmente concentrado naquela aparição. Todos os outros pensamentos se apagam. O efeito é um tanto semelhante ao de um comutador. Interrompendo a força, desaparece para a vista tudo quanto se via à luz elétrica. O que vem do Além tem uma força irresistível. Já não sentia eu dor alguma; Catarina veio encostar-se a mim e passou a mão na minha fronte como se quisesse fazer um carinho. Perguntei-lhe: “Por que estás hoje tão amável para comigo?” — E porque está tudo claro.” — “Onde está essa clarida­de?” — “Dentro de mim e dentro de ti.” — “O que mais estás vendo dentro de mim?” — “Anseio de Deus.” — Dito isto, desapareceu. É verdade que eu estava esperando ansiosa a santa comunhão. Tenho medo, porém, de qualquer atitude extravagante. Escrevo estas coisas a contragosto, pois parecem um tanto extravagantes. • E veio Henrique. Nada de especial.

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• 10 de dezembro — Tudo como ontem.• 11 de dezembro — Aquela sombra que eu vira na escada,

estava, agora, de dia claro, em meu quarto. Durante a noite, retomou Catarina. Estava muito amável. Perguntei-lhe: “Não podes contar­me nada do Além?” — “Não.” — “Não tens permissão de falar?” — “Deves crer.” — “O Além é assim como o aprendeste no catecis­mo?’̂ 16) — “Sim.” — “Por que não te vejo quando estou sofrendo?”— “Porque então não tens força para agüentar minha presença.”

• 12 de dezembro — De dia claro, aquela sombra ficou ao meu lado. Ninguém o percebeu. • Veio Henrique. Ficou bastante tempo comigo. Mudou um pouco para melhor. Parece que já não hostiliza a oração. Junto com ele havia mais um vulto. Ficaram quase a noite toda. Estava tão cansada que lhes pedi que me deixassem só. Responderam ao meu pedido com um horroroso gemer e choramin­gar. Retirei, pois, a minha súplica e recomecei a oração. Veio-me um pensamento abominável: invejei as pessoas que podem dormir sem serem procuradas pelas Almas do Purgatório.

• 14 de dezembro— Apareceram todos: os onze vultos nevoen­tos, o cavaleiro, Catarina e Henrique, mas nenhum deles me falou.

• 15 de dezembro — Tive uma noite horrífica: parecia-me que um grande pássaro estava batendo sem parar contra a janela. Levan­tei-me para ver o que havia. Mas estava tudo em ordem, nem ventava. Contudo, apareceu uma grande sombra negra, ou um vulto, que me encheu de pavor; parecia mais bicho que gente. Fiquei com um medo inominável e afastei-me às pressas da janela. Que alívio! Quando Catarina apareceu, interpelei-a: “Viste aquele horror?” — “Não, mas

(16) A princesa era muito abnegada e procurava evitar qualquer pecado por mais “leve” que fosse. No entanto, às vezes lhe acontecia não saber distinguir claramente entre perguntas inspiradas pelo anseio de se santificar e aquelas que procediam de uma certa curiosidade religiosa. A resposta da alma: “Crê!” — acentua a ordem rigorosa para o mundo que sofre as conseqiicncias do pecado original. Se a fé se transformasse em um saber científico, já não haveria liberdade humana. É só pela fé que gozamos da liberdade de aceitar ou de rejeitar as verdades religiosas. Deus quer que o homem se decida livremente entre o bem e o mal e que, com essa sua decisão, arque com as conseqiiências que dela resultarem.

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vi teu medo.” — “Estás sempre comigo?” — “Estou.” — “Por que não te vejo?” Não me respondeu e foi embora. Deus há de me proteger daquele horror que me ameaça.

• 16 de dezembro — Outra vez aquele estrondo à janela, mas só ruído; não vi nada. Veio Catarina e ficou comigo bastante tempo. Ao rezarmos aquela oração de que mais gosta, ela ficou de joelhos. Depois me disse: “Agradeço-te muito.” — “Tua aparência mudou totalmente. Não precisas mais sofrer?” — “Começa para mim a alegria.” — “Não me visitas mais?” — “Não.” E achegou-se a mim e me disse algo que não entendi; pareceu-me palavra em língua estrangeira. E desapareceu. Estou um pouco triste por não mais po­der vê-la. Ela se havia tomado um verdadeiro refúgio para mim. Agora estou com medo daquilo que se anuncia à janela, pois é totalmente diferente de tudo quanto já vi.

Eu havia feito diversas perguntas a Catarina, mas tenho anota­do apenas aquelas a que me respondeu. • Vi o cavaleiro, os “onze” e a “sombra” qual neblina cinzenta; ela ficou comigo uns dez minutos.

• 17 de dezembro — Vieram Henrique, o cavaleiro e a “som­bra”. Aquele pavor à janela estava como que misturado à tempestade que se abateu sobre a nossa região. Por isso, não posso dizer nada de preciso a respeito daquilo que se aproxima.

• 18 de dezembro — Na capela do Hospital, vi a Irmã Edviges, que parecia estar bem feliz. • No meu quarto, Henrique. Disse-lhe: “Acabo de rezar bastante por ti. Por favor, o que queres mais?” — “O perdão.” — “Foste tu que atiraste em meu avô?” — “Eu fui o instigador e o caluniei.” — “De bom grado te perdoo. Ainda tens que sofrer muito?” — “Sim.” — ‘Tenho ordem de te perguntar se estiveste doente ou possesso.” — “Possesso.” — “De quem?” — “Do espírito da mentira.” — Ele falou tudo isso choramingando o tempo todo. Seu aspecto era comovente. Estou satisfeita por ele ter começado a falar. (Tenho a impressão de que não está muito certo descobrir as faltas que as Almas do Purgatório cometeram em vida. E como se eu faltasse à confiança que têm para comigo. A obediên­

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cia a meu diretor e a caridade para com o próximo dificilmente se conciliam dentro de mim.) (|7)

As almas que me procuram mostram seu sofrimento, sobretudo pela posição e gestos de suas mãos. Infelizmente, não sou capaz de o descrever nem de o desenhar.

O Monstro

• 19 de dezembro — Chegou o Monstro. Posso vê-lo distinta­mente. É mais alto que os homens comuns. Tem cabelos hirsutos, negros; resfolega de um modo asqueroso. Protegi-me com a relíquia da Santa Cruz e aspergi água benta na aparição. JFixou-me o olhar algum tempo e depois foi embora pela janela. Nunca em minha vida tinha visto algo tão nauseabundo, a não ser em jardins zoológicos. E esse Monstro, nojento e asqueroso, esteve no meu aposento!

• Ao amanhecer, veio Henrique. Perguntei-lhe: “Queres rezar comigo?” — “Quero.” — “Sentes alívio pela oração?” — “Sinto.” — “Mas, então, por que outro dia vieste sufocar-me?” — “Meu tormen­to éhorrível.” — “Não o farás mais?” — “Não.” — “Por que não vais a teus parentes?” — “Não há caminho que leve a eles.” Quando rezo, agora, Henrique se comporta de modo bem diferente de como o fazia antes.

• 20 de dezembro — O Monstro esteve no meu quarto quase a noite toda. Eu estava acordada e a luz, acesa. De repente, com gran­de estrondo, irrompeu pela janela adentro. Foi horrendo. Por sorte, ficou distante de mim. Mas aqueles olhos com que me fixava! Meu Deus, que olhos! Parece-me que não mais agiientaria outra noite

(17) Escreve o pároco Sebastian Wieser: “Eu conhecia bem o velho Henrique (como também Fritz Schaefer e outros). Ocupava a casa em frente à minha. Eu o visitei diversas vezes nos dias de sua demência. Faz uns 50 anos que morreu. Ainda hoje se mostra o buraco pelo qual passara a arma. Agora, sua alma confessa ter sido ele o autor do tiro fatídico e responde à pergunta que eu lhe dirigira, por intermédio da princesa, afirmando ter sido possuído pelo espírito da mentira. Mandei fazer-lhe essa pergunta porque sou de opinião que boa parte de pessoas loucas são possessas por espíritos malignos.

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semelhante a esta. Sentia-me como que totalmente abandonada de Deus. • Henrique veio duas vezes. Parece-me que enxergava o Monstro, pois virou-se para olhar para ele. Não respondeu a minhas perguntas.

• 21 de dezembro — Vi a alma que se mostra qual sombra em meu quarto. • Henrique ficou comigo longamente. Perguntei-lhe: “Viste o Monstro que esteve aqui ontem?” — “Vi.” — “Ele é mais infeliz que tu?” — “Sim.” — “Sabes quem é?” — “Não.” — “O que posso fazer por ti que mais te ajude?” — “Receber os sacramentos.”— “Depois de eu ter recebido os sacramentos, percebes alguma coisa?” — “Percebo.” — “De que modo?” — “Tu atrais.”

• Veio o Monstro e Henrique se foi. Tentei rezar também com ele, e o Monstro achegou-se a mim. Na minha covardia, parei de rezar. Ele se parece com um grande macaco.

• 23 de dezembro — Aconteceu o pior que já tive de enfrentar. O Monstro veio fazendo muito barulho e se acocorou num canto, fixando-me o olhar sem parar. Ontem, eu fui muito covarde ao parar de rezar quando o Monstro veio se aproximar de mim. Hoje, recobrei coragem e comecei a rezar. Mal havia pronunciado as primeiras palavras, agarrou-me o Monstro com toda força. Não senti dor física, mas algo tão asqueroso que perdi os sentidos. Não sei o que acon­teceu, mas aquilo não durou muito. Quando recobrei os sentidos, a luz estava acesa, mas o Monstro não estava mais. Senti-me mal. Consegui dormir um pouco. • Veio Henrique, ficou, porém, pouco tempo comigo. • Vi o cavaleiro e os onze vultos. • Aquela alma em forma de sombra seguiu-me ao subir a escada e ficou comigo enquanto eu enfeitava a árvore de Natal.

E difícil minha situação, muito difícil. Tenho que esconder todas as impressões que me causam as visitas do outro mundo, e comportar-me como pessoa comum enquanto convivo com as Almas do Purgatório.

• 24 de dezembro— Henrique esteve muito tempo comigo. Seu aspecto está melhorando. Perguntei-lhe: “Estás passando melhor?”— “Estou.” — “Serás libertado e remido em breve?” — “18x7”. —

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“Dize-me se há mais algumas almas comigo que não posso v e r - “Há.” — “Por que não as posso ver?” — “Elas não têm permissão de se mostrar.” E desapareceu.

• Na hora do jantar veio a “sombra”. • Os onze vultos acompa- nharam-me para a missa da meia-noite. • De volta ao meu quarto, antes de me deitar, veio o Monstro. Ele tem duas vezes meu tama­nho. Senti tanto pavor que quis sair para o corredor. O Monstro colo­cou-se à minha frente, tornando impossível minha saída. Disse-lhe: “Não me podes fazer mal; é noite de Natal ” O Monstro urrou e foi correndo pelo quarto. Ajoelhei-me diante de meu presépio, sem poder rezar nem pensar, já que um pavor inominável me penetrava. O que aconteceria ainda?! Ao meu lado, aquele resfolegar sinistro. Enfim falei: “Se não podes falar, dá-me um sinal se posso ajudar-te.” Ele jogou-se no chão, uivando como um animal. Dei-lhe água benta. Por ser Natal, superei o meu medo e o acariciei. Mas como foi duro esse gesto para mim! Rezei em voz alta. Ele estava quieto. Seu aspec­to era terrível. Não tinha roupa, apenas couro, como os animais. E esses seus olhos! Contudo, veio-me um pensamento consolador. Se fosse um espírito mau, não se comportaria assim como está fazendo, já que mostrou, por sua atitude, que posso ajudá-lo.

• Henrique me despertou para ir à primeira missa. Perguntei: “Quem está aí?” — “Gebhard.”(18) E foi Henrique quem respondeu. Vim, assim, a saber que ele tinha mais um nome de batismo.

Eu me convenço mais e mais de que são as almas que me despertam e assim já o fizeram no passado.

• A “sombra” mostrou-se de novo na sala de jantar e se comportou de tal modo que quase me foi impossível levar o alimento à boca. Os que estavam comigo à mesa perguntaram-me o que me faltava, já que não comia. Procurei disfarçar a penosa situação do melhor modo possível, pois ninguém me compreenderia.

(18) Ele tinha dois nomes: Gebhard Heinz.

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Nós todos caminhamos no escuro

• 26 de dezembro — Chamei o Monstro de “Miserável”. Só pouco tempo ficou comigo. Os “onze” nãó mudam de atitude. Não posso abordá-los, mas têm comigo um comportamento amigável. A “sombra” permaneceu longamente comigo.

• 27 de dezembro — O “Miserável” ficou no meu quarto bastante tempo. Eu quis rezar, e logo ficou comigo. Emudeci, pois vi que estava totalmente coberto de bolhas, tumores e inchações sangrentas. A vista de seu corpo, sinto um asco medonho. Queira Deus que o meu “Miserável” não me toque.

• Como é fraco meu amorpara comesse pobrezinho. Sinto tanta repugnância diante dele. Eis que, no instante em que quis ceder ao impulso de me retrair, Catarina aparece à minha frente. Ela apontou para a sua boca que ainda há pouco se assemelhava ao corpo do “Miserável”. E ela mudara tanto! Estava linda, mas tão linda! e sor­ria para mim. Alegrei-me com ela e perguntei-lhe: “Ainda ficas comigo?” — “Não.” — “E por que vieste agora?” — “Porque ficas­te fraca.” — “Sim, sempre enfraqueço... Mas tenha dó! Olha para ele! Vê como está! Tenho que ter medo dele. Não o vês?” — “Não. Essa fase de minha existência passou.” Com isso desapareceu.

Que visão linda que ela oferece! Sou grata quando as Almas do Purgatório me ajudam para mudar para melhor.

Pouco depois, o “Miserável” foi embora. Venci-me a mim mesma e disse: “Volta logo!” Mas é triste constatar que, apesar de minha idade, ainda não aprendi a fazer sacrifícios— em teoria, sim!, mas na prática, não!

• 28 de dezembro — Veio Henrique. Estava muito triste. Perguntei-lhe a razão. Respondeu-me: “Não me deste.” — “Descul­pe-me, eu o sei. Negligenciei-te porque tenho pena também dos outros. Doravante quero cuidar primeiro de ti. Sabes quem me procura além de ti?” — “Nós todos caminhamos no escuro.” Mais tarde veio o “Miserável”. Examinei-o bem. O couro dele é marrom; seu corpo apresenta tumores, chagas, empolas, feridas abertas. Pensei

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que o chão ficaria salpicado de sangue; seu aspecto é medonho. E esse Monstro ficava ao meu lado e me fixava. Disse-lhe pesarosa: — “Ainda não estou em condições de ajudar-te muito, já que um outro precisa de mim.” Ele uivou, correu pelo quarto e veio de braço erguido me agredir. Peguei depressa a relíquia da Santa Cruz e segurei-a como se fosse uma arma para me proteger. Rosnou qual cachorro bravo, mas ficou comigo. Sua presença faz meu coração bater violenta­mente porque ele me olha de modo atrevido e me dá nojo; impres­siona não por sua desgraça mas por sua maldade. Aproxima-se uma luta que tenho travado já tantas vezes: devo amar esse pobre coitado e não o consigo. Só quando chegar a amar essa alma embrulhada em execração serei capaz de fazer sacrifícios. • A “sombra” esteve comigo três vezes. Estou interessada em ver o que acontecerá com ela; não me causa impressão sinistra; parece serum pedaço de parede ambulante.

Há situações, coisas ou pessoas de que tenho verdadeiro pavor. Às vezes, algo de pouca importância me atinge mais que horrores, por assim dizer, justificados: estrondos dentro da sala, visitas do Além que passam pela janela, resfolegar perto de mim, ruídos dentro de uma parede, tudo isso me impressiona muito.

• 29 de dezembro — Veio Henrique. Fiz-lhe muitas perguntas, mas não recebi resposta. Ele aprecia arezae quando lhe dei água benta ficou quietinho. • Depois veio o “Miserável”. Acocorou-se num canto. Disse-lhe: “Chega-te a mim! Por que te mostras sob forma de animal?” Ele deu um salto e já estava ao lado de minha cama. Quando comecei a rezar, gritou de modo execrável. Contorceu-se no chão em convulsões terríficas. A relíquia da Santa Cruz não estava ao meu alcance. Dei-lhe água benta. Aos poucos, as contorções foram ces­sando e, finalmente, ele se deitou no chão. Pude ver bem seu tamanho descomunal, tumores, inchações, bolhas e feridas abertas. Seu corpo está todo coberto dessas ascosidades. O rosto é apenas uma massa informe munida de olhos. Ao ver tanta deformidade, fiquei tomada de profunda compaixão. Levantei-me, ajoelhei ao lado dele e lhe disse: “Por que não me deixas rezar? Só quero ajudar-te. Rezemos

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juntos! Verás que a oração ajuda.” Rezei o pai-nosso. Ele escutou calmamente, mas depois enlaçou-me com seus braços detestáveis. Disse-lhe: “Prefiro que não me toques, embora eu tenha muita von­tade de ajudar-te.” Continuei a rezar com ele e como soluçasse mui­to, rezei com ele o ato de contrição. Ao pensar em sua imensa miséria, tive de chorar de comoção. E aconteceu algo de singular. Soltou- me, ajoelhou-se ao meu lado e contei-lhe um pouco do Natal. Coi­tado dele! Quanto não deve sofrer! Perguntei-lhe: “Ainda não con­segues falar?” Fez que não com a cabeça. “Entendes o que te digo?” Acenou que sim. Parece-me que nos tornamos amigos. Pouco depois saiu... Aquilo foi duro para mim.

No entanto, estou bem feliz. Tornar felizes as Almas do Purga­tório é ainda muito mais belo, neste mundo, do que tornar felizes as pessoas vivas. Que bom que é o Senhor! Senti sua presença com muitíssima intensidade. E só pode ser assim, pois, por mim mesma, não sou capaz de nada. Infelizmente, devo admitir que, agora, em mim mesma, trabalho bem pouco; continuo sempre no mesmo grau de perfeição e não progrido. Meditando à noite, não encontro nada de bom dentro de mim.

• Durante o jantar, a “sombra” apareceu e, depois, me acompa­nhou no corredor. • Encontrei também os “onze”.

• 30 de dezembro — Henrique esteve comigo longamente. Comecei diversas orações, uma após outra, mas não foi possível contentá-lo; estava agitado, inquieto, e não parava de gemer. Quando, finalmente, comecei o “Lembrai-vos”, serenou. Veio-me a idéia de que ele se salvou pela intercessão de Nossa Senhora. Perguntei-lhe: “Como foi que te salvaste?” Não obtive resposta. Insisti: — “Quero sabê-lo.” — “Foi a Mãe da ... ia.” Não entendi a última palavra; provavelmente foi “misericórdia.” — ‘T u a procuraste sempre?” — “Procurava.” Tais comunicações aquecem o coração da gente e o fazem muito feliz. Mas já fiz muitas perguntas similares sem obter respostas.

• 31 de dezembro'— Veio o “Miserável”. Mostrou-se bem agitado. • Estávamos à mesa, e veio a “sombra”. Parei no meio da

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conversa, e todo o mundo exclamou: “Que cara boba estás fazendo!” Acho que minha cara ficou mais boba ainda com essa constatação. E tão difícil manter a atitude natural quando nos procura o sobrenatural.

• Io de janeiro de 1924 — Vieram Henrique e o “Miserável”. Nada que fosse importante. Tomo a dizer que, com as Almas do Purgatório, se constata a tristeza pela posição das mãos. As pessoas vivas não possuem essa faculdade de expressar a tristeza pela postura das mãos. Pode-se pensar, talvez, numa flor cuja haste se quebrou. Há tanta tristeza nesses braços caídos, e tanta aflição, que é totalmente impossível expressá-lo por palavras.

• 2 de janeiro — O “Miserável” comportou-se de maneira bem desagradável. Chegava repetidas vezes bem perto de mim, gemendo; era impossível rezar. Tive um medo terrível que me agarrasse. É isso que mais me amedronta. Toda a minha natureza se revolta contra tais atitudes. • Fiquei aliviada com a chegada de Henrique. Rezei com ele. O “Miserável” se foi. Estava tão cansada que falei: “Por favor, deixa- me dormir. Rezarei por ti.” — “O que me prometeste?” E me deixou. Senti-me pequena por causa de minha preguiça.

• 3 de janeiro — Acordei, transida de terror. O “Miserável” estava me segurando. Foi horroroso! Pedi-lhe que me deixasse em paz. Rezei com ele. Mas sua agitação continuou. Foi ao quarto anexo ao meu, onde, por muito tempo, fez barulho. • Henrique entrou chorando. Perguntei-lhe: “Por que estás tão aflito?” — “Existe algo entre mim e ti.” — “Sei, sim. Mas devo rezar também pelos outros.” — “Não deves, não!”— “Mas tenho tanto medo de que o “Miserável” me torture se eu não o ajudar.” — “Agiienta!” e foi embora. A situa­ção me parece sinistra. Pois o que farei com o “Miserável”?

• 4 de janeiro — E o “Miserável” veio. Disse-lhe que eu não poderia ajudá-lo enquanto a outra alma precisasse de mim. Ele deu um grito e me agrediu. Foi pavoroso. • Mais tarde, veio Henrique. Perguntei-lhe: “Estás contente comigo?” — “Estou.” — “Tenho de fazer tudo só para ti, e nada pelas outras almas?” — “Dá mais!” Realmente, ele vê o meu íntimo. Eu poderia doar ainda mais, se eu não fosse “Eu”.

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• 5 de janeiro— O “Miserável” veio durante o dia claro. Via-se distintamente sua feiúra. Não encontro explicação para o “invólucro” que envolve seu corpo. Talvez não seja couro ou pele, mas, em todo caso, está cheio de tumores e inchações. Calculei seu tamanho porque o comparei mentalmente com o tamanho do fogão que está no meu quarto. O “Miserável” aproximou-se de mim de braços abertos. Refugiei-me na torre. Ele não me perseguiu. Desapareceu.

• 6 de janeiro — Tive muitas dores durante a noite. Nada aconteceu. Interessante, isso! Mas agradável. Na igreja, o cavaleiro. Em certos domingos, não falta.

O tormento diminui, continua o castigo

• 7 de janeiro — O “Miserável” voltou, adentrando pela janela. O barulho que fez ao chegar, me despeitou. Perguntei-lhe: “Se não estás em condições de falar, responde por sinais. Es uma Alma do Purgatório?” Ele fez que sim com a cabeça. — “Posso realmente ajudar-te?” Outro aceno afirmativo. “Conheces aquela alma que precisa de minha ajuda e que veio antes de eu me dedicar a ti?” Ele fez que não com a cabeça e quis a minha mão. Não fui capaz de estendê-la. É horrível demais o aspecto de sua mão. “Por que fazes essas tentativas constantes de agarrar minha mão?” Ele apontou para seus tumores e feridas abertas e gritou de modo aterrador. Rezei com ele; acalmou-se e colocou a mão no meu leito. • Veio Henrique. Tive a impressão de que um não enxergava o outro. Perguntei: “Sabes que está comigo outra alma?” — “Sei.” — “Podes vê-la?” — “Não posso.” — “E como o sabes?” — “Tu já a socorreste.” — “Como eu a socorri?” — “Deste luz.” — “Que queres dizer com isso?” — “Mostraste o caminho.” — “Estou ajudando também ati?” — “Sim.”

O “Miserável” foi embora. Henrique continuou comigo ainda longo tempo. Rezamos bastante. Fiz-lhe muitas perguntas, sem, todavia, receber respostas. Para mim tudo isso é incompreensível, pois como posso proporcionar luz às almas?! De uma coisa, porém,

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estou certa: o “Miserável” precisará muito de luz.• 9 de janeiro — O “Miserável” ficou comigo das 10:30 até às

quatro da madrugada. Não reagiu a nada, mas não me perdeu de vista um instante sequer. Fiquei muito cansada com essa situação. Parece que seu rosto está ficando um pouco mais humano. Uma vez levantou-se de supetão, querendo agredir-me. Gritei: “Não deves fa­zer isso!” Ficou furioso, mas voltou ao seu cantinho. Tive muito medo. Depois deeleter ido, escutei, de repente, umamúsicaque vinha de muito longe. Foi algo de totalmente novo para mim. Abri a janela, mas a música não vinha de fora...

• 10 de janeiro — De dia claro, veio Henrique. Parecia estar alegre e satisfeito. Disse-lhe: “Parece que estás contente. Estás me­lhor?” — “Estou, sim.” — “Dize-me por favor, por que tens que so­frer tanto tempo? Tenho oferecido por ti já tantas vezes uma indul­gência plenária!” — “Sim.” — “Então o percebeste?” — “Percebi. Deus é a Justiça; por isso, o tormento diminui mas o castigo continua.” E desapareceu. • Depois, encontrei-me com a “sombra”. Ela toma os contornos de uma mulher, mas apenas vagamente. • O “Miserável” entrou aos gritos. Eu estava ainda de pé e rezei com ele. Ele pousou a mão na minha cabeça. Não agíientei e afastei-a. Ele pediu: “Por favor!” — “O que queres que eu faça?” — “Sacrifícios.” — “Que sacrifícios?” — “Tua vontade.” Logo entendi o que ele queria: eu não suportava que me tocasse, e não queria tocar nele. Eu deveria, pois, sacrificar minha suscetibilidade e meus melindres. E ele me esten­deu os braços. Dei-lhe a mão direita, mas a contragosto. Ele pegou também a mão esquerda. E eu sentia suas mãos moles como papinha. Estive a ponto de prorromper em lágrimas. Perguntei-lhe: “Por que seguras minhas mãos?” — “Trazem alívio refrescante.” Fiquei quieta, mas sentia-me mal até que soltou minhas mãos. Ficou ainda algum tempo comigo. Que suplício!

• 11 de janeiro — Henrique esteve comigo quase a noite toda. Tem aspecto de alma bem contente. Disse-lhe: “Por favor, conta-me por que ficaste possesso pelo demónio?” — “Dei escândalo.” — “Onde estás agora?” — “Na sombra.” — “Ainda longe de Deus?” —

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“Sim.” — “Será que voltarás a me visitar algumas vezes?” — “Não.” — E por que não?”— “Já não me poderás dar coisa alguma.”— “Mas de bom grado te ajudarei!” — “Eu estarei distante de ti.” — “Em que consistirá o teu sofrimento?” — “Em estar distante de Deus.” E desapareceu... Como é tudo tão singular! Anoto só o que entendo claramente, pois muitas vezes tenho de perguntar, porque freqíien- temente as almas apenas sussurram.

O “Miserável” se dá a conhecer

• 12 de janeiro — Vieram o “Miserável”, a “sombra” e os onze vultos.

• 13 de janeiro — Acordei com a pressão que se exercia sobre omeu braço direito.Foio“Miserável” queseinclinou sobre mim. Sua cabeça estava tão próxima à minha que pensei esvair-me em pavor. Não posso descrever quanto sofri com isso. Todavia, não quero lamentar-me. O Bom Deus não me enviará cruz superior às minhas forças. • O rosto do “Miserável” está cheio de tumores e feridas, e como que coberto de uma massa pegajosa. Finalmente, colocou-se ao meu lado. Comecei a rezar; depois, retirou-se. • Na igreja vi também o cavaleiro.

• 14 de janeiro— Eu estava muito contente com a volta de meus parentes de Roma, e a L... ficou comigo até à noi te. Ela estava sentada comigo à mesa quando, de repente, o “Miserável” apareceu atrás dela e fixou-me, como de costume, seu olhar de onça morta. Faço um esforço tremendo para que minha companheira não perceba que está conosco, e de modo visível para mim, uma visita do outro mundo. No entanto, agiientar, durante muito tempo, essa tensão terrível, vai além de minhas forças. Disse, pois, à minha amiga que fosse deitar- se. No momento em que eu ia abraçá-la, o “Miserável” se pôs à frente dela, mas eu a vejo através dele. Ela está como que encostada no “Miserável”, mas não o percebe, apenas estranha muito que eu a esteja despachando sem formalidade e me considera quase como sem modos nem educação.

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Mal minha amiga se foi, o “Miserável” avança contra mim. Agüento calmamente. Não quero desmaiar, embora aquela situação quase me subjugue. Nem me lembro se rezei naquele transe horrendo. Eu agia maquinalmente pois o “Miserável” me apertava tanto que só com muito esforço conseguia respirar. Finalmente me largou. Exclamei: “Por que me torturas desse jeito?” — “É que tu me livras de meu tormento!” — “Mas quem és, afinal?” — “Alguém que está à procura.” — “À procura de quê?” — “De paz e descanso.” — “Quero saber como te chamas.” — “Henrique.” E desapareceu. Des­ta vez, eu me senti realmente esmagada; no entanto, fiquei contente por ouvi-lo falar e saber que o coitado se chama Henrique^9). • Tor­nei a ouvir aquela música estranha. Ou será que foi ilusão minha e que aqueles sons vieram dos fios de telefone que passam sob a minhajanela?

• 15 de janeiro — Henrique, é este o nome do ex-“Miserável”, voltou. Já começa a apreciar a oração, e seu rosto se transforma. Tenho a impressão de já ter visto esses olhos, mas não sei dizer nem quando nem onde. • A “sombra” esteve no meu quarto; não sei se é homem ou mulher.

• 16 de janeiro — Henrique me despertou com um grito e começou a gemer atrozmente. Rezei com ele, mas como continuas­se a se lamentar, tomei a garrafa de água benta e a esvaziei sobre a cabeça dele. Ficou quietinho e acompanhou a oração em voz baixa. E se foi. No chão, não se via gota de água alguma, embora tivesse eu despejado sobre ele o conteúdo inteiro da garrafa.

• 17 de janeiro — Estranho! Tive muitas dores a noite toda, e não apareceu nada. Pelas quatro da madrugada caí no sono e dormi

(19) O pároco Wieser comenta: Henrique v. M. é um personagem histórico. Assim como encontrei os nomes de Egolf e Bárbara, também achei o dele. Parece que levou uma vida violenta. Durante um ano inteiro continuou em evidência. Fez doações para missas que, porém, pela inflação, já não têm valor. Mandei, por isso, perguntar se ele sentia que as missas, outrora rezadas pela alma dele, agora não mais se rezavam. Ele respondeu: “O sangue de Jesus está sendo derramado por todos nós.” No dia 11 de fevereiro, também Henrique terminou sua purificação.

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bem até às seis. Aí veio Henrique. Perguntei-lhe: “Por que vieste tão tarde?” — “Não te encontrei.” — “Por que não? Estive sempre no meu quarto.” — “É que não espalhaste claridade.” — “Dize-me por que tens esse terrível aspecto?” — “E devido aos meus pecados.”— “Cheguei a conhecer-te em vida?” — “Não.” — “Viveste neste castelo?” — “Sim.” — “Quando?” Sumiu, sem dar resposta. • A “sombra” subiu a escada adiante de mim. • Na igreja, vi o cavaleiro.

• 18 de janeiro — Novamente, a visita do pobre Henrique. Jogou-se em mim. Pedi-lhe que me deixasse em paz. Tudo em vão. Enfim colocou-se ao meu lado. Senti tão grande asco que estive a ponto de prorromper em lágrimas. “Por que voltaste a fazer isso?”— “Para me libertar.” — “Libertar de quê?”— “Não o estás vendo?”— “Não!” — “Olha para mim!” E sumiu. Será que devo ajudá-lo a se libertar de seus eczemas e tumores? Não entendo isso. Como pode ser proveitoso um sacrifício que devo fazer forçada?! Pois de livre vontade jamais o tocaria.

• 19 de janeiro— Confesso que, agora, cada noite me amedron­ta. No entanto, consigo adormecer. À uma hora, Henrique, dando um grito, entrou. Perguntei-lhe: “De que modo poderei ajudar-te melhor?” — “Vence-te a ti mesma!” — E novamente me enlaçou. Foi pavoroso. Esforcei-me para oferecer minha agonia por ele. Por fim, me largou. A sensação que experimento com tais ataques, é de ter ficado toda coberta de sangue e lama, mas nunca se vê nada. Perguntei-lhe: “Deves torturar-me desse modo?” — “Devo.” — “Quem o quer?” — “Eu.” — “Mas tens ainda tua livre vontade?” — “Não.” — “Por que dizes então que és tu que o queres?” — “Algo me obriga a isso pois apenas tu...” Não consegui entender o resto. E sumiu. Mais tarde, aqueles sons misteriosos me acordaram; não entendo o que seja; é como se cantassem dentro da parede.

• 20 de janeiro — Ele irrompeu qual vendaval em meu quarto; eu estava ainda acordada e exclamei: “Por favor, não te aproximes hoje de mim.” — “Por que não?” — “Não suporto teus modos.” — “Não queres ajudar-me?” Achegou-se a mim. Eu não disse nada e

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fechei os olhos. Ele colocou suas terríveis mãos nos meus ombros e deitou a cabeça na minha. Não me lembro de mais nada, foi demais. Recobrei a consciência pouco depois. O pensamento na santa comunhão me faz esquecer todas essas coisas; tanto me alegra a vinda de Jesus.

• 21 de janeiro — Os mesmos horrores, apenas sem que eu perdesse a consciência. Fiquei covarde, pois só com pavor penso na chegada de Henrique.

• 22 de janeiro — Um pouco melhor. Não o posso levar a me responder, mas consegui rezar com ele. • A “sombra” esteve longa­mente comigo. • Na igreja, vi o cavaleiro.

• 23 de janeiro — Henrique mudou bastante. Nem sei dizer como ou em que, mas já não me inspira tanto nojo. Estou feliz por­que não me tocou. Perguntei-lhe: “Dize-me, és tu o Henrique M.?”— “Sou.” — “Por que deves sofrer tanto tempo?” — “Tenho feito o pecado mais pesado.” — “Tens sofrido todo esse tempo neste castelo?” — “Tenho.” — “Por que não te vi antes?” — “A Justiça Divina não o permitiu.” — “Meu diretor quer saber se percebes que as missas fundadas não existem mais?” — “O sangue de Cristo jorra por todos nós.”(2°) E começou a chorar. “Por que choras?” — “Por­que não posso aproveitar-me do sangue de Cristo.” — “E por que não?” — “É nisso que está meu castigo.” — “Eu te ajudo?” — “Estás me ajudando, sim.” Rezei com ele. Por algum tempo ficou ainda comigo, mas não respondia a minhas perguntas.

• A noite, na igreja, o cavaleiro estava ajoelhado no banco dos ajudantes da missa. Seu rosto, belo e cheio de paz, estava voltado para mim. Não tive coragem de falar com ele. Talvez, nem deva dirigir-me a essa classe de almas, totalmente diferente daquelas que me procuraram.

• 24 de janeiro— Já que tenho confiado tudo de importante a este diário, digo também que meu estado de saúde é péssimo e, para ter

(20) “O sangue de Jesus está sendo derramado por todos nós.” Os que opinam de maneira diferente a respeito do santo sacrifício da missa, e não mais aceitam a transformação das espécies no corpo e sangue de Jesus, não sabem o que fazem.

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as forças físicas necessárias, deveria sacrificar-me espiritualmente, sem ir à santa missa devido a meu extremo cansaço. Mas isto seria um tratamento de saúde totalmente errado, pois então me faltaria tudo e sairia de dentro de mim até o que não deveria existir: tanta impaciência, tanta rudeza na convivência com o próximo.

• Na noite passada, Henrique veio três vezes. Ele está ficando mais humano e já não tem aparência de macaco. Até os eczemas desapareceram. Rezei longamente com ele; parece gostar do salmo Deprofundis (Das profundezas, salmo 129). De repente, achegou-se a mim, sem me tocar (Graças a Deus!), e me perguntou: “Já o percebeste?” — “Sim; tens o aspecto totalmente diferente. Qual a razão?” — “E que te flagelaste por mim.” E sumiu. Eu o havia feito porque seguira um impulso pensando que isso ajudaria, talvez, às almas. Faço tão pouco por elas. • Outra vez, a “sombra” na escada.• Ouvi a música. E um entremear-se muito estranho de tons...

• 25 de janeiro — Henrique ficou longamente comigo. Estava muito triste e não descobri o motivo de sua tristeza. Desapareceram tumores, pústulas e tudo o que provocava asco. Em vez de couro animal traz agora um casaco marrom. O modo como tem os braços expressa uma tristeza indizível.

• 26 de janeiro — Ele veio de dia. O aspecto é pior do que de noite. E como se fosse um mosaico formado de quadros de nuvens de diversos matizes; a cabeça parecia ser transparente, e impressio­nava de modo estranho. Perguntei-lhe: “Por que estiveste ontem tão triste?” — “Não me foi possível procurar-te.” — “Por que não? Tu estiveste comigo!” — “Havia tantas almas ao teu redor.” — “Não vi nada. Quem esteve comigo?” — “Almas!” — “Mas eu rezei con­tigo.” — “Tu estavas dividida!” — “E hoje chegaste tão cedo por causa disso?” — “Foi.” É verdade que tive uma noite sossegada, e foi bem agradável. Mas o pensamento nas almas que por mim esperam, me oprime um pouco. Será que agüentarei a situação por muito tempo? Onde está minha confiança em Deus? Onde está meu espírito de sacrifício? Estranho! • A “sombra” me seguiu durante

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o dia todo. Trata-se de uma mulher, mas não se reconhece a pessoa.• Henrique me fez uma curta visita.

Novamente, aquela música! No fundo, não me faz feliz. Ela é tão imprecisa! Será que é imaginação minha? Será que é real? Não sei; vou simplesmente anotar tudo. No entanto, não mais farei menção daquilo que dou às Almas do Purgatório, pois é a coisa mais natural do mundoqueeufaçaalgoporelas;épouco;devofazermuito mais.

• 28 e 29 de janeiro — Dores e mais dores. Por isso, as almas, como de costume, me deixaram em paz. Durante a noite, fiz a experiência: chamei por Henrique, mas não veio.

• 30dejaneiro— Sentia uma sensação esquisita. Veio Henrique e me fez um sinal. Queria que eu o acompanhasse. Quis ignorá-lo, mas ele achegou-se a mim e disse: — “Vem comigo.” O convite não me agradou, e não reagi. Aí ficou tão agitado que juntei todos os restos de coragem contidos dentro de mim e o acompanhei. Deram justamente três horas. Ele foi à minha frente e descemos até à porta da cozinha pela qual se chega à adega. Fui abri-la e descemos a es­cada. Foi duro. Lá embaixo, ele apontou para um canto escuro e de­sapareceu. Eu me achava em frente da parede. Não se via nada. Graças a Deus, eu podia em toda parte acender a luz elétrica, pois no escuro a situação teria sido pior. Não há palavra para descrever o medo que sentia. Mas, paciência! A gente suporta também isso. Infelizmente, continuo sendo sempre “Eu mesma”, com todas as minhas misérias.

Io de fevereiro— Durante a noite, a presença de Henrique. Fez- se de surdo para todas as minhas perguntas. Longamente rezei com ele. • A alma-sombra se dá a conhecer. É a velha camareira Janete, que há 40 anos esteve a serviço de minha avó. Ela passou bem perto de mim.

Ao voltar da santa missa, e ao tentar abrir a porta de meu quarto, o trinco se mexeu quando nele coloquei a mão; e quem estava ali? Henrique! Assustei-me deveras. — “Acabo de rezar por ti! Notaste- o por acaso?”— “Notei, sim.” — “Escuta! Há alguma coisa enterrada na adega?” — “Não!” — “Por que me levaste para lá?” — “Foi lá

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que pequei.” — “Mataste alguém?” — “N ão! Mas continua pergun­tando!” — “Posso ajudar-te se pergunto?” — “Pode.” — “Foi um pecado contra o 6o mandamento?” — “Foi.” — “Mais não quero saber desse assunto. Dize-me como posso ajudar-te?” — “Reza hoje por mim!” — “Por que justamente hoje?” — “Porque estás bem pura.” — “É porque me confessei e tomei a santa comunhão?” — “E por isso.” — E sumiu. (Escrevo isso obrigada pela obediência a meus superiores. Não quero nem pensar no que me disse. Que não me venha algum pensamento presunçoso ou de vaidade; caso con­trário, a pureza já se vai.)

• 2 de fevereiro — Outra vez, aquela música que me despertou. Mais tarde, Henrique. Perguntei-lhe: “Qual a razão de teu sofrimento tão prolongado? Não tiveste tempo paia te confessar antes de morrer?” — “Tive, sim. Fui perdoado, mas não fiz a devida penitên­cia pelos meus pecados.” — “Podes dizer-me por que tua cunhada tinha aquela chaga na cabeça?” — “Não.” — “Vês também outras almas no castelo?” — “Vejo apenas as almas que se encontram na mesma esfera em que estou.” — “Por algum tempo, não me encontrarás aqui. Tenho de viajai', mas rezarei por ti.” — “Para nós não existe espaço.” — “Não estás ligado a este lugar?” — “Estou confinado a ti.” — “Por quem?” — “Pela misericórdia de Deus.” E desapareceu.

Realmente, o Bom Deus o quer! Subiu-me ao peito uma onda de calor ao pensar que posso fazer algo por ele. Tem sido tão mise­rável minha atitude! Sempre pensando só em mim mesma. O Bom Deus me encarrega de uma tarefa. Este pensamento dá à alma um empurrão que, no meio da tortura e do medo, me enche de júbilo. Encontro-me hoje num estado esquisito, totalmente dividida em mim mesma. O que há de espiritual dentro de mim, mal permite ao meu corpo mexer-se. Mas eu me comporto de um modo tão artificioso! Ninguém pode suspeitar o que se está passando comigo. Mas o que se agita no meu íntimo, tem de irromper; por isso fico contente que alguém saiba o que está se passando comigo, embora, às vezes, eu não aprecie muito esse fato, já que minha alma é propriedade privada

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minha. • Durante a reza do terço, vi, na igreja, aquele cavaleiro.• Encontrei-me com os ‘ ‘onze’ ’ na encosta do morro. Talvez, Henrique possa informar-me a respeito deles. Vou interrogá-lo.

• 3 de fevereiro — O cavaleiro esteve presente no culto quase o tempo todo; cheguei a pensar que os coroinhas da missa iriam nele tropeçar. • Henrique apareceu apenas por instantes.

• 4 de fevereiro— Henrique ficou a noite quase toda. Disse-lhe que eu partiria e que ele não conseguiria encontrar-me, segundo minha opinião. — “O caminho é luminoso !”(21) disse ele.

Quando morrerei?

• 7 de fevereiro — Sch... De fato, Henrique veio. Não falou na­da. Mas ainda deve haver outras almas dentro do meu quarto, pois há um sussurro constante ao meu redor, que torna o ambiente pouco acolhedor.

• 8 de fevereiro — Henrique ficou longamente comigo. O

aspecto dele é bom. Indaguei-lhe: “Virás ainda muitas vezes?” — “Ainda preciso de tua ajuda.” — “Como posso ajudar-te?” — “Pela mortificação.” Devo confessá-lo: Nos últimos tempos diminuiu meu fervor em socorrê-lo porque pensava que ele estivesse se recu­perando bem. • Depois da saída dele, vi uma sombra indo de um lado para o outro; ouvi também bastante ruído.

• 9 de fevereiro — Durante o dia, Henrique esteve duas vezes comigo; durante a noite, permaneceu por mais tempo. Quis saber: “Podes informar-me quando morrerei?” — “Deves estar preparada!”— “Será então em breve?” — “Será quando estiveres madura.” — “Podes indicar-me as minhas faltas?” — “Não posso.”

Enquanto ele conversava comigo, houve, de repente, um sus­surro e um cochichar no quarto, como nunca o havia escutado.

(21) O diretor espiritual, Sebastião Wieser, comenta: “A viagem foi feita entre 4 e 7 de fevereiro. O que se segue, deu-se em Sch..., distante de seu domicílio algumas centenas de quilómetros.”

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Repentinamente, tudo sumiu. Mesmo de dia, ouvi em tomo de mim, ruídos esquisitos. Em que vai dar isto?!

• 11 de fevereiro— Eu estava fazendo minha oração da manhã, quando, subitamente, Henrique apareceu. Disse-lhe: “Vem cá; vou dar-te água benta. Ela te faz bem?” — “Faz.” — “Que mais queres?” —■ “Tua mão.” Satisfiz-lhe o pedido. Ele pegou também minha outra mão. Tive a sensação que saía de mim uma força ou até toda a minha energia, como se extinguisse a minha própria vontade. Pedi-lhe: “Larga-me, por favor.” Mas ele implorou: “Se agíientares mais um pouco, ficarei livre”, e apertou-me ainda mais. Ficamos assim alguns momentos, segurando-me ele com tanta força, que sua mão parecia ser uma verdadeira prensa. Disse-lhe: “Larga-me; do contrário, não poderei receber a santa comunhão, já é tarde.” Soltou-me. Vi, pela primeira vez, um sorriso em seu rosto. Disse-me: “Agradecido! Estou na Luz.” E partiu.

Reinaldo

• 16 de fevereiro — Encontrei-me, no corredor, com a alma de um homem idoso que entrou em meu quarto e desapareceu. Os ruídos no quarto são sempre os mesmos.

• 18 de fevereiro— Vi uma senhora no jardim, acompanhando- me sempre. A expressão de seu rosto era de muita tristeza. Quando me dirigi a ela, sumiu.

• 19 de fevereiro — Outra vez, no corredor, aquele velho. Não inspira medo.

• 21 de fevereiro — O homem veio de noite; parecia estar bem satisfeito. Comecei a rezar, e ele ficou bastante tempo comigo; depois abriu a gaveta de uma cómoda, como se procurasse alguma coisa.

• 22 e 23 de fevereiro— Tive dores; não ouvi nada, nem música nem ruídos.

• 24 de fevereiro — Voltou aquele velho. Eu fora aconselhada a não reagir de modo algum, para ver o que aconteceria. Deu-se algo

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estranho. O homem ficou à minha frente, imóvel, e me fixando; tive a sensação de que estavam me tirando toda a minha força; senti-me enfraquecer. Ele se inclinou sobre mim e seu bafo abominável bateu em cheio no meu rosto. Eu quis levar a experiência até o fim, e não reagi. Então, gritou com tanta força que pensei que todo mundo ali acorreria. E sumiu. Sentia-me tão miserável como se tivesse tirado algo de mim mesma, mas o quê? Ou foi tudo apenas o resultado do esforço de resistir-lhe? Seja como for, terei mais uma vez a mesma atitude. • O grito havia sido ouvido por minha sobrinha que pensara ter eu gritado em sonho.

• 25 de fevereiro— Ao entrar no meu quarto para deitar-me, ele lá já estava. Fiz como se não ligasse à sua presença. Rezei a oração da noite e, aí, ele me deu um empurrão como se estivesse desconten­te comigo. Esforcei-me para não reagir. Apaguei a luz e me deitei. Sentia a presença dele. Começou um grande barulho dentro do quarto. Achei melhor levantar-me e acender a luz. Ele corria agitado pelo quarto. Finalmente, aproximou-se de mim e me perguntou: “Por que me resistes?” Não respondi. Ele me agarrou e me apertou a garganta como se quisesse estrangular-me; deu um grito medonho e desapareceu... Minha consciência me diz que devo retomar a atitude antiga, dialogar com as almas e procurar ajudá-las. • De novo, aquela estranha música.

• 26 de fevereiro— Ele entrou aos gritos. Perguntei-lhe: “O que queres? Estou pronta a ajudar-te?” — “Por que não me aceitaste?”— “Porque não quis. Procura outras pessoas que se interessam em ajudar as almas.” — “Só tenho permissão de me dirigir a ti.” — “Quem és?” — “Reinaldo.” — “Por que não encontras paz?” — “Enganei gente.” — “Por que abriste a gaveta?” — “Por causa do dinheiro.” — “Como posso ajudar-te?” — “Furtei. Manda rezar uma missa.” — E se foi.

• 27 de fevereiro — Ele demorou apenas poucos instantes; não falou nada.

• 28 de fevereiro— Realmente, não há motivo para ter medo de Reinaldo. Perguntei-lhe:— “Viveste aqui, neste castelo?” — “Não.”

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— “Onde foste enterrado?” — “Em Heidelberg.” — “E por que sofres aqui?” — “Aqui furtei o dinheiro.” — “Podes estar sossega­do, mandarei rezar a santa missa.” E desapareceu. Ninguém sabe algo de um homem chamado Reinaldo. Acho que talvez tenha sido aqui servente.

• Io de março— Muito barulho. No corredor vi também a alma de uma mulher. Outra vez, aquela música misteriosa.

• 2 de março— Durante o dia, diversas sombras em meu quarto, e bastante barulho.

• 3 a 5 de março — Estive doente. Nada de importante.• 6 de março— À noite, veio uma mulher, bastante inquieta; os

contornos dela são muito imprecisos.• 7 de março — Encontrei a mulher no corredor. Durante a

noite, um barulho insuportável no quarto, no baú, debaixo da cama. Tive muito medo. Essas coisas mexem com os nervos da gente mais que quaisquer outras ocorridas durante o dia.

• 8 de março — Uma barulheira tremenda. De permeio, aquela mulher; o rosto dela está, ainda, totalmente na neblina.

• 9 de março — Eu estava lendo no meu quarto. De repente, envolveram-me um vendaval e uma cerrada fumaça. Mas janelas e portas estavam fechadas. Foi uma situação sinistra.

A idéia de que minha situação se torna mais e mais dolorosa, me oprime. Todavia, sou feliz. Pois a consciência da presença de Deus me arrebata, muitas vezes com tanta força que gostaria de fugir de tudo e apenas permanecer nessa presença. Essas coisas só se podem experimentar e não descrever. Talvez haja de minha parte uma certa exaltação, mas não faço nada artificialmente. No meio de situações alegres, sinto, repentinamente, a presença de Deus, e só é possível adorar! Mesmo que sejam curtos tais momentos, eles me tra­zem felicidade para muitos dias. E a contragosto que escrevo isto, pois tudo soa como se aquilo surgisse de minha imaginação; anoto-o, porém, para que me possa sentir mais segura, pois meu diretor espiritual me avisaria se houvesse algo de errado na minha conduta.^22)

(22) Da mesma opinião é seu confessor pároco Sebastian Wieser.

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• 11 de março — A mulher veio três vezes durante a noite. Sua figura é bem reconhecível. Também com ela, o sofrimento se exprime pelos braços. A boca está inchada. Interessante que minha sobrinha ouvira sua entrada no meu quarto. Pelo relógio se compro­vou o momento exato.

• 12 de março — Hoje, eu a vi cinco vezes, mas sempre furtivamente.

• 14 de março— Ela entrou no meu quarto como em fogo. Dis­se-lhe: “Dize-me quem és.” — “Hermengarda Montfort.” Jogou-se ao chão, chorando muito. Tive grande compaixão dela. Ajoelhei-me ao seu lado e disse: “Farei por ti o que me for possível. Tens um desejo especial?” — “Penitência!” — “Penitência em quê?” — “Nesse teu corpo.” E desapareceu. Se eu fosse diferente, poderia ajudar tanto às pobres almas. Graças a Deus que elas se encarregam agora de minha educação!

• 15 de março — Durante muito tempo, ela ficou comigo. Não pertence essa alma àquela classe que amedronta; por ela sinto apenas comiseração. Deve ter sido muito bela, só aboca está torta. Não falou, mas de bom grado rezou comigo.

• 16 de março -— Alguns religiosos passaram a noite no castelo. Quando Hermengarda veio, disse-lhe: “Vai aos padres que podem rezar por ti melhor do que eu.” — “Estive com eles, mas não enxergam.” — “Então é preciso enxergar-te para te ajudar?” — “Ofereces algo aos pobres se eles não te estendem a mão?” — “Passaste a vida aqui?” — “Não. Mas aqui eu pequei.” Ela traz consigo tamanha tristeza como jamais observei em outras almas.• Após longo tempo, tenho novamente ouvido aquela música.

• 17 de março— Hermengarda veio chorando. Estendi-lhe meu crucifixo mortuário; ela o beijou. Não houve jeito de mitigar-lhe a dor. Perguntei-lhe: “Sofres tanto assim?” — “Olha para mim.” Naquele instante, ela estava como que envolvida em fogo, mas logo desapareceu. Pela madrugada, ela voltou. “Por que deves sofrer tanto?” — “Por causa dos pecados com a língua. Eu tenho... discór­dia.” (Não entendi uma palavra.)— “Posso realmente ajudar-te?” —

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“Podes, sim.” — “Escuta, não há também outras pessoas que te possam ajudar?” — “Elas passam adiante.” — “Como encontraste a mim?” — “Vi outras almas indo a ti.” — Ela achegou-se a mim e me implorou com olhos sedentos. E eu sentindo toda a minha pobreza! Ela se foi. Não sei o que eu poderia fazer por ela, pois também os vivos estão a exigir muito de mim, e só posso dar bem pouco.

• 19 de março — Quatro vezes, Hermengarda me apareceu.• 20 a 27 de março — Estive gripada. Nada vi, nada escutei.

Férias.• 28 de março — Senti que algo havia no meu quarto, mas eu

não vi nada. Perguntei: “Hermengarda, estás aí?” — “Estou.” — “Onde estiveste o tempo todo?” — “Contigo.” — “Por que não pude ver-te?” — “Não estavas em condições de me ajudar.” — “Tenho pensado demais em mim mesma?” — “Foi.” E nesse momento tor­nei a vê-la. É tudo tão estranho, mas é a verdade. Eu me sentia tão mal que não pensava em nada a não ser: quero ter sossego.

• 29 de março — Ela sentou-se no meu leito. Não me assusta. Rezamos muito.

• 30 de março— Ela ficou comigo muito tempo. Não respondeu nada às minhas perguntas.

• 31 de março — Veio chorando. Perguntei-lhe: “De que modo posso ajudar-te?” — “Pelo amor.” — “Mas tenho amor para conti­go.” — “Não o suficiente.” Rezei longamente corneia. Não sei de que modo eu poderia amá-la ainda mais. Ajudo quanto posso.

Nos três primeiros dias do mês estive doente. Nada de especial.• 4 de abril — Durante quase todo o dia, eu a vi nos quartos, no

corredor e na escada.• 5 de abril — Chegou ao meu leito de braços estendidos. Dei-

lhe as mãos e disse: — “Quantas vezes ainda virás?” — “Doa mais!”— “O quê?” — “A santa comunhão.” E sumiu. Interessante! E verdade que eu oferecia sempre a santa comunhão por minha sobrinha enferma.

• 7 de abril— Ela me perseguiu o dia todo. Aparecia repentina­mente e a cada instante.

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• 8 de abril — Ela veio de noite. Jogou-se no meu leito e me abraçou. Não sinto para com ela o pavor que costumo ter com outras almas; contudo, tenho a impressão de perder toda a minha força íntima, e isso de um modo bem mais acentuado do que, em outras ocasiões, em relação a certas almas... Talvez porque me sinta muito cansada devido ao meu serviço recente de enfermeira da casa.

• 9 de abril — Ela ficou comigo durante três horas. Disse-lhe: “Agora recebes a santa comunhão que pediste?” — “Sim.” — “Sentes alguma melhora?” — Um clarão de alegria alumiou seu rosto quando fez que sim com a cabeça. — “Escuta, és tu, porventura, dos meus ascendentes?” (Perguntei isso, porque o nome dos Montfort aparece na minha árvore genealógica.) — “Sim, provéns também de mim.” — “Foi por isso que me procuraste?” — “Não, não foi.” — “Como vieste a saber que descendo de ti?” — “O sangue”, foi abreve resposta. Que coisa interessante! As perguntas me vieram sem eu ter refletido nelas; talvez porque ela seja diferente de todas as almas que me têm procurado.

• 11 de abril — De dia, ela veio repetidas vezes; de noite, descanso.

• 12 de abril — Entrou no meu quarto como se estivesse pai­rando. Perguntei-lhe: — “Queres rezar comigo?” — “Quero.” De­pois de ter rezado longamente com ela, sussurrou-me algumas palavras que, infelizmente, não entendi. Parecia ser latim. Acho que disse: “Ex usuris...”, mas não o garanto. Como continuasse murmu­rando, talvez tenha sido o versículo de um salmo/23)

• 13 de abril— Ela veio, quando eu, na capela, estava arranj ando os ramos e as palmas para o dia seguinte. Dei-lhe uma palma. Recebeu-a com um sorriso.

Hermengarda ajuda-me a rezar

• 15 de abril— Minha sobrinha estava muito mal. Chamaram- me durante a noite. Levantei-me e fui. Hermengarda me seguiu.

(23) O versículo 14 do salmo 71 diz: “Ele redime suas almas da usura e da injustiça.”

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Perguntei-lhe: “Podes ajudar-me na oração?” — “Posso.” — “Sabes se a criança vai recuperar a saúde?” — “Não sei.” — “Então reza pa­ra que ela possa receber o batismo.” Ela fez que sim com a cabeça.

• 16 de abril — No quarto da doente, Hermengarda ficou constantemente comigo. A criança foi batizada; quando ela morreu, Hermengarda ficou contente.

E tão difícil em tais situações aceitar a companhia de gente. Tenho que fazer um esforço muito grande para que ninguém perceba minha convivência com o Além. Mas não quero vangloriar-me, já que Deus me dá a força.

• 17 de abril — Quando preparei a criança para o enterro, Hermengarda chegou e me observou com toda a naturalidade, como qualquer outra pessoa viva. Perguntei-lhe: — “Quando estarás lá onde está a alma desta criança?” Ela nada respondeu mas achegou- se a mim, encostou o rosto ao meu, e me deixou.

• 19 de abril — Ela ficou comigo a noite toda. Posso ver as al­mas na escuridão, mas, quando aparecem, prefiro acender a luz.

• 21 de abril — Quatro vezes ela se mostrou.• 22 de abril — Passou longo tempo comigo. Rezou comigo o

pai-nosso.• 23 de abril — Esteve comigo quase a noite toda. Perguntei-

lhe: “Onde está teu corpo enterrado?” — “Em Tettnang.” 2̂4) — “Quando viveste em teu corpo?” — “No passado.”

• 25 de abril — Tive a impressão de haver mais alguém no quarto. Interroguei Hermengarda a esse respeito, mas ela não me respondeu.

• 26 de abril — Ela parece estar mais alegre. — Não há dúvida de que há mais alguém no meu quarto. Poderia ser a alma de um homem.

• 27 de abril —■ Hermengarda está muito contente. Ela disse bem claramente: — “Usque ad domum Dei.”(25) Perguntei-lhe:

(24) O velho castelo èm Tettnang, hoje Câmara Municipal, pertencia aos condes de Montfort; o último conde morreu sem deixar filhos, em 1780. Tettnang fica ao nordeste do lago de Constança.

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‘ ‘Estás agora remida?” Ela me sorriu e de braços abertos se aproximou de mim, e desapareceu.

• 29 de abril — Aquele vulto esteve comigo demoradamente. É um homem de barba loura; só a cabeça aparece nitidamente. Está muito agitado, mas por enquanto não me amedronta.

• 30 de abril — Acordei com uma sensação de medo, mas não vi nada. Todavia, ao meu redor, um ambiente de tempestade. Pensei que portas e janelas estivessem abertas, mas nada disso! Finalmente vi aquele vulto correr de um lado a outro. Quando comecei a rezar, aproximou-se ele de meu leito.

• 3 de maio — Após longo tempo, revi os “onze”. • O homem que vi em Sch..., talvez tenha ficado lá.

• 4 de maio — Novamente, a música dentro da parede junto à minha cama. Para descobrir a origem ou a causa dos sons, levantei- me e saí do quarto. Os sons vibram em torno de mim. Tudo isso é lindo, mas não o sei explicar.

Já por diversas vezes mencionei a sensação da presença de Deus, que me penetra de modo irresistível, e cuj a força aumenta mais e mais. Acho meu dever expor minha atual situação. E muito difícil descrevê-la, pois é tudo diferente daquilo que se passava antes comigo, em relação ao que ocorre agora. Ao redor de meu espírito aumenta a claridade, como se eu me achasse diante de uma grande fogueira. Algo se apodera, inteiramente, do meu pensar. Tudo quanto é humano fica desligado, e minha alma goza o que é indescritível. Quando volto à vida normal — ao terreno — , é como se eu acordasse de um belo sonho; todavia, há uma diferença, pois algo continua dentro de mim: a possibilidade de poder viver e sentir aquilo que é impossível exprimir em pensamentos ou palavras.

Tenho a impressão de que algo dentro de mim está crescendo. Antigamente, isso se dava apenas por poucos instantes e depois voltava à situação normal. Agora, porém, continua o contato espiri­

(25) A citação latina “Usque ad domum Dei” significa: “Até à casa de Deus”.

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tual, ou um anseio permanente pelo indefinível. Às vezes me pergunto: como é possível que tenha essa vivência? Surge também, de quando em quando, a preocupação de que tudo possa ser produto de uma fantasia, talvez louca. Passadas tais reflexões fugidias, e examinando-me bem, esquadrinhando cuidadosamente meu íntimo, tenho de admitir que tudo isso é real e verdadeiro. E parece-me impossível imaginar o que a gente nunca é capaz de vislumbrar.

• Vi o cavaleiro diante do cruzeiro na igreja.

Aparece o conselheiro Fridolino Weiss^26)

• 5 de maio — (No dia 7 de fevereiro, a princesa Eugênia viajara a Schr... Lá, o vulto de um homem lhe aparecera, sem se dar a conhecer. Agora ele a procura.) Veio o homem de Schr... Parece que vai haver coisa. E muito inquieto e bruto.

• 6 de maio — O homem ficou quase durante a noite toda; é bem nojento e desleixado, e indiferente à oração.

• 7 de maio — Quando, ao anoitecer, entrei no meu quarto, estava ele deitado no chão. A situação me parecia tão sinistra, que deixei o quarto. Mas isso nada adiantou. Criei coragem e voltei. Encontrei-o na mesma posição. Dei-lhe água benta, ajoelhei-me ao lado dele; gemia terrivelmente. Devo conhecê-lo, mas não tenho certeza.

• 8 de maio — E dura a situação. O homem fica a noite quase toda, e é muito inquieto. Mas eu sou boba, pois sei que nada me pode acontecer, e assim mesmo tenho um medo tremendo.

• 9 de maio — Ele entrou adiante de mim no meu quarto. Comecei a rezar. Ele chegou bem perto de mim. — Tenho quase certeza de que ele é o conselheiro Fridolino Weiss. Seu aspecto é horroroso, já que está todo revestido de uma pegajosa massa. Não reage de modo algum. • Escutei aquela música...

(26) Fr. Weiss foi, durante muitos anos, feitor no castelo de Waal.

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• 10 de maio — O homem é bastante desagradável. Está ganin­do constantemente. Veio quatro vezes, esta noite. • Vi os “onze”.

• 11 de maio — Quando, ao cair da noite, debrucei-me à janela, olhando as estrelas, veio o homem voando pelo ar. Experimentei uma sensação abominável. Faz muito tempo que tive um choque se­melhante a este. Nem consegui ficar no quarto. Sentei-me no cor­redor. Não me seguiu. Uma vez refeita do susto, voltei e o encontrei esperando por mim. Rezei com ele a devoção do mês de maio, en­quanto ele ficava atrás de mim. Durante algum tempo desapareceu, para voltar feito louco. Foi medonho. É de fato o conselheiro Fri- dolino Weiss.

• 12 de maio — Encontrei os “onze” e, na escada, a camareira de minha avó. • O conselheiro veio duas vezes; inclinou-se sobre mim. Ele é horrorífico: o rosto todo furado, só buracos; não tem olhos, a barba é vermelha qual fogo. Nunca vi alma que tivesse caveira tão impressionante como a cabeça dele.

• 13 de maio — Vi novamente a camareira. • O conselheiro Fridolino Weiss ficou bastante tempo; está um pouco mais calmo. Parece gostar da água benta. • Escutei aqueles sons.

• 14 de maio — A atitude de Weiss não muda; é muito bruto e repelente. • Tenho escutado aquela música misteriosa. Pena que não possa descrevê-la, pois não entendo de música. Mas é linda e me alegra.

• 15 de maio — Vi muitas almas: três vezes o Weiss, cinco ve­zes a camareira e duas vezes os “onze”; mas nada de abominável.

• 16 de maio — Weiss veio de dia, gemebundo. A luz, ame­dronta-me mais que de noite. Percebo quanto ele gostaria de falar. Durante a oração acalmou-se.

• 17 de maio — Weiss na escada e também na sala de estar, enquanto estavam presentes T. e a criança. Foi muito desagradável. Ele veio também durante a noite.

• 18 de maio — Agrediu-me violentamente, apertando-me o pescoço. Reagi com força, e ele caiu no chão. Ficou deitado bastante tempo. Tive muito medo, pois suas órbitas eram qual carvões em

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brasa. Finalmente, levantou-se de um salto querendo agredir-me outra vez. Apresentei-lhe a reliquia da Santa Cruz. Ai ele desapare­ceu. • Escutei aquela música; na igreja vi o cavaleiro.

• 19 de maio — Foi medonho. Tive um indizível pavor. Ele agrediu-me do jeito como o havia feito Henrique. Não desmaiei, embora, talvez, tivesse sido melhor para mim. E impossível descrevê- lo. Não gostaria de passar por tais transes outra vez. (Se o Bom Deus o quisesse, aí sim.) Weiss ficou comigo longamente; rezei muito, mas parece que ele não escutou.

• 20 de maio — Que beleza! Weiss não veio. Linda música e bom descanso.

Vem o Dr. G...

• 21 de maio— Noite muito intranquila. Weiss está quase sem­pre comigo. Quer falar, mas não consegue. No entanto, parece que entende o que lhe digo.

• Indo ao castelo, apareceu-me a alma do Dr. G... No século passado, pelos anos 80, ele fora caçar e, quando se achava na estação da estrada de ferro, teve morte instantânea. Agora, no caminho do castelo, ele se aproximou de mim. Eu o reconheci imediatamente. Ele me estendeu a mão e tinha aparência totalmente humana. Mas eu não podia fazer nada, porque estava acompanhada. Assim mesmo, durante muito tempo, andou ao meu lado. Como é difícil a gente se comportar com natural idade, quando anda em companhia de pessoas de mundos diferentes! Eu esperava revê-lo na volta e por isso fiquei sozinha, distanciando-me dos outros. Pena que não viesse. • Em compensação, ao voltar a casa, receberam-me os “onze”.

• 22 de maio— A música. Em seguida, Weiss. O jeito de sempre, mas comedido.

• 23 de maio— Enfim, Weiss consegue falar. Perguntei-lhe: “És tu Fridolino Weiss?” — “Sou.” — “Sofres muito?” — “Sofro.” — “Como posso ajudar-te?” — “Fazendo sacrifícios.” — “Já os faço.”

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O prín cipe Erwein III O tto vo n d er Leyen, nascido em 1894, era capitão de cavalaria refo miado, vice-presidentedaVereinigungderdeutschenStandesherren, conde da O rdem bcivara de São Jorge, senhor de U nterdiesen e Waal. Em 10 de jan e iro de ¡924 contraiu nupcias com M aría N ives,filh a de Antonio Ruffo e de Ludovica, prin cesa Borghese.

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M aria N ives Ruffo delia Scaletta, filh a da prin cesa Ludovica Borghese, de Roma, e sposado príncipe E rw e in lll Otto, m ãe do príncipe W olfram e da prin cesa Ludovica, atual proprietária do castelo de U nterdiesen e Waal.

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Príncipe Wolfram, nascido em / 924, morto na guerra contra a Rússia, em 6 de fevere iro de 1945, em Deutsch-Krone.

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— “Mas não o bastante.” — “O que tenho de fazer?” — “Deves desembaraçar-te de ti mesma.” — “Não exijas demais, pois ainda sou muito imperfeita. Vai a pessoas melhores que eu!” Aí ele veio a mim, pôs a mão no meu braço e sumiu. Sim, estou apegada a muitos. Terei força para renunciar a tudo? Quero ser sincera, essa força, por enquanto, me falta. Acho graça ao ver o conselheiro Weiss tão dife­rente do modo que aparentava em vida: sempre a cortesia em pessoa. Agora ele tem modos bem diferentes e até me faz sofrer e me ma­chuca. Sem que eu o queira, a imagem dele e o seu jeito em vida ainda continuam presentes em minha memória.

• 24 de maio — Ele veio duas vezes, mas não falou.• 25 de maio — Houve uma barulheira horrorosa em meu

quarto, estrondo e gemidos, embora eu não visse nada. Perguntei: “Quem está aí?” — “Muitos.” — “É Fridolino quem fala?” — “Sim, sou eu.” — “Por que não te posso ver?” — “Porque estás doente.” (Ele disse a verdade.) E continuei: “Quem trazes contigo?” — “Não os conheço.” — “Escuta, por que não te vejo quando estou doente?”— “As tuas faculdades sofrem também.” — “Poderias ajudar-me?”— “Não!” — “Como percebes que estou enferma?” — “Tu não tens poder de nos atrair.” — “Mas então, por que ainda estás aí?” — “O caminho que devemos tomar nos é prescrito.” O barulho continuou, mas não mais responderam. Por muito tempo tive a sensação de não estar só; é bastante desagradável tal situação. Estou muito descon­tente comigo mesma; penso demais em minha própria pessoa; estou desanimada e muito cansada. Arre!

Vivi à toa

• 27 de maio — A situação começa a se tornar insuportável. Além de Weiss, havia no meu quarto neblina e gemidos de cortar o coração. Exclamei: “Suportai o vosso castigo; por que me atormentais? Não quero mais escutar-vos.” — Weiss exclamou: “Onde está tua compaixão?”, e ele desapareceu; os gemidos, porém, continuaram.

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Agora minha consciência me acusa de que fui dura com as almas.• 28 e 29 de maio — Não vieram. Talvez a minha maldade as

tenha afastado.• 30 de m aio— Weiss está triste, o que me levou a dizer-lhe que

continuarei a ajudá-lo. Aí ele veio e apertou-me o pescoço, de tal modo que pensei morrer sufocada. Ele foi abominável. Perguntei- lhe: “Por que fazes isso se eu quero ajudar-te?” — “Quero forçar-te.”— “Não permito que me forcem, sobretudo quando me tratam desse jeito.” Aí, aproximou-se de mim com expressão tão maldosa que perdi aconsciência. Quando recobrei os sentidos, ele não estavamais. Escutei a música.

• 31 de maio — Vi o cavaleiro. • Weiss voltou, de dia. Sinto medo dele. Há algo mais no quarto que, por ora, não posso ver. Será que essa situação vai continuai- desse jeito?

• Io de junho — Weiss voltou. Perguntei-lhe: “Dize-me, é por vontade de Deus que tu vens a mim?” — “E-nos permitido por ele.”— “E por que tu me fazes sofrer tanto? Não basta o tormento de te ver?” — “Dentro de mim está a inveja.” — “Por que me invejas? Já não podes perder-te eternamente, mas eu ainda posso ser condenada.” — “Nunca controlei minha mente; tenho vivido em vão.” — “E como te salvaste?” — “Pelo sacerdote.” — “Como podes ter inveja? Pois não podes mais pecai'.” — “O mal ainda está dentro de mim.” Ao mesmo tempo, ele se tornou feio e abominável como nunca o havia visto. Voltou ainda quatro vezes.

• 2, 3, 4, 5 de junho — Cada noite ele voltou, mostrándo­se sempre num estado de hediondez abominável. Ouvi ainda, de dentro da neblina, muitos outros sons e um gemido longínquo. Encontrei-me na escada com a velha camareira.

• 6 dejunho— Vi naigrejao cavaleiro, numa postura de piedade constante e fixidez. Weiss apareceu e ficou longamente comigo. Não me respondia o tempo todo. Foi muito duro suportá-lo, pois chegava bem perto de mim. Sinto algum consolo quando penso que Deus me envia essas almas para reparar a minha falta de caridade ativa para com o próximo. Lamento que j á não estej a fisicamente em condições,

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como antigamente, para locomover-me. E assim perco muito do meu rendimento no serviço de Deus e do próximo, devido ao meu grande cansaço na parte da manhã.

• 9 de junho— Nada de novo. Weiss volta todas as noites mas não diz nada. Tomou-se bastante agitado. O barulho aumenta.

A velha trapeira

(Observação: Havia, em tempos passados, pessoas que catavam nas ruas trapos e coisas velhas, para vendê-los às fábricas. Geralmente vinham em carroças de tração animal)

•11 de junho — Além de Weiss, veio também uma alma em forma de mulherhedionda,um verdadeiro monstro. Estou commedo.

• 14 de junho — Vi dois homens no primeiro banco diante do altar da cripta. Pareciam gente de carne e osso, por isso entrei no banco atrás deles para ver quem eram. Só então percebi que traziam longas vestes negras, usadas em séculos passados. Dei-lhes água benta da grande bacia em frente a eles. Aí desapareceram. • Ouvi a música.• Weiss ficou pouco tempo comigo.

• 16 de junho — Novamente apareceu aquela mulher hedionda. Devo conhecê-la, mas não posso dizer nada de definitivo, a não ser que ela me é extremamente antipática. • Tenho visto o cavaleiro na igreja.

• 17 de junho — Aquela mulher ficou comigo durante muito tempo. Eu a reconheci. É uma velha trapeira, chamada Nanete Blochem. Foi o terror de minha infância e era temida por todo mundo. Acho que morreu pelo ano de 1893.

• 18 de junho — Parece que Weiss não vem mais. A Nanete comportou-se muito mal. Outra vez, aquela música.

• 19 de junho — Festa do corpo de Deus. Vi algo muito lindo. Eu ia subindo o morro quando foi dada a bênção, com o Santíssimo em frente do hospital. • Vi os “onze” lançarem-se por terra, como já

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os vira fazer no Natal. Foi tão comovedor que tive de chorar. Oh! se os incrédulos tivessem visto essa cena! (26a) Não entendo por que os “onze” aparecem sempre como paus de neblina. De dia claro, aquilo dá um aspecto esquisito.

• 20 de junho — Estando eu para me flagelar por Weiss, apa­receu ele, ao meu lado, com uma expressão feliz e disse: “Tu me remiste.” — “Não fui eu, foi a misericordia de Deus.” — “Servindo- se de ti!” — “Aonde vais agora?” — “A urna esfera superior.” — “Escuta, o que posso fazer para que as Almas do Purgatorio não venham mais?” — “Sê generosa!” Foi, e me deixou como dentro de uma clara neblina. • Pouco depois veio Nanete, mas eu estava tão feliz que desta vez nem liguei à sua aparência. • Escutei aquela música.

• 21 de junho — Na igreja, vi o cavaleiro. • Nanete é simples­mente repugnante; é nojenta.

• 22 de junho — Tanto barulho no quarto, que tive um acesso de covardia.

• 23 de junho— Quatro vezes neste dia vi a Nanete. Seus olhos hediondos me prendem; a situação ameaça piorar outra vez.

• De 23 de junho até 14 de julho — Sempre o mesmo; senti-lo é muito penoso; anotá-lo, bem maçante. Nanete conseguiu falar. Perguntei-lhe: “Como posso ajudar-te?” — “Olha, e vê o que me falta.” Chegou bem perto de mim, e vi no seu rosto uma expressão de tão profunda tristeza como jamais notara em quaisquer outras almas. Interroguei-a: “Tens anseio por Deus?”— “Tenho.” — “Não podes vê-lo ainda?” — “Ainda não estou pura.” — “Posso ajudar-te para ficares pura?” — “Dá-me o Santíssimo Sacramento!” — “Queres que eu ofereça a santa comunhão em tua intenção?” — “Quero, sim!” — “Quantas vezes?” — “Sete.” — “E por que justamente sete vezes?” — “Foram tantas as minhas comunhões

(26a) Se a princesa ainda vivesse nos tempos atuais, quanto não sofreria ao saber que o mistério da fé se apagou até nos corações de muitos sacerdotes e pessoas religiosas. Ela que vivia totalmente com e pela santa missa e comunhão, por isso muito se alegrou com a adoração prestada pelos onze vultos do Além.

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indignas.” E chorou com tanta intensidade como ninguém neste mundo é capaz de chorar; foi um verdadeiro desmancho em lágrimas. Tive de abraçá-la, não havia outro jeito. Aí ela me olhou e, naquele instante, sua hediondez se foi — para voltar nos dias seguintes com força redobrada. Nem L. nos seus piores tempos apresentara aspecto tão hediondo. Na imaginação humana tal sordidez é inconcebível e, por isso, faltam-me palavras para descrevê-la. Até agora, eu tinha sossego em dias de doença, mas essa indulgência para comigo se acabou. Para usar de franqueza, quase que não posso mais, tão frágil se tomou minha confiança em Deus.

• 18 de julho — Hoje, o dia foi muito pesado. Perguntei-lhe: “Por que me torturas? Sabes que quero fazer tudo quanto me pedes.”— ‘T u preferes dormir.” Ao dizer isso, deu-me um empurrão tão violento que quase morri de medo. E verdade que ela tinha razão, pois me sentia tão fraca que não conseguia vencer o cansaço.

• 19 de julho — Quando entrei no quarto para me deitar, ela estava sentada no meu leito. De todos os lados sentia-me cercada de almas que procuravam pôr a mão em mim; contudo, eu nada podia ver. Isso levou alguns minutos. Só pela madrugada pude deitar-me.

• 20 de julho — Havia tanto barulho que não podia nem pensar em dormir. N anete voltou a emudecer. Seus olhos são bem esquisitos; é como se deles saísse uma força que obriga a gente a fitá-los. Tenho a sensação de que me retiram energia. Nunca sentira algo semelhan­te em outras aparições.

Desde 27 de julho, Nanete não veio mais. Sinto um certo alívio. Há muitas almas que me importunam. Sete vultos tomaram forma, mas nenhum deles me é conhecido. Aproximam-se de mim; sinto mãos hediondas me apalparem, o que para mim é o pior. Enquanto eu anotava isso, um vulto de mulher achegava-se a mim por detrás. Parece que nunca estou só. Causa-me tristeza descuidar-me de minha alma; não me esforço para adquirir virtudes; não chego a trabalhar devidamente na santificação de mim mesma como costumava fazê- lo, embora nunca com o devido afinco.

• 4 de agosto — Noite de extremo horror. Nada vi, mas senti e ouvi. Repetidas vezes me bateram e não sabia o que fazer. Fui muito

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covarde. Será que não serão espíritos maus que procedem desse modo?

• 6 de agosto— Algo ou alguém segurava dentro do meu quarto o trinco da porta. Consegui, enfim, entrar. Uma neblina cerrada en­chia meu quarto e ouviam-se gemidos. Derramei muita água benta, e a situação melhorou. Quatro vultos formaram-se na neblina e depois diluíram-se na cerração. Ultimamente vi quatro vezes Bárbara no 3o andar; parecia estar bem contente e sorria. Eu estava acompanhada e, por isso, não pude falar com ela.

• 7 de agosto — Viam-se claramente os sete vultos; ficaram comigo das dez até à uma da madrugada. Não me maltrataram; contudo, por serem muitos, senti medo. Em compensação, ouvi aquela música misteriosa. Muito estranho foi o que observei durante uma tempestade. Via os raios coruscarem através dos vultos. O aspecto foi tão sinistro que preferi acender a luz.

• 9 de agosto — Passei por algo pavoroso. Um estrondo me despertou. Acendi a luz e algo de horripilante se inclinava sobre mim. Constantemente meus pensamentos voltam àquilo: uma cabeça gigantesca com olhos tão apunhalantes que não parecem existir, ou antes: o rosto todo era um só olho que me fixava. “Vai-te! — exclamei— o que procuras comigo?” — “A paz.” — “Não sou eu quem pode dá-la.” — “Mas tu deves!” — “O que me pode obrigar a isso?” — “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” — “E se me falta a força?”— “Então reza!” E sumiu. Como alguém tão abominável pode pronunciar tais palavras! Que seja! Estou de acordo. Como sabem educar-me, essas almas!

Agora vou contar algo que me parecia qual saudação do Bom Deus. Talvez fosse ridículo, contudo, tornou-me feliz. Eu estava bastante deprimida. Tudo me angustiava. A cada passo voltava a pensar se era a vontade de Deus o que se passava comigo. Pedi ao Bom Deus me desse um sinalzinho como já o fizera tantas vezes antes. Eu andava pelo jardim; aí caiu de súbito uma andorinha no chão diante de mim. Levantei-a e a acariciei. E ela foi embora, cortando o ar. Para mim, era o sinal que eu pedira; agora basta de lamúrias.

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• 10 de agosto— Voltou a cabeça; desta vez com o corpo todo, e logo indaguei:— “Quem és?” — “Wolfgang.”— “Como se explica que já podes falar?” — “Faz tempo que estou contigo.” — “Por que não te vi?” — “Tua força se dirigiu aos outros.” — “Queres tu ajudar também a mim?” — “Quero.” — “Dize-me o que está errado dentro de mim.” — ‘T u estás dividida.” — “O que entendes com isso?” — “Corpo e alma não combinam.” — “Sei, é só a alma que deve dominar. Mas não o consigo ainda. O que mais vês em mim de errado?” — “Teu orgulho.” E sumiu. Que bom poder receber tais ensinamentos! Vou tomar aulas particulares com as Almas do Pur­gatório. • Ouvi aquelas músicas. Vio cavaleiro. Na igreja, sacudiram- me pelos ombros.

Desde o dia 16 de agosto, seguindo os conselhos recebidos, ignorei as visitas do Além. Quanto sofri por causa disso não quero descrever. Basta dizer que Wolfgang e os sete vultos vieram todas as noites. Sofro menos quando aceito as visitas das pobres almas, pois então os nervos não ficam tão tensos e não se percebe tanto quanta força nos subtraem.

Ele cumpriu a promessa

• 24 de agosto — Alfred S ... (27) me procurou de dia, sorrindo e me estendendo as mãos: “Alfred, és tu?” — “Vim cumprir minha promessa.” — “Onde estás?” — “Na visão de Deus.” — Com um aceno, se despediu. Essa visita foi para mim uma grande alegria e ao mesmo tempo impressionou-me profundamente. No ano passado, mais ou menos nessa mesma época, quando conversávamos sobre as coisas que comigo acontecem, rindo prometera visitar-me, se fos­se possível. Apareceu-me agora tal qual em vida. Às palavras dele tive que redargiiir, mas com outros nunca mais tenho falado até hoje.

(27) Escreve o pároco Sebastian Wieser: “Alfred S. foi uma pessoa altamente posicionada na sociedade. Eu o conhecia bem. Essa aparição é uma justificativa perante aqueles que dizem: Não é possível que mortos voltem”.

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Quando Wolfgang veio, disse-lhe: “Por que continuas vindo? Pois nem mais liguei a ti para que me deixasses sossegada.” — ‘T u não tiveste misericórdia.” — “O que queres?”— “Uma santa missa.”— “Onde teu coipo está enterrado?” — “Em Augsburg.” — “Como me encontraste?” — “Basta que rezes.” E desapareceu.

Os sete vultos estão ainda num estado cinzento-escuro. Ape­nas seus gemidos impressionam desagradavelmente. • A noite vi na igreja o cavaleiro. Já que eu estava só, fui perguntar-lhe se ele tinha alguma ligação com a partícula da Santa Cruz. Não respondeu. Continuou rezando sem ligar a qualquer outra coisa. Seu olhar é de uma bondade encantadora. Ele é totalmente diferente das demais almas que me procuram.

• 17 de setembro — Foi uma noite horrenda. Primeiro vieram os sete, em seguida Wolfgang e, depois, algo que nem entendo. Era qual nuvem descendo sobre mim, que estava deitada na cama. Em seguida, uma sensação horrífera, no sentido mais realista da palavra, um tremendo pesadelo. A cerração ao meu redor tomou-se tão densa que nem vi mais a luz elétrica do meu quarto. A seguir ouvi as pala­vras: tormentum malit (28)..., o resto da palavra não o entendi. Espalhei muita água-benta e a neblina se foi, e com ela desapareceu toda uma situação sinistra.

Nos últimos quinze dias nada acontecera de novo. Aquela nuvem desagradável transformou-se em alguém. Parece ser mulher, mas não apavora, pois quando rezo, está bem quieta e contente.• Tomo a ouvir, freqiientes vezes, uma música que vem de dentro da parede.

• 9 de outubro — No castelo de D ... vi a alma de uma senhora idosa. Por longo tempo ficou ao meu lado.

• 11 de outubro — Tenho visto coisas muito estranhas. Eu andava pelo jardim e veio ao meu encontro algo de muito lindó: cores e luzes que não posso explicar. Eu me achava como numa roda de luz

(28) Parece que o texto é tormentum malitiae = tortura por causa da malícia.

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e ouvia música. Para os olhos, foi de uma beleza indescritível; para a alma, algo que jamais experimentei. Posso examinar-me e pers­crutar o meu ser: não tenho palavras para descrever o que aquilo significou; no entanto, gostaria de experimentá-lo de novo. É como se eu fosse inundada de força, o que me fez muito feliz.

• 14 de outubro — Uma forte barulheira me despertou. Minha cama estava sendo empurrada para todos os lados; foi uma sensação desagradável, mas eu não enxergava nada. Durou cerca de meia hora; em seguida, tudo terminou. Minha cama estava ao viés. Mais tarde veio aquela mulher.

• 17 de outubro - Experimentei outra vez aquela situação inefável, porém dentro do meu quarto; não pode provir, por conse­guinte, de um fenómeno natural da estação do ano. Era como se me encontrasse dentro de um grande globo de luz, de um deslumbra­mento de cores indizível, imersa num gozo maravilhoso para os olhos e numa alegria inefável para a alma — um submergir dentro de algo celestial. Enquanto anoto isto, faço para mim mesma o papel de uma pessoa exaltada, mas, ainda assim, devo escrevê-lo porque faz parte do inexplicável que eu posso vivenciar.

• 19 de outubro — Aquela mulher ficou comigo por muito tempo. Ela tem um rosto juvenil como jamais o vira. Tentei algo de novo: querendo rezar o terço, dei-lhe também um rosário na mão. Ela o segurou durante a reza. Depois que ela se foi, notei o rosário no chão. Algo me surpreende nela: muda de estatura. Quando vem, é de tamanho pequeno, ao sair, da altura da porta. Ela pertence a uma espécie de almas que ainda não cheguei a conhecer; não amedronta de modo algum; gosto dela.

• 20 de outubro — Novamente, os empurrões em minha cama; em seguida, veio aquela mulher.

• 21 de outubro — Ela começa a falar. Chama-se Eva. Mais não entendi. Por longos minutos continuou mexendo os lábios, mas foi impossível entender alguma coisa.

• 29 de outubro — Ela ficou muito tempo comigo. Perguntei- lhe: “ Por que vens a mim? Posso ajudar-te?” — “Já me ajudaste.” — “De que modo? Ainda não fiz nada por ti.” — “Sou aquela alma

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abandonada, pela qual.. (O resto não entendi.) — “És tu a alma pela qual rezei já na minha infância?” — “Sou.” — “Por que não te mostraste mais cedo?” — “Não me foi possível.” — “O que fizeste de mal?” Ela sussurrou-me algo ao ouvido, mas não foi possível entendê-lo, sorriu para mim e desapareceu.

• 30 de outubro — Depois da missa de aniversário da morte de nosso avô, eu o vi em nossa capela, tal qual em vida; foi para mim uma grande alegria poder revê-lo. Parecia estar muito satisfeito. Seus cabelos brancos brilhavam. Foi pena não poder falar com ele já que eu não estava só. O encontro me fez muito feliz. É uma sensação toda particular encontrar-se com alguém a quem a gente amara em vida. Parece que me quis dar a conhecer que foi liberto pelas santas missas rezadas por sua alma.

• Io de novembro — Vi muitas almas: os “onze”, o cavaleiro e os dois homens no banco em frente ao altar da cripta.

No dia de finados não vi nada. Também os dias anteriores estavam calmos. A respeito da aparição de Hermengarda em Sch. posso acrescentar que ela realmente existia: foi irmã de uma condes­sa de Geroldseck, descendente dos Montfort, e viveu em 1642. Seu castelo ficava na região de Spremberg; está enterrada no convento de Wittich

• 11 de novembro — Continua o costumeiro barulho em tomo de mim. Eva não veio mais. Vultos me cercam gemendo e até gri­tando. Mas, por enquanto, ninguém se dá a conhecer.

Nem em Munique encontrei sossego

• 16 de dezembro— Fiquei três semanas em Munique, (29a) mas nem lá encontrei sossego. Já no segundo dia, a alma de uma mulher

(29) O convento Wittichen pertencia antigamente às Clarissas e havia sido fundado por Santa Luitgardes.

(29a) A família von der Leyen possuía até à Primeira Guerra Mundial uma casa em Munique, perto do Karolinenplatz.

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me procurou, de mãos torcidas, feições descompostas. Voltou todas as noites e me fazia sofrer de modo insuportável. Deve ter sido criada, pois vinha de avental e pobremente vestida. Custou-lhe poder falar. Chama-se Ana e pecou muito por calúnias. À minha pergunta, quan­do seria remida, respondeu: “Três vezes Advento.”

Em Munique vi algo de estranho. Eu me achava com pessoas conhecidas em casa do célebre pintor Franz von Lenbach. (29b) D e

repente, durante o almoço, ele apareceu diante de mim, hediondo, como animal, mas claramente reconhecível, pois eu o conhecera bem em vida. Fiquei tão assustada que os outros perceberam e me perguntaram se eu não me sentia bem. Por isso, não mais olhei para ele, embora sentisse o tempo todo a sua presença. Terminado o almo­ço, ainda o via, mas ele não me seguiu e não o encontrei nas demais dependências da casa. • Ana me procurou também no castelo de Waal. Perguntei-lhe: “De que jeito vens para cá?” — “Estou sempre contigo.” — “Mas não te vejo sempre!”— “É porque não o suportas.”— “Por que não?” — ‘T ua alma ainda não está livre.”

• 22 de dezembro - Ela ficou comigo quase a noite toda; ela e mais algumas outras almas. Disse-lhe: “O Advento está para termi­nar; não voltarás mais quando ele está no fim?” — ‘T u pensas à maneira humana.” — “Mas não é possível pensar de outro modo enquanto vivo.” — “Podes desprender-te.” E desapareceu.

• 24 de dezembro — “Dize-me, como posso desprender-me.” — “Se seguires aquilo que te atrai.” Fui covarde. Não o quero saber, não dela. Acho, porém, que suas palavras se ligam com aquela sensação maravilhosa que agora está crescendo, pois quando a sinto, tenho a impressão de estar livre de mim mesma e viver num mundo diferente. Observei que meu corpo perde a faculdade de se locomover quando me sobrevêm aquele estado, pois ao sentir chegar essa sensação, quis trancar a porta, mas já não o conseguia; veio a luz e tudo ficou indife­rente para mim, que queria apenas gozar aquele inefável estado.

(29b) Franz von Lenbach foi o mais festejado pintor retratista de sua época, amigo de Bõcklin e de Bismarck, de quem pintou cerca de 80 retratos. Ele morreu em 1904.

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Aparece o padre O ..., o meu antigo professor de religião

• 27 de dezembro — Vem agora a alma do padre O .. num estado lamentável. Durante muito tempo foi meu professor de religião. Ainda não está em condições de falar. A tristeza que demonstra me dói, pois eu gostava muito dele. • Ao descer o morro, vejo quase sempre os “onze”. Tomaram-se mais pequenos, tendo já quase o tamanho de crianças.

• 30 de dezembro — A noite foi terrível, terrível. Meu quarto estava cheio de vultos, todos eles desconhecidos. Pela primeira vez me cercava um fedor abominável. Eles jogavam-se no meu leito — eram sete, mas havia mais almas comigo. Uns vinham, outros saíam. Eu fiquei um pouco desanimada, pois se isto continuar assim, não agiientarei mais o cansaço.

Estou em estado de purificação

• 5 de janeiro de 1925 — A Z ... chegou. Ela impressiona por sua profunda tristeza. Quando rezo, achega-se a mim mostrando sua satisfação e me acariciando. (O que não me agrada.)

• 7 de janeiro — Ela já pode falar. Pergunto-lhe: “O que queres que eu te faça?” — “Uma santa missa.” — “Sofres muito?” — “Estou na purificação.” — “É o que nós chamamos de purgatório?” — “É, sim.” — “Mas o que estás sofrendo?” — “O anseio, anseio de Deus me devora.” — “Por que tens de sofrer?” — “Praguejava.” — “De bom grado te ajudo. Sentes algum alívio quando rezo por ti?” — “Sinto, sim.” — “No estado em que te encontras não podes rezar?” — “Posso adorar, mas não posso pedir.” — “E agora?” — “Agora tu pedes por mim.”(3°)

• 8 dejaneiro— Ela ficou tanto tempo comigo que não agiientei mais de tanto cansaço. Disse-lhe: “Por favor, deixa-me agora porque

(30) Anota o pároco Sebastian Wieser: Conheci a Z... e a visitei muitas vezes durante sua doença. Era muito pobre. Suas respostas impressionam porque em vida tais conceitos lhe foram totalmente estranhos.

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estou com muito sono.” — “Por obséquio, tem compaixão de mim.”— “Mas uma reza que apenas sai de minha boca não pode te ajudar; nem consigo mais rezar direito.” — “Tua presença me dá refrigério.”— “E por quê?” — “Porque alivias nosso sofrimento.” ■— “Se eu te ajudo, ajuda-me a mim também. Vês, certamente, o que há em mim de mau, de pecado.” — “Não és mortificada.” — “Sei; tens razão. E que mais?” — “Quanto mais te privares e te despojares de tudo, tanto mais poderás dar.” Tenho a impressão de que houve algo ou alguém com ela, mas não consegui distinguir claramente o que era.

• 9 de janeiro— Estranho! Enquanto eu conversava com afilha de Z., esta veio ao nosso encontro. Z. acenou para mim e lançou um olhar penetrante à filha. Quase perdi a fala. Depois de a filha ter ido embora, ela ficou comigo. Perguntei-lhe: “Por que não te deste a conhecer à filha?” — “Ela não está livre.” — “Nem eu estou livre e por que eu te posso ver?” — “Tu te libertaste.” As palavras dela provam que até as Almas do Purgatório não sabem tudo. Eu, estar livre e totalmente libertada?! Estou em meio a todo mundo e tanta coisa fica grudada a mim, que meu corpo enfermo faz com que não dê o cuidado necessário à minha alma. E isso me apavora muito. Às vezes, fico muito oprimida, mas depois volto a ser leviana. E então vem, de quando em quando, aquela felicidade única, maravilhosa e consoladora que me faz esquecer tudo, tudo.

O orgulho espiritual fez em mim um solitário

• 15 de j aneiro— Não fiz anotações porque nada houve de novo, apenas noites repletas de inquietação. • O padre O ... continua vindo, até diversas vezes durante o dia.

A noite passada foi tão insuportável, que devo anotá-lo. Algo me puxava para todos os lados dentro de minha cama. Meu pavor é inominável. Deve haver muitas almas dentro do meu quarto. Não sabia o que fazer. Havia neblina ao meu redor, e tão cerrada que a lâmpada do aposento me parecera muito distante daqui. Refugiei-me

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num outro quarto. Lá, tive sossego, apenas ouvia o barulho. Pelas cinco horas consegui deitar-me de novo.

• 17dejaneiro— E m D ... encontrei aquela mulher que já havia visto.

• 23 de janeiro— Quase toda noite, a situação é horrorosa. Estou tremendamente apavorada por haver tantas almas no meu quarto. Quando vem o padre O ..., o resto sossega e dele não tenho medo. Fui muito covarde, e sei por quê. Minha alma já não consegue arranjar a força de que precisa. O corpo, por estar enfermo, arrulhou-a em indolência.

• 25 de janeiro— Vieram cinco vultos. Torturaram-me terrivel­mente, pois tentaram sempre tocar-me, o que, para mim, é o pior que me podem fazer.

• 29 de janeiro — O padre O ... consegue falar. Perguntei-lhe: “Como posso ajudar-te?” — “Continua rezando.” — “Não consigo entender por que aindanão estás nocéu.”— “O orgulho espiritual tem feito de mim um solitário.” — “Mas, e o bem que tanto fizeste?” — “Isso me salvou.” — “Vais também a outros dos teus alunos?” — “Não; que rezem por mim.”

• 30 de janeiro — Sofri muito. Chamei pelo padre O ... para que me livrasse das almas que tanto me fazem sofrer. No entanto, só veio pela manhã. “Não me ouviste, quando os outros estavam comigo?”— ”Sim, estive presente.” — “Por que não pude ver-te?” — “Tu estavas com medo e não tinhas amor.” — “Mas quero ajudar também aqueles.” — “Só conseguirás ajudar quando te esqueceres de ti mesma.” — “Ainda não consigo controlar-me quando me surpreen­dem agressões martirizantes.”

• Io de fevereiro — O padre O ... esteve comigo a manhã toda. Até quando outras pessoas entraram no meu quarto, ficava ele comigo. Ele parece realmente vivo qual outra pessoa. Durante a noite, as outras almas têm-me torturado terrivelmente.

• 4 de fevereiro— Aqueles cinco vultos podem ser reconhecidos agora, são cinco mulheres, mas em relação a elas nada consigo quanto a rezas ou colóquios. O padre ficou longamente comigo.

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Tenho de falar agora dum assunto que nada tem a ver com as Almas do Purgatório. No entanto, prefiro comunicá-lo ao meu diretor espiritual porque acho melhor cientificá-lo de tudo quanto se passa comigo: aquela sensação de um bem-estar indizível cresce de tal modo que isso me assusta. Hoje, durante meia hora, estive fora de mim. Não sei onde estive; tenho a certeza de que estive fora de mim mesma. Quando isso se dá, algo se apodera de mim, devagarinho, que me torna impossível qualquer ocupação; uma presença invisível me atrai. Uma grande claridade me envolve e em seguida não sei mais nada de mim mesma. Estou imersa em felicidade. Tudo quanto é humano está desligado; gozo e não posso expressar o que estou gozando. Acho isso tão estranho que não sei classificá-lo, descrevê- lo ou falai- a esse respeito, pois é anormal perder a consciência de si mesma. Alguém como eu não pode cair em êxtase. E vem o escrúpulo: imagino ou sonho tais coisas? Minto? Mas isso é totalmen­te impossível. Deponho, pois, as minhas preocupações nas mãos do meu diretor espiritual; ele me dirá se há em mim qualquer coisa de errado.

• 11 de fevereiro — Aconteceu muita coisa. Por longo tempo esteve comigo o padre O ...; perguntei-lhe: “Virás ainda muitas vezes?” — “Não.” — “Estás remido? — “Ainda não, mas vejo com maior claridade e vou para lá, donde não poderei voltar.” — “Podes dizer-me se tudo é assim como o aprendi contigo?” — “É, sim. No entanto, a língua humana é incapaz de expressar o que há de mais santo.” • Vieram as cinco mulheres; duas delas têm rostos hediondos; uma sussurrou-me algo ao ouvido, mas não entendi.

• 15 de fevereiro — Quando estive lá em cima com Wolfram, veio aquele homem que eu vira duas vezes em companhia de B árbara. Ele ficou imóvel ao meu lado; parece ser muito infeliz. • Que noite cheia de agressões abomináveis; as cinco mulheres me torturam de maneira terrível.

• 17 de fevereiro — O padre apareceu por um instante apenas, sorriu para mim e desapareceu. Parece-me que não volta mais.

• 19 de fevereiro — Enquanto eu estava com Wolfram nos

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braços, aquele homem inclinou-se sobre nós e gemia: “Tu me esqueceste.” Ele tem razão. Fui diminuindo as orações por ele porque não se mostrava mais.

Um assassino visto também por uma criança

• 25 de fevereiro — No terceiro andar vi, outra vez, aquele homem que vinha há tempos com Bárbara. Ele me estendeu as mãos, nas quais vi sangue. Perguntei-lhe: “Es tu um assassino?” — “Sou.”— “Machucaste Bárbara na cabeça?” — “Não.” — “A quem mataste?” — “O filho dela.” — “Por quê?” — “Por causa da herança.” — “Era teu filho?” — “Não.” E ele se foi. Ele traz o uniforme de cavaleiro do século XVI. E jovem; não me amedronta. Fico triste quando vejo seus olhos que imploram ajuda. • As cinco mulheres continuam me procurando de noite. Todas elas são de um século passado; uma, de rara beleza.

• Ia de março — Estive com Wolfram. Veio aquele homem. O pequeno também deve tê-lo visto, pois, medroso, cravou nele os grandes olhos. E pena que tenha como testemunhas, das aparições, apenas criancinhas, gatos e galinhas (30a). Perguntei ao homem: “Por que assustas a criança? Não o admito!” — “Ela vê mais que tu.” Em seguida foi ao quarto de N ...; eu o segui para ver se ela o perceberia. Ele ficou em frente dela, mas ela nada percebeu.

Em tais momentos posso comparar a pessoa viva com uma pobre alma. Penso logo nos olhos que, em pessoas vivas, nunca são semelhantes aos de uma pobre Alma do Purgatório: seus olhos são a imagem da dor. Também a boca é diferente da de uma pessoa viva, pois ninguém é capaz de expressar de modo tão intenso a inominável acridez de sua dor. De dia posso fazer ainda observações de outro género: as roupas são impecáveis, as franjas, as rendas, tudo aliás, é

(30a) Esse suspiro “testemunhas minhas são apenas criancinhas, galinhas e gatos” manifesta sua dor por não poder expressar aos outros o que se passa com ela. Interessante que o principezinho Wolfram foi sua única testemunha. (Foto na p. 79, em que ela se inclina maternalmente para o pequeno príncipe.)

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de execução impecável. As esporas e as correntinhas tilintam ao caminhar; os que estão comigo em tais ocasiões nada vêem e nada escutam.

• 7 de março — As cinco voltam constantemente, mas não se pode fazer nada por elas. Tomei a ver, enfim, meus velhos queridos “onze”. É de estranhar: seu tamanho se foi reduzindo mais e mais; eram bem mais altos do que eu, agora ficaram qual crianças.

• 9 de março — No terceiro andar tomei a ver o cavaleiro. Perguntei-lhe: “Por favor, dize-me como te chamas.” — “O pobre.”— “Pobre por quê?” — “Basta me olhares.” — “Nada vejo de especial.” Achegou-se então bem perto de mim. Além de suas mãos sangrentas, não constatei nada de anormal. “O que posso fazer por ti?”— “Lavar-me.” Agora acontece o mais bonito: corri depressa buscar água benta. Bem quietinho ele esperou por mim. Despejei água benta sobre suas pobres mãos e jamais esquecerei com quanta gratidão ele me olhava. As mãos continuaram sangrentas mas seu rosto se transformou totalmente. Perguntei-lhe: “Assimestábem?”— “Reza!”, respondeu ele. Rezei o De profanáis e, de repente, ele desapareceu. Estou feliz. E algo de estranho aconteceu: eu havia despejado quase uma garrafa inteira de água benta sobre ele, e não se viu no chão nem uma mancha úmida sequer.

• 11 de março — Havia tanto barulho no meu quarto como se homens de botas pesadas andassem em tomo de mim, e tropeçando a cada passo.

• 13 de março — Aconteceu algo de estranho. Eu estava embrulhando copos e tinha, por isso, papel velho à minha frente. Embora não houvesse correnteza de ar no quarto, o papel começou repentinamente a voar. Bati nele e minha mão encontrou outra mão, invisível porém. Assim, de repente, é um horror!

Saí correndo, pois um pavor inominável me invadiu. Quando o Além nos agride subitamente, sem se mostrar de qualquer modo que seja, é muito pior do que enfrentar seres visíveis. Será que estou cercada constantemente do Além?! Não posso mais viver uma vida normal? Não encontro palavras para dizer quanto sofro com isso e

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nunca poderei acostumar-me a viver com seres de dois mundos diferentes.

• 16 de março— Em D ... tenho visto duas vezes a alma daquela senhora. Não a conheço. Seus trajes são dos anos de 1850.

Aparece o pároco Natterer

• 18 de março — Escutei violentos soluços. Durante muito tempo não enxergava nada. Finalmente, daquela neblina cerrada, surgiu o vulto do pároco Natterer. Eu nem sabia que ele havia fale­cido. Agora encontra-se num estado hediondo. Não há dúvida de que é ele. Sempre me fora tão antipático que seu rosto se me tomara inesquecível. Sinto pavor quando vem. Está como que envolvido em uma pegajosa massa, que já vira em certas aparições. Tenho dó desse pobre coitado. Mas tenho de confessar que fui muito covarde, tão covarde que chorei. Quase não posso mais. Se isso continuar deste jeito, nem sei o que vai acontecer. Sou uma covarde egoísta.

Peço a meu diretor que me explique o que se passa comigo. O sobrenatural ameaça esmagar minha fraca inteligência. Não ouso falar nisso, pois receio dizer uma palavra irrefletida que talvez não corresponda à verdade; no entanto, tenho que desabafar-me, pois sozinha não encontro solução para meu problema. Estou sendo arrancada do mundo e não posso resistir. No começo, sinto uma grande tristeza dos meus pecados. Quando surgem esses sentimentos, sei que o Além me invade, já que, normalmente, sou bastante leviana. De repente, encontro-me cercada de luz. Ouço um som como vindo de muito longe e, com isso, estou sendo atraída irresistivelmente. Então não posso ver senão claridade e sinto que uma força me atrai, a mim, que continuo sendo eu mesma. Não se trata de eu ver, mas de eu pensar, de tal modo que nem posso imaginar. Tenho de adorar e amar sem palavras; é qual imergir em algo divino. Por favor, que meu diretor me compreenda! Eu não quero aquilo, contudo minha alma está sendo invadida e arrebatada ao encontro de uma impensável

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felicidade. Será que tudo isso não será uma produção fantasmagó­rica? Isso me desvia dos trilhos que eu costumava tomar; e isso me amedronta.

Tenho de admitir que quis fugir da invasão do Além. Deixei a meditação; rezei apenas minhas orações obrigatórias, e me tenho esforçado para pensar menos no Bom Deus. Mas agora ficou tudo pior; pior diz o “homem carnal”; mais belo, o “homem espiritual” . No entanto, como disfarçar essa situação se tudo continuar deste modo? Diversas vezes deixei de atender quando me chamaram e eu estava “fora” de mim. Sou mesquinha e estou sendo roída de medo.

• 15 de abril— Faz um mês que deixei de fazer anotações, pois quis experimentar o que acontece quando penso menos no Além; no entanto, nada melhorou com isso. • O pároco Natterer veio catorze vezes; as únicas palavras que pronunciou foram: “Peço-te que man­des rezar uma santa missa.” Havia nele tal inquietação que jamais descobri algo de semelhante em outras aparições. Não ficou calmo nenhum instante sequer. Depois da nona aparição, aquela massa viscosa amoldava-se aele como se fosse uma veste de farrapos. Digno de nota foi o seu rosto. Diversas vezes despejei nele água batismal, que se usa também como água benta. Olhava-me com tanta gratidão que essa sua reação foi para mim a melhor alegria da Páscoa. Não devo ficar me lamentando, pois posso gozar também alegrias indescritíveis.

João

• 24 de abril— Faz três dias que me visita toda noite um animal todo preto, intermediário entre búfalo e carneiro. Fiquei muito assustada. Pulou no meu leito. Para remediar minha covardia, recorri à água batismal, e o quadrúpede me deixou em paz.

• 25 de abril — Três noites seguidas ele veio. Não descubro nele nada de humano.

• 26 de abril — Ele veio de dia. Tem agora um rosto humano, mas todo preto, e provoca arrepios. Poderia até tratar-se do demónio. Mas não quero, de modo algum, pensar em tal possibilidade.

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• 27 de abril— Já se achava no meu quarto, quando fui dormir. Ao fazer a oração da noite, correu ao meu redor e me deu um empurrão tão forte que preferi não deitar-me; fugi para o corredor; ele ficou no meu quarto. Passado algum tempo, entrei no quarto e não o vi. No entanto, apenas suspirava aliviada quando avançou contra mim e me jogou no chão. Pensei morrer de medo. O rosto dele estava perto do meu. Disse-lhe: “Va embora, vou ajudar-te, mas não me toques!” Ai começou a uivar, e se retirou. Perguntei-lhe: “Es tu urna Alma do Purgatorio?”— “SouJoão.”— “Por que tens afigura deumanimal?”— “Por causa de minhas paixões!” Ululava, ao dizê-lo. “O que devo fazer para te ajudar?” — “Faze o que podes fazer. Sofro tanto.” E se enfurecia como um desesperado, ou melhor, como um animal ruim.

• 12 de maio — João vem constantemente, como quadrúpede perigoso; o rosto, porém, se toma mais e mais humano. O couro está molhado, como se acabasse de sair da água.

• 17 de maio— Passei por algo terrível; o pavor tremendo, que sinto, me cansa demais.

• 22 de m aio— Todas as noites vem o sinistro visitante. O rosto aparece agora distintamente: é o Dr. G. que, no fundo, foi um homem bastante bom. Nada responde às minhas perguntas.

• 25 de maio — Ele se torna mais e mais terrível e meu pavor aumenta. Gritou comigo: “Por que não me dás nada?”— “Mas eu te dou o que posso.” Furioso, jogou-se no meu leito. Não sei o que aconteceu em seguida. Quando recobrei os sentidos estava ele acocorado num canto. Levantei-me e rezei com ele. Em seguida, sumiu.

• 27 de maio — “Escuta, cometeste suicídio?” — “Não.” — “Por que não encontras paz?” — “Os pecados secretos.. mais não entendi. “O que é que devo fazer para te ajudar?” — “Tu deves flagelar-te!” — “Exiges bastante! Ter que olhar-te, já é uma tortura para mim.” — “Se te flagelares por mim, tu e eu teremos paz.”

• 30 de maio— Ele ficou comigo longamente. Agora anda como homens, nos dois pés, mas ainda traz o couro. Andou pelo quarto como se procurasse alguma coisa; por fim sentou-se no chão e me

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fixava. Não era agradável, mas percebi que perdera aquela expressão de malvadez. Perguntei-lhe: “Estou te ajudando um pouco mais?”— “Sim.” — “Por que demoraste em me procurar?” — “Não me era permitido chegar mais cedo.” — “Por que vens a mim, se há tantos outros que te podem ajudar?”— “Tu estás mais perto de nós.” — “De que modo?” — “É tua alma.” — “Não entendo.” — “Tu vives sem viver.” E desapareceu. Pena, eu teria gostado tanto de fazer mais algumas perguntas.

• 4 de junho— João, o ex-quadrúpede, vem todos os dias. Mas não fala. Em vez do couro, a aparição veste agora algo de cinzento. Tive dois dias de descanso total. Isso faz bem! Tomo a observar que não gosto de falar de mim mesma. Faço-o porque respeito as dire- trizes recebidas de meu diretor.

• 8 de j unho— João acaba de vir em plena forma humana. Falei: “Então! Agora és tal e qual em vida. Por que tiveste de aparecer em forma de animal?” ■— “Era o símbolo adequado de minha vida.” — “Pois não! Contudo levavas uma vida normal, e não deste escândalo.”— “A Justiça Divina vê tudo diferente da maneira que é comum aos homens. Minha alma estava esfomeada; procurava e não encontra­va.” — “E como te salvaste?” — “Na hora derradeira eu cri.” — ”Por favor, fala um pouquinho do Além!” — “E a claridade e a compre­ensão. Quem semeou, pode colher.” — “Qual é o teu maior sofrimento?” — “ O anseio.” — “Anseio por Deus?” — “Sim!” — “Estás separado dele ainda totalmente?” — “Estou no espaço inter­mediário.” — “No purgatório?” — “Não.” Ele disse mais alguma coisa, mas não foi possível entendê-lo; talvez tenha sido “por cima”, mas não o posso afirmar com certeza.

• 10 de junho — “Dize outra vez onde te encontras agora.” — “No espaço intermediário.” — “O que significa isso?” — “Estou entre a escuridão e a claridade.” — “Estarás remido em breve?” — “Sim.” — “Durante o tempo todo, depois de tua morte até que me procuraste, ninguém rezou por ti?” — “Rezou, sim. A corrente do sa­crifício corre sem parar. É a salvação daqueles que nele têm crido.”— “É na missa que estás pensando?” — “Sim, penso nela.”

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• 12 de junho— Ele veio todo claro e bondoso. Cumprimentei- o: “Muito bem! Hoje irradias felicidade.” (João acabou de vir em plena forma humana.) Ele disse: — “Devo muito a ti.” — “Podes dizer-me porque vos, almas, vindes no começo em figuras e formas tão hediondas? Estavas sabendo que me aparecias como búfalo?” — “Sabia.” — “Faz isso parte do castigo?” — “E a consequência do pecado.”— “Posso fazer alguma coisa para que as almas não mais me procurem?” — “Não podes parar uma torrente!” — “Dá-me, por favor, um sinal de que estiveste comigo, para que outros também acreditem nisso.” — Ele achegou-se a mim e cochichou: “Faze mais este sacrifício por nós.” E foi embora; suponho que não volte mais.

“O pobre Martinho”

• 4 de julho — Dr. G. não vem mais, porém, agora, aparecem, fazendo um barulho indescritível, dois vultos que não conheço.

• 7 de julho — Encontrei-me na escada com um homem. Pensando tratar-se de um mendigo, eu lhe disse: “O sr. espere um pouco; já lhe dou uma esmola.” Chegou tão perto de mim e se comportou dum jeito tão humano que só notei tratar-se de uma alma ao se dissolver em neblina. • Em D ... vi sete vezes aquela mulher, já minha conhecida; chama-se Isabela; não foi possível perguntar-lhe mais alguma coisa, porque eu não estava sozinha.

• 9 de julho — Acordei com uma horrenda barulhada. Durante algum tempo, meu quarto estava como em chamas. No entanto, não vi nada, apenas escutei, junto como barulho, umchamado longínquo. Sofro mais ao ouvir coisas misteriosas que ao vê-las, pois escutando, apenas, é muito mais angustiante o pavor diante daquilo que está por acontecer. Devo confessar que meus nervos afrouxam mais e mais, pois quase não durmo.

• 11 de julho — Aquele homem que veio ao meu encontro na escada, procurou-me no oratório, abrindo a porta, como qualquer pessoa o faria. Assustei-me bastante, porém continuei ajoelhada.

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Primeiro, colocou-se a meu lado; depois ajoelhou-se. Não agiientei a situação por muito tempo; saí do oratório e ele me seguiu. Perguntei- lhe; “O que queres de mim?” — “Amor.” — “Receberás meu amor se me disseres quem és.” — “Tu me ajudaste quando eu ainda vivia no meu corpo. Olha para mim.” Vi então que trazia um pulôver que eu, anos atrás, havia feito a ponto de malha. — “Não te conheço, apenas reconheço o pulôver. Foi a ti que o dei?” — “Foi, sim.” — “Viveste aqui?” —■ “Não.” — “Mas então, como vieste para cá?” — “Porque tu me deves ajudar!” — “Devo?! Ninguém me pode forçar!”— “Pode! O amor!” — “Tens razão; mas dize-me teu nome!” — “Sou o pobre Martinho.” E sumiu. Não tenho idéia de quem seja. Tem aparência bondosa. E um homem de idade; de barba longa; quanto ao resto, parece mendigo. Estranho, esse caso do pulôver! Bem me lembro, enquanto eu estava tecendo, lia Sven Hedin.

Estive quinze dias em Munique. Lá, a situação foi insuportável. No começo, apenas abarulheira; após cinco dias, um vulto de homem hediondo; durante horas a fio esteve diante de mim, em atitude supli­cante. Longamente rezei com ele, mas sua atitude era de indiferença, apenas colocou, uma vez, a mão na minha cabeça. Oh, essa m ão! Foi horrível. À minha pergunta em relação a quem ele era, respondeu apenas: “anima”(31). Não tirei mais nada dele. • Numa loja, vi junto ao vendedor uma senhora. Quando lhe perguntei alguma coisa, o ho­mem me lançou um olhar esquisito, pois a mulher se havia desfeito, e ele estava só no balcão. • Quando fui ver minha irmã na clínica, encontrei no corredor duas senhoras de aparência tão miserável que perguntei a respeito de sua saúde, tão grande fora a compaixão que eu senti por elas. Uma enfermeira que naquele instante estava ao meu lado, no corredor, me olhou como se eu fosse louca, pois aquelas duas senhoras haviam desaparecido.

Apenas tinha eu voltado a W ..., quando vi o Martinho. Eu estava no jardim, quando ele veio. Perguntei-lhe: “Estás percebendo que rezo por ti?” '— “Sim, mas dá-me ainda mais.”— “Eu te agradeço

(31) A palavra latina “anima” significa “alma”.

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por não vires durante a noite.” — “As outras não mo permitem.” — “Que outras?” ■— “Aquelas que estão contigo.” — “São muitas as almas que fazem essa barulheira tremenda?” — “São muitas.” — ‘ ‘Por que não posso vê-las ?”— “Elas não gozam ainda da faculdade.”— “Quando é que a recebem?” — “Numa esfera superior.” — “Já estás lá?” — “Estou no espaço intermediário.” — “É somente desse espaço que podes vir a mim?” — “Nem todas encontram o caminho.”— “Por favor, dize-me como é esse caminho que te traz a mim.” — “É duro, mas tu nos puxas para junto de ti.” — “Onde está enterrado o teu corpo?” — “Em Erlangen.” E desapareceu.

Quando olho continuamente para as almas, elas me parecem mais comunicativas.

O barulho durante a noite é muitas vezes insuportável. E tudo isso ainda está para vir, pois a barulhada anuncia o que vai acontecer.

Em U ... vi Isabela dezesseis vezes. Perguntei-lhe: “Donde vens?” — “De dentro da tortura.” — “Es parenta minha?” — “Não sou.” — “Quando morreste?” — “Em 1846.” — “Onde estás enterrada?” — “Em Paris.” — “Por que não encontras paz?” — “Nunca me lembro de minha alma.” — “Como posso ajudar-te?” — “Manda rezar uma santa missa.” — “Não tinhas parentes?” — “Eles perderam a fé.” — “Passaste todo o tempo do teu purgatório neste castelo?” — “Não.” — “E por que sofres agora aqui?” — “Porque tu estás aqui.” — “Durante tua vida estiveste aqui muitas vezes?”— “Sim, era amiga de muitas pessoas daqui.” Ela é muito linda.

Meu quarto tem estado freqiientes vezes como em chamas, e isso até durante o dia. Tais coisas me inquietam seriamente.

• 11 de agosto— O pobre Martinho esteve outra vez comigo, no jardim. Perguntei-lhe: “O que queres de novo? Faço por ti o que posso.” — “Podias fazer ainda mais, mas tu estás demasiado ocupa­da em teus pensamentos contigo mesma”. — “Não me dizes nada de novo, infelizmente. Conta-me mais um pouco, se podes ver em mim o que não presta.” — “Rezas muito pouco e perdes forças na convivência com os homens.” — “Tudo isso eu sei; mas não posso

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viver unicamente para vós. Que mais ainda vês em mim? Talvez pecados meus, pelos quais tu estejas pagando?” — “Não; se fosse assim, não me poderias ajudar.” — “Fala mais um pouco!” — “Não esqueças que eu sou apenas alma.” E me olhava com tanta bonda­de que fiquei toda contente. No entanto, havia ainda tanta coisa que eu teria gostado de saber. Se eu pudesse dedicar-me totalmente às Almas do Purgatório, com que prazer o faria! Mas as pessoas que me cercam...!

Sou a culpa ainda não resgatada

• 14 de agosto — Isabela me encontrou aqui. Ela aparece tam­bém de dia. Perguntei-lhe: “Por que não ficas em U ...?”— “Fico con­tigo.” — “Ainda por muito tempo?” — “Isso depende de tua miseri­córdia.” — “Deves compreender que preciso ajudar também outras almas. Não posso dar tudo só a ti.” — ‘T ira do teu amor e ajudarás.”— “E com a permissão de Deus que me procuras?” — “Sim.” Estou muito feliz pelo fato de o Bom Deus lembrar-se de mim.

• 23 de agosto — Uma daquelas sombras pode agora aparecer em forma humana. É um velho que está constantemente em movi­mento e me faz pensar, por sua agitação, na sombra de folhagens em caminho cascalhento quando nele bate um sol ofuscante. O ritmo é bem parecido.

• 25 de agosto — O homem estava furioso e se comportava de modo abominável. Durante a oração, ele se acalmou.

• 27 de agosto— Ele começou a falar. Berrou comigo: “Ajuda- me.”— “De boa vontade. Quem és?”— “Sou aculpanão resgatada.”— “O que deves expiar?” — ”Eu era um caluniador.” — “Posso re­parar alguma coisa em teu lugar?” — “Minhas calúnias continuam existindo naquilo que escrevi; por isso, a mentira não morre.” — “Como posso remediar a situação?” — “Sacrificando-te.” Ache­gou-se a mim e com força encostou a cabeça hedionda no meu rosto. Foi um horror, mas não perdi os sentidos. No entanto sofri um verda­deiro calafrio.

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• 28 de agosto — Perguntei-lhe: “Estás um pouco melhor? Percebeste que ofereci a ti a santa comunhão?” — “Sim; desagravas desse modo os pecados feitos com a minha língua.” — “Não podes dizer-me quem és?” — “Meu nome não deve mais ser pronunciado.”— “Onde está enterrado teu corpo?” — “Em Leipzig.” — “Não entendo de que jeito encontraste o caminho que te trouxe a mim.” — “Seguimos o roteiro que nos é indicado.” — “Existem diversos caminhos para as almas?” — “Há sete.” — “Podes falar-me de outras almas?” — “Não.” — “Quem mais está no meu quarto? Vejo duas sombras.” — “Somos solitárias.” — “Isso significa que nem enxergas as outras almas?” — “Sim, é isso.” Ele ficou comigo a noite toda, andando de cá para lá.

• 29 de agosto — Enxerguei-o durante quase todo o dia, pois não deixou de perseguir-me. Perguntei-lhe: “Por que estás sempre comigo? Peço-te que te vás embora quando eu estiver com outras almas. Não te posso ajudar enquanto estiver com elas.” Aí me deu ele um empurrão que quase me derrubou escada abaixo. Disse-lhe: “Não deves fazer chantagem comigo!” — “Onde estão teus sacrifí­cios?” — “Perdoa-me que de novo tenha pensado em mim mesma.” Não me deixou até às sete horas da noite. Refugiei-me na igreja. Aí ele ficou diante de mim, bem calmamente. Perguntei-lhe: “Vês Cristo no Santíssimo Sacramento ou em realidade?” — “O Sacramento é para os vivos; a realidade da visão beatífica começa apenas quando eu estiver puro.”

• 30 de agosto — Ele me atormenta dum modo pavoroso, me dá socos e surras. À minha pergunta, por que me trata desse modo, berrou: “Tu me esqueceste!” — “Mas eu não posso fazer para ti mais do que estou fazendo!” — “Tu deves fazê-lo!” — “Dize-me o que tu queres que eu faça!” — ‘T u não rezas bastante.”— “Sim, infelizmen­te. Mas estou tão cansada, que muitas vezes não sou capaz de fazer mais nada.” Aí se comportou qual homem irritado, deu-me um soco e se foi. Pelas cinco da manhã voltou, berrando: “Levanta-te!” Ele ficou comigo até que fui à igreja. Quando voltei, já estava no meu quarto. Eu lhe disse: “Por favor, agora sai!” Ele me agrediu e me fez

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sofrer tanto que nem o posso descrever. Foi simplesmente demais para mim. Contudo, não quero me queixar, embora sinta um imenso pavor.

• 3 de setembro— Nos últimos dias sofri mais que em toda esta época passada. Foi a luta de uma alma desesperada. Parece que agora tudo terminou. Hoje ele estava todo manso e satisfeito, mas não falou nada.

• 4 de setembro — Ele veio sorrindo. Disse-lhe: “Assim me agradas.” — “Entro na claridade.” — “Não me esqueças!” — “Os vivos na terra pensam e esquecem, os mortos não podem esquecer o que o amor lhes deu.” E desapareceu. No firr aquelas palavras consoladoras. Quem terá sido? Tenho-lhe feito muitas perguntas, sem receber resposta. Meus familiares se riem de mim, pois escu­tam minha voz quando falo com as almas. Digo-lhes que é um sinal de que estou caducando.

Um dominicano

• 5 de setembro — As outras sombras começam a se dissolver. Veio um dominicano. O rosto irreconhecível, apenas um pedaço cinzento. E bastante calmo, mas murmura palavras ininteligíveis; parece que é latim o que está falando.

• 6 de setembro — Ficou comigo a noite toda. Eu estava com tanto sono que perdi o que é o mais santo, a santa comunhão. Preocupo-me por isso, não me mortifico mais; meu espírito tornou- se indolente.

• 10 de setembro — Nada de novo. O dominicano não me amedronta e quase não me deixa. • Indo à serraria, encontrei uma senhora que não tinha nada de especial que lembrasse ser ela uma pobre alma. Depois de ter dado uns passos, escutei-a implorando: “Misericórdia!” Voltei-me, e só então percebi que eu estava em presença de uma Alma do Purgatório. Elas têm os olhos diferentes dos nossos. Havia trabalhadores bem perto de mim, ocupados no campo; por isso falei baixinho: “O que posso fazer por ti?” — “Rezar muito.”

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— Observando-a melhor, vi que ela é a mãe de Rosa B ... Perguntei- lhe: “És tu a Teresa B. . — “Sou.” — “Mas tu levaste vida tão boa!” — “Tudo fingimento; só na hora da morte fui sincera.” — “Queres que eu o diga às tuas filhas?” — “Não; és tu quem me pode ajudar.” — “Mas eu devo ajudar com minha pobre oração a tantas almas; aí tu não te aproveitarás muito das minhas rezas.” — “Quando é o amor que dá, o que é pouco fica muito.” E desapareceu.

• 13 de setembro— O dominicano é um padre que eu conhecia bem. É francês. Ficou muito tempo comigo. Quando comecei a rezar, ele me fez acenos.

• 17 de setembro — Ao cair da tarde, eu estava muito triste e chorava. A mão de alguém pousou na minha cabeça. Olhei: era a mão do dominicano. Ele perguntou: “Por que choras?” — “E porque não estou contente comigo mesma.” — “Por que não me dizes tudo?” — “Mas tu me podes ajudar?” — “Eu gostaria de te ajudar.” — “Tenho tanto medo de não me salvar. A vontade de não pecar não basta, e mais que isso não consigo.” — “Se não pecas, não podes perder-te.” — “Mas eu peco; não estás vendo minha alma?!” — “Não. Contudo, o caminho a ti está luminoso; caso contrário não poderíamos vir. Confia, e sê humilde.” — “E para eu te ajudar, o que posso fazer?” — “Mortificar-te!” — Ele ficou ainda longamente comigo. Não tem nada de repugnante. De todas as almas, é ele a primeira que começou a falar sem que eu lhe tivesse feito pergunta.

O que acontece logo depois da morte

• 27 de setembro — Ele ficou comigo por muito tempo. Comecei a falar: “Por favor, dize-me se imediatamente após a morte vemos o Bom Deus.” — “Sim; a alma estremece em adoração e logo imerge na purificação.” — “Não podes dizer mais um pouco?”— “Não! Quanto mais amares a Deus, tanto maior tua felicidade. Procura orientar-te conforme essa realidade.” — “Ainda demora muito para te purificares totalmente?” — “Não.”

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• 29 de setembro — Três vezes tenho visto a alma de uma velhinha diante do altar de Nossa Senhora. Não a conheço. • O dominicano deteve-se comigo longamente. Indaguei: — “Como é que a gente pode salvar-se? Ensina-me, por favor.” — “Crendo firmemente e sendo bem humilde.” — “Posso fazer alguma coisa para que as Almas do Purgatório não me procurem mais? ” — “Não podes.” — “Mas se eu deixasse de rezar por vós?” — “Elas força­riam a tua ajuda.” — “Posso chamar uma alma se eu quisesse saber alguma coisa por intermédio ou a respeito dela?” — “Não tens nenhum poder sobre ela.”(32)

• Io de outubro — Aproxima-se algo de terrível. Parece que é um animal. Sei que também isso vai passar, mas assim mesmo tenho um medo indescritível.

• 3 de outubro — Depois daquele horror, veio o dominicano. Exclamei: “Estou contente que vieste. Senti tanto medo. Sabes, quem esteve comigo?” — “Não sei; cada alma, por si só, percorre seu próprio caminho”. — “Foi um animal. Por que aparecem almas em forma de animais?” — “Tu vês o pecado. Esquece-te de ti mesma e ajuda!” — “O que é que ajuda mais a essa pobre alma?” — “O sacrifício da vontade própria.” — “A santa missa não ajuda?” — “Não; porque essa alma não tem crido nela.” — “Contudo, há outras almas que logo recebem ajuda.” — “Não podes entender o que é a Justiça Divina.” Não tenho medo algum do dominicano; gosto até da visita dele.

• 7 de outubro — Aquele animal horroroso vem agora todas as noites. É um grande macaco, semelhante àquele de tempos atrás. Por que sinto de novo esse horrendo pavor? Não poderei acostu­mar-me nunca a essas aparições?

• 9 de outubro — Infelizmente, o dominicano não vem mais; vem, isso sim, aquele animal hediondo.

(32) Os espíritas afirmam que se pode forçar os espíritos a aparecer. Se nem essa santa princesa, que via as almas em formas diversas e convivia com elas, possuía o poder que os espíritas pretendem ter, como o conseguiriam eles só para satisfazer sua curiosidade? Ou perguntemos mais realisticamente: quem é que aparece nas sessões espíritas?

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• 10 de outubro — Passei uma noite medonha. Talvez essas visitas façam parte da necessária renúncia à minha vontade própria. Quero, pois, referir apenas os fatos, e não quero lastimar-me.

O macaco tem o tamanho de uma porta; enraivece-se qual louco enfurecido. Parece nem escutar a minha oração. Entrou pela janela, o que para mim já tem uma conotação sinistra. Expele seu bafo no meu rosto e bufa qual animal selvagem. Ele quis estrangular-me, mas eu coloquei depressa meu crucifixo de agonizantes no meu pescoço, e aí me deixou.

• 14 de outubro— O macaco vem todos os dias, mais exatamen- te todas as noites. Eu estranho que tenha o couro molhado como se viesse da chuva. Mas estou contente que essa alma apareça em forma de macaco e não de cobra; pois se fosse de cobra, seria demais para mim.

• 17 de outubro— O macaco é insuportável. Seus olhos, quando me fixam, são qual carvões em brasa. Reconheço que me tornei mais corajosa. Há um ano, eu teria perdido os sentidos.

Estando assim, toda miserável, veio o dominicano, e aquele horror de macaco desapareceu. Exclamei: “Por que não vieste mais cedo?” — “Estavas cercada.” — “De quê?” — “Da tortura daquele pobrezinho.” — “Sim, ajuda-me a prestar-lhe auxílio.” — “Ainda não estou liberto; não estou em condições de ajudar alguém.” — “Então dize-me o que posso fazer por ele.” — “Mostra-lhe teu amor.” — “Mas não consigo amá-lo; apenas posso dar-lhe o começozinho do amor; posso mostrar-lhe a minha compaixão.” - “Faze aquilo que é duro para ti.” — “Flagelar-me?” — “Sim.”

• 18 de outubro — O dominicano veio de dia. Comecei: “Dis­seste que ainda não podes ajudar outros. Posso eu libertar-te? E de que modo?” — “Oferece sete vezes a santa comunhão para que eu fique livre.” — “Por que não mo disseste antes?” — “Porque tens dado a comunhão a outros.” — “Como podes sabê-lo?” — “Vi que eles te deixaram de mãos cheias.” — “Mas uma outra alma declarou que ela não podia ver as almas que me procuram. Donde vem que tu podes vê-las?” — “Nós somos todas diferentes umas das outras.”

O macaco esteve comigo a metade da noite, sempre bastante

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agitado, acocorado geralmente num cantinho. De repente, avançou contra mim qual cachorro louco. Gritei-lhe: “Não podes fazer isso comigo.” Caiu no chão, levantou-se de um salto e investiu de novo contra mim. Dei-lhe então um tapa. Ai, meu Deus! Jamais tornarei a fazê-lo! Gritou de dor, e as lágrimas lhe borbulhavam nos olhos selvagens. Escondeu-se choramingando num canto. Quanto me arrependi por ter sido tão cruel para com ele. Fiz o que podia fazer e lhe disse que fizesse a seu bel-prazer o que quisesse; ainda outro dia escrevi que eu jáera mais corajosa. Se tivesse escrito que tinha menos compaixão, teria dito a verdade.

• 19 de outubro— Enquanto eu brincava com Wolfram, veio o dominicano. Pedi-lhe: “Não assustes o menino.” — “Sua inocência me atrai.” O menino estava muito alegre e olhava para o padre com muito prazer. A cena era inverossímil e muito linda e real. Pedi ao padre: “Por favor, deixa-me agora. Estão chegando outras pessoas.”— “Elas não me podem ver.” — “Por que não?” — “Estão em seu corpo humano.” — “E eu também estou. Por que eu te vejo?” — ‘T u és das nossas.” Inclinou-se sobre Wolfram e desapareceu. Por que pertenço eu às almas? Tenho a impressão de que algo de sinistro me envolve.

Sabes quando morrerei?

• 20 de outubro — Este macaco! Ficou comigo quase a noite toda. Seu rosto se toma mais humano, mas suas feições são repelen­tes. Rezei muito corneie; gosta que lhe dê água benta. Eu o tenho visto também na campina que fica dentro da horta. Vi de novo aquelas três mulheres na igreja. Trajam-se como as camponesas de outrora.

• 24 de outubro — Veiò o meu querido dominicano. “Não me podes dizer por que algumas almas, às vezes, me torturam de verdade?” — “Pertencem elas à esfera mais baixa. O pecado ainda as possui. Estão salvas, mas não purificadas.” — “Não estiveste nunca nessa esfera?” — “Não. A graça de Deus me preservou de cair em pecados que precipitam a pobre alma naquelas profundezas.” —

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“Quando foi que morreste? Eu nem sabia que havias morrido.” — ”Faz quatro meses.” — “Por favor, explica-me como posso vê-las sob a forma corpórea, já que as almas são incorpóreas.” — “Pela vontade de Deus, senão tu não nos poderias ver.” — “Mas como é possível que eu sinta de olhos fechados a presença delas?” — “Estamos unidas a ti.” — “Elas não se aborrecem por eu estar alegre, apesar de minha compaixão para com elas?” — “Não; pois estando bem disposta tens nova força para nos ajudar.”

• 24,25,26 de outubro— Noites terríveis com o macaco. Falta quase total de sono. Ele precisa de muita ajuda, parece; bem o compreendo, pois é tão miserável minha pobre oração. • O dominicano veio por poucos instantes apenas. Concordei: ‘T u me vês triste; quase que não posso mais.” — “Não quiseste sacrificar-te?” — “Sim, sem dúvida; no entanto, minha vontade é fraca.” — “Quanto mais pequenina fores, tanto maior a ajuda.” Ele disse mais algumas palavras que não entendi e desapareceu.

• 28 de outubro — Nada de novo; o macaco continua me maltratando.

• 30, 31 de outubro, Io de novembro — Nada de especial. São delicadas as pobres almas, pois sinto-me tão mal, e quando estou doente, me deixam em paz.

• 2 de novembro — Dia de Finados. Veio o dominicano. Cumprimentei-o dizendo: “Hoje temos umdia bonito.”— “O sangue de Cristo flutua torrencialmente.” — “Pensas nas muitas santas missas?” — “Sim; esse sangue nos leva à vida.” — “Também a ti, ainda hoje?” — “Vou bem.” — “Deixarás de vir agora assiduamen­te?” — “Tens razão.” — “Não me podes dizer o que possa me ajudar para que minha alma mude para melhor?” — “O que te dizia em vida: tua alma deve ficar cada dia mais pura pela recepção dos sacramen­tos.” — “É nisso que eu falho. Reza por mim. Sabes quando eu vou morrer?” —- “3 x 9.” — “Não o entendo.” — “Nem podes entendê- lo .” (33). y e j0 o macaco, e meu bom amigo desapareceu. Rezei com

(33) Eugenia von derLeyen morreu em 9 dejaneiro de 1929, data em que ocorre três vezes o número “9”.

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este novo visitante o Dies irae. Ele me olhava de modo tão comovedor que tive de acariciá-lo. Ao tocar nele senti a graxa suja de seu couro.— “Ainda não consegues falar?” A resposta foi um soluço e se encostou em mim. “Eu te ordeno que te levantes e que me digas quem és.” — “O impuro.” — “De bom grado te ajudo. De que precisas?” — “Que te sacrifiques.” — “Percebeste quanto se rezou no dia de hoje?” — “Sim. Devido a essas rezas consigo falar.” — “Por que estás nesse estado?”-— “Não há pecado que eu não tenha cometido.”— “Noentanto, tiveste fé.” — “Até a hora da morte tenho desprezado o mais sublime.”— “E depois?” — “Veio a compreensão e assim escapei do inferno.” — “Queres missas?”— “Delas não tiro proveito pois nelas não acreditava.” — ‘Teu castigo consiste nisso?” — “E um dos meus muitos castigos.” E sumiu pela janela afora. Gostaria tanto de ajudá-lo depressa. É a figura personificada da dor. Sinto dele mais nojo que temor.

• 3 de novembro — Quase o dia todo, o macaco me perseguiu. Foi assim que tive de representar meu papel de alma vivendo em dois mundos. Meu íntimo está comovido até o extremo, mas na superfície estou falando e rindo; meu Deus! como é difícil e quanta força não se exige! No entanto, quando eu já estava a desfalecer, aquela sensação de extrema felicidade me subjugou. Não tocarei mais no assunto, pois temo exagerar. Durante a noite, o macaco voltou; também nos três dias seguintes. Mas nada falou.

• 7 de novembro — O macaco esteve pior do que nunca; quase não posso olhar para ele. Perguntei-lhe: “O que te aconteceu, para te mostrares num estado tão repugnante?” — ‘Terás de conhecer toda a minha vida.” — “Não penses nisso; eu te ajudo assim mesmo.” — “Sa­bes quem sou?” — “Sei; uma alma muito, muito pobre.” — “O que estás vendo em mim?” ■— “Vejo em teus olhos desgraça inominável e vícios. Não quero ouvir o que fizeste.” — “E queres sacrificar-te por mim?” — “Quero, sim.” — “E eu vou ajudar-te”, e deu-me um tapa forte no rosto e sumiu. Não compreendo isso. Quero ajudá-lo, e ele me bate no rosto. Vou perguntar-lhe por que me trata desse modo.

• 8 de novembro — Esteve comigo quase o dia todo. “Por que me bateste outro dia?” — “Quis maltratar-te.” — “Mas se quero ajudar-te e tu me bates, não é isso ingratidão?” — “No estado em que

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me encontro, há só malícia.” — “Mas estás salvo; como podes ser mau?” — “Aquilo está ainda grudado em mim, por acaso não o enxergas?” — “Vejo apenas que és um animal nojento.” Aí achegou- se a mim. Meu Deus! Vi o que é simplesmente indescritível. Seu corpo estava inteiramente como que esburacado, e em cada cavidade se mexiam milhares e milhares de vermes. Tudo nele estava sendo roído por vermes e mais vermes. Acho que nunca em minha vida eu havia visto algo tão nojento. Oh, meu Deus! que eu nunca mais tenha de ver algo tão hediondo!

Pedi ao meu sinistro amigo: “Por favor, vai embora, não o posso suportar. São eles os símbolos de teus pecados pelos quais não pagaste ainda?” — “São. Deus é infinitamente justo; meus pecados bradam ao céu.”(34) — “Estás pensando nos pecados que bradam ao céu, como diz o catecismo?” — “Estou, sim.” — “Coitado! Escuta, na última hora de tua vida te salvaste, e foi a força do arrependimento que te salvou?” — “Sim, foi devido à contrição e ao sacramento.” Ele vinha se aproximando mais e mais e colocou em mim seu braço horroroso. E indescritível quanto sofri com sua presença. Fechei os olhos. Apenas consegui pensar: que vá embora quanto antes. Não rezei nada, e nada ofereci em sacrifício. Aí se vê o que sou: eu só penso em mim mesma. Tanto desamor para com os mais miseráveis! Enfim me soltou. Exclamei: “É preciso fazer isso comigo?” — “Tu és um refrigério para mim.” Dei-lhe muita água benta, e ele se foi. Quando uma tortura dessas termina, a gente experimenta uma sensação de alívio e de libertação; só então estou em condições de me sacrificar por aquelas almas. Parece que essa alma vai me dar ainda muito trabalho. Pensando nisso, sinto-me muito oprimida. Vivo num pavor indescritível, pois os incontáveis vermes provocam em mim um

(34) Os pecados que bradam ao céu são os seguintes: Io homicídio premeditado, voluntário; 2o o pecado homossexual, sodomítico, contra a castidade; 3o opressão de viúvas, pobres e órlaos; 4o não pagar, ou demorar voluntariamente em pagar, o salário devido a operários e empregados.

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terror sem limites. É verdade que digo: tudo como Deus quer, mas no meu íntimo está o desejo de me ver livre dessa tortura.

• 10 a 26 de novembro— Sofro muito, muito. Ele não diz nada. Não vale a pena descrever o que suportei; prefiro nem mais pensar no que aconteceu.

O macaco é Egolf von R ...

• 27 de novembro — Furioso ele me agrediu. Não foi possível defender-me, pois não quis bater nele. Eu sentia os vermes no seu couro. Foi um horror. Enfim me soltou. Exclamei: “Por que voltas a fazer isso? Quero que fales.” Ele gritou: “Estou ardendo!” — “O que posso fazer por ti?” — “Agua santa!” Dei-lhe muita água benta. Como já acontecera, não se via nenhuma gota no chão. Olhou-me cordialmente e começou a chorar. “Por favor, dize-me quem és.” — “Egolf von R ...” — “Então vivias aqui?” — “Aqui vivi, aqui pe­cava.” — “A quem mataste?” — “Matei Susana.” — “Aqui?” — “Não.” — “Mas se foi aqui que pecaste?” — “Aqui cometi outros pecados mortais.” — “Teu arrependimento atual não te alivia a dor e não te aproveita em nada?” — “Não.” — “Não tens ninguém, além de mim, que te ajude?” — “Não.” — “Estiveste neste castelo o tempo todo neste mesmo estado em que te encontras agora?” — “Passei para este estado depois de ter saído da escuridão.” — “O que entendes por escuridão?” — “A distância de Deus.” — “Então estás agora mais perto de Deus?” — “Sim, estou.” — “Dize-me ainda: o que te aconteceu logo depois da morte?” — “Primeiro, o juízo; depois, o castigo.” — “Estiveste diante do Bom Deus?” — “Adorei e afundei na escuridão.” — “Sabes que te posso ajudar?” — “Sei.” — “De que maneira?” — “Renuncia a qualquer alegria.” (35)

(35) Escreve o diretor espiritual da princesa a respeito dessa frase: “Expliquei à princesa que as almas não têm direito de pedir que ela renuncie a todas as alegrias; elas insistem nisso porque sofrem muito e querem sair do sofrimento o mais depressa possível.

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— “Se eu o fizer, não virás mais na forma de macaco?” — Aí ele me bateu na cabeça e se foi. Renunciar às alegrias não é muito fácil, já que em tudo encontro prazer. Terei, pois, que deixar, por assim dizer, minha própria natureza.

• 28 de novembro — A mão de Egolf parecia estai' tingida de sangue. Perguntei-lhe: “Por que tua mão está sangrando?” — “Por causa do meu pecado.” — “Nunca se soube que mataste Susana?” — “Não. Mas a ti devo confessá-lo.” — “Quem foi Susana?” — “Uma menina inocente.” — “Não quero saber dos pecados que cometeste.” Aí explodiu em uivos, pegou meu braço, agitou-o violentamente e disse uma palavra que nãocompreendi. Entendi apenas “domítico.”^ 6) Deve ter-lhe custado muito fazer essa confissão, pois caiu no chão e gemia terrivelmente. Depois de lhe ter dado água benta, acalmou- se e ficou comigo até a madrugada. Já que o sono para mim é um prazer, quis ele forçar-me a renunciar ao descanso, pois tenho-lhe dado bem pouco até agora.

• 18 de dezembro— Nada mais escrevi porque não foi possível colóquio algum. O macaco se transformou em fera furiosa e se tenho feito por ele o que foi possível, isto se deu provavelmente devido à minha covardia e não ao meu pouco amor. Passei por momentos horrorosos, como, por exemplo, quando ele sacudia o couro, e os vermes caíam na minha cama. Pensava desfalecer de nojo. Quando saiu, também os vermes desapareceram, o que, aliás, não foi grande consolo para mim. Hoje, enfim, apareceu em forma humana, como jovem. Mas não falou. Graças a Deus que alcançou essa etapa de sua purificação.

• 21 de dezembro— Esteve longamente comigo. Perguntei-lhe: “Por que me torturaste tanto?” — “Para aumentar teu sacrifício.” — “O pior para ti passou?” — “Estou na esfera da luz.” — “Chegarás então à visão de Deus?” — “Só quando eu estiver totalmente puro.”— “Como posso apressar tua purificação total?” — “Quando me

(36) Trata-sc do pecado sodomítico, que é considerado natural até por certos padres e teólogos católicos. Quanto não sofrerão na eternidade por ensinarem isso!

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Castelo de Unterdiesen. Foto aérea. Do castelo, vê-se bem o vale do rio Lech.

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R elicário em fo rm a de ostensorio, com a partícu la da Santa Cruz, m enci­onada frequen tem en te no diário da princesa.

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E m cim a: arm ário em butido na parede; em cim a do arm ário, que se encontra na grande escadaria do castelo de Waal, um ex-voto do dono do castelo durante a p es te de 1672. N ossa Senhora estende seu m anto sobre o caste lo e freguesia . U ma cópia da im agem encontra-se no castelo de U nterdiesen. E m b a i­xo: quarto de dorm ir de Eugenia. A fo to é de fevere iro de 1979. F ogão e le ito estão no m esm o lugar, com o no tem po em que ela vivía. Foto: Christiana.

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Príncipe Jo lw nn VI von d er L ey en, Arceb ispo de Trier. P intura a ó leo no castelo de Waal. Foto Christiana.

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deres aquilo de que mais gostas!” —- “A santa comunhão?” — “Sim.” — “Mas isso não está errado? Eu gostaria de ajudar-te na tua purificação.” — ‘T u me ajudas, pois conheces e te lembras do meu castigo: eu não havia crido naquilo que é o mais sublime.”

• 23 de dezembro — Ficou comigo por muito tempo. Já não preciso ter medo dele. Apenas seu olhar é penetrante demais, e bastante inquieto. Indaguei: “Gostaria de saber como é possível que as almas apareçam sob diversas formas.” — “E pela permissão de Deus. Não podes ver a alma.” — “Se estavas há tempo comigo, por que não pudeste mostrar-te mais cedo?” —■ “Não era capaz; o caminho que me conduz a ti é longo.” — “Como me encontraste?”— “Es tu que nos procuras e encontras.” — “De modo algum. Eu me sinto infeliz quando as almas chegam.” — “Tua alma não fala desse modo.”

• 24 de dezembro— Esteve muitas vezes comigo de dia; rezava com gosto, mas não falou.

• 25 de dezembro— Esteve comigo a metade da noite. Pergun- tei-lhe: “Sabes que é Natal?” —■ “Eu posso adorar.” — “Não vens mais?” — “Não.” — “Então devo confessar que menti para ti quan­do dizia que me sinto infeliz com as visitas das almas. E antes o tre­mendo pavor que abafa meu amor. É verdade que eu quero ajudar.”— “Para ti já não existe o querer, tu deves.” Sorriu para mim e desapareceu. Mal se retirara e a velha trapeira j á estava diante de mim num estado lamentável.

Gisela

• 17 de janeiro de 1926 —-A Z ... não vem mais. Aparece uma figura em forma de bruma; muito calma; não provoca medo, consigo até conciliar o sono em sua presença.

• 20 de janeiro — Aquela aparição parece mulher, mas total­mente diversa de tudo quanto já tenho visto. É uma figura nebulosa que não toca o chão. O rosto é gracioso e um tanto jovem. Ela movimenta-se pelo quarto, pairando com um donaire indescritível.

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• 27 de janeiro— Minha graciosa visita vem todas as noites, no entanto não consigo tirar dela palavra alguma. Ela me acompanhou também a D .. .,(37) distante de nossa casa uma hora de viagem. Lá aconteceu, em presença dela, algo de estranho. De repente, deu-se no meu quarto um barulho como se balaios de vidro fossem jogados ao chão. Foi um tinido apavorante e, em seguida, meu quarto estava em chamas. Um medo horrendo apoderou-se de mim, pois eu estava convencida de ter irrompido um incêndio. Corri ao corredor— e tudo em paz! Voltei ao meu quarto, e nada de especial. Perguntei à minha gentil visitante o que havia acontecido. Ela apontou para o prado em frente à minha janela, mas não vi nada de importante.

• Io de fevereiro— Finalmente a aparição decide aproximar-se de mim. Ela me disse algo com a voz bem bai xinha, mas nada entendi.

• 3 de fevereiro — Agora até me alegro por rever minha visitante. Apostrofei-a: “Por obséquio, dize-me quem és!” — “Gisela.” — “Por que és diferente das outras almas?” — “Em breve posso adorar.” — “Mas então, por que vens a mim pedir-me ajuda?”— “Devo obedecer à voz.” — “A que voz?” — “Aquela que reza por mim.” — “Nunca rezei por ti, e não te conheço.” — “Dize-lhe que me salvei; eu o fiz com minha mão, não de livre vontade.” (Lembrei-me poder tratar-se de Gisela S ... por quem a I. L. constantemente reza.)— “Deste a morte a ti mesma?” — “Sim, suicidei-me; eu enlouque- cera.”(38) — “Vai tu então àquela voz!” — “Não a encontro.” — “O que lhe devo dizer?” — “Que eu rezo por ela e lhe agradeço.”

• 6 de fevereiro— Gisela voltou.— “Para dar-te prazer.” — “Eu te agradeço; podes dizer-me o que significa aquela barulheira horrível e acompanhada de fogo?” — “Prepara-te e sê valente.” — “Então aquele horror ainda vem?” — “Virá, sim; pertencerá à tua missão.”

(37) D. fica cerca de uma hora distante da casa da vidente.

(38) Gisela S. falecera mais ou menos dois anos antes dessa aparição. Corria o boato de ter sido assassinada. Sua amiga, a Irmã L., rezava muito por ela. (Esclarecimento do pároco Wieser.)

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— “Não podes rezar por mim para que aquilo não me sobrevenha?”— “Falas de maneira humana.” — “Sim, estás vendo? Continuo sendo a mesma de sempre; dize-me por favor o que está errado em mim.” — “Háclaridade em torno de ti; cuida que jamais se transforme em trevas.” — “Não me digas o que de bom vês em mim, mas sê rigorosa para comigo.” — “Sacrifica mais e mais tua livre vontade, e ajudarás a ti e às almas.” Ela colocou-me as mãos na cabeça, e desapareceu. Sua visita me tranquilizou; acho que Gisela me deixou definitivamente.

Uma religiosa em forma de cobra

• 8 de fevereiro — Furiosamente, o horror me assalta. Nunca ouvi barulho semelhante a esse: tempestade, rugido, derrubada do mobiliário, e tudo aquilo de que a gente não gosta. Quero corajosa­mente enfrentar tudo; escuto o horror, mas não vejo nada.

• 9 de fevereiro — No meu quarto turbilhonava uma ventania como se estivessem abertas todas as portas e janelas. Já se apodera de mim um pavor infame, que aumenta implacavelmente. Como posso ajudar as almas se eu mesma preciso de ajuda!

• 12 de fevereiro — A situação foi tão horrenda que comecei a suar por todos os poros. Sentia-me totalmente abandonada na minha grande miséria. Ao meu redor desencadeava-se um poder invisível. Até minha cama estava sendo levantada. Fugi para um outro quarto. Em tomo de mim rugia um furacão medonho. Abri a janela; lá fora estava tudo em paz.

• 13,14,15 de fevereiro — Todos os dias acontecia o mesmo: barulho e pavor.

• 18 de fevereiro— Foi tão horrível que adoeci de pavor. Tenho rezado constantemente o Salmo 90, pois adapta-se à minha situação. Também, para mim, as forças ocultas andam às furtadelas pela escuridão; é só a confiança em Deus que me sustenta nesta situação.

• 19 de fevereiro— No centro do fogo acaba de formar-se uma indefinível massa escura, da qual sai o medonho estrépito. As chamas

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não espalham calor. Enfraqueceu a tempestade inicial. Gastei muita água benta.

Para falar com toda a franqueza, tenho que admitir que me encontro atualmente num estado espiritual lamentável. Posso dar às almas só bem pouco. Pois devido à minha doença e fraqueza, a alma passa muita fome. Compreendo isso com clareza sempre mais nítida. Quando não posso unir-me sacramentalmente a Jesus, perco mais e mais as forças.

• 21 de fevereiro — E aconteceu o pior que me poderia acontecer. Aquela massa escura é uma cobra. Quando dei por isso, fiquei como que paralisada de pavor. Tenho um medo inominável, pois uma simples cobra-cega me faz tremer de medo. Essa cobra me parece descomunal; talvez tenha uns três metros de comprimento. Já estou tremendo de medo, imaginando as noites que passarei. Ainda não estou em condições de fazer sacrifícios. As chamas desaparece­ram, como também o barulho. Por enquanto, a cobra está quieta. Meus familiares dão-me um cordial “boa-noite”, e eu tenho que enfrentar a maior tortura... Pois bem, acabo de lamentar-me; mas não adianta. O Bom Deus só permite o quanto a gente é capaz de suportar. Talvez estes apontamentos sejam para mim qual sedativo que me acalmem e me ajudem a sofrer (39X

• 23 de fevereiro — Só depois da uma da noite a cobra veio. Com um surdo baque caiu no chão. Estava toda estendida à minha frente; eu enganara-me quanto ao seu comprimento, pois mede um pouco mais de 2 m. Tirei a medida pelo comprimento da parede junto à qual ficara— aliás bastante quieta. Eu disse à pobre alma em forma de serpente que farei tudo por ela, mas que ela não se aproxime muito de mim, que por favor não faça isso. Pelas três da madrugada

(39) Sebastião Wieser, seu diretor espiritual, lhe havia dado o conselho de anotar o que achasse conveniente, num diário. Ela não podia comunicar-se a respeito de suas experi­ências místicas com seus familiares. Seu diretor achava que seria para ela de proveito espiritual fazer os apontamentos que, hoje, possuímos. Sabemos que até Goethe procu­rava libertar-se de suas idéias, lançando-as no papel.

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entrou, junto ao meu leito, na parede, e passou para o quarto de W., que deu um grito estridente. Quando me informei de manhã com a governanta como o menino passara a noite, ela disse: “Nem sei o que a criança teve. Pelas três, ela acordou e deu um grito como se tivesse medo de alguma coisa.” Sinto muito que o menino sofra porque se encontra em minha companhia.

• 24 de fevereiro - Aquele pobre animal tem olhos chamejantes, em que arde muita inquietação. É uma sensação muito esquisita rezar com uma alma que não se percebe e que aceitou a forma que mais lhe convém: um coipo de cobra. Muni-me da relíquia da Santa Cruz, que me dá a sensação de uma certa proteção. A cobra havia-se enroscado, e não sei se isso me acalmou. Em todo caso, não me deitei, por precaução. Procurei evitai' até os pensamentos de situações que possam ocorrer. Proibi-a de entrar no quarto do pequeno; se ela não me obedecesse, não mais poderia contai' com minha ajuda. Exerço, pois, sobre ela um certo poder, fato que me faz bem. Ela arrastou-se ao corredor.

• 25 de fevereiro— Examinei-a bem. E de um cinzento-escuro, com listras brancas. Acho totalmente impossível que a cobra seja apenas um produto da minha fantasia e não tenha um corpo real. Os que afirmam isso nunca passaram por situações semelhantes àquelas que eu tenho de enfrentar. Toquei-a com a minha bengala, e ela se esticou imediatamente. Foi terrível; fi-lo apenas para ter a prova do que acabo de escrever.

• 26 de fevereiro — Depois de ter rezado com ela, achegou-se a mim. Fiquei horrorizada. Ela parecia gostar da situação, mas eu pulei na cadeira, onde fiquei em pé. Minhas perguntas não receberam resposta.

• 2 de março— Meu orgulho foi castigado: não tenho poder sobre ela. Quando lhe disse para ficar quieta, arrastou-se até perto de mim, e silvou de uma forma que me deixou tremendamente apavorada.

• 3 de março — Foi um dia abominável. Vi a cobra pendurada numa árvore, diante de minha mesa de trabalho. Saí do quarto, para ver-me livre dela e fiquei algum tempo com meus familiares. Passada

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uma hora, voltei. Ela estava no meu quarto. De dia, seu aspecto ainda é pior, e eu saí correndo, mas ela, de um bote, passou pela porta atrás de mim, e depois, de repente, desapareceu.

Durante a noite aconteceu o pior: ela passou pelo teto e foi descendo, descendo e se aproximando... Mais não sei, pois fiquei fulminada pelo pavor e perdi os sentidos.

• 4 de março — A cobra fala! Eu lhe disse: “Mostra-te enfim do jeito que eras no mundo, pois já não te suporto mais.” — “E culpa tua.” — “É porque estou fazendo por ti pouco sacrifício?” — “Sim.”— “Minha força está chegando ao fim. O pavor que sinto de ti, me consome.” — “Não estás totalmente pura.” — “É verdade, infeliz­mente. Como sabes isso?” — “Em tomo de ti, a claridade não é total.” — “Obrigada! Quero, pois, converter-me.” O que se deu em seguida foi um horror. Ela enroscou-se e deu um bote contra mim. Lembro-me de ainda ter dado um grito; aí ela sumiu. Mas durante o dia todo, o susto permaneceu em todos os meus membros.

• 5 de março — Fui receber os santos sacramentos. Entrei em casa e quando quis começar meu trabalho de costura, não consegui levantá-lo da mesa; estava preso, não sabia por quê. Não pensei em algo de sobrenatural, mas achei que alguém, por brincadeira, queria mexer comigo. De repente, vi, numa pálida mão, uma aliança como aquelas que as freiras costumam usar. Era essa mão que segurava meu trabalho de costura. Aos poucos, aquela neblina começava a mexer-se, mas era só a mão que tinha forma humana. Perguntei: “Es tu aquela cobra?”— “Sou.” — “E quem és?” — “Tu me conhecias e me desprezavas.” — “Dize-me teu nome!” — “Tu me reconhece­rás. Agora ajuda-me.” Rezei, pois, um pouco com ela. De súbito, eu mesma fiquei como que envolvida em neblina, e ela disse baixinho: “Tu odiavas minha mentira.” Não tenho idéia de quem possa ser essa pessoa. No entanto, agora eu sou a alma redimida; a cobra já não aparece. Sou tão grata ao Bom Deus que me libertou daquele horror.

• 6 de março — A pobre alma ficou comigo por muito tempo. Que espetáculo! Um nevoeiro do qual saem duas mãos! Tudo tão pacato! Cheguei até a adormecer na sua presença. Da parte dela não havia reação alguma.

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• 8 de março — A neblina se condensa tomando a forma de uma mulher. Nao posso fazer idéia de quem se possa tratar, e não consigo lembrar-me de ter desprezado alguém.

A forma de cobra, imagem da vida

• 9 de março— Ficou comigo por longo tempo, e muito comigo rezou. Quantapaz! Jánãoestou em companhia de um réptil hediondo, e assim estou em condições de ajudá-la melhor.

• 10 de março— Elaé uma religiosa; j á dá para reconhecer o véu, mas ainda não se vê o rosto. — “Dize-me enfim quem és.” — ”Uma alma sedenta.” — “Por que vieste em forma de cobra?” — “Não estava em condições de mostrar-me de outra maneira.” — “Por que apareceste de modo tão horrível?” — “Foi a imagem de minha vida.”— “Foste religiosa?” — “Fui.” — “Por que não pedes ajuda às tuas irmãs?” -— “Estive com elas, mas não enxergam.” — “E verdade que te conheci?” — ‘T u desprezaste meu pecado.” E sumiu. Não sei quem possa ser.

• 11 de março — De dia claro, o pároco W. esteve comigo; era exatamente como quando vivo. Perguntei-lhe: “Como vai o sr.? Que prazer poder vê-lo!” — “Purifiquei-me pelo sofrimento. Estou salvo. Agora eu sei que as almas te podem procurar. Aproveita o carisma que tens. Quem tudo dá, muito receberá.”

Essa aparição me alegra por dois motivos: Io) porque ele, que era tão bom, está passando bem; 2o) porque ele não queria acreditar na história da religiosa, com que começam estes apontamentos^40). Foi este o terceiro caso em que almas, depois da morte, me aparecem; em vida não acreditaram nessa possibilidade. F. S. eK. T. me procuraram como agora o pároco W. A minha satisfação não vem do orgulho mas da necessidade que sinto de saber que estou no caminho certo, pois essas almas não precisam vir a mim. Muita coisa que escrevo parece

(40) Compare-se com a primeira visão.

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talvez nascer do orgulho e por isso gostaria de omiti-lo. Contudo, se eu não escrevesse essas coisas, minhas anotações pecariam contra a veracidade.

• 17 de março — Em Munique, fui logo cumprimentada pela religiosa; por conseguinte, adeus, minhas férias! Apareceram ainda três sombras e um homem idoso.

• 19 de março— Ela ficou a noite toda comigo. Era de fato Maria R ..., religiosa francesa de Pie. Morreu, faz cinco anos, em Marselha. Perguntei-lhe: “Por que não te mostras em teu convento?” — “Estou lá muitas vezes, mas não me enxergam.” — “Podes explicar-me porque eu te vejo e elas, que são tão piedosas, não te percebem?” — “O espírito delas ainda está preso; tu consegues libertar-te.” — “Libertar-me de quê?” — “De ti mesma.” — “Por que vieste em forma de cobra?” — “Era a figura de minha vida: juramentos rom­pidos, pois tudo em meu comportamento era mentira e fingimento.”— “E assim mesmo te salvaste para a eternidade?” — “Antes de morrer, recebi dignamente os santos sacramentos.” — “O que posso fazer ainda por ti?” — “Rezar comigo e te flagelar; então virá para mim a claridade.”

• 25 de março — Ela tem vindo toda noite, mas sem responder­ás minhas perguntas. Está ficando sempre mais nítida, igual a seu aspecto em vida, apenas mais triste.

• 30 de março— Comecei a conversar com ela: “Queres que eu escreva a teu respeito para Pie?” — “Não, elas rezam por mim.” — “Qual é teu sofrimento maior?” — “O anseio insatisfeito.” — “Coitada! Sinto muito que tenha sido contigo tão pouco amável; quero repará-lo agora mostrando-te meu amor.” — ‘T u não me julgaste pela minha aparência, mas conforme eu era de verdade.” — “Já que tenho sido tão severa para contigo, trata-me também a mim como o mereço e dize-me o que não te agrada em mim.” — ‘T u ainda não entendeste qual a tua vocação.” — “E qual é?” — “A mi­sericórdia.” — “É verdade, sou tão fraca e egoísta; uma criatura tão miserável. Fala mais um pouco!” — “Reflete, entra no teu interior, e

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verás.” — “Não entendo.” — “Com tua vontade estarás em condi­ções de penetrar a neblina.” — “Não quero senão aquilo que quer o Bom Deus. Como saberei que teu conselho é bom?” — “Vês o teu Anjo da Guarda?” — “Não. E tu o vês?” — “Sim, ele está ao teu lado.” Isso me alegra muito. Mas eu nem gostaria de vê-lo. Não me convém coisa sobrenatural em demasia, pois aumenta sempre mais o que devo ver. • Em A ... vi três mulheres, e quatro vultos nebulosos. O jejum me liberta muito, embora seja um sacrifício miserável da minha parte. Continuo sendo muito covarde.

Um sinal

• 21 de março — Ao entrar na igreja em A ..., duas senhoras desconhecidas vieram ao meu encontro. — “Quem sois vós?”, perguntei-lhes. — “As esquecidas!” Sumiram. Estava sentada no meu quarto. De supetão, ao meu redor, flutuavam nevoeiros, mas pela janela entrava o sol. Disse: “Se vós sois Almas do Purgatório, dai-me um sinal.” No mesmo instante caiu um quadro da parede e os nevoeiros sumiram. Entrei no jardim. Veio ao meu encontro um cavaleiro, de trajes modernos, montado num alazão, e antes de passar perto de mim mudou de rumo, entrando no mato. Um cachorro, que estava perto de mim, soltou latidos. Para um único dia, não foi pouco!

• Io de abril — Eu me achava sozinha no vagão. Entrou a religiosa. — “Então! Encontras-me em qualquer lugar que seja?” — “Estou sempre contigo!” — “E como se explica que não te vejo constantemente?” — “E porque teu fluido muda.” — “O que vem a ser isso?” — “Tu não o entendes.” — “Quantas vezes ainda me visitarás?” — “Até cantares aleluia ,”(41)— “Então até depois de amanhã?” — “Sim.” — “Por favor, fala-me um pouco do Além.” —

(41) Todos os pronunciamentos religiosos “inteligentes” se fazem de modo humano. O intelecto compreende apenas o mundo de que se ocupa, e nada mais. A religiosa aceita o modo desentirdaalm a,com oClaudelo formulou na históriado prefácio. A religiosa canta o que a princesa não pode entender enquanto viver neste mundo.

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‘ ‘Tu não entenderias absolutamente nada, é a infinidade da imensidão.” Ela começou a cantar. Não compreendi nada. Parece que as palavras eram em latim. E foi assim que chegamos a Munique.

Na sexta-feira santa nada vi, nada escutei. No sábado de Aleluia vi apenas duas sombras. O domingo de Páscoa foi belo demais. Nunca o esquecerei. Ao Vidi aquam, ela esteve diante de mim, nos degraus do altar.

Meu Deus, que brilho, que brilho! E pensar que há um mês apenas, sua alma aparecia em forma de cobra! — Senhor, agradeço- vos! Fiz o propósito de suportar tudo pacientemente e não mais escrever sobre essas coisas. Temo que surja em minhas anotações algo de presunção. — Sr. Padre, entrego tudo, seja o que for, ao critério de Vossa Reverendíssima.

Um conhecido fala do abismo

• 24 de abril— Meu propósito de não mais escrever sobre visitas do Além, foi de curta duração. Não dá; é como se eu perdesse um apoio necessário se deixasse de fazer estas anotações. Há quinze dias que me procura um homem em estado miserável. A situação é difícil de suportar. Não o conheço.

• 27 de abril — Ele está muito agitado e chora.• 30 de abril — Veio de dia, correndo ao meu quarto como se

estivesse sendo perseguido. Tinha cabeça e mãos ensangtientados. Perguntei-lhe: “Como posso ajudar-te?” — “Dá-me tua mão.” Eno­jada dei-lhe a mão, convencida de que ela também ficaria ensangiien- tada. Nada disso aconteceu. Senti apenas, ao apertá-la, seu grande calor. Perguntei-lhe: “Como pode este gesto ajudar-te?” — ‘T u me dás refrigério.” — “Quem és?” — “Deves conhecer-me.” — “Não te conheço.” — “Estou enterrado no abismo.” — ‘T ua alma ou teu corpo?” — “Meu invólucro, meu corpo.” —■ “Como te chamas?” — ”Aloísio.” Não tenho idéia de quem se trata.

• Io de maio— Voltou, e de dia. Vi nitidamente que sua cabeça ha­via sido esmagada.— “Por que estás todo ensangiientado?” — “Porque

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ninguém enxuga o sangue.” — “Queres que eu enxugue a tua cabeça?” — “Não entendes o que estou dizendo.” — “Falas em figuras. O sangue significa dor?” — “Sim; estou esquecido no abismo.” E saiu chorando.

• 3 de maio— Quando entrei no quarto, segurou ele, por dentro, o trinco. É interessante; com tais coisinhas me assusto mais que com a própria aparição. Disse-lhe:— “Escuta, por que mencionas sempre o abismo?” — “Porque me encontro nele.” — “Referes-te a um castigo?” — “Não.” — “Não me podes dizer um pouco mais?” — “Não.” De repente, deu um salto como se quisesse agredir-me. Disse: “Fica quieto e dize o que pretendes.” — “Tu deves conhecer-me!” Mas não o conheço. Pronto! Que posso fazer!

• 3 e 4 de maio — Esteve comigo várias vezes, mas sem falar.• 5 de maio— Veio-me a idéia de que ele seja Aloísio Z ...; este

esteve com ..., em 1879. Foi um grande alpinista e morreu nos Alpes ao escalar o Tõdi (3 614 m). Pena, que justamente hoje não me veio visitai'.

• 6 de maio — De fato, é como eu pensava. Perguntei-lhe: “És tu o Aloísio Z ..., que morreu nos Alpes?” — “Tu me libertas!” — “Como pode isso ajudar-te, esse simples fato de eu te conhecer?” — “Então me ajudarás mais!” — “Não, isso não faz diferença. Faço o que posso. Encontram-se ainda os teus ossos no abismo?” — ”Sim.”— “Mas isso não prejudica tua alma! Ela está salva.” — “Sim, está (42\ Mas ainda no abismo. Das profundezas clamo a vós, Senhor.” — ‘Tens ainda muita penitência para fazer?” — “Toda a minha vida carecia de sentido. Quanto sou pobre! Reza comigo!” Assim o fiz, e longamente. Nem eu entendo como sou capaz de rezar desse jeito. Deixo de ser totalmente o “eu” dissipado. Ele acalmou-se de todo e meolhavacommuitagratidão. Perguntei-lhe: “Sentes algum alívio?”— “Sinto.” — “Por que não rezas tu também?” — “A alma sente-se

(42) Esporte e turismo não são a finalidade e o sentido da vida. Antes, esvaziam e empobrecem a alma. Poucos se aproveitam das festas do Senhor, pois se entregam às futilidades do dia-a-dia e vivem desligados do Criador.

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desalentada quando chega a conhecer a Majestade Divina.” — “Não podes descrevê-la melhor para mim?” — “Não. O anseio devorador de revê-la é a nossa tortura.” — “Estás junto com outras almas?” — “Estou; contudo, cada alma está só.” — “E como me encontraste?”— “Tu estavas no meu caminho.” — “De que modo posso ajudar-te melhor?” — “Quando te mortificas e se não cometeres pecado.” — “Exiges muito de mim. Posso e quero mortificar-me e gostaria de viver sem cometer pecado, mas não o consigo. Infelizmente continuo vivendo no corpo e estou sendo exposta a tantas situações perigosas.” — “Quanto mais pura te tornares, tanto mais nos poderás ajudar.” — “Como percebes isso?” — “Não sofremos em tuapresença.”— “Mas então, que procurem as pessoas perfeitas!” — “E-nos indicado o caminho que devemos tomar.” — “De que esfera podem as almas vir a mim?” — “Das inferiores.” — “E depois?” — Ele não respondeu, mas demorou ainda comigo por muito tempo.

• 7 de maio — Ele veio quando estávamos tomando o café da manhã e foi andando entre mim e . ..; era quase impossível que eu me comportasse normalmente. Consegui, enfim, retirar-me; quase no mesmo instante, estava ele comigo. Disse-lhe: “Por favor, não me apareças quando me encontro com outras pessoas.” — “Não vejo outros, só enxergo a ti.” — “Ainda conheces os quartos em que estiveste tantas vezes?” — “Sim.” — Achegou-se a mim e colocou as mãos nos meus ombros. Quando ele ainda vivia, já me era muito antipático; agora, porém, minha antipatia para com ele era ainda maior. Por isso, com toda a energia falei: “Deixa-me em paz. Não quero que me toques.” — “Agora estás muito pura.” — “Percebes que tomei a santa comunhão?” — “É isso que me atrai.” Por longo tempo rezei com ele. Via-se que ficara mais feliz. Todas estas anotações, eu as fiz a contragosto.

• 9 de maio — A. Z. ficou muito tempo comigo; infelizmente, estava muito encostadiço e soluçava demais. Perguntei-lhe: “Por que estás hoje tão triste? Seu estado não está melhor?”— “Éque vejo tudo com tanta clareza e nitidez.” — “Mas o que estás vendo?” — “Minha vida perdida!” — “Adianta algumacoisa se agora te arrependes?” — “E tarde demais!” — “Tiveste estes sentimentos logo depois da

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morte?” — “Não.” — “Podes dizer-me como consegues mostrar-te do mesmo jeito como eras em vida?” — “Pela vontade.”

• 10 de maio — Está chegando algo de novo; tenho medo.• 13 de maio — Z ... aparece todo nervoso. “Quando ficarás

calmo?” — ‘T u estás te dividindo.” — “Mas então j á estás perceben­do que uma outra alma me procura?” — “Sim.” — “Não podes expulsá-la?” — “Não.” — “O que queres?” — “Dá-me tudo; então me libertas.” — “Está bem; não quero nem pensar na alma que se anuncia.” Sumiu. Não é tão fácil cumprir o que prometi. Quero tentar suprimir os pensamentos que me torturam. Não posso satisfazer duas almas ao mesmo tempo. Tenho algo a confessar. Senti-me tão infeliz e tão só, que chorei qual criancinha. Continuo tendo pouca vontade para fazer grandes sacrifícios.

• 15 de maio — Cumprimentei-o: “Estás satisfeito?” — “Sim, finalmente: a paz!” — “Ela te sobrevêm?” — “Sim, vou ao encontro do brilho da luz.” Neste dia ele veio três vezes, cada vez mais alegre. Parece que foi a despedida.

• 16 de maio — Acordei com um barulhão tremendo; havia um verdadeiro furacão no meu quarto. Levantei-me, lá fora nem sombra de aragem. De súbito, rolou pelo meu quarto uma bem grande bola ou um informe barril, sei lá; estava assustada demais para verificar. Em seguida me chamaram pelo meu nome; escutei-o claramente. Fiquei muito confusa. Depois, de supetão, tudo calmo, e até consegui cair numa sonequinha.

• 17 de maio— Algo de parecido como no dia anterior, mas não com tamanha violência. • No jardim, duas senhoras vieram ao meu encontro. De repente, desapareceram.

Eleonora

• 25 de maio— Em H ... ,(43) por ocasião de uma visita. Até aqui, distante de Waal um dia de viagem, ela me encontrou. Está se

(43) H. permaneceu um dia inteiro afastado da casa da vidente.

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transformando em figura humana, mas hedionda; lembra a cabeça da personagem mitológica chamada Medusa.

• 27 de maio — Eu estava com ...; de repente, alguém me pega, por trás, pelos ombros, e me sacode com força. As pessoas com quem estava, viram o que se passava comigo, e alguém me perguntou: “Estás com frio?” De fato, eu estava quase suando frio, de medo. Aquela alma aparecera em forma de mulher repelente e hedionda.

• 29 de maio — No mato, vindo ao meu encontro, um vulto pairando no ar.

• 2 de junho — Aquele monstro de mulher esteve comigo constantemente. Mas nada de especial a mencionar. • O vulto, pairando no ar, que eu havia visto no sábado, aproximou-se de mim; estava como que envolto numa clara nuvem. Sobreveio-me uma sensação estranha, não de medo, antes de paz e felicidade. Ao mesmo tempo, eu me vi a mim mesma, e tudo parecia mau em mim. Vi toda a minha miséria numa luz totalmente nova. Acho que pela primeira vez senti um autêntico arrependimento. Eu me achava no mato, mas não via mais árvores; estava como que cercada por alva nuvem e liberta do corpo; por isso sou incapaz de descrever o que se passava comigo. O que vem a ser aquilo que me envolve e me faz tão feliz? Tenho, entretanto, plena certeza de que isso não tem nada a ver com espíritos. Sinto horror de tudo que cheira a atitudes exaltadas. Ainda assim, receio ser eu mesma exaltada. Eu estava com tanto anseio pela santa comunhão; aqui há pouca oportunidade de recebê-la. Pensando nisso, sobreveio-me aquele estado mencionado.

Não sei com quem eu poderia desabafar-me senão com V. Revma. Talvez me fosse possível fechar-me contra essa invasão do invisível, se V. Revma. assim julgar melhor. Mas para mim seria um sacrifício, pois sinto-me indizivelmente feliz quando me invade aquela força estranha. Mas o que é aquilo? Poderia ser um estratage­ma do demónio que quer apoderar-se de mim? Por que Deus quereria dar-me graças que ele costuma dar só aos bons? Pois eu não sou nada, não tenho nem uma única virtude, apenas arrasto comigo um saco

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cheio de bons propósitos. É isso que me perturba. Pois é! Agora, V. Revma. está a par de tudo. Lançar esses problemas no papel é um calmante.

• 11 de junho— Aquela mulher chega quase toda noite. Mas eu não sei o que fazer com ela. Apenas a oração parece agradar-lhe.

• 17 de junho — Enfim! Ela ciciou seu nome, Eleonora, e é de Passau.

• 22 de junho— Quase que ela me desconcertou antes da santa comunhão. Sacudiu meu braço e ficou, em tamanho gigantesco, ao meu lado. Pensei que todos a vissem. Será que ela sabe ler os pensamentos? Pois mal veio-me a idéia de presenteá-la com a santa comunhão, ela desapareceu. Durante a noite, pousou a cabeça na minha mão; senti até suas sobrancelhas. Apanhei água benta e despejei nela. Ela disse: “Tu és misericordiosa.” — “Foi tão difícil ajudar-te? pois apareceste tantas vezes!” — “Se soubesses quanto pequei!” — “Nem quero sabê-lo. O que me interessa é ajudar-te.”— “Escreve para Passau que...” Impossível entender o que diz. Estou muito triste, mas era apenas um sussurro. Gostaria de saber o que ela quer.

• 24 de junho — “Dize-me o que tenho de escrever a Passau!”— “Que a criança assassinada foi minha.” — “A quem o escreve­rei?” — “G r...” — “Quando mataste a criança?” — “No verão de 1823.” — “Mas Gr... não estará mais viva.” — “Eu a caluniei.” — “Quero ver o que se possa fazer, mas talvez tu já sentirás alívio por tê-lo dito agora.” — “Sou infeliz, infeliz.” E sumiu. Dois dias de descanso total. Que bom que é poder dormir!

• 27 de junho — Apareceu algo de novo, com muito barulho e gemidos; irreconhecível; semelhante a uma grande caixa. Eleonora veio e me deu um beijo. Não gosto dessas coisas. Rezei longamente com ela e, aos poucos, parecia ficar mais contente. Perguntei-lhe: “Posso fazer por ti mais alguma coisa?” — “Não me rejeitar!” — “Mas não te rejeito.” — “Tu me evitas, quando quero tocar em ti.”— “Sim, arrepio-me e nisso não posso ajudar-te.” — “Deixa-me.” Ela encostou-se a mim. Eu o suportei, pois é possível que isso lhe aproveite se ofereço por ela esse sacrifício.

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• 29 de junho — Outra vez, aquele novo horror. I’aivir m ¡ alguém que carregaumfardo, terrivelmente pesado. EvolLou lik-tnn >r;i Disse-lhe: “Vem, dá-me tua mão.” Rindo, veio a mim. “Estás rindo porque vais indo melhor?” — “Superei.” — “Superaste o qué?"“O desamparo.” — “E por qué?” — “Porque tu dás o que preciso.”— “Justamente hoje dei bem pouco, já que me sobrou pouco tempo para rezar por ti.” — “Tua vontade foi sacrificada em meu proveito.”— “Se tudo sabes, então dize-me o que não te agrada em mim.” — “Ainda hesitas em doar-te; não deves guardar nada para ti.” Nesse instante, nova alma apareceu, e Eleonora sumiu. Oh, se eu alcançasse enfim a generosidade que as almas me aconselham, mas estou distante ainda da perfeição.

• 30 de junho — Eleonora veio ao meu encontro na escadaria, sorridente, mostrando com a mão a vastidão lá fora. Talvez tenha sido o desfecho de suas aparições.

• 4 de julho — Ela continua vindo. Não fala mais e se mostra satisfeita e contente. O homem que carrega o fardo pesado, mexe com os nervos da gente. Está muito inquieto e nervoso. Já se distinguem seu rosto e sua barba longa, cinzenta. Não o conheço.

• 7 de julho — De dia, grande barulheira no meu quarto. A porta se abriu de repente; também o baú, mas nada vi. Isso se repetiu quatro vezes.

• 9 de julho — A realidade completou meu sonho: eu sonhava que um homem, carregando um grande fardo, me procurava, e que depositara sua carga em frente ao meu leito. Aí eu acordei e o homem estava à minha frente e deixou cair ao chão algo escuro. Não vi o que era. Aquilo tudo me pareceu tão estranho que me levantei para me convencer se estava de fato acordada. Anoto isso porque nunca me aconteceu nada parecido.

Parece que Eleonora não vem mais. Ouço muito barulho e chamadas, não porém meu nome, apenas escuto: “Ouve-nos! Ajuda- nos!” e, em seguida, um grito lancinante.

• 11 de julho — Tenho-me examinado seriamente, perguntan­do-me se as coisas a que me refiro concordam com a verdade, e posso

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responder com um sincero sim. Tenho o costume de reler reiteradamente meus apontamentos antes de entregá-los e, muitas vezes, jogo ao lixo o que já havia escrito, com medo de ter exagerado. Com aquele assunto particular que se refere a mim, deixo-me levar talvez por um certo sentimentalismo.. S44')

Nicolau

• 20 de julho — Aquela coisa indefinível e a caixa escura se transformaram num homem idoso; veste trajes de séculos passados. Disse-lhe: “Demoraste muito para te mostrares em forma humana.”— “E culpa tua.” — “Deixei de ajudar-te devidamente nos últimos tempos?” — “Tua força está diminuindo.” — “Estou sentindo isso, mas não tenho forças para ajudar a todos como gostaria.” — “Deves libertar-te.” — “Devo ter também amor ao próximo; não posso viver unicamente para as Almas do Purgatório.” — “Deves rezar mais!” Ele desapareceu para voltar depois de duas horas. Eu havia dormido, sim senhor! Estou cansadíssima, já não agíiento. Durante o dia todo não tenho nenhum momento para mim mesma. Disse-lhe: “Escuta, vamos agora rezar juntos se quiseres.” Parecia gostar da proposta e aproximou-se de mim. E idoso, está trajando um gibão castanho e tem corrente de ouro. Perguntei: “Quem és tu?” — “Nicolau.” -— “Por que estás sem paz?” — “Fui um escorchador dos pobres. Eles me amaldiçoaram.” — “Viveste aqui?” — “Não.” — “Onde?” — “Em Mogúncia (= Mainz).” — “És parente meu?” — “Não.” — “Como posso ajudar-te?” — “Por sacrifícios.” — “Que entendes por essa palavra?”— “Oferece tudo quanto é duro a ti, por mim.”— “A minha oração deve sempre estar acompanhada de sacrifício para teres

(44) Trata-se de aparições e visões que não têm nada a ver com as Almas do Purgatório. A vidente entrelaçou na descrição uma autocrítica — endereçada unicamente ao diretor espiritual — e que é qual confissão por carta. Ela escreveu: “Devo preparar-me para a morte e devo fazer enfim um esforço sério...” e depois vem o texto que lembra uma confissão. (O pároco Wieser.)

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proveito dela?” — “Sim.” Ele ficou muito tempo comigo.^45)• 22 de ju lho— Fui a Rottweil; Nicolau já estava lá. Exclamei:

“Como consegues encontrar-me tão depressa?” — “Eu nem te deixo.” — “E por que não te enxergo constantemente?”— “E porque estás dividida.” — “Outras almas me têm dito o mesmo. Ajuda-me mais um pouco!” — “Estás liberta, mas não totalmente.” — “Por que não procuras as pessoas que já se libertaram plenamente?” — “Não as encontro.”

• 23 de julho— Que noite terrível! No meu quarto nunca houve tantas almas como as que lá se achavam na noite passada. Elas me apertavam e gemiam. Houve, porém, uma diferença quanto a outras aparições: eram almas sem forma material. Tudo tão sinistro, que, de medo, chorei. Elas flutuaram em torno de mim durante umas três horas. Ao amanhecer chegou Nicolau. Perguntei-lhe: “Sabes quem esteve comigo?” — “Não, tu me esqueceste.” — “Não te esqueci. No entanto, tive que dar também ajuda às outras almas. Não me deveis torturar tanto!” — “Obedecemos a uma vontade superior.”

Dois dias de descanso total — como faz bem!• 26 de julho — Quatro vultos, e depois Nicolau. Perguntei-lhe:

“Donde vens que durante tanto tempo não achaste ninguém que te ajudasse?” — “Eu me achava ainda na escuridão.” — “E como é que te dirigiste justamente a mim?” — “O caminho nos é indicado.” — “Mas pelo sacrifício da missa recebes ajuda muito mais eficiente, pois nela se reza sempre pelas almas!”— “Os castigos são diferentes; nem todos recebem os frutos; Deus é justo.”

• 28 de julho — De modo quase insuportável fui atormentada por muitos vultos que me cercavam. Aonde quer que me dirigisse, eles me acompanhavam. Receava ter enlouquecido. O pior: a pessoa com quem estivesse não devia perceber a minha situação. Eu estava

(45) A vida religiosa afirma acertadamente que a oração deve estar unida ao sacrifício, e nos adverte que não devemos rezar por egoísmo. Frequentemente, o sentimentalismo religioso leva os devotos por caminhos erradoseembalam-nos em falsa segurança. A Cruz de Cristo nos ensina a verdadeira sabedoria.

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Retrato de Eugenia von d er Leyen: pintura fe ita a óleo p o r John Rieger; G alería Hecht, Tenfen bei St. Galhen. Encarregado pela editora, o p in tor am ericano John R ieger pin tou o retrato conforme urna fo to de Eugênia. E le havia lido as págin as que iam s e r im pressas deste d iário efica ra tão im pressionado que, a pesar de ter machucado a mão, pintou, com o num arroubo extático, durante a noite toda, de 22 a 23 de m arço de 1979, a té a im agem de Eugenia von der Leyen com pletar-se, na tela, em toda a sua autenticidade.

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O papa Pio XII, íntimo amigo das familias Borghese e von der Leyen.

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À? irm ãs espirituais de Eugenia: M aria Ana L indm ayr (em cima, ci esquerda) e a bem -aventurada Crescência Hõss de Kaufbeuren (em cima, à direita). Embaixo: o encontro delas em Munique.

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meio desesperada quando “o Além” me arrebatou, e me deu uma paz total, e não via e não escutava mais nada do mundo material. Resolvi não mais tocar no assunto...

• 29 de julho — Nicolau colocou a mão na minha cabeça e me fitou tão sorridente que eu disse: “Estás contente; podes ir ao Bom Deus?” — “Teu sofrimento me libertou.” — “Percebeste quanto, nestes dias, aturei? Mas eu pensava que com isso não te ajudaria, visto que não o aceitei com alegria.” — ‘T ua vontade estava lesada.”— “Não vens mais?” — “Não.” — “Onde estás enterrado?” — “No rio Neckar.” — “Mas viveste em Mogúncia?” — “Tombei na guerra.” Novamente se aproximou e pôs a mão na minha cabeça. Não foi nada ruim — ou já estarei acostumada a essas situações e não reajo mais?

• 4 de agosto — Nada de novo. Há vultos, porém não me atormentam. Estou percebendo que agora as almas não se conten­tam tão facilmente como tempos atrás. Só posso explicá-lo pelo fato de ter enfraquecido minha capacidade de prestar ajuda.

A S ra . W ...

• 7 de agosto — Costuma vir agora, soluçando, um vulto, cujos movimentos exprimem uma grande dor.

• 11 de agosto — E uma senhora. Sua inquietação cresce mais e mais.

Dou graças a Deus porque posso continuar a tomar apontamen­tos e falar “do Além” . ..

• 15 de agosto — Aquela pobre criatura tristonha é a Sra. D ... W ..., (46) que aparece tal qual em vida; não consigo consolá-la.

• 18 de agosto— É sempre a mesma história: ela não fala, pois não pode falar. Jogou-se no meu leito, chorando amargamente.

(46) O esposo de D. W. já havia aparecido à princesa anteriormente.

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• 20 de agosto — Sete vezes esteve comigo; não me ame­dronta, apenas me causa tristeza.

• 25 de fevereiro de 1927 — Volto, pois, a lançar minhas anotações; todos aqueles bobos escrúpulos se foram. D. W ... veio procurar-me 37 vezes, nunca infundindo terror; estava sempre aco­metida de uma profunda tristeza. Tem falado pouco. Perguntei-lhe:— “Por que tens que sofrer tanto? Sempre foste tão boa!” — “O julgamento de Deus é diferente do modo de pensar dos homens; comigo, tudo era por fora.” — “Mas sofreste! Tantos desgostos, tantas preocupações!” — “Não sofri por amor a Deus.” Foram inúteis meus esforços para levá-la a falar um pouco mais e, de repente, ela deixou de aparecer. (48)

Betty

Agora vem a K ... Betty, que esteve tanto tempo no hospital. Não sabia que ela havia falecido; vim a sabê-lo só mais tarde. Ela chora e geme terrivelmente. Depois de ter-me procurado muitas vezes, levei-a, enfim, a falar. Perguntei-lhe: “De onde vens?” — “Da neblina mais cerrada.” — “E como achaste o caminho até aqui?” — “A claridade me atraiu.” — “Como posso ajudar-te?” — “Mortifíca­te!”— “Estou admirada que medizes isso. Falei contigo muitas vezes sobre isso e tu sempre dizias que tais normas nada valiam.” — “Vejo agora tudo de maneira diferente.” — “Sofres muito?” — “O anseio por Deus me devora.” Um choro lancinante a sacud ia. E desapareceu.

Após algumas noites, ela voltou. Perguntei-lhe: “Ainda não tens vontade própria?” — “Não.” — “Como vieste justamente a mim?”— “Seguimos uma direção superior; a vontade própria morre com o

(47) Tem ocorrido aos próprios santos o temor dc ser enganados por espíritos maus. Um padre aconselhara a princesa a não anotar mais o que lhe acontecia. Perturbada por alguns escrúpulos, deixara então de continuar o diário. Por isso, essa grande lacuna nas anotações.

(48) Tanto a princesa como também o pároco Wieser conheciam bem a sra. W.

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corpo.” — “Podes contar-me um pouco do Além?” — “Não; deves crer.” — “O que devo crer?” — “O que diz a Igreja.” — “Posso fazer alguma coisa para que as almas não mais me procurem?” — “Não; deves permitir que venham.” Ela visitou-me ainda quatro vezes sem me falar; agora não vem mais.

Algo mudou comigo: já não tenho medo, atemorizo-me menos que antigamente, quando alguma coisa aparecia. A gente pode acostumar-se a essas coisas que se dão comigo. Aumenta apenas a terrível fadiga, no entanto, não se trata de cansaço corporal como acontece depois de esforço físico, mas sim de fadiga espiritual, que atinge a própria vontade. Oque outrora não exigia esforço, atualmen- te eu o faço lutando comigo mesma. Quero querer e — às vezes — não o consigo.

Passei oito dias em D ... Nesta semana vi cinco vultos diferentes, dois até dançaram juntos. Como já acontecera anteriormente, um menino viu a aparição. Eu estava brincando com ele. De repente, apareceu à nossa frente uma senhora. O menino riu^49) e disse: “Uma nova titia!” Realmente, ela não nos intimidava.

N ..., o jardineiro

Em G ... encontrei um jardineiro, falecido há muito tempo. Aproximou-se devagarinho e quando estava na minha frente, acenou acabeçaparamecumprimentar.Perguntei: “E stuN ..., o jardineiro?”— “Sou, sim.” — “Por que nunca te vi?” — “Eu estava ligado.” — “Como ligado?” — “Por ordem. Eu não tive permissão de vir.” — “Fala mais um pouco do Além.” — “Como estás ainda sujeita a maneiras humanas!” Já diversas vezes tive que ouvir tal repreensão.

Ao abrir uma porta, tenho, frequentemente, a sensação de me encontrar com alguém; algo passa ao meu lado e às vezes escuto meu nome, pronunciado por uma pobre alma.

(49) As palavras de Cristo: “Se não vos tornardes como as crianças...” não encontram explicação nos tempos atuais. Paul Claudel parece ter-nos dado a melhor interpretação na sua história de animus e anima. Veja as observações no Prólogo.

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No jardim foram derrubadas árvores. De repente, o jardineiro N ... estava no meio dos homens, mexendo-se também. Perguntei à companheira ao meu lado para ver se ela enxergava o jardineiro: — “Quantos homens estão trabalhando ali?” Infelizmente ela só via pessoas vivas e não aquele jardineiro vindo do Além. • Vi N ... mais onze vezes, mas não me falou.

É isso! Para que conversar ainda com as Almas do Purgatório! É sempre o mesmo assunto, e nem sei o que convém perguntar. Durante algum tempo fingi não perceber a presença delas. Mas então elas se tomavam violentas, torturavam-me, dando-me empur­rões e socos; beliscavam-me, batiam-me. Minha atitude doravante será a de nada mais perguntar, nem falar com elas, mas rezar.

Cecília

• 9 de abril — Sete vultos estão flutuando em tomo de mim; só posso distinguir a forma de uma mulher. A situação não me causa medo, mas também não me permite dormir sossegadamente.

• 12 de abril — A mulher chama-se Cecília. Ela tem caluniado; perguntei-lhe: — “Quem mais está contigo?” — “Seis almas.” — “Por que posso ver apenas a ti?” — “Estou contigo já há alguns meses; tu cuidavas de outras almas.” — “Também agora há outras almas a cuidar.” — “Primeiro é a minha vez.” — “Por quê?” — Não recebi resposta.

• 14 de abril — Fixando melhor minha nova visita, vi sua boca cheia de abscessos. Além disso, todo o seu processo de purificação não é nada bonito para ver. Interroguei-a: “Quando estás comigo e eu rezo por ti, percebes isso imediatamente?” — “Percebo, sim, pois estou sempre contigo.” — “Mas então me explica por que não te enxergo sempre.” — “É porque não o suportarias.”

• 16 de abril — Os sete vultos me apertaram qual muralha viva, que se fecha mais e mais em torno de mim. Exclamei: “Deixai- me em paz! Não me atormenteis.” — “Queremos ajudar-te.”

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— “Não percebeis que tenho preocupações?” — “Sim.” — “Po­deis rezar em minhas intenções?” — “Podemos, é só por nós mes­mos que não podemos rezar.” — “Como percebeis minhas apre­ensões?” — “Estás dividida.” — “Mas também quando não estou preocupada, nem sempre penso em vós.” — “Tua força nos per­tence e agora dás essa energia a outras pessoas.”

• 17 de abril — Logo que ela apareceu, aspergi-a com a água da noite santa de Páscoa. Ela ficou radiante. Exclamei: “Esta água querida é de maior proveito para ti do que tudo quanto eu faço.”— “Só tu me presenteias com ela. Essa água tem poder para curar-nos.”

Um dos seis vultos começa a adquirir realce; não o conheço; sua fisionomia manifesta pungente tristeza. De dia, vejo muitas almas em forma de sombras; talvez sejam os cinco vultos que ainda não se deram a conhecer. Vez por outra recebo bafos frios no rosto, mas eu dou graças a Deus que não mais apareçam almas em forma de animais.

• 23 de abril — Cecília está com aparência melhor. Interpelei- a: “Mudaste muito; estás melhor?” — “A neblina se foi; adoro meu Deus.” Sua mão roçou meu rosto, e ela desapareceu.

A amiga esperando a recompensa

Visitou-me a alma de uma boa amiga, G r... d eM .. .,falecidaem janeiro. Reconheci-a imediatamente. “Que cara feliz que mostras! Onde estás?” — “No mais belo salão!” E sumiu. Esse seu jeito de falar, francamente, não me agradou. Usar um termo tão mundano!

Três dias depois, ela voltou. Apostrofei-a: “Por que falaste dum modo tão mundano em salão?”— “Para que me possas entender, falei de modo humano.” — “Estás no céu?” — “Não; estou esperando minha recompensa.” — “Recompensa? De quê? Dize-mo, para que eu fique como tu.” — “Cumprimento do dever e espírito de sacrifí­cio.” — “Sabes que teu esposo está sentindo falta de ti?” — “Nós vemos isso de modo diferente. Tudo vai dar certo.” — “Por favor,

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dize-me o que vem a ser o lugar de expectativa.” — “É o último lugar do anseio.” — “Por que vieste a mim, se já não precisas de minha oração?” — “Para te alegrar. Eu sabia o que se passava contigo.” — “Vês ainda meu corpo ou minha alma?” — “Tua alma. Nós somos os sem-corpos.” — “Mas eu te vejo tal qual eras. Dize- me como se dá isso.” — “É porque ainda não estás em condições de ver a alma.” — “Pode-se ver então uma alma?” — “Existe uma luz que não luza?”— “Dize-me o que há de mau em mim.” — “Ainda gostas de ser querida pelas pessoas; deves ficar totalmente liberta.” E desapareceu. Que bom que é poder falar com uma alma dessa maneira! Oh, se fosse plenamente livre e vivesse unicamente para Deus! Bem sei o que eu deveria fazer, m as...

Uma impressão indescritível

Dois homens estão comigo muitas vezes; põem-se à frente dos outros; cada um quer ser o primeiro. Não os conheço. Estão muito tristes. Pergunto-lhes: “Quem sois vós?” — “Os esquecidos.” — “Ninguém fica esquecido, pois na santa missa, por todos se reza.” Um deles aproxima-se de mim e sussurra-me algo ao ouvido. Não entendi bem o que disse; talvez uma das palavras fosse “mil”. Em seguida vi fogo, e eles sumiram.

Eu estava deitada e, de repente, minha cama estava sendo levantada e, com estrondo, caiu no chão. Não podia acender a luz, e algo me estrangulava de tal modo que eu pensei morrer asfixiada. Senti um pavor tremendo, mas não encontrei nada de especial. Sofri isso sete vezes e, em seguida, vi uma mulher de aparência hedionda.— “Foste tu que me torturaste? Por quê?” — “Porque te odeio.”(5°) — “Mas por quê? Eu nada te fiz?” — “Tu me cegas!” — “Mas quero ajudar-te!” Aí ela me agrediu furiosamente até que eu gritasse: “Em nome de Jesus, vai-te embora.” E ela sumiu. Acho que ela talvez tenha

(50) Essa senhora parece ter tido em vida um só sentimento: inveja; nela tudo era inveja.

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sido muito má, bem diferente de todas as outras almas que já vieram. Isso me causa imenso pavor e rezo para que não me apareça mais. Causou-me uma impressão inominável essa aparição que muito me preocupa, pois trago-a sempre em meus pensamentos.

Voltaram aqueles dois homens. Perguntei-lhes: “Onde vives­tes?” — “Aqui.” — “Quando?” — “Há 57 000 dias.” — “Qual era vosso estado de vida?” — “Éramos empregados.” — “Como posso ajudar-vos?”— ‘ ‘Dá-nos uma santa missa.” -— S atisfiz-lhes o pedido, e já não os vejo.

O dia 9 de agosto

• 3 de julho ■— Aconteceu-me algo de estranho. Eu estava na horta colhendo morangos. De súbito, por cima do canteiro, um vento violentíssimo. Levantei-me e olhei; nenhuma árvore se mexia, só as folhas dos morangueiros ondulavam na ventania. A coisa parecia- me sinistra e entrei numa casa próxima. Tudo calmo. Voltei a colher morangos, e os fenómenos continuaram. Lancei a pergunta: “Há por aqui uma pobre alma?” • Vejo aqueles quatro vultos que dançam em tomo de mim e exclamam: “9 de agosto.” E tudo, normal como sempre, foi 9 de agosto, que estranho! E pela quinta vez que me di­zem esta data ou que eu sonho com ela. Acho que já o mencionei nos meus apontamentos. A primeira vez a ouvi em 1898, e fiquei impressionadíssima naquela ocasião. Eu estava convencida de que ia morrer naquele dia. A última vez, em dezembro, sonhava que na minha escrivaninha havia uma folha em que estava escrito “9 de agosto”. É estranho, mas não tenho medo. Fico apenas um tanto curiosa e me pergunto o que essa data possa significar. Em geral, para mim, as noites são agora mais calmas. Tenho anotado apenas as visitas em que as pobres almas falavam. Foram muitas as aparições silenciosas, mas não me fizeram sofrer demais. Aliás, a gente se acostuma à situação.

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João

Desde agosto tive muitas visitas das almas; eram, porém, de modo diferente que as mencionadas até agora, e me parece que pouco lhes tenho dado; 27 vultos me procuraram, e onze deles me fizeram sofrer muito.

Há oito dias, a situação mudou. Procura-me um velho conheci­do meu, F. M., o pai de...; quer constantemente tocar em mim. Acalma-se, porém, um pouco, quando lhe dou água benta. Ele me faz sofrer muito, mas assim mesmo estou satisfeita. Quando aparece, espalha luz como se uma lanterna muito forte fosse dirigida contra mim; aos poucos, porém, em torno dele, tudo vai escurecendo. De dia, ele pousa, meio homem, meio animal, na árvore em frente à minha janela. Após alguns dias, soltando gritos, me agrediu. Exclamei: “João, que queres?” — ‘T ua paz.” — “Vai à tua esposa que tanto reza.” — “Não a encontro.” — “Ela sofre muito por causa de ... Talvez seria melhor, se os procurasses.” — “Não posso deixar meu caminho.” — “Sabes tudo de teus...?” — “Não; preocupações humanas estão distantes de nós.” — “Como posso ajudar-te?” — “Deixa-me ficar junto a ti enquanto tenho permissão, e não fales mais.” Acho que sofreu com minhas palavras e fiquei triste de ter falado como falei. Agora ele está sempre comigo, mas eu fico calada. Ele continua muito inquieto. • Vem uma mulher, e com ela há muita barulheira no quarto. Na igreja vi sete vultos, esperando por mim na entrada.

• 7 de novembro — À hora do crepúsculo fui dar uma volta na alameda. Vieram ao meu encontro duas senhoras que não conhecia. Quis falar com elas, mas desapareceram à minha frente. Apavorada voltei depressa à casa. Quando as almas se comportam de modo natural, como se fossem pessoas de carne, iguais a nós, e de repente mostram que são do Além, isso me atemoriza e me dá arrepios mais fortes do que sabendo desde o começo que vêm do além-túmulo.

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Uma velha senhora em minha escrivaninha

Entrando em meu quarto, vejo sentada à minha escrivaninha uma senhora idosa, apoiando a cabeça nas mãos. Exclamei: “O que estás fazendo aí?” — “Estou procurando.” — “O que procuras?”— “Minha promessa.” Para dar-lhe prazer, abri as gavetas. Num ins­tante remexeu tudo. Com os olhos ardentes fixava as coisas. Nunca vi alguém procurar algo desse jeito. Ela tinha em mãos até as cartas de V. Revma. endereçadas a m im /51) Gemeu enfim: “Perdeu-se.” E desapareceu. Não tenho idéia de quem se trata. A julgar pelo traje, ela é do tempo atual.

• 8 de novembro — João ficou a noite quase toda. Observei: “Estás mais contente, parece.” — “Avancei.” — “Aonde?” — “Na compreensão.” — “Queres dizer no arrependimento, não é?” — “Não, aquele passou. Na compreensão da luz.” — “Por favor, fala- me mais um pouco da luz. Referes-te ao Bom Deus?” — “Só os sem- corpo me entendem.”

• 11 de novembro— Outra vez no meu quarto a mulher que está à procura. Pergunto-lhe: “Não posso ajudar-te?” Ela me fixa e chora. No dia seguinte está em frente à minha secretária, e agora vem o que não entendo: todas as gavetas que eu conservo trancadas estavam abertas. Senti arrepios. Foi impossível um engano meu. Sorrindo, ela ficou ao lado da secretária, achegou-se a mim, descansou a cabeça no meu ombro e desapareceu de repente. Nas gavetas, tudo em ordem.

Algo de estranho: acordo com uma sensação desagradável, e vejo a parede toda com cabeças, uma ao lado da outra. Aquilo me dá uma sensação sinistra. Cada cabeça tem a expressão diferente uma da outra, todas, porém, de fisionomia dorida.

• 27 de novembro— João H. aparece de contornos e traços mais nítidos, e também de expressão mais contente e satisfeita. Rezei com ele e lhe perguntei: “Que mais posso fazer por ti?” — “Sacrifica tua vontade.” — “Bem o quereria, mas é sempre tão difícil.” — “A força te será dada.” — “Por que não procuras tua esposa?” — “É-me

(51) Trata-se da carta que o pároco Wieser tinha escrito para a princesa.

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prescrito o caminho a tomar.” — “Fala-me mais um pouco da eternidade.” — “Crê e confía.” E sumiu.

• 4 de dezembro — Já não o vejo, nem aquela velhinha. Mas muita barulheira e muitos vultos, até de dia.

Uma testemunha

• 11 de janeiro de 1928— Mandei o menino buscar um livro no meu quarto. Voltou correndo e disse: “Há um mendigo lá dentro.” Fui lá e, de fato, estava lá alguém que parecia um mendigo, aliás muito triste. Perguntei-lhe: “Donde vens?” — “Da tribulação.” — “Quem és?” — “José... ” Faz anos que vivia aqui uma família. Não é do meu conhecimento se alguém da família se chamava José. Continuei: “O que posso fazer por ti?” — “Com ... rezar por mim.” — “Quando morreste?” — “Em 1874.” — “Por que sofres tanto tempo?” — “Calúnias.” —■ “Posso repará-las em teu lugar?” — “Sim; aquela história do padre D ... M... .”(52) — “A respeito de quê?” Naquele instante, alguém chegou, e ele sumiu. Agora me lembro umpouco do caso de um padre D ... M.„; quando se tocava nisso, eu era mandada embora para brincai- lá fora.

A mãe do pároco

• 17 de dezembro — É uma sensação toda especial que estou sentindo: devo ser intermediária entre V. Revma. e sua mãe. Imagine, aquela senhora que durante quase três semanas me procurava e que me havia respondido “sua mãe” é a senhora sua m ãe...

Segue agora um diálogo que não posso reproduzir por motivos estritamente pessoais. Infelizmente, consegui saber apenas que mi­nha mãe está salva. Devo acentuar que a princesa em vida não chegou a conhecê-la.

(52) Um padre.

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A comunicação do dia 17 de dezembro foi a última que recebi. Ela mesma, que fez tantos sacrifícios pelas Almas do Purgatório no último decénio de sua vida, goza, agora, da visão beatífica, como firmemente acredito.

Ela morreu, como já foi dito, no dia 9 de janeiro de 1929.O pároco Sebastian Wieser (53)

(53) Sebastian Wieser, o diretor espiritual de Eugênia von der Leyen, morreu em 11 de outubro de 1937, em Oberhausen. O Schematismus, da diocese de Augsburg, de 1937, dá detalladamente o currículo, isto é, a carreira da vida desse sacerdote, os cargos que exerceu e as atividades pastorais.

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POSFÁCIO 1

Leitores que atenta e seriamente têm estudado o diário, estra­nharam terem as almas, que apareciam à princesa, mostrado não apenas suas misérias, mas manifestado até atitudes realmente malé­volas. Partilhavam a opinião corriqueira que nada de impuro pode gozar a visão de Deus, mas supunham que os falecidos recebiamuma compreensão mais clara da realidade do mundo espiritual e que sofriam, por assim dizer, apenas exteriormente. As representações das Almas do Purgatório, feitas por pintores ingénuos, acentuaram sobretudo as torturas nas chamas, suportadas por penitentes arrependidos; imaginava-se que o essencial do purgatório consistisse no fogo exterior, e que o elemento constitutivo de uma pobre alma fosse unicamente o anseio por Deus, unido a um grande arrependi­mento. Nas pinturas e nas meditações não figurava a idéia que uma pobre alma pudesse ser má, pelo contrário, excluía-se a possibilidade de uma hipótese dessas. Até no próprio Inferno de Dante, as almas condenadas sofriam mais em virtude de pavorosas manifestações externas de sofrimento e desespero do que por padecimentos oriun­dos do interior de sua própria natureza. Mas o que a arte, aparente­mente, não podia representar não escapara à intuição mística dos homens. Com profunda comoção aflorava, às vezes, por ocasião de uma morte repentina, a palavra da Escritura aos lábios de uma pessoa enlutada: a árvore fica, onde cai.

A árVore fica onde cai (Eclesiastes 11,3)

Tomás de Aquino compara a alma do homem a uma folha em branco, na qual, no decorrer de sua vida, lança tudo quanto se refere à sua espiritualidade e à sua conduta moral. A alma assimila o que chegou a conhecer e a amar. O espírito do homem, que se determina a si mesmo, escolhe o que quer assimilar de conhecimentos, de amor.

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O homem “religioso” relaciona o conteúdo de seus conhecimentos ao amor de Deus e do próximo. Durante sua existência humana, o homem pode subverter e revirar todos os valores e considerar o mundo e o próprio Eu qual valor supremo. Desse modo, os valores da vida corporal e material se tornam os mais importantes, enquanto os valores sacrossantos se distanciam tanto, que já não se consideram como reais e, aos poucos, desaparecem do dia-a-dia — e o homem, que outrora aprendera a ver na imitação de Cristo o sentido da vida para se santificar, transforma-se em ferrenho adversário do Senhor. O mistério da santa comunhão com o Salvador cede à comunhão profana com o príncipe deste mundo. A malícia, a perversidade ganham existência real em sua alma.

Quando, na hora da morte, o homem depõe o corpo qual veste gasta, nada se modifica em relação àquilo que aceitava em vida como algo que queria conhecer e abraçar. Sua alma entra no Além com tudo quanto assimilou em sua vida terrena: virtudes e paixões, vícios e inclinações secretas, tudo quanto formava seu Eu. Há, porém, uma grande diferença: as distrações que o corpo lhe possibilitava já não existem e nem serão possíveis. Ele deve sentir a existência e os anseios de sua alma sem qualquer atenuante.

Uma só coisa se modificou totalmente: a maneira de ver e de apreciar os reais valores e desvalores da vida e de sua existência. Ele reconhece com clareza total que não existe separação entre o Bem e o próprio Deus, e que seus pecados significam e produzem “uivar e ranger de dentes”. Enquanto possuía um corpo, a alma aceitava o prazer dos olhos, da carne e da satisfação do orgulho da vida, a malvadez contra o próximo, a revolta de sua vontade contra a vontade de Deus, porque prometiam e de fato davam algum deleite para o corpo.

Agora, porém, ela experimenta tudo isso qual câncer espiritual, como lepra no íntimo de seu ser, como uma aids honorífica, qual vergonha inominável, como sofrimento, escuridão, desespero e solidão. Seus pecados são chamas devoradoras de sua existência e que, ao mesmo tempo, lhe fornecem a forma que lhe convém. Em

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vida, os pecados parecem ser algo de aparente no seu exterior, agora, porém, os pecados determinam sua própria figura, seu aspecto, sua forma, sua atitude e todo o seu ser.

Um poeta do século XIII nos deu uma seqiiência que, até o Vaticano II, fazia parte da missa pelos falecidos. Ele experimenta a profunda preocupação que os homens sentem a respeito de sua existência depois da morte, por causa de seus pecados. Também nós a rezamos com ele, porque toda a humanidade reconhece sua situação de pecadores diante de seu Senhor e Criador, e crê que na morte se realiza o juízo:

O “dies irae”, de Tomás de Aquino

Dia de ira, aquele dia, será tudo cinza fria: diz Davi, diz a Sibila.

Que tremor será causado, quando o Juiz tiver chegado, para tudo examinar!

Correrão todos ao trono quando, em meio ao eterno sono, a trombeta ressoar.

Morte e mundo se espantam, criaturas se levantam e ao Juiz responderão.

Vai um livro ser trazido, no qual tudo está contido, onde o mundo está julgado.

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Quando Cristo se sentar, o escondido vai brilhar, nada vai ficar impune.

Eu, tão pobre, que farei?Que patrono chamarei?Nem o justo está seguro.

Rei tremendo em majestade, que salvais só por piedade, me salvai, fonte de graça.

Recordai, ó Bom Jesus, que por mim fostes à cruz, nesse dia me guardai.

A buscar-me, vos cansastes, pela cruz me resgatastes, tanta dor não seja vã.

Juiz justo no castigo, sede bom para comigo, perdoai-me nesse dia.

Pela culpa, se enrubesce o meu rosto; ouvi a prece e poupai-me, justo Deus.

A Maria perdoando e ao ladrão, na cruz, salvando, vós me destes esperança.

Meu pedido não é digno, mas, Senhor, vós sois benigno não me queime o fogo eterno.

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No rebanho dai-me abrigo, arrancai-me do inimigo, colocai-me à vossa destra.

Quando forem os malditos para o fogo eterno, aflitos, entre os vossos acolhei-me.

Dum espírito contrito escutai, Senhor, o grito.Tomai conta do meu fim.

Lacrimoso, aquele dia, quando em meio à cinza fria levantar-se o homem réu.

Libertai-o, Deus do céu!Bom Pastor, Jesus piedoso, dai-lhe prémio, paz, repouso.

A missa por falecidos de “corpo presente” terminava até o Vaticano II com o Libera. Também essa oração, hoje em dia, não se reza mais, embora exprima a Majestade Divina e o seu reino universal: “Salvai-me, Senhor, da morte eterna no dia do terror, quando céu e ten-a são sacudidos e quando voltais para julgar o mundo pelo fogo.”

Só a moral não basta

Como se resolve a relação entre o pecado e a virtude da esperança? Esta pergunta tem levado muita gente a um dilema. Desde o tempo do lluminismo tem-se acentuado mais e mais, no ensino e na pregação, a doutrina da moral, como se dependesse tudo unica-

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mente da observância das leis e dos mandamentos deste e do outro mundo. Já no século IV, essa heresia de Pelágio havia sido combatida por Santo Agostinho, que compreendia não haver lugar para Cristo e o amor eterno de Deus numa religião excessivamente moralista. Se na religião fosse suficiente a observância da moral, bastaria Moisés com os seus mandamentos.

A piedade moderna enveredou em direção contraria: Cristo nos remiu; Moisés e sua lei já não contam. No passado, chegou-se a um ensino da moral, isento da graça. Hoje apregoa-se uma graça que ignora a moral. Os cristãos celebram a Páscoa, sem que meditem a Paixão e a Morte reparadora de Cristo; muito menos se interessam em acompanhá-lo no sacrifício — aceitam como conteúdo da fé apenas o resultado da Paixão, isto é, a Páscoa.

Uns como outros estão errados; os rigoristas erram quanto à conduta moral, pois colocaram o medo no lugar do amor. Com isso, oprimem as consciências e as fazem viver numa atitude habitual de pavor. Por outro lado, estão errados também os pregadores de um laxismo total ao afirmarem que Deus é um Pai que não exige a não ser o que a gente possa fazer sem grande esforço — contenta-se, por assim dizer, com umas bagatelas. Com isso, o “amor” fica ridículo porque os moralistas fanáticos esvaziam o amor divino deixando, por medo, esmaecer a imagem do Crucificado.

A mente humana corre perigo quando arrisca soluções do problema existencial em busca de um Deus “benigno”. Muitos pensam que no momento da morte, a alma abandona o corpo, saindo do coração. A paralisação das correntes que passam pelo cérebro não indicaria a morte propriamente dita, e isto representaria um sinal de que o coração seria, para a sorte do homem, muito mais importante que o intelecto. A cura de almas sempre admitiu que os indícios e os sinais do desenlace da agonia não impedem que se dê ainda a unção ao corpo.

A vida foi confiada ao amor. O desamor é uma caminhada em direção ao etemo exterior, ao “nada”, à perene e total carência de tudo aquilo que comunica, mesmo no ínfimo grau, do “existir”. Não

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vamos atrás de alguém quando vivemos “esperando”. Nossa santa Madre Igreja, a mãe da graça, está em condições de colocar um penitente ao lado de um santo, igualando-o em brilho e gloria.

Mas é nisso que está a tragédia do coração. O demonio não suporta que entre os homens se manifeste o amor divino. Por isso tenta o homem a se deixar levar pelo desamor que reina no mundo, por aborrecimentos, amarguras e ressentimentos, por preocupações, paixões selvagens, medo, afastamento mútuo entre amigos e paren­tes, por cobiça e ambição. Tudo isso toma o homem incapaz de conhecer o amor divino. Nietzsche resume o que acabamos de meditar nas palavras: “Dionisio não suporta o Crucificado”.

Dr. Peter Gehring

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A doutrina da Igreja sobre as Almas do Purgatorio

A misericordia de Deus e o seu amor não se estendem apenas aos vivos, mas também aos falecidos que anseiam por estar com ele: às Almas do Purgatorio.

Perguntemo-nos: O que acontece na hora da morte? “A alma que acaba de deixar o corpo sente-se como envolvida por Deus. Tão grande é a santidade que a cerca que ela vê, num instante, toda a sua vida terrestre e o que ela merece perante a Justiça Divina.”

Caso esteja totalmente livre de pecados e de penas merecidas, tomar-se-á imediatamente participante da Visão Beatífica. Pois sua veste nupcial está imaculada e a luz divina pode penetrá-la, fazendo com que já experimente uma felicidade indizível e as alegrias do céu.

Nada de impuro pode entrar no céu

Para a alma que não tem culpa grave, isto é, sem pecado mortal, mas eivada de faltas veniais ou de culpas que não incluem o peso de um pecado mortal, a luz divina significa apenas o juízo, pois o estado em que se acha não condiz com a santidade infinita nem com a perfeição de Deus. É, por isso, impossível uma união com Deus e a entrada na bem-aventurança etema. A alma não agtientaria nem um instante sequer a estada no reino da santidade.

Se não houvesse a possibilidade de uma purificação no Além, a grande maioria dos homens não entraria no céu. Pela voz da Igreja, Deus fala claramente: “As almas serão purificadas depois da morte do corpo por castigos merecidos pelos pecados, dos quais ainda não fizeram penitência”, o que acontece “pelo purgatório” (Concílio de Florença e de Trento). Não é apenas na frase bíblica: “É um

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pensamento bom e salutar oferecer pelos defuntos um sacrifício de expiação para que fiquem remidos de seus pecados”, que a Igreja fundamenta a crença na existência do purgatório, mas também na severa parábola em que Jesus fala da prisão donde ninguém sai antes de ter pago suas dívidas até o último centavo. Também São Paulo menciona que “o fogo revelará qual foi a obra de cada um; aquele cuja obra for consumida, sofrerá o dano; ele se salvará, mas como quem passa pelo fogo” (I Corintios 3, 13-15).

No momento da morte, a alma manchada sente-se como aniqui­lada pela presença de Deus e esmagada pelo peso de suas culpas que devem ser pagas. Por isso, ela se lança nas chamas purificadoras. A alma chega a se convencer, no purgatório, da santidade e da Justiça Divina, do amor infinito que Deus tem para com ela; é no purgatório que ela compreende ser a maior desgraça possível ofender a Majestade Divina pelo pecado.

A alma gostaria de lançar-se nos braços de seu Deus, mas ela se sente totalmente indigna de um tal ato, e a percepção de sua indignidade torna impossível qualquer ousadia irreverente: ela geme e anseia por Deus, devorada pelo arrependimento de seus pecados, mas é incapaz de satisfazer a vontade de todo seu ser. Profundamente agradecida por ter a chance de reparar a ingratidão para com seu Criador, quer penitenciar-se por não ter aproveitado sua vida terrestre para se santificar.

Ela sabe que está salva, e este pensamento consola-a no seu padecimento. A misericórdia infinita nos dá a possibilidade de reparar nossas culpas mesmo depois da morte. O purgatório é um mistério da graça, é o fogo da misericórdia divina.

Castigos corporais no purgatório

A grande maioria das almas sofre não apenas o doloroso anseio de estar com Deus — e isso numa intensidade totalmente inimaginável para nós — , mas também os castigos por seus pecados e faltas, já que, pelo arrependimento e pela boa confissão, recebemos o perdão da

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culpa, mas não escapamos dos castigos merecidos.O fogo purificador penetra sobretudo as partes do corpo

com as quais se pecou. Embora o corpo fosse deixado na térra, a alma tem a sensação de possuí-lo ainda para que ele participe do castigo que Deus a ela impôs. E um ato da Justiça Divina, pois depois do Juízo Final não haverá mais purgatorio, e o corpo que pecou em união com a alma ficará livre do castigo. Diz ainda a Irmã Natividade ( | 1798): “Alguns anos antes do Juízo Final, o sofrimento aumentará para cada alma conforme o grau de sua culpa. Deus pode fazer com que a alma sofra num ano mais do que sofreria em tempo normal no espaço de cem anos. Os anjos anunciarão às pobres almas que elas sofrerão tanto porque se aproxima o Juízo Final e que Deus aumenta a intensidade dos padecimentos para abreviar a sua duração.”

As pobres almas são realmente pobres

As Almas do Purgatório merecem esse nome porque precisam de ajuda. Já não podem, como outrora na terra, satisfazer a Justiça Divina por boas obras. O bispo Dom Kepller de Rottenburg, um exímio pregador, referindo-se às pobres almas, diz: “O pêndulo do purgatório bate sempre no mesmo ritmo: ‘Sofrer-esperar! Sofrer- esperar!’ ”

Acresce a isso o fato de que as almas sofrem sem acumular méritos para a eternidade. Diz Santo Agostinho que os sofrimentos e os castigos das almas são piores do que as torturas a que foram submetidos os mártires. Santo Tomás de Aquino e São Boaventura afirmam que as almas sofrem um fogo igual ao do inferno, com a diferença que, no inferno, elas amaldiçoam a Deus, enquanto que no purgatório o louvam e lhe agradecem pela sua salvação.

As almas têm pior sorte que os mendigos na terra: sofrem, e não param de sofrer. Dizem Ana Catarina Emmerich e Maria Ana Lindmayr que as mais miseráveis entre as almas são aquelas que, em vida, não pertenciam à Igreja católica. Isto porque não recebem ajuda

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da terra, como os católicos que acreditam na existência do purgatorio e rezam pelas almas, ao passo que os protestantes e outras seitas não aceitam o purgatório e, por isso, não rezam por elas no seu culto.

As Almas do Purgatório rezam por todos

As reflexões seguintes podem ampliai' os nossos conhecimen­tos a respeito do purgatório. São respostas a perguntas freqiien temente formuladas. Uma religiosa francesa rezava muito e se sacrificava por uma coirmã falecida, que, por permissão da misericórdia divina, nos comunicou as considerações que, depois, foram impressas, em boa parte, na publicação Voz do Além (Hacker-Verlag, Mtinchen). Tem o imprimatur da Igreja e por isso é digna de crédito. “Há almas que passam o purgatório nos lugares onde pecaram; outras, aos pés dos altares, não, porém, devido a pecados que lá poderiam ter cometido, mas para adorar o Santíssimo Sacramento por terem venerado em vida, de modo relevante, Nosso Senhor Sacramentado. Sofrem menos do que padeceriam no purgatório. Enxergam Jesus com os olhos da fé e, ao mesmo tempo, com a alma. Na sua presença, seus sofrimentos diminuem de intensidade.”

As almas não estão ocupadas unicamente com os seus padeci­mentos, pois podem rezar pelas pessoas que procuram ajudá-las como também poderão fazê-lo para as grandes intenções de Deus. Louvam e agradecem a Deus por ele ter mostrado misericórdia infinita para com elas, pois, para muitíssimas almas, a distância entre o purgatório e o inferno tem sido mínima, e pouco teria faltado para caírem no fogo eterno. Pode-se imaginar a gratidão dessas almas que, no último instante, haviam sido arrancadas do demónio!

E bem rara a indulgência plenária

Perguntou-se à Irmã do Além: “O que nos pode dizer das indulgências plenárias?” E veio a resposta da pobre alma: “Poucas

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pessoas, bem poucas, estão em condições de ganhá-las. Exige-se um estado todo especial do coração e da vontade, o que é extremamente raro, muito mais raro do que comumente se acredita. Ganhamos no purgatório as indulgências que se nos aplicam conforme a vontade de Deus. Quando uma alma está no último estágio de sua purificação, pode ser libertada do purgatório pelo efeito de uma indulgência plenária que lhe é aplicada parcial ou totalmente. Mas isso não se dá com as almas em geral. Se, em vida, ela depreciava as indulgências, ou se não lhes ligava, o Deus justo lhe paga conforme as suas boas obras. Se ele o achar oportuno, dar-lhe-á o presente de nela participar, mas dificilmente lhe aplicará uma indulgência plenária toda.”

A noite de Natal é a grande festa das Almas do Purgatório

Poderão no mês das almas, sobretudo no dia de Finados, desfrutar as pobres almas de graças especiais para serem libertadas? E uma pergunta que se faz ainda hoje em dia e que foi dirigida àquela Irmã, padecendo no purgatório.

Resposta: “No dia de Finados saem muitas almas do purgatório; é só nesse dia que todas as pobres almas, sem exceção, participam das preces oficiais da Santa Igreja. Muitas almas recebem da Justiça Divina só esse único alívio durante os longos anos que têm de permanecer no purgatório. Mas não é no dia de Finados que mais almas entram no céu, mas sim na noite do Natal.”

Diante do Senhor, mil anos são como um dia

“Quanto tempo levam os sofrimentos do purgatório?” Isso difere de alma a alma. O sofrimento mais longo e mais duro é para as pessoas mais duras de coração, como também para as almas de que fala o beato Henrique Suso ( t 1365): “Certos homens encolerizam Deus de tal modo que deverão padecer no purgatório até o fim do mundo; trata-se dos pecadores nefandos, que protelam a conversão

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até o fim de sua vida e que, antes de morrerem, recebem ainda a graça de se arrepender.

No entanto, o conceito de tempo é para as almas totalmente diverso do nosso. Diz Maria Ana Lindmayr que urna hora de sofrimento no purgatorio parece mais longa do que vinte anos dos mais terríveis padecimentos, passados na terra. Certa alma disse a uma vidente que a grande maioria das almas fica no purgatorio de vinte a quarenta anos, outras, porém, tempo bem mais longo, e um terceiro grupo, tempo mais breve; e continuou: “Digo isso conforme o modo de calcular na terra, pois nós sentimos o sofrimento de maneira diferente do que ocorre na terra: há oito anos que estou aqui, mas a mim me parecem ser dez mil. Oh! meu D eus...”

São Miguel, padroeiro das Almas do Purgatorio

Urna alma diz: “Ele não é apenas testemunha quando se pronuncia a sentença, mas é também o executor da Justiça Divina, e depois de a Alma tê-la satisfeito, ele a leva à bem-aventurança eterna. Ele tem compaixão de nós e nos encoraja em nossos padecimentos, falando-nos do céu. Aparece, às vezes, em companhia da Santíssima Virgem, que vemos de forma corporal. Nos seus dias de festa, ela nos visita, e volta, depois, ao céu, cercada de muitas almas. Também os nossos Anjos da Guarda nos visitam.”

Como ajudar as almas

Podemos ajudá-las de muitos modos. Eis alguns:Io) Pelo santo sacrifício da missa, que não pode ser substituído

por nenhum outro ato de piedade. Convém não apenas “encomendar uma missa”, mas nós mesmos, sendo possível, nela devemos tomar parte. Ela é o sacrifício da cruz, oferecido de modo incruento. Por ele oferecemos ao Pai Celeste os méritos e os sofrimentos de seu divino Filho, suas santas chagas, o sangue precioso, sua dolorosa morte para

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a reparação dos nossos pecados. No seu amor misericordioso para com as pobres almas, Deus nos permite que lhes apliquemos este tesouro de valor infinito, oferecendo a santa comunhão por interces­são de Maria S antíssima. Acentua Ana María Lindmayr que ela devia entregar todas as suas boas obras à Mãe de Deus e nada podia dar às almas a seu bel-prazer.

As pobres almas recebem ajuda especial pelas “missas gregorianas”, que devem ser rezadas em trinta dias consecutivos; este piedoso costume remonta ao papa Gregorio Magno (590— 604).

2o) Pelo sofrimento reparador; qualquer sacrifício, para ajudar as almas, lhes dá grande alivio. Diz Ana Catarina Emmerich: “Ninguém pode imaginar quão grande consolo as almas recebem pelos nossos pequenos sacrifícios e por todo ato pelo qual nós vencemos a nós mesmos. O santo Cura d’Ars pediu a Nosso Senhor para sofrer durante a noite em beneficio das pobres almas.

3o) Depois da santa missa, o meio mais eficiente de ajudar as almas é a reza do terço. Por essa oração são remidas diariamente muitas almas que, de outro modo, teriam que sofrer ainda longos anos. Recomendemo-las à intercessão poderosa da Mãe de Deus, que gosta de ajudar as almas, visto que é a porta do céu.

4o) Também a reza da via-sacra traz às almas grande alivio, se por elas oferecermos a Paixão e a Morte de Nosso Senhor e as lágrimas da Mãe dolorosa. Podemos rezar no fim de cada estação: “Senhor Jesus, pregado na cruz, compadecei-vos de nós e das Almas do Purgatório.” Grande alívio se dá às almas, oferecendo ao Pai as cinco chagas de Jesus, sobretudo quando se está tomando parte na encomendação de uma pessoa falecida.

5o) Diz Maria Simma que as almas lhe falaram do imenso valor das indulgências. E tem razão, porque abreviam sensivelmente seus padecimentos. É que a indulgência é o perdão— ratificado por Deus— de castigos temporais, neste ou no outro mundo, por pecados já perdoados. Quem, durante sua vida, lucra muitas indulgências pelas almas, receberá, na hora da morte, também a graça de ganhar, ele mesmo, a indulgência plenária para os agonizantes. Aproveitemos, pois, a possibilidade de lucrarmos muitas indulgências, que formam

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um tesouro de máximo valor, com que Jesus nos contemplou por sua Paixão e que a Madre Igreja nos oferece.

6o) Práticas de virtude e boas obras. Por intermédio de Maria Ana Lindmayr, Jesus nos recomenda que nos esforcemos em praticar, cada semana, uma determinada virtude em relação a Deus e aos homens, conforme a ocasião que se nos apresentar, e entregar esses atos ao nosso Anjo da Guarda ou a Nossa Senhora, para que apliquem os méritos às pobres almas. Por exemplo: praticar atos de humildade e de abnegação a favor daquelas almas que sofrem por causa de sua soberba e que têm desprezado outras pessoas. Diz ela: “Justamente pela humildade pode­mos ajudar as almas muito mais do que por penitências exteriores.” A sorte das almas que pecaram porexagero nocomer e no beber, aliviaremos com jejum; outras almas precisam de atos de paciência e mansidão para serem libertadas de penas merecidas por impaciência e ira. As torturas dos avarentos e duros de coração serão mitigadas por obras de miseri­córdia, dando esmolas, ajudando as missões.

7o) Um outro meio, e muito fácil para ajudar as almas, é a boa intenção repetindo, por exemplo, com toda a sinceridade, jaculatórias como: “Em nome do Senhor” ou “Jesus, tudo por amor a vós”, ou “Seja tudo feito por vós, sagrado Coração de Jesus, através de vossa santa Mãe” etc. Uma religiosa falecida confirma a importância da boa intenção, dizendo: ‘Tanto no mundo, como também nos conventos, acontece que muitas ações, boas em si, não são recompensadas por Deus, por não terem sido santificadas pela boa intenção.”

Também o ato heróico de amor baseia-se nessa intenção, quan­do oferecemos às pobres Almas do Purgatório, numa oferta livre, todas as nossas boas obras durante o tempo de nossa vida, assim como todos os méritos das obras de outras pessoas outorgáveis a nós depois de nossa morte. Com isso nada perdemos, pelo contrá­rio: sairemos lucrando, pois: “O que fizeste ao mais pequenino de meus irmãos, foi a mim que o fizeste.”

8o) Maria Ana Lindmayr diz que a água benta faz muito bem às Almas do Purgatório. Até Jesus a estimulava a aspergir água benta. Ela tinha o costume de dar essa água salutar às almas antes de deitar-se, e diz: “Certa vez me havia esquecido disso e me deitei

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para dormir; mas as almas ao redor de minha cama não me deram sos­sego enquanto não me levantasse e as bomfasse com água benta.” Quando lhes damos água benta, a prece da Igreja sobe ao céu e atrai graças, pois a água foi benta pelo padre e é um sacramental da Igreja. Mas também na fé e na confiança do cristão que a usa, baseia-se o efeito da água benta. As almas sentem a força purificadora e santificadora da água, mas tam­bém o amor daquele que lhes dá esse alívio.

9o) Acender velas aproveita às almas porque é um ato de atenção e de amor para com elas e porque as velas foram bentas e alumiam as trevas das pobres almas.

Temos meditado a desgraça do pecado, mesmo do assim chamado pecado “leve” ou venial. Devemos, por conseguinte, reno­var o propósito de combater fraquezas e faltas. Nossa vida deve transbordar da consciência da presença divina de Jesus em nosso interior, para que fiquemos plenos de seu amor, que abrange tudo e todos, e para que nos deixemos ser totalmente transformados por ele. Vivendo assim intimamente unidos com ele, poderemos dar mais àqueles que não podem ajudar-se a si mesmos: às pobres Almas do Purgatório.

Oração pelas almas: Misericordiosíssimo Senhor, vós quereis que rezemos pelas almas. Por isso, pelas mãos puras de Maria, vos oferecemos todas as santas missas que hoje serão celebradas em vossa honra e pela redenção das Almas do Purgatório. Humildemente vos pedimos que os méritos copiosíssimos de vosso mui querido Filho paguem as culpas das pobres almas e que delas tenhais compaixão. Amém.

Ato heróico de amor pelas pobres almas: Eterno Pai, em união com os méritos de JesuseMaria, vos ofereço, pelas pobres almas, todos os meus atos de reparação e de satisfação de minha vida, como também tudo quanto por mim será oferecido depois de minha morte. Entiego tudo às mãos da Imaculada Virgem Maria. Ela quer aplicá-lo àquelas almas que, com sua sabedoriae seu amormatemal, desejamlibertar-se do purgatório. Pai celeste, aceitai, benigno, esta minha oferta e fazei que eu cresça todos os dias em vossa graça. Amém.

Pe. Kaspar Demmeler

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O sofrimento purificador

O que acontece, quando, depois de sua morte, o homem deixa o espaço restrito e fechado da História e aparece diante do Deus vivo? A luz de sua verdade descobre tudo; a força de sua santidade rejeita o que é manchado e impuro.

A fé nos diz que o homem querido por Deus, procurado pela graça e animado por sua boa vontade, será aceito no céu. O amor do Pai o faz participante da justiça de Cristo— não que o homem tivesse direito a isso e o merecesse, mas por graça. O que significa isso? A Justiça outorgada não é qual manto que cubra o que é mau, feio e sujo, pois Deus perdoa o pecado, e seu perdão diverge totalmente do nosso. Quando nós dizemos a alguém que nos magoou: “Não tenho nada contra ti”, o fundo existencial do nosso próximo não é atingido. Com o perdão de Deus acontece algo bem diferente: seu perdão não é da “superfície”, como se Deus não nos guardasse mais rancor, como se o olhar divino ou o seu coração tivesse amolecido; Deus é imutável e o que muda é a atitude existencial do homem. É este que deve tomar­se diferente e mudar de modo que Deus possa amá-lo. O amor divino transforma o homem, mas não como se fosse por um truque mágico, pois o amor autêntico é verdadeiro. Deus dá ao homem um “coração novo, uma vida nova”. No entanto, isso não quer dizer que o passado é como se fosse apagado, de tal maneira como se nunca houvesse existido. No coração humano deve dar-se uma transformação, uma purificação, uma “repetição” do passado.

Quando o homem morre, deixa o tempo. Passou “o dia” no qual pode “fazer as obras de Deus” (João 9, 4). Com a morte acabou o “fazer”, apenas pode o “existir”, pode o “ser”. E nele, já não pode modificar-se nada?

Não naquele que está “concluído”, confirmado pelo juízo divino, na pura atualidade da vida eterna. Tampouco será possível qualquer modificação naquele que terminou sua vida de vontade perversa: foi reprovado por Deus e permanece congelado para todo o sempre.

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Mas o que se dá com os homens de boa vontade, cuja vontade ainda não se identificou de modo total com o “ser” — os homens cuja boa vontade penetrou apenas acanhadamente a superficie, enquanto por baixo rumorejava a revolta, e das profundezas subiam os miasmas dos bons propósitos em decomposição? Poder-se-ia objetar que pensamentos tais seriam apenas elucubrados de maneira demasiada­mente humana e que, para a alma, aparecendo diante de Deus, ficaria sem sentido tudo que traz a marca do efémero. Faltas, insuficiências, contradições, lacunas, omissões, atos e delitos, erros e falsidades, tudo o que havia sido feito no emaranhado da existência humana, tudo ficaria sem importância diante da força santificadora e amorosa da graça divina. Se existisse o “único necessário”, a união da graça e liberdade, e o desejo de agradar a Deus, haveria o essencial para participar da glória dos filhos de Deus (Romanos 8,21), qual criação autêntica da força criadora do Senhor.

Esse pensamento é tão grande e tão piedoso que, à primeira vista, nos fascina; entretanto não está certo. Engana-se quem acentua demais o que parece grandioso e com isso já não liga ao que parece insignificante, pois também isso existe. A redenção não é obra de entusiasmo, mas procede do amor que é inseparável da verdade. A graça de Deus é tudo, mas não de modo que, por causa dela, o ato humano, as faltas no decorrer da vida, os fracassos e desvios da vida pudessem ser considerados como inexistentes. Diante de Deus, que é a verdade, tais atos não podem, simplesmente, ser ignorados. Seu amor não consiste em não tomar conhecimento dos defeitos, mas em colocá-los na verdade e em extirpá-los — cada um deles, mesmo os mais insignificantes — e arrancá-los totalmente, pelas raízes mais finas e mais fundas.

Mas como se fará isto se o tempo já passou e o homem já não é capaz de agir? A Igreja diz que ele pode sofrer e que seu sofrimento procede de seu próprio estado e que o seu padecer é, ao mesmo tempo, sua superação.

Quando tal homem entra na luz de Deus, ele se vê com os olhos dele. Ele ama a santidade divina e se odeia a si mesmo porque está em

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oposição à Divindade. Ele compreende e sente sua situação, o que nunca se dera em sua vida. Vendo-se como Deus o vê, sobrevém-lhe um sofrimento inominável, um indescritível nojo de si mesmo. Esses sentimentos agem nele, purificando-lhe a mentalidade que apaga as conseqiiências e leva a vontade a só querer o bem. Todas as forças vivas do seu ser colaboram para conseguir uma aceitação to­tal do bem, que é o novo universo em que doravante vai viver, que perpassa toda a sua existência, que entende como única realidade do ser. Nesse processo do lento e doloroso definhamento até à morte definitiva dum passado vergonhoso, e do nascimento de uma limpi­dez e pureza, de uma sinceridade e transparência, a vida vence a morte, a verdade vence a mentira, de maneira que até o culposo vazio de uma vida distante de Deus se aproveita do renascimento espiri­tual. Na entrega total da criatura à vontade onicriadora de Deus, recupera-se o que foi perdido durante a vida: o sofrimento não aceito na terra, aceita-se plenamente no purgatório; a verdade não reconhe­cida é agora abraçada, o amor não praticado em vida, pratica-se na purificação e por toda a eternidade. A transformação se dá, sobre­tudo, pelo arrependimento. Este não é apenas dor dos erros e peca­dos no passado, nem só a vontade de fazer tudo melhor no futuro, mas é o reviver consciente e voluntário do acontecido, colocando-o na balança da Justiça e Santidade de Deus, para refazê-lo conforme a vontade divina, pela força do Espírito Criador.

A psicoterapia pode ajudar-nos um pouco para compreender­mos melhor o que se dá no purgatório. Ela diz o seguinte: quando alguém, em sua mocidade ou num momento tentador qualquer, fracassou diante de uma exigência, de um dever etc., tal fato perma­nece na esfera do inconsciente e de lá envenena toda a vida da pessoa. Aí serão infrutíferos os esforços para tentar esquecer ou ignorar o acontecido: é necessário reevocar voluntariamente o que se passou, pesá-lo na balança da Justiça Eterna, admitir a culpa e fazer reparar o que for possível.

Tudo quanto foi dito nos mostra “pistas” a tomar para entender melhor o mistério do Purgatório — pistas, e nada mais, pois a graça

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que perdoa e que renova é um mistério para a mente humana.O juízo depois da morte significa que o homem se vê na

claridade do Deus infinitamente santo: ele vê as situações e as causas, o passageiro e o essencial, o exterior, o interior e o mais íntimo, o conhecido e o escondido, o que jazia nas profundezas mais ocultas e o que estava coberto apenas por leve camada do esquecimento ou de repressão voluntária. No tribunal de Deus, o homem vê tudo com total clareza. Em vida, ele recorreu a um sem-número de truques para se tomar insensível ao passado, a meios que lhe forneciam o orgulho, a vaidade, as distrações, a indiferença etc. Na presença de Deus, isso é impossível. A alma está toda aberta à verdade, que penetra todo o seu ser, sobretudo o seu íntimo, que jamais procurara conhecer. Na presença de Deus não existe absolutamente nada que a possa distrair. Ela é contra si mesma, contrariando todos os argumentos que colecionara em vida, para não pensar na prestação de con tas na hora da morte. Agora, quer refazer sua vida conforme o Espirito Santo lho conceder. Urna vez que ela vive na verdade e se toma qual “contrição personificada”, o Espirito Criador lhe dá o que haviajogado fora e põe em ordem o que ela havia perturbado e estragado, refazendo o que era mau e transformando-o em bem.

O essencial do purgatorio está, pois, na purificação da alma de tudo quanto não agrada a Deus. Nenhum coração bem formado poderá recusar o consentimento a essa verdade que vai ao encontro dos anseios mais profundos do nosso ser. Pois quem de coração bem formado não tem o desejo de “ser todo puro e todo santo”?

Tomo a dizer que, em nossas reflexões, nem todas as perguntas a respeito do purgatorio foram respondidas; não se falou por exemplo na reparação, incluída, necessariamente, no estado de purificação.

Entendemos, porém, as inúmeras idéias erradas que se ligam ao conceito sobre o purgatorio. A expressão “Pobres Almas” é produto de grande ternura e de amorosa preocupação, mas encerra também não pouco de pequenez de espírito e de mesquinharia. Os “falecidos que estão na mão de Deus” não querem a nossa comiseração; sofrem padecimentos inomináveis, mas esse sofrimento é de grande digni­

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dade. Se amássemos alguém às voltas com problemas, erros e difi­culdades, e se víssemos, um dia, quanto esforço faz para sair dessa situação, como luta, como despende todas as energias para se libertar de laços indignos, empolgados por seu combate heróico, tomaríamos parte em sua luta e o ajudaríamos na medida do possível. Afastemos, sobretudo, qualquer pensamento de orgulho em relação às almas, como se fôssemos melhores que essas “coitadas”, ou até desejos de que algumas delas sofram bastante, visto que, em vida, não nos eram simpáticas ou até nos fizeram sofrer. A Escritura nos diz que elas sofrem, mas “que se preparam para a participação da liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Romanos 8,21).

Romano Guardini

As doze bem-aventuranças das Almas do Purgatório

São Bernardino de Sena (1380-1444), famoso franciscano e missionário italiano, fala de doze bem-aventuranças das pobres almas — fonte de alegria delas — e por ele assim exaltadas:

1°) As Almas do Purgatório estão consolidadas na graça, razão por que já não poderão cometer pecados — nem no querer nem no fazer.

2o) Elas têm a certeza da salvação, pois a posse da felicidade eterna já lhes está garantida.

3o) Estão de acordo com a vontade de Deus, pois aceitam o castigo conforme a sua justiça e o seu amor.

4o) Alegram-se porque estão sendo transformadas em puro amor e, por isso, aceitam, de livre vontade — qual verdadeiro benefício — qualquer dor.

5o) Alegram-se porque granjearam o amor dos santos, que rezam por elas e delas estão muito próximos, fazendo-as participar da luz eterna (os anjos consoladores descem ao purgatório como aquele anjo desceu para fortalecer o Senhor no Getsêmani, no vale das Lágrimas).

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6o) Alegram-se porque pertencem à comunhão dos santos, como Igreja padecente que, por sua vez, pertence ao corpo místico e que participa dos méritos de todos os seus membros.

T ) Alegram-se porque se santificam a si mesmas.8o) Alegram-se, também, porque ganham ajuda das pessoas

ainda vivas no mundo.9o) Sorvem a alegria de tudo quanto recebem: de cada dádiva,

de cada donativo, de cada remédio que os vivos lhes propiciam.10o) Gozam ainda da alegria dos que contribuem para satisfazer

a justiça divina.1 Io) Sentem especial alegria por qualquer contribuição para a

diminuição de seus sofrimentos e que as faça aproximarem-se da justiça divina.

12°) Participam da alegria geral em relação a tudo o que se aplique aos mortos, na medida da justiça amorosa de Deus.

São essas alegrias todas que propiciam às almas do purgatório suas doze bem-aventuranças.

Oração pelas Almas do Purgatório

SantíssimaTrindade, Deus eterno e todo-poderoso, mostrastes, certa vez, ao santo Cura d’Ars, a beleza de uma alma. Foi qual explosão de beleza e luz que transcende toda capacidade humana de compreensão, e João Maria Vianney teria morrido naquele instante sem vossa ajuda milagrosa para mantê-lo vivo.

Como é possível que a alma seja tão bela? É porque ela é um pensamento vosso, um reflexo de vossa beleza, criação vossa segun­do a vossa imagem e semelhança, nenhuma igual a uma outra, cada qual com sinais inconfundíveis e preferenciais.

O homem, enfraquecido pelo pecado original, perde facilmente a inocência, deixa-se arrastar pela tentação para cá, para lá, entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo, e freqiientes vezes termina entre oposição e emaranhamento em culpa e pecado. No entanto, não vos

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cansais de nos estender vossa mão benigna após as nossas quedas e de conceder-nos a vossa indulgência.

Mas, recebido o perdão, não nos é poupada a purificação da ferrugem do pecado e o pagamento de todas as nossas dívidas. São Paulo diz que seremos purificados como que “por intervenção do fogo” e, conforme as palavras de vosso Filho, “do lugar purificador não se sai até que tenha sido pago o último centavo da divida.” As Almas do Purgatorio sentem a vossa perfeição infinita, sabem que odiais o pecado, que viveis na luz inacessível, e alma alguma ousaria aproximar-se de vós, mesmo se pudesse, enquanto tivesse a mais pequenina mancha de pecado. O anseio por vós queima-as qual fogo e elas mesmas ardem no desejo de serem purificadas no fogo do vosso amor, qual bronze na brasa.

Pai eterno, vosso Filho Jesus permitiu-nos chamar-vos Abba, Pai querido. Amais vossos filhos e sacrificastes vosso Filho unigénito para nos salvar, a nós que somos vossos filhos adotivos. Pai, apiedai- vos das Almas do Purgatório. Oferecemo-vos, por intercessão do Coração doloroso e imaculado da Virgem-Mãe, o Sangue Precioso de vosso Filho. Pedimo-vos pelos méritos de vosso Filho: abreviai o tempo de sua purificação, enxugai-lhes as lágrimas, como foi anun­ciado na Escritura, apertai-as ao vosso peito e guardai-as para sempre no vosso Coração.

Jesus, Filho unigénito do Pai, nascestes da Virgem Maria, ficastes nosso irmão e subistes ao céu para nos preparar uma morada na casa do Pai. Compadecei-vos das pobres almas, lavai-as no vosso Sangue, apagai as suas faltas pelos vossos méritos e relembrai-as diante de vosso Pai e de todos os Anjos e Santos.

Espírito Santo, que procedeis do Pai e do Filho, vós sois a terceira Pessoa na Divindade. O Pai nos criou, o Filho nos remiu e vós, Espírito Divino, nos santificastes. Por isso, o purgatório é, sobretudo, obra vossa, que sois o Espírito do Fogo do Amor Divino. Recomendamo-vos as almas que se encontram no purgatório do vosso Amor Divino.

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Vós as purificais porque as amais; vós as santificais porque quereis embelezá-las como Deus as imaginava. Espírito Santo, por amor à glória de Deus, fazei delas uma nova criação (Gálatas 6,15), apressai a obra de vossa santificação e perfeição, pois todos os Anjos e Santos se alegram por cada alma que entrar no céu, no brilho da inocência readquirida.

Santíssima Trindade, Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, nós, a Igreja militante, vos pedimos, pela Igreja padecente no purgatório, por nossos irmãos e irmãs no purgatório. Ouvi a nossa oração para que, junto a nós, elas possam interceder por nós.

Amold Guillet

Ao encontro dos finados

A oração nos conduz aos finados, e devemos procurá-los diariamente. Ela é o laço de amor, o início de uma união que se toma mais e mais rica e mais palpável quanto mais nos aproximarmos deles.

Reinold Schneider

“Quando minha alma tiver abandonado o corpo, acompanhai- a com vossas orações. Lembrai-vos de mim também no trigésimo dia, pois os falecidos recebem grande ajuda pelas rezas e pelo sacrifício dos vivos.”

Efrém, o sírio doutor da Igreja

(306-373)

Relato de Santo Agostinho

Enquanto eu me encontrava em Milão, contaram-me o caso seguinte, como tendo acontecido realmente:

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Um credor apresentou a alguém um título de dívida de seu fale­cido pai, exigindo que pagasse a soma devida. Mas o pai havia pago a dívida sem que o filho o soubesse. O jovem estava muito aflito e estranhava que o pai, antes de morrer, nada lhe falara a respeito de tal dívida, visto que fizera também um testamento. Quando o filho se encontrava na mais profunda depressão, apareceu-lhe em sonho o pai e mostrou-lhe o lugar onde se achava o recibo pelo qual o título da dívida caducara. O recibo foi, pois, encontrado e apresentado ao juiz. O jovem não só provou que a acusação fora falsa, mas recebeu também o título da dívida, escrito pelo pai e que não lhe havia sido devolvido por ocasião do pagamentodadívida.Temosaquiumcasoqueprovateraalmado falecido se preocupado com o filho e o procurara em sonho para esclarecê-lo a respeito de um assunto ignorado, livrando-o, deste modo, de uma grande inquietação interior.

Aurélio Agostinho

“Não temas, sou o primeiro e o último, o vivente, estive morto, mas eis que vivo pelos séculos dos séculos. Tenho as chaves da morte e do abismo” (Apocalipse 1, 18).

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ÍNDICE

Apresentação............................................................ .................... 7Prólogo de Arnold Guillet............................................................ 9Prefácio do Dr. Peter Gehring........................................................ 35Diário da princesa Eugênia von der Leyen................................ 45A freira............................................................................................ 45A condessa Maria Schõnborn........................................................ 47Os “onze” e o pároco Schmuttermeier........................................ 48Bárbara eTomás............................................................................. 50Nossa velha cozinheira Crescência e a mãe assassina............... 51Miguel, o marceneiro.................................................................... 53Muitas mulheres e muitos homens................................................ 53Nicolau, o criado particular........................................................... 55Babette............................................................................................. 55A mulher no cercado das galinhas............................................... 58Aproxima-se a redenção............................................................... 58Fritz, o pastor assassinado............................................................ 59No abandono.................................................................................. 63Sou feliz......................................................................................... 65Um cavaleiro em sua armadura de gala....................................... 65Duas irmãs que deram escândalo................................................. 67Tia Maria Sch................................................................................ 68Adelgunde, a mãe assassina......................................................... 69Eu tinha idéias muito mundanas.................................................. 71Catarina.......................................................................................... 72Eu sempre desunia os homens..................................................... 81Catarina morreu em 1680............................................................ 82Henrique torna-se brutal................................................................. 84Salva por dar esmolas...................................................................... 86Não me podes contar nada do Além?............................................ 87

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O Monstro...................................................................................... ...90Nós todos caminhamos no escuro................................................ ..93O tormento diminui, continua o castigo.........................................97O “Miserável” se dá a conhecer................................................... ..99Quando morrerei?............................................................................106Reinaldo.......................................................................................... ..107Hermengarda ajuda-me a rezar.................................................... ...112Aparece o conselheiro Fridolino Weiss.........................................115V em oD r.G ................................................................................... ..117V iviátoa........................................................................................ .. 122A velha trapeira.............................................................................. ..124Ele cumpriu a promessa................................................................ ..128Nem em Munique encontrei sossego.............................................131Aparece o padre O..., o meu antigo professor de religião........ ...133Estou em estado de purificação................................ ................... ..133O orgulho espiritual fez em mim um solitário........................... ..134Um assassino visto também por uma criança............................. ..137Aparece o pároco Natterer............................................................ ..139João...................................................................................................140“O pobre Martinho”.........................................................................143Sou a culpa ainda não resgatada................................................... .146Um dominicano......... .................................................................... .148O que acontece logo depois da morte............................................149Sabes quando morrerei?............................................................... ..152O macaco é Egolf von R ............................................................... ..156Gisela................................................................................................162Uma religiosa em forma de cobra.................................................164A forma de cobra, imagem da vida.............................................. ..168Um sinal............................................................................................170Um conhecido fala do abismo...................................................... .171Eleonora.......................................................................................... .174Nicolau........................................................................................... ..178A Sra.W ......................................................................................... ..184Betty................................................................................................ .185

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N..., ojardineiro............................................................................. ..186Cecília......................... ................................................................... ..187A amiga esperando a recompensa................................................ ..188Uma impressão indescritível........................................................ ..189O dia 9 de agosto.............................................................................190João...................................................................................................191Uma velha senhora em minha escrivaninha.............................. ..192Uma testemunha............................................................................ ..193A mãe do pároco............................................................................ ..193Posfácio do Dr. Peter Gehring..................................................... ..195

AnexosA doutrina da Igreja sobre as Almas do Purgatório(Pe. Kaspar Demmeler)............................................................... ..202O sofrimento purificador (Romano Guardini)........................... ..211As Almas do Purgatório segundo a doutrina deSão Bernardino de Sena............................................................... ..215Oração pelas Almas do Purgatório................................................216

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edições

Diretor Responsável: Néstor A . Zatt Diretor Administrativo: H ely V az D iniz Diretor Editorial: Américo Romito Gerente Comercial: Paulo Rosemberg Assistente Editorial: Gilda Tom iko Hara Cinquepalmi Revisão-Preparação: José Joaquim Sobral

Cesar A . A. dos Santos W ilton Vidal de Lima

C hefedeA rte: Silvia Regina Villalta

>^¡r\ Esta obra foi composta e impressa na industria gráfica da | f U | Editora Ave-Maria Rúa Martim Francisco, 656.\S Í J 01226-000 São P a u l o - S P - Brasil.

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Conversando com as Almas do

PurgatorioAo longo de quase urna década (1921-1929), a

princesa Eugênia von der Leyen, cuja vida se voltara para a contemplação mística de Deus, recebeu, diutumamente, visitas das almas do purgatorio, com as quais travava os mais espantosos diálogos.

Sob as mais diferentes formas, até mesmo animalescas (macacos, serpentes), as almas apareciam-lhe e diziam- lhe por que tinham ido para o purgatório, como lá sofriam e como lá podiam ser socorridas. Para isso precisavam percorrer um longo e penoso caminho de purificação, para, depois, escoimadas de todas as manchas, ungirem- se, triunfantes, no amor a Deus.

Na maioria desses encontros — aos quais as almas compareciam em busca de ajuda —, a princesa sofria muito. Via e sentia coisas terríveis, que chegavam a provocar-lhe sucessivos desmaios. Mas encontrava em Deus forças suficientes para aceitar o sofrimento reparador.

E a ninguém a princesa ousou falar sobre tais apari­ções — até que, um dia, as revelou ao seu confessor e diretor espiritual, o pároco Sebastião Wieser, que a acon­selhou a anotá-las em um diário, do que resultou este livro.

Conversando com as Almas do Purgatório — intenso e absorvente—não é, pois, uma história que se conta, mas uma experiência que se vive. E que não pode ser apre­endida pela razão, porque só é acessível aos dotados de fé e, sobretudo, da fé que se apóia na Revelação.