contribuições do método etnográfico e da análise semiótica...

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1 EIXOS TEMÁTICOS: A dimensão ambiental da cidade como objeto de discussão teórica ( ) Interfaces entre a política ambiental e a política urbana ( ) Legislação ambiental e urbanística: confrontos e a soluções institucionais ( ) Experiências de intervenções em APPs urbanas: tecnologias, regulação urbanística, planos e projetos de intervenção ( ) História ambiental e dimensões culturais do ambiente urbano (x) Engenharia ambiental e tecnologias de recuperação ambiental urbana ( ) Contribuições do método etnográfico e da análise semiótica para a compreensão de áreas de APP Urbana Contributions of the ethnographic method and semiotic analysis to the comprehension of urban Areas of Permanent Preservation PONTES, Louise Barbalho (1); ABREU, Paula Vanessa Luz de (2); AMARAL, Regina Almeida (3) (1) Mestranda, UFPA – PPGAU. Brasil, [email protected] (2) Mestranda, UFPA – PPGAU. Brasil, [email protected] (3) Mestranda, UFPA – PPGAU. Brasil, [email protected]

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EIXOS TEMÁTICOS: A dimensão ambiental da cidade como objeto de discussão teórica ( )

Interfaces entre a política ambiental e a política urbana ( ) Legislação ambiental e urbanística: confrontos e a soluções institucionais ( )

Experiências de intervenções em APPs urbanas: tecnologias, regulação urbanística, planos e projetos de intervenção ( ) História ambiental e dimensões culturais do ambiente urbano (x)

Engenharia ambiental e tecnologias de recuperação ambiental urbana ( )

Contribuições do método etnográfico e da análise

semiótica para a compreensão de áreas de APP Urbana Contributions of the ethnographic method and semiotic analysis to the

comprehension of urban Areas of Permanent Preservation

PONTES, Louise Barbalho (1); ABREU, Paula Vanessa Luz de (2); AMARAL, Regina Almeida (3)

(1) Mestranda, UFPA – PPGAU. Brasil, [email protected]

(2) Mestranda, UFPA – PPGAU. Brasil, [email protected] (3) Mestranda, UFPA – PPGAU. Brasil, [email protected]

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EIXOS TEMÁTICOS: A dimensão ambiental da cidade como objeto de discussão teórica ( )

Interfaces entre a política ambiental e a política urbana ( ) Legislação ambiental e urbanística: confrontos e a soluções institucionais ( )

Experiências de intervenções em APPs urbanas: tecnologias, regulação urbanística, planos e projetos de intervenção ( ) História ambiental e dimensões culturais do ambiente urbano (x)

Engenharia ambiental e tecnologias de recuperação ambiental urbana ( )

Contribuições do método etnográfico e da análise

semiótica para a compreensão de áreas de APP Urbana Contributions of ethnographic method and semiotic analysis to the comprehension

of urban Areas of Permanent Preservation

RESUMO Áreas de Preservação Permanente em meio urbano têm sido reguladas de maneira generalizada resultando em medidas que não alcançam a complexidade do espaço urbano e que não garantem qualidade de vida à população. Surge a necessidade de abordar as APPs em suas especificidades locais, em sua dimensão cultural e de forma transdisciplinar. Para isso, apresenta-se aqui o método etnográfico – incursão a campo, observação participante, olhar não-habitual, descrição detalhada – e a análise da semiótica como ferramentas alternativas que permitem conhecer e interpretar as realidades locais em seus aspectos sociais e culturais e em sua dimensão cotidiana. O trabalho apresenta os resultados da etnografia às margens de um corpo d’água da cidade de Belém no qual já houve intervenção pública. Estes resultados permitem tanto o conhecimento da realidade de um local que recebeu uma intervenção indiscriminada quanto alimentam a discussão sobre a utilidade do método para subsidiar futuras intervenções. Defende-se que o método etnográfico – a “lupa” para um olhar mais detalhado da realidade – pode ser uma ferramenta útil para incorporar a dimensão humana na prática do planejamento e projetos urbanos, aproximando as intervenções públicas dos modos de vida do lugar. PALAVRAS-CHAVE : Áreas de Preservação Permanente Urbanas; método etnográfico; análise semiótica, intervenções públicas. ABSTRACT Permanent Preservation Areas in urban areas have been covered in a generalized form resulting in action that do not reach the complexity of urban space and do not guarantee quality of life for the population. The need to address APPs in their local peculiarities arises because of its cultural dimension and interdisciplinarity. Because of this, we present the ethnographic method – a foray into the field, a participant observation, an unusual view and a detailed description – and a semiotic analysis as alternative tools that allow understanding and interpreting the local realities in their social and cultural aspects and their everyday dimension. This paper presents the results of ethnography on the banks of a water body of the city of Belem in which there have been public intervention. These results allow both the knowledge of the reality of a place that received an indiscriminate intervention and nurture the discussion on the usefulness of the ethnographic method to inform future interventions. It is argued that the ethnographic method - a "magnifying glass" for a more detailed view of reality - can be a useful tool for incorporating the human dimension in the practice of planning and urban design, by approaching public interventions to the place’s lifestyle. KEY-WORDS: Urban Areas of Permanent Preservation, ethnographic method, semiotic analysis, public interventions.

1. APP URBANA: UM DESAFIO METODOLÓGICO

A ocupação irregular em solo urbano está presente na maioria das cidades brasileiras, representando uma alternativa de moradia à uma parcela significativa da população de

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baixa renda, que não tem acesso ao mercado imobiliário formal. Estas estruturas ilegais se apresentam como soluções frente à ineficiência das políticas habitacionais em relação ao acelerado processo de urbanização do país.

Enquanto a cidade regular e dotada de infraestrutura torna-se inacessível em função dos altos custos e da regulação urbana tradicional e inflexível, a cidade irregular se consolida em áreas isoladas, de fragilidades físicas e impróprias para a ocupação, áreas que foram desprezadas pelo mercado imobiliário (MARICATO, 2003; CHAER, 2007). Esta cidade irregular está predominantemente implantada em áreas de vulnerabilidade ambiental, que, na maioria dos casos se enquadram nas Áreas de Preservação Permanente (MELLO, 2008).

A ideia que gira em torno do conceito de APP surgiu inicialmente considerando apenas aspectos biofísicos não presentes no cenário urbano (MELLO, idem), referindo-se às florestas protectoras do Primeiro Código Florestal Brasileiro, instituído em 1934. Essas áreas só passaram a ser de preservação permanente com o Código Florestal Brasileiro de 1965 (Lei Federal nº 4.771/65), que apesar de apresentar um parágrafo voltado para áreas urbanas, não levou em consideração as especificidades do meio urbano.

Em 2011, após quase 50 anos em vigor, a Lei Federal nº 4.771/65 passou por amplos debates e discussões, culminando na sua revisão e substituição pelo novo Código Florestal Brasileiro (Lei Federal nº 12.651/12). Este, mais uma vez, não enfrentou a discussão sobre o meio construído e o natural a ser protegido e deixou "em aberto" o tratamento de Áreas de Preservação Ambiental em meio urbano, mesmo quando a população brasileira tem 80% da sua totalidade vivendo em cidades nos dias de hoje (IBGE, 2010). Estes conflitos talvez venham do modo de ver as cidades como espaços não naturais, ideia que viria de uma tradição que colocou a cidade contra a natureza e a natureza contra a cidade (SPIRN, 1995).

Nas cidades da Amazônia soma-se um fator particular: a tradição de ocupação ribeirinha que torna ainda mais evidente a necessidade de repensar as ferramentas previstas pelo Código Florestal e incluir na discussão do projeto de conciliação urbana-ambiental a dimensão cultural. Há quase um consenso a respeito das limitações das APPs urbanas enquanto estratégia de planejamento ambiental para as cidades brasileiras, posto que além dificuldade da legislação em enxergar as especificidades do meio urbano, bem como as particularidades de cada cidade e seu bioma, há um importante problema de escala: que ao considerar apenas a escala macro da realidade se mostra incapaz de dar conta de um debate tão complexo e atingir a microescala do desenho urbano. Levanta-se, então, a questão: em que base apoiar-se para pensar o projeto que concilie as margens dos rios urbanos com suas especificidades físicas e biológicas à vida cotidiana e à cultura local?

Desta forma, a utilização de outros métodos e abordagens que se aproximem da realidade numa escala reduzida podem contribuir para o enriquecimento do debate em torno das APPs urbanas e para a formulação de projetos condizentes com a realidade em sua complexidade. O método etnográfico e a interpretação com base na semiótica aparecem, nesse sentido, como uma ferramenta possível na busca de abordagens complementares para o enfrentamento do desafio imposto às áreas marginais a corpos d’água na cidade de Belém.

Este trabalho pretende, portanto, apresentar uma metodologia alternativa que complemente as abordagens de cunho ambiental e urbano na busca de uma base para o projeto da qualidade urbana e ambiental que inclua também a vida cotidiana.

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2. METODOLOGIA

2.1. O OBJETO

A cidade de Belém, capital do estado do Pará, está localizada às margens do Rio Guamá e da Baía do Guajará, sendo entrecortada por diversos cursos d'água, características do bioma amazônico. Desde a sua fundação, no século XVII, teve estreita relação com as águas que a cercavam, inicialmente com função militar, visando a defesa do território, e posteriormente com função comercial, no caso dos vários igarapés que tinham nas suas desembocaduras no rio ou na baía pontos e entrepostos de comercialização (TRINDADE JR., 1997).

No entanto, a ocupação do sítio da cidade, desde o seu início, deu-se através de um traçado retilíneo que não levava em consideração as condições topográficas, havendo a necessidade de homogeneizar o plano da cidade: secando corpos d'água, aterrando-os ou simplesmente contornando-os. Dessa forma, as áreas de cotas mais altas foram ocupadas pela população de maior poder aquisitivo e por instituições públicas, enquanto as áreas de várzea, de cotas mais baixas (e desocupadas), tornaram-se opção para a população de menor poder aquisitivo, configurando-se na cidade informal, também conhecida por baixada (RODRIGUES et al., 2012).

O processo de produção das baixadas de Belém foi intensificado na década de 1960 com o grande contingente populacional vindo do interior do Pará e de outros estados, em função da atratividade dos grandes projetos executados na região amazônica. Cabe destacar que até então predominava na região uma racionalidade ribeirinha, de relação intrínseca com os rios, e que muitos desses migrantes buscaram reproduzir a mesma racionalidade de seus locais de origem nas baixadas de Belém (CARDOSO; VENTURA NETO, 2013).

Devido às sucessivas inundações, ao adensamento e à carência de infraestrutura essas áreas eram comumente vistas como suscetíveis à epidemias, e passaram, a ser objeto de ações públicas que visavam solucionar problemas de saneamento e prometiam “qualidade de vida” às populações que as habitavam. As ações tiveram foco sanitarista e apresentavam como solução a retificação dos cursos d'água e geometrização das suas calhas, tornando-os elementos técnicos, transformando rios em canais, ainda assim, mesmo os problemas sanitários não foram satisfatoriamente resolvidos nas áreas de implementação desses projetos (RODRIGUES et al., 2012).

O objeto a ser analisado neste trabalho está contido em uma das ações desse tipo ocorridas na cidade, a Macrodrenagem da Bacia do Una (Figura 1), projeto resultado do diagnóstico do Programa de Recuperação de Baixadas, idealizado na década de 1970 e executado pelo governo estadual em parceria com o municipal, utilizando-se de recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento. O projeto abrangia 9 bairros da cidade, e embora, dispusesse de abundância de recursos financeiros e suporte gerencial e profissional, não alcançou níveis de urbanidade satisfatórios (BRASIL, 2004). As incursões a campo foram realizadas no perímetro entre as avenidas Senador Lemos e Pedro Álvares Cabral e seu entorno imediato - o Canal do Galo (Figura 2).

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2.2. UMA METODOLOGIA ALTERNATIVA: O MÉTODO ETNOGRÁF ICO E

ANÁLISE DA SEMIÓTICA APLICADOS À ÁREA DE APP URBANA

A complexidade do espaço urbano exige uma visão transdisciplinar. Para aprender novas formas de olhar o espaço e seu usuário, pode ser útil desenvolver o olhar próprio da disciplina da Antropologia, na tentativa de desprender-se um pouco das amarras do pensamento urbanístico-arquitetônico permeado por uma racionalidade instrumental.

O método etnográfico é a ferramenta antropológica que conduz à observação e descrição detalhada de parte da realidade, na tentativa da construção de um olhar diferenciado e não-etnocêntrico (GEERTZ, 1991; LAPLATINE 1988). O método pertence ao campo da Antropologia Social e inicialmente foi empregado para o conhecimento de sociedades “primitivas”, exóticas, geograficamente distantes e de pequena dimensão. Posteriormente, as fronteiras do fazer etnográfico foram ampliadas – quando passaram, primeiramente, à pesquisa de pequenas sociedades urbanas e, em seguida a estudos de cidades de uma maneira geral, incentivados pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago (SOUZA; BARROSO, 2008). Atualmente, pode-se dizer que a aplicação do método não encontra restrições em relação a seus objetos e campos de estudo, e que não há “nenhum território da etnologia” (LAPLATINE, 1988), uma vez que toda as manifestações sociais são também culturais e carecem, para sua compreensão, de uma interpretação dentro do sistema simbólico – cultura – em que foi produzida (GEERTZ, 1991).

Para praticar a etnografia é necessário ir além de simples observação e descrição, sendo importante manter um diário, estabelecer relações, fazer levantamentos, entrevistas e transcrições – mas acima de tudo, o que define a prática etnográfica é o esforço intelectual interpretativo, a chamada “descrição densa” (GEERTZ, 1991). A descrição etnográfica é essencialmente interpretativa e microscópica (GEERTZ, 1991; LAPLATINE, 1988). Admitindo sua imparcialidade diante do objeto, o etnógrafo deve situar-se, colocar-se diante dele como sujeito, que carregado de história de vida, experiência, visão de mundo e subjetividade sempre produzirá um enfoque particular e essencialmente contestável. A prática antropológica requer simultaneamente extrema

Figura 2 : Trecho do Canal do Galo compreendido entre as avenidas S. Lemos e P. Álvares Cabral

Figura 1 : Bacias de drenagem e extensão de áreas alagáveis, com destaque para a Bacia do Una

Fonte: Adaptado de CODEM, 2000.

Fonte: Adaptado de Google Earth, 2013.

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proximidade e distanciamento da realidade estudada, sempre na busca do “olhar estrangeiro” que se surpreende e se prende a cada detalhe.

A visão microscópica é a leitura dos pequenos detalhes, dos aspectos cotidianos e concretos da realidade, é deter-se nos gestos, nas intenções, nos olhares, no anonimato ou no informal – que, embora sejam aparentemente secundários no estudo da sociedade, quando densamente conectados e analisados podem apoiar grandes conclusões e interpretações sobre o espaço e a cultura analisada (GEERTZ, 1991; LAPLATINE, 1988).

2.3. DELINEAMENTO DA PESQUISA

Este trabalho aplicou o método etnográfico para a aquisição de um conhecimento não etnocêntrico (tanto quanto possível) da realidade de uma Área de Preservação Permanente que já sofreu intervenção pública e da relação da população local com o espaço, para a partir de então, discutir as possibilidades e potencialidades de utilização do método no exercício de intervenção em áreas urbanas de preservação ambiental (Figura 3).

A incursão ao campo seguiu um roteiro previamente estabelecido, baseado, principalmente, nos estudos de etnografia de rua de Ana Luiza Rocha e Cornélia Eckert (2003). No entanto, mais do que delimitar rotas ou trajetos, o objetivo deste planejamento era definir formas de aproximação do objeto de estudo e aspectos a identificar no espaço para compreensão de sua lógica. O roteiro foi sistematizado da seguinte forma:

1. Aprender a pertencer ao território; 2. Perfilar personagens; 3. Descrever ações e estilos de vida;

Figura 3 : Delineamento da pesquisa e resultados esperados

Fonte: Elaborado pelas autoras, 2014.

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4. Delinear ambiências; 5. Reconhecer trajetos; 6. Interrogar-se sobre os espaços evitados; 7. Evocar origens do movimento temporal da paisagem; 8. Interpretar pequenos gestos, sorrisos, olhares, comportamento corporal, formas

de intenção e de cumprimentar; 9. Interpretar o espaço: fluxos, vazios, ruídos, silêncios e ritmos; 10. Criar um diário de campo – “descrição densa”; 11. Fotografar.

O exercício de aproximação da escala cotidiana das margens do Canal do Galo foi composto por três fases: (1) a busca pela compreensão do olhar antropológico, (2) a elaboração de um roteiro de observação, (3) a incursão ao campo e (4) análise dos dados obtidos a partir abordagem semiológica, fundamentada nos estudos de arquitetura e comunicação de Umberto Eco.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.1. ETNOGRAFIA DE RUA ÀS MARGENS DO CANAL DO GALO EM

BELÉM/PA

O produto da aplicação do método etnográfico para conhecimento da realidade local é a própria descrição etnográfica do observado em campo. Por este não ser um trabalho essencialmente da disciplina da Etnografia, entende-se que são necessárias algumas adaptações a esta descrição: o texto é redigido em terceira pessoa (reconhece-se, entretanto, o caráter subjetivo das impressões relatadas) e apresentado de forma resumida. O que busca-se expor aqui é o tipo de observação empreendida em campo e as impressões assimiladas pelas autoras.

Os resultados e discussões emergentes do exercício etnográfico foram didaticamente separados em três itens: (1) as temáticas procedentes do diário de campo: a dimensão cotidiana e a imposição do espaço; (2) a interpretação semiológica; e (3) a abordagem como subsídio para intervenção pública.

A dimensão cotidiana do espaço

As caminhadas pela Avenida Senador Lemos proporcionaram o encontro de um ponto central da ponte que atravessa o canal a partir do qual pode-se avistar o rio sem interferências, revelando uma vista impressionante: de um rio caudaloso e imponente, com águas escuras que contrastam com um verde intenso da vegetação das margens e o céu azul (Figura 4). Uma imagem que inevitavelmente é associada àquela Belém ribeirinha, a qual muito dos profissionais que intervém no espaço urbano conhecem mais por um apelo midiático que da vivência da cidade contemporânea.

Fomos nos aproximando à feira caminhando pela Senador Lemos e antes de adentrar o espaço da feira nos detivemos por alguns minutos frente ao rio, fiz algumas fotos e refleti bastante a respeito daquela paisagem...tão linda e tão esquecida... Para mim aquela imagem parecia um cartão postal e eu podia imaginar facilmente casais de namorados passeando às suas margens, crianças brincando, barcos levando passageiros de um lado a outro, todos suspirando por uma paisagem incrível e tão escassa em Belém (Trecho extraído do Diário de Campo, 2013).

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Figura 6: Estigma x afetividade: gesto de carinho entre mãe e filha sobre a ponte da Av. Pedro

Alvares Cabral

Fonte: Louise Pontes, 2013.

Figura 7: Encontro entre feirantes e Receptividade para com as pesquisadoras.

Fonte: Louise Pontes, 2013.

De fato, foi necessário superar o medo ao espaço desconhecido e estigmatizado, mas ao contrário do que o senso comum apontava, a incursão pelo local mostrou um espaço de permanência muito aprazível, espaço comum para os nativos, mas que para os demais habitantes da cidade de Belém se apresenta mais como um espaço de passagem que de permanência.

A configuração da vegetação e proximidade do rio geram no local um microclima que ameniza a temperatura e convida o pedestre a permanecer. As relações sociais parecem efusivas e aparentemente não-conflituosas: cheia de encontros pelos caminhos, entrosamento entre os usuários do espaço e solicitude para com as pesquisadoras. Esta percepção se contrapõe à imagem estigmatizada do Canal do Galo, de um lugar hostil, sujo e perigoso.

Além disso, em que pese a racionalidade homogeneizante das intervenções de micro e macro drenagem urbana em Belém, a diversidade é característica marcante do espaço analisado: diversas cores, cheiros, formas, homens, mulheres e crianças coabitam o espaço aparentemente sem que haja conflitos. O fluxo de pessoas em plena “hora da feira” não era tão intenso quanto imaginado: vendedores conversavam entre si, mas o barulho que vinha dos dois grandes corredores de tráfego era mais intenso que o do local.

Figura 5: Vista do Canal do Galo pela ponte da Av. Pedro Álvares Cabral

Fonte: Louise Pontes, 2013.

Fonte: Louise Pontes, 2013.

Figura 4 : Vista do Canal do Galo pela ponte da Av. Senador Lemos.

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A imposição de uma relação distinta com o espaço

As duas dinâmicas socioespaciais

Ao caminhar sobre a ponte da Avenida Pedro Álvares Cabral, o primeiro atributo percebido no espaço foi o descompasso entre as diferentes dinâmicas da cidade (nas mais diversas escalas: regional, intraurbana, e intra-bairro), a existência de dois aspectos da realidade, duas conjunturas que ocorrem paralelamente e não dialogam (Figura 10). No alto das pontes: vias expressas onde passam milhares de carros “apressados” (Figura 8), sem nunca se deter, imersos em suas próprias dinâmicas e alheios ao entorno; embaixo, longe da vista dos carros, quase que “propositalmente” escondido, um canal com duas vias laterais asfaltadas como se fossem receber a travessia de carros, mas onde se estabeleceu uma feira (Figura 9), onde as donas de casa caminham, jovens pedalam apressadamente, feirantes se reúnem em grupos de três ou quatro sob a sombra de uma vegetação abundante que fecha a visão das vias para o rio, que corre calmo, constante e indiferente ao burburinho ao seu redor. Do outro lado, casas em madeira de todas as cores e tamanhos, formando um patchwork residencial.

O movimento constante dos carros na ponte contrasta com o movimento dos pedestres em busca de mercadorias nas faixas marginais ao corpo d’água. Os carros atravessam e nunca se detém, cortam a feira que se espalha para os dois lados ponte, mas estão sempre de passagem. Os pedestres seguem outro ritmo, se detém e andam com traquejo pelas ruas transversais [...] (Trecho extraído do Diário de Campo, 2012).

A configuração espacial que nega o rio e o espaço socialmente à margem

As caminhadas pelas vias marginais ao rio, nas proximidades da Avenida Senador Lemos, revelou mais claramente a relação entre os dois contextos do local e o aspecto segregador do desenho urbano implementado. Encontrou-se uma vista que não se vê de dentro dos carros, que passa despercebida no espaço de passagem projetado para o local: acúmulo de lixo nas águas (Figura 11) e a falta de saneamento, aspectos que constituíam a imagem ilustrativa do descaso, da margem como falta de acesso e sem direito ao ambiente saudável. As incursões ao campo puderam revelar o lugar escondido pela realidade que lhe foi sobreposta, um espaço fisicamente e socialmente segregado em função das escolhas projetuais.

Figura 8: Av. Pedro Álvares Cabral e seus carros "apressados"

Fonte: Louise Pontes, 2013.

Figur a 9: Extensa feira estabelecida às margens do Canal do Galo

Figura 10: Croqui extraído do diário de campo: universos paralelos.

Fonte: Louise Pontes, 2013.

Elaboração: Louise Pontes, 2013.

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A altura das pontes construídas não permite a navegação no rio, a falta de saneamento faz com que não seja aconselhável tomar banho ou pescar, o rio tem uma nova função: carregar detritos da cidade inteira para longe do centro e das vistas, às margens corresponde mau-cheiro e doenças (Texto extraído do Diário de Campo, 2012).

Esta configuração espacial que “esconde” o rio também influencia na relação dos próprios moradores do local com as águas (Figura 12). A única vista livre para o rio é desde as pontes (justamente onde passam apenas os carros que nunca se detém), onde a escala humana é praticamente inexistente. Em ambas as margens do rio há vegetação abundante e em nenhum momento encontrou-se pessoas olhando para o rio com apreciação. Embora a vista seja surpreendentemente agradável, a fruição estética não se faz presente do dia-a-dia dos “nativos” no espaço.

Ainda que a presença do rio seja marcante e norteadora das dinâmicas que se dão ali há uma velada dimensão estética, que noutros rios da cidade é explorada e vendida como a almejada aproximação à natureza. A dimensão estética das margens do Canal é negada à semelhança de sua potencialidade para transporte ou lazer, o rio se apresenta com vazio, que só está ali por sua natureza impositiva, mas negado em todos as suas funções exceto à de carregar detritos da cidade inteira.

A cidade parece somente um lugar de passagem, talvez algumas pessoas dentro dos carros nem lembrem que ali passa um rio, mas a verdade é que nem os pedestres parecem nota-lo, é quase como se tornasse um vazio... (Trecho extraído do Diário de Campo, 2012).

O potencial reprimido do local

Assim como o rio parece não ser percebido pela população, o potencial de uso de suas margens também não é explorado. Após uma conversa com um vendedor de bananas do local, soube-se que as frutas que vendia vinham da Central de Abastecimento do estado (CEASA/PA), apesar da existência de árvores frutíferas nas margens do rio (Figuras 13 e 14). Este detalhe da realidade local apontou para a potencialidade reprimida da área e para a ineficiência da cidade. Com isso, é fácil perceber que a predominância de uma determinada maneira de se relacionar com o espaço se sustenta não apenas por aqueles que estão inseridos nela, mas pela ineficiência estratégica do que está “à margem”.

Figura 11: Desnível entre a ponte e as vias marginais ao rio

– desenho urbano que segrega e “esconde” a sujeira

Fonte: Louise Pontes, 2013.

Figura 1 2: configuração espacial de “costas” para o rio – influência sobre

os usuários do espaço

Fonte: Louise Pontes, 2013.

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A vida urbana apresenta evidente resiliência no espaço, o projeto construído nega todas as raízes culturais que a antecedem, não abarca a feira e seu potencial de gerar novas centralidades, não inclui o desejo manifesto de participação popular na produção do espaço seja através da auto-construção, seja através do plantio de espécies nas margens sobrantes do canal. Embora possam ser citadas limitações econômicas, o problema está na arbitrariedade com que as propostas são formuladas, a intenção projetual prioriza elementos da engenharia e não busca embasamento nas demandas do cotidiano.

Embora seja inegável a melhoria que essas intervenções sanitaristas podem proporcionar à uma população que foi obrigada por longos períodos a conviver com alagamentos e a precariedade, as intervenções sobre APPs urbanas em Belém além de estarem longe de alcançar um equilíbrio ecológico, dado o descaso relacionado ao saneamento básico, estas tem subestimado também o papel do desenho urbano para qualidade do espaço produzida. Escala humana, identidade local e atenção às necessidades particulares do local tem se apresentado como um “luxo” aos quais a população de baixa renda não tem acesso.

3.2. INTERPRETAÇÃO SEMIOLÓGICA

Para a interpretar os elementos identificados no local, parte-se aqui de uma análise própria da Semiologia. Eco (1991) compara o discurso arquitetônico às atividades de finalidade retórica e persuasiva como a imprensa, a televisão ou a publicidade e afirma que o discurso arquitetônico não apenas possui caráter persuasivo como também psicagógico (persuasão oculta), bem como é fruído na desatenção. Este discurso pode dotar-se de significados diferentes daqueles para o qual foi produzido, está sujeito a rápida obsolescência e sucessão de significados, move-se entre um máximo de coerção e de irresponsabilidade, e está imerso no sistema econômico e, portanto, sujeito a determinações do mercado.

Na escala urbana, a finalidade retórica descrita pelo autor se torna ainda mais evidente: intervenções autoritárias (com canalização de rios, construção de pontes e abertura indiscriminada de vias) que pouco levam em conta o modo de vida local e pretendem convencê-los, tanto de forma explícita quanto psicagógica, que as formas e vivências impostas são as mais adequadas. O descaso e falta de saneamento são fruídos na desatenção e podem dotar-se de significados aberrantes como os estigmas “sujo, perigoso” e mesmo o termo “canal” carrega consigo uma série de significados

Figura 13: Vegetação plantada pela população ás margens do canal.

Fonte: Louise Pontes, 2013.

Figura 14: Venda de frutas vindas da CEASA/PA

Fonte: Louise Pontes, 2013.

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Tabela 1: Elementos sintáticos e semânticos identificados através do método etnográfico e da análise semiológica

Tabela 2: Significados denotativos e conotativos identificados através do método etnográfico e da análise semiológica

aberrantes. A regularização do solo de forma indiscriminada, que negligencia a qualidade socioambiental, evidencia o aspecto coercitivo e irresponsável da intervenção pública.

Os códigos arquitetônicos que transmitem o discurso podem ser classificados em códigos sintáticos, que apresentam aspectos estruturais e códigos semânticos, com aspectos funcionais (ECO, 1991). As pontes construídas no local de estudo, por exemplo, aparecem como elementos sintáticos, enquanto a travessia e a conexão das margens do rio são seus correspondentes semânticos. No perímetro às margens do Canal do Galo pode-se identificar diversos elementos e suas acepções sintáticas e semânticas (Tabela 1):

Elementos Sintáticos Elementos Semânticos

Pontes Travessia; Conexão das margens do rio

Faixas de rolamento Acesso às vias transversais

Guarda-corpo das pontes Proteção

Escadas Acesso

Barracas da Feira Bancada Exposição de produtos

Cobertura Proteção do sol e da chuva

Elemento Significados Denotativos (função)

Significados Conotativos (simbolismo)

Rio Natureza Esgoto; Vazio; Memórias afetivas

Vias marginais ao rio

Acesso; Manutenção Distanciamento do rio; Apropriação do espaço público

Pontes Travessia Prioridade dada ao rodoviarismo; Ausência de escala humana; Autoritarismo; Segregação; Exclusão; “modernidade e higiene”

Vegetação Vida; Natureza Elos afetivos da vizinhança com o rio; barreira visual

Fonte: Diários de Campos, 2013 Elaboração: Autoras, 2014.

Fonte: Diários de Campos, 2013 Elaboração: Autoras, 2014.

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O signo arquitetônico, além das dimensões sintáticas e semânticas apresenta significados denotativos, que expressam funções explícitas, e conotativos, que se expressam implicitamente e possuem caráter simbólico (ECO, 1991). Por exemplo, o signo ponte denota travessia, mas pode conotar prioridade dada ao rodoviarismo, ausência de escala humana, autoritarismo, segregação e exclusão (outros exemplos são mostrados na Tabela 2). No entanto, os códigos arquitetônicos são limitados, pois são produzidas para necessidades que estão fora de seus códigos, daí a necessidade de apoiar-se em outros códigos, sobretudo o código antropológico, posto que a cultura é a quarta dimensão do espaço (ECO,1991). Nesse sentido, o mesmo signo (ponte), se interpretado no contexto daqueles que viabilizaram sua implantação e uso, pode conotar, modernidade, higiene e eficiência.

3.3. ABORDAGEM ETNOGRÁFICA COMO SUBSÍDIO PARA

INTERVENÇÃO PÚBLICA

Tratar cursos d'água com o objetivo de torná-los unicamente parte de um sistema de escoamento de micro e macrodrenagem, transformando o que antes era um rio em canal, foi intervenção padrão a partir da década de 1970 em Belém. Esta mudança favoreceu a visão de que as águas intraurbanas não são elementos naturais, mas algo utilizado apenas para escoamento de esgoto (RODRIGUES et al., 2013), ideia confirmada com uma configuração espacial que nega o rio.

A incursão a uma área que já recebeu intervenção pública, onde espera-se que as questões socioambientais estejam minimamente resolvidas, evidenciou que as propostas sanitaristas multiplicadas por toda a cidade pouco levaram em conta a cultura das populações ali estabelecidas e contribuíram para o agravamento do quadro de segregação e irresponsabilidade socioambiental. Tais intervenções alteraram usos, convenceram que rios deveriam ser canalizados, instrumentalizados e seus usos negados em detrimento de uma matriz rodoviarista e da falta de prioridade dada à universalização do acesso ao saneamento básico. A própria criação de vias laterais ao rio – estratégia padronizada e replicada sem reflexões a respeito de seu uso e funcionalidade – reforça o distanciamento do recurso hídrico e o hiato entre as proposições da engenharia e as demandas da vida cotidiana.

O descompasso entre os projetos produzidos de forma homogeneizante, pretensiosa e inadequada às demandas reais se traduz em um alto custo pago diariamente pela população atingida. Tem sido praxe a produção do espaço urbano de baixa qualidade para a população de baixa renda, propostas que alcançam metas quantitativas, mas atingem de forma superficial elementos desejáveis ao espaço urbano de qualidade. Ainda que existam estudos e metodologias capazes de orientar o desenho urbano e sua articulação com as dimensões culturais e ambientais, não tem sido prioridade das políticas e intervenções públicas em áreas de preservação permanente marginais a corpos d’água na cidade de Belém.

Nesse contexto, as mudanças mundiais no paradigma cidade-natureza advindas deste século colocam em evidência as formas obsoletas de intervir nos rios intraurbanos da cidade de Belém. Embora as legislações urbanísticas e ambientais sejam conflituosas e não levem em conta a cultura local, cabe não só aos arquitetos e urbanistas, como a

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todos os profissionais que lidam com a produção do espaço urbano, entender e interpretar a cultura do local e suas necessidades para não repetir os equívocos das intervenções do passado.

Para Umberto Eco “talvez o arquiteto seja a única e última figura do humanista da sociedade contemporânea obrigado a pensar a totalidade” (ECO, 1991; p. 243). A operação do arquiteto é fazer frente à possibilidade de diferenciação no curso da história, não cabe a este mudar comportamentos e movimentos da história, mas antecipar e acolher tais movimentos (ECO,1991).

A propósito, a experiência empreendida de incursão ao campo, em uma atitude de distanciamento de si mesmo, conduziu, além do conhecimento das vidas e práticas do “outro”, a um questionamento das próprias convicções, práticas e responsabilidades do arquiteto e urbanista. O medo inicial de visitar o local, as impressões estigmatizadas e preconcebidas revelam um profissional que, por vezes, está “contaminado” com a visão comum da realidade e com a assimilação acrítica das informações difundidas. Presos em seus contextos e práticas, o arquiteto e o urbanista podem não ter consciência das consequências de suas proposições e converter-se em administradores cegos da poderosa ferramenta do desenho urbano.

Seria preciso fazer uma intermediação entre o que Lefebvre (1991) chama de ordem próxima e ordem distante, onde a ordem próxima abrangeria as relações dos indivíduos e o seu cotidiano e a ordem distante seria a ordem da sociedade, regida por instituições, por um código jurídico formalizado ou não, ou por uma cultura. No caso deste trabalho, a ordem distante seria justamente o código jurídico das legislações e a ordem próxima, a do cotidiano e da vivência, que poderia ser capturada pelo método etnográfico, colocado como uma lupa, deixando visível as relações sociais produzidas no espaço, que não poderiam ser vistos apenas com a utilização de uma escala macro.

O exercício proposto de aproximação da escala da vida cotidiana pode contribuir também para a formulação de planos e políticas que encontrem maior aderência no espaço urbano e reduza ciclos de irregularidade. Para Villaça (2005) os planos, para deixarem de ser alienados e alienantes deveriam passar, necessariamente, por uma revisão de baixo para cima a fim de atravessar o “pântano entre a retórica e a prática” para assim abandonar visões românticas de cidade (e natureza) e encará-la de forma realista levando em conta suas singularidades.

4. CONCLUSÃO

Já foi visto que para o entendimento das cidades faz-se necessário considerar suas especificidades, porém resta compreendê-las e apreendê-las. Para tal, visões e abordagens unilaterais não serão suficientes para abarcar a complexidade do espaço urbano, que precisa ser visto além da sua materialidade e da sua forma, mas também pelas relações entre os indivíduos e os grupos que dele fazem parte. Portanto, não cabe mais atuar de maneira simplista e fragmentada, propondo soluções que consideram apenas aspectos técnicos. Somente através de imersão na microescala da vida cotidiana é possível identificar demandas e possíveis soluções calcadas na realidade, sem imposição ou arbitrariedade. Nesse sentido, para os profissionais que intervém no espaço urbano, o método etnográfico pode proporcionar esta aproximação à realidade local, a oportunidade de “adentrar” na vivência da população e a

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possibilidade de desenvolver um olhar próximo ao do usuário direto do espaço, para, com isso, incluir a dimensão humana na concepção de propostas de intervenção.

Embora o cenário exposto possa contribuir para a conclusão de que o planejamento pouco tem colaborado para a articulação cidade-natureza e que as intervenções também têm deixado a desejar nesse quesito, faz parte do desafio do planejamento e do projeto urbano extrair lições do passado a fim de moldar o presente e o futuro, já que sem isso as cidades brasileiras estariam fadadas a esperar por um futuro pré-fixado de exclusão social e degradação ambiental. A formulação do projeto que incluísse as demandas reais do território em sua complexidade física, biológica, social e cultural, poderia gerar não só um espaço de maior qualidade urbana que cumprisse as funções necessárias para a vida daquelas que o habitam, como também poderia contribuir para a desmistificação de estigmas socialmente criados e geração de novas centralidades que incluíssem outras camadas da sociedade.

De fato, a complexidade da vida urbana escapa à análise superficial e é imperativo a renovação do olhar sobre as intervenções urbanas. O olhar antropológico e o método etnográfico podem ser uma ferramenta útil para explorar a dimensão cotidiana e as peculiaridades locais da relação das pessoas com o espaço e, com isso, aproximar a prática do planejamento urbano nas áreas de vulnerabilidade ambiental dos modos de vida do lugar, a fim de que seja garantida não só a qualidade ambiental como a qualidade de vida, objetivo final da gestão e do projeto das cidades.

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