contribuições de paul ricoeur para a filosofia do direito - uma entrevista com olivier abel

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  • 8/12/2019 Contribuies de Paul Ricoeur Para a Filosofia Do Direito - Uma Entrevista Com Olivier Abel

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    CURSO DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    Ca p t u r a Cr p t i ca :direito, poltica, atualidade______________________________

    Revista Discente do Curso de Ps-Graduao em Direitoda Universidade Federal de Santa Catarina

    Captura Crptica:direito, poltica, atualidade.Revista Discente do CPGD/UFSCUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC)Centro de Cincias Jurdicas (CCJ)Curso de Ps-Graduao em Direito (CPGD)Campus Universitrio TrindadeCEP: 88040-900. Caixa Postal n. 476.Florianpolis, Santa Catarina Brasil.

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    Exped i en t e

    Conselho CientficoProf. Dr. Jess Antonio de la Torre Rangel (Universidad de Aguascalientes - Mxico)

    Prof. Dr. Edgar Ardila Amaya (Universidad Nacional de Colombia)Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)

    Prof Dr Jeanine Nicolazzi Phillippi (UFSC)Prof. Dr. Jos Antnio Peres Gediel (UFPR)

    Prof. Dr. Jos Roberto Vieira (UFPR)Prof Dr Deisy de Freitas Lima Ventura (IRI-USP)

    Prof. Dr. Jos Carlos Moreira da Silva Filho (UNISINOS)

    Conselho Editorial

    Carla Andrade Maricato (CPGD-UFSC)Danilo dos Santos Almeida (CPGD-UFSC)

    Felipe Heringer Roxo da Motta (CPGD-UFSC)Francisco Pizzette Nunes (CPGD-UFSC)Liliam Litsuko Huzioka (CPGD/UFSC)Luana Renostro Heinen (CPGD-UFSC)

    Lucas Machado Fagundes (CPGD-UFSC)Luiz Otvio Ribas (CPGD-UFSC)

    Marcia Cristina Puydinger De Fzio (CPGD-UFSC)Matheus Almeida Caetano (CPGD-UFSC)Renata Rodrigues Ramos (CPGD-UFSC)Ricardo Miranda da Rosa (CPGD-UFSC)

    Vincius Fialho Reis (CPGD-UFSC)

    Captura Crptica: direito poltica, atualidade. Revista Discente do Curso de Ps-Graduaoem Direito. n.3., v.1. (jul/dez. 2010) Florianpolis, Universidade Federal de Santa Catarina,2010

    Periodicidade Semestral

    ISSN (Digital) 1984-6096ISSN (Impresso) 2177-3432

    1. Cincias Humanas Peridicos. 2. Direito Peridicos. Universidade Federal de Santa

    Catarina. Centro de Cincias Jurdicas. Curso de Ps-Graduao em Direito.

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    Contribuies de Paul Ricoeur para a Filosofia doDireito: uma entrevista com Olivier Abel

    Olivier Abel

    Entrevistado por:

    Renato Silva de Amorim

    O filsofo francs Paul Ricoeur faleceu em 2005, mas sero precisosmuitos anos para mensurar a sua contribuio para o pensamentocontemporneo. Para ele, a vida se expressa em uma pluralidade de formas e,por isso mesmo, aceita o desafio de explorar-lhe os significados nos maisdiversos campos do saber. Parece-lhe importar que no haja nada que possa sera expresso definitiva e completa; nem a Religio, nem o Estado, nem aFilosofia, nem o Direito, cuja funo seria a de organizar os conflitos

    decorrentes dos diferentes pontos de vista, esses, por sua vez, resultantes daexistncia que se pluraliza.

    A despeito da densidade dos temas que investigou, Ricoeur revela-se umhomem engraado, que no se deixou amargurar pelas feridas da vida algumas, contradas ainda nos primeiros meses de existncia. Mostra-se,tambm, uma pessoa ciosa das amizades, no reconhecendo na diferena degeraes um obstculo relacional. Isso o que se depreende das lembranastrazidas pelo discpulo Olivier Abel, professor de filosofia tica na Universidade

    Protestante de Paris. Autor de diversas obras consagradas a Ricoeur, dentre asquais Paul Ricoeur: a promessa e a regra1, Abel atribui ao filsofo francs oesforo para dar crdito capacidade dos sujeitos de visar o bem comum, semignorar a fragilidade das pessoas e das instituies. Essas duas orientaes tmcomo finalidade reabilitar o poltico por meio do direito. O juzo ainterpretao do justo e, nesse sentido, no s o juzo do magistrado, mas o detodo ser humano, torna-se o lugar do justo na sociedade em conflito.

    Mestrando em Direito das Relaes Internacionais pelo Centro Universitrio de Braslia Uniceub e analista judicirio do Superior Tribunal de Justia.1Olivier ABEL. Paul Ricoeur: a promessa e a regra.Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

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    interessando necessariamente em contra-argumentar, a menos que isso propiciea construo e a reconstruo das ideias, ainda que dos outros.

    O pensamento intercontinental de Ricoeur aproxima sua hermenutica dafilosofia analtica. Mas, Abel defende que Ricoeur percorre um caminho maisvasto do que aquele proposto pela filosofia analtica. Ele identifica napolissemia, aqui entendida como confuso de sentidos, o elemento comum entreas duas vertentes filosficas. Ao mesmo tempo, reconhece nesta mesmapolissemia o ponto distintivo entre ambas, na medida em que caberia filosofiaanaltica perseguir as confuses de sentido presente na polissemia daspalavras, ao passo que seria tarefa da hermenutica explorar a riqueza dapluralidade semntica dos smbolos. A Ricoeur, ento, apresenta-se o duplodesafio de trabalhar criticamente para estabelecer as distines semnticas einteressar-se pelos deslizamentos de sentido decorrentes da pluralidade dassucessivas reinterpretaes.

    Na percepo de Abel, o dilogo que Ricoeur estabelece com a filosofiaanaltica lhe ensinou a pluralizar os tipos de verdade, razo pela qual eleconsidera o discurso jurdico como algo plausvel, mas no definitivo. Com

    efeito, em Do texto a ao, proposto a validao de suas conjunturas emtermos de probabilidade, defendendo a ideia de que uma interpretao maisprovvel do que outra, o que diferente de demonstrar que uma concluso verdadeira. Neste sentido, Abel est de acordo com o entendimento de que, nosprocedimentos jurdicos, a deciso judicial tambm apenas a melhorprobabilidade de resoluo de um conflito, e no necessariamente a nicasoluo possvel.

    Particularmente interessante a abordagem de Ricoeur sobre a relaoentre a narrativa e o processo judicial. Abel acentua que o debate acerca dateoria do texto visa reformular a relao entre explicar e compreender. Para isso,concentra-se na narrativa como unidade do discurso que sempre est projetadasobre o passado. Se para Heidegger, a compreenso pretende tudo compreender,Ricoeur rejeita a postura de uma hermenutica que pretende compreender tudodesde o incio. Para ele, existe uma distncia entre a explicao e acompreenso. A faculdade narrativa uma forma de percorrer o distanciamento,

    sem, contudo permitir-lhe que seja superado por completo o aspecto irreparvele imprevisvel do tempo. Se a narrativa nos ensina a aceitar a incerteza, adeciso judicial deve tambm considerar que os seres no passado possuamelementos irreparveis e imprevisveis.

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    Alm disso, a associao entre narrativa e deciso do magistrado (ou daCorte) evidencia tambm o carter prospectivo do contedo judicial. Na medida

    em que o olhar retrospectivo da deciso judicial uma narrativa dostestemunhos, levando em conta elementos irreparveis e imprevisveis, de igualforma essa deciso deve considerar o imprevisvel como algo que remete incerteza quanto ao futuro. Nesse sentido, o esforo de interpretao implica emintegrar o imprevisvel de forma coerente com as decises anteriores. E nissoreside o carter prospectivo da deciso judicial.

    A intimidade de Olivier Abel com a obra de Paul Ricoeur lhe trouxe aterras brasileiras trs vezes em 2009, quando se comemorou o Ano da Franano Brasil. Por conta das conferncias que proferiu, pode conhecer diversasinstituies acadmicas no Rio de Janeiro e So Paulo, assim como emCampinas, onde se surpreendeu com a qualidade do campus universitrio, ouem So Luiz, onde se impressionou com os jovens filsofos maranhenses.

    Das notcias que chegam do Brasil, impressiona-se com aquelas que lhefazem refletir sobre a vitalidade do povo, as misturas possveis, o trato com anatureza (a floresta amaznica, em particular). Identifica no Brasil um futuro

    promissor em termos de potencial humano. conhecedor do talento deGraciliano Ramos, alm de amante da msica de Villa-Lobos e MiltonNascimento.

    O professor Olivier Abel tomou para si a misso de reunir o acervo dePaul Ricoeur, com o intuito de entre outras coisas torn-lo acessvel apesquisadores de todos os continentes. O projeto ganhou corpo com a edificaodo Fonds Ricoeur, um complexo onde a distribuio dos livros no obedece

    regularidade de uma biblioteca, antes se encontram divididos em crculos deleituras, maneira que o prprio Ricoeur o fez em vida, e que, na tica de Abel,j representa por si um gesto filosfico. Foi do seu gabinete, nas dependnciasda Universidade Protestante de Paris, em janeiro de 2010, e com as obras quaseconclusas do Fonds Ricoeur avistadas por uma das janelas, que o professorOlivier Abel concedeu-me esta extensa entrevista, numa tentativa herica decontemplar em poucas horas os principais eixos do trabalho de Paul Ricoeur,bem como aspectos de sua vida que nos ajudam a narrar a histria de um dos

    grandes pensadores contemporneos.

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    Captura Crptica: O que mais lhe interessou no primeiro contato com opensamento de Paul Ricoeur?

    Oliver Abel: Eu estava na mesma turma que seu ltimo filho, no liceu.Meu pai era pastor neste mesmo bairro e Paul Ricoeur vinha freqentemente parquia que meu pai estava construindo. Ento conheci Paul Ricoeur quandoeu tinha em torno de quatorze ou quinze anos. Eu adentrei de fato o pensamentoaos quinze ou dezesseis anos, talvez, com um trabalho que tinha que apresentarna escola sobre o tema do mal, tema que eu havia escolhido. Na pequenabiblioteca que havia no liceu, encontrei as obras La symbolique du mal eLhomme faillible3, e peguei-as sem me dar conta que eram livros de filosofia,difceis para um estudante de dezesseis anos, porm trabalhei este tema mesmo.

    Eu adentrei a obra de Paul Ricoeur por meio do tema do mal, o mal comoculpabilidade, como responsabilidade, como sofrimento, como fragilidade evulnerabilidade. Isto me surpreendeu. Encontrei em Ricoeur uma coisa: no textofinal de Histoire et Vrit4, uma frase que conheo de cor, onde ele se ope aSartre, at mesmo a Lvinas, dizendo que a afirmao tem primazia, que osim mais fundamental que o no, e onde escreve: pelo fato de termos

    uma concepo do ser e da ontologia muito restrita que precisamos do Nada,com N maisculo, ou do Outro com O maisculo. No entanto, o ser entende ono-ser, a alteridade. A identidade entende a alteridade. Ele cita o Sofista dePlato e diz: Qu! Por Zeus, permitiremos to facilmente ser convencidos deque o movimento, a vida, a alma, o pensamento, no tm de fato lugar nomago do ser, que no vive nem pensa, e que, solene e sagrado, desprovido deintelecto, permanece imvel, sem poder se mover?. E o outro responde:Atemorizante doutrina que estaramos aceitando, estrangeiro, pois se trata do

    estrangeiro de Helena... Esta frase me marcou muito, pois havia uma orientaopropriamente metafsica, por parte de Ricoeur, para uma filosofia do sim.

    Em uma entrevista feita com ele, Ricoeur falava da prpria orientaopara o sim das coisas, o que me marcou muito tambm, pois eu havia crescidocom intelectuais como Jacques Ellul e outros que tinham me ensinado o no,

    3Esses livros, na verdade, so dois volumes da obra Philosophie de la volont (Paul RICOEUR.Philosophie de la volont. Le volontaire et lInvolontaire [T. I], 1950; Finitude et culpabilit [T.II]. LHomme faillible (vol. 1); La Symbolique du mal (vol. 2). Paris: Aubier, 1960.4Idem,Histoire et vrit. Paris: Seuil, 1955.

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    a importncia de se dizer no, da ruptura, e Ricoeur me ensinou novamente adizer sim e acho que para um adolescente importante trilhar do no para o

    sim, para o sim mais profundo que o no, para o sim capaz decompreender o no, mas sendo capaz de ir alm dele. isso.

    Captura: A Filosofia da vontade5 vista por muitos pensadores comoeixo da obra de Ricoeur. Qual sua opinio?

    Abel: Eu acho que a fora da obra de Ricoeur est no fato de poder serabordada inteiramente, sob vrios eixos e ngulos. Podemos enxergar tudo pormeio da filosofia da vontade, e este seria talvez seu debate com Nietzsche,

    debate freqentemente esquecido hoje em dia e um de seus debates maisprofundos, pois a filosofia da vontade uma discusso com Nietzsche. Mas nspodemos enxerg-la tambm como uma filosofia do tempo, dizer que no nema vontade, nem o mal, e nem mesmo a deciso (a escolha) que orientam suaobra, mas pelo contrrio, o tempo, a relao com o tempo, que se constitui comoeixo. Pode-se considerar que at mesmo o trgico est relacionado aoirremedivel, ao irreversvel, e enfim, que o tempo um problema fundamental.

    Poderia dizer-se tambm que a imaginao. Atualmente, alguns leitores,jovens filsofos, do nfase imaginao, o que seria para eles o eixo essencialde Ricoeur. Sempre a imaginao, o papel operado pela imagem e pelaimaginao.

    Captura: A imaginao6e no o imaginrio...

    Abel: Pois ento, a imaginao... Considerando uma fenomenologia daimaginao, um tempo de imaginao, como faculdade de ausncia, e isto temento relao com a linguagem e o sinal. S h imagens porque existem sinais.Ento, simultaneamente, por um lado, trata-se da produo de novas imagenspela linguagem e uma imaginao potica, e por outro lado, trata-se do fato deque todas estas produes venham sedimentar-se nos imaginrios j existentes eque no h imagem pura, a imagem se destaca de um imaginrio j existente.Ento poderamos considerar toda a hermenutica de Ricoeur sob o ngulo da

    5RICOEUR, Op. cit.6

    Abel destaca que nos ltimos ensaios hermenuticos que se intitulam Du texte laction,Ricoeur mostra que interpretar , finalmente, imaginar o mundo possvel proposto pelo texto e,logo, agir o texto, interpret-lo na singularidade actual das nossas situaes, como um msicointerpreta uma partitura (ABEL, Op. cit.,p. 23).

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    teoria da imaginao. Existe ento toda uma dialtica da imaginao muitopresente e poderosa na obra de Ricoeur.

    Captura: No Brasil, h quem considere o ensaio de hermenutica Oconflito das interpretaes

    7 o momento em que Ricoeur conduz a reflexofilosfica ao enfrentamento dos grandes desafios colocados pelas escolas depensamento contemporneo 8 . O senhor poderia indicar outro trabalho deRicoeur que melhor responda s questes da atualidade?

    Abel: Para a hermenutica o que est muito presente na obra de Ricoeur mostrar que no conhecemos, ns estamos sempre no campo da interpretao,

    no conflito de interpretaes. No h interpretao, nem des-interpretao, ouseja, pode-se dizer que no existe teoria das teorias, no existe intriga dasintrigas, no existe narrativa capaz de compreender todas as narrativas. Assim,pode-se dizer que ele faz o luto de certo hegelianismo, que pretendia de algumaforma tudo. Isto algo muito presente no conflito de interpretao, colocaresse lado kantiano, onde ns estamos aqum da sntese, a sntese no nospertence. Estamos na histria e por isso estamos no conflito.

    No entanto, existe um segundo volume de hermenutica, os Ensaios dehermenuticada obra Do texto a aco9, onde Ricoeur, apesar de no diz-loexplicitamente, passa da hermenutica para a potica. Um dia, nos anos 90,Ricoeur havia me dito: J faz tempo que no falo mais de hermenutica!.Como ele no uma pessoa polmica, ele no rompeu com a hermenutica,dizendo: Sou contra a hermenutica. De alguma maneira, em determinadomomento, passou da fenomenologia para a hermenutica, como em outro,passou da hermenutica para outras coisas, inclusive para a potica, ou seja,

    para a metfora, a narrativa, toda a teoria da literatura.Ao mesmo tempo, est na continuidade, mas para mostrar tambm que

    no busca apenas a interpretao por trs do texto. O que ele procura est nafrente do texto, aquilo que o texto mostra, um produto. A importncia estno mundo do texto, no que ele mostra e isto representa uma virada importantena hermenutica. No mais Heidegger, nem Gadamer; pode-se dizer que no

    7Paul RICOEUR. O conflito das interpretaes: ensaios de hermenutica. Porto: Rs, 1988.

    8A esse respeito, ver comentrio de Hilton Japiassu na apresentao do livro (Paul RICOEUR.Hermenutica e Ideologias. 2008, p. 13).9Idem. Do texto a aco: ensaios de hermenutica. Porto: Rs, 1991.

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    mais de forma alguma a hermenutica clssica. Existe a um debate, e isto importante, alm de ser um debate que lhe permite destacar-se de Heidegger,

    porm mantendo um projeto profundo de Heidegger, onde h um mundo e ondeno estamos em uma linguagem fechada; h uma veemncia ontolgica,segundo ele; fala-se de algo, enfim. Ento acredito que seja isto que lhe permita,por meio de suas pesquisas poticas sobre a metfora, a linguagem e a narrativa,fazer a ligao entre Heidegger e Wittgenstein.

    De alguma maneira, ele tambm um autor intercontinental, est sempretentando travessias entre as diferentes tradies de nosso tempo. Ento, emtodos os trabalhos dessa poca, seja na metfora viva, seja na narrativa, ele vaide fato ao encontro da filosofia analtica e da filosofia da linguagem comum,segundo Wittgenstein, tanto para a filosofia moral quanto para a poltica.Considero isto um aspecto importante.

    Captura: Mas, at o final dos anos 60, Paul Ricoeur parece ter serestringido ao pensamento filosfico prprio Europa continental, deixando delado o que era produzido em pases de tradio anglo-saxnica. O senhor noconcorda?

    Abel: isto mesmo. Alm disto, no incio, quando chega aos EstadosUnidos, de fato todos os seus centros de interesse giram em torno de Jaspers,Bergson, Lachelier, Lagnot, Naber, Gabriel Marcel, alm de Husserl, que eletraduz e de Heidegger. somente mais tarde, nos anos 60, que comeaprogressivamente a se interessar mais pelos Estados Unidos, para onde vaialgumas vezes, e pode-se dizer que a partir dos anos 70, ele l pelo menos amesma quantidade de autores anglo-saxnicos e europeus.

    Captura: Em 1970, Ricoeur, juntamente com Hans-Georg Gadamer eCharles Taylor que foi muito influenciado por Wittgenstein e Austin ,participaram de uma conferncia sobre hermenutica nos Estados Unidos.Poderamos dizer que esse encontro marca a aproximao de Ricoeur dosfilsofos de lngua inglesa?

    Abel: Digamos que um momento em que isto aparece claramente. Estaaproximao j existia, ele j havia estado vrias vezes nos Estados Unidos

    antes, mas neste momento em que isto transparece visivelmente e que isto setorna uma orientao forte para ele.

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    Captura: O senhor foi testemunha privilegiada desta aproximao, dadasua amizade com Ricoeur. O que poderia nos contar desse movimento de

    Ricoeur em direo a John Rawls?Abel: Desde o incio de sua carreira, ao mesmo tempo em que

    desenvolvia certa cultura, digamos, de histria da filosofia, pelo fato de serprofessor de histria da filosofia em Strasburgo, e depois professor de filosofiageral na Sorbonne e em Nanterre, Ricoeur havia assim mesmo mantido umaorientao profunda para a filosofia tica e poltica, campos que ele noseparava. Para ele, a tica e a poltica eram profundamente indissociveis. Umvolume comoHistria e verdade10mostra isto claramente. Ento, eu diria que ocuidado em pensar eticamente, no somente a tica como moral individual, mascomo uma tica da instituio, uma tica do magistrado, uma tica da justia,era uma orientao muito profunda nele.

    Quando chegou aos Estados Unidos para dar aulas, a partir de 1972,havia debates muito intensos sobre esta questo de filosofia moral e poltica,debates que no existiam na Frana e nem na Europa, porque no continenteeuropeu ns tnhamos sido demasiadamente marcados pelo marxismo, e porque

    o marxismo, de alguma forma, tinha considerado um pouco precipitadamenteque, de maneira geral, a poltica no passa de superestruturas, sem importncia,e que o mais importante a economia. Textos de Ricoeur mostram a briga delecontra este paradigma para o qual a moral coisa da burguesia. E ento nohavia pesquisa que tentasse mostrar, de dentro, como a justia, os princpios dajustia, as instituies justas e o direito em si eram importantes.

    Ricoeur tem textos do incio dos anos 60 em que diz: Precisamos de uma

    filosofia do direito. Porm, ao chegar aos Estados Unidos que ele encontrapesquisas de filosofia do direito, quandoA Teoria da Justia11 publicada. Este o processo geral pelo qual Ricoeur avana. Ele inicia uma pesquisa, e se eleencontrar algum que desenvolva mais o que ele est dizendo, em vez de dizereu fui o primeiro a dizer, ele diz muito bem, e o parabeniza. Ele d apalavra a outro algum e vai integrar e desposar o ponto de vista do outro,levando-o em conta. Ento, sempre h um momento em que ele se une ao pontode vista do outro e o desenvolve. Existem vrias conferncias e vrios textos

    10RICOEUR, Op. cit., 1955.11RAWLS, Op. cit.

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    nos quais desenvolve o ponto de vista de Rawls, para depois afastar-se dele,procurando seu melhor adversrio. Para ele, o melhor adversrio de Rawls

    Michael Walzer, no campo das esferas da justia. Isto tpico do processo deRicoeur; trata-se, de certa maneira, de construir debates e reconstru-los de talforma que sejam os melhores debates possveis. Pronto, isto tpico dele.

    Captura: EmA Teoria da Justia, Rawls reconhece a desobedincia civilcomo caminho aceitvel para a resoluo de conflitos 12 . Seria esta umaalternativa possvel na tica de Paul Ricoeur13?

    Abel: Ricoeur perdeu seu pai na guerra e ele cresceu com convices

    pacifistas muito fortes. Ele dizia: a primeira guerra mundial foi intil, umacarnificina em que milhes foram mortos por nada, trapos ideolgicos,nacionalismos ridculos; propriamente monstruoso. Ele tinha ento um pontode vista profundamente pacifista, profundamente no-violento, e acho quecontinuou profundamente no-violento, de modo que o gesto de desobedinciacivil, que consiste em recusar a violncia, sempre foi um gesto muito importantepara ele, pelo seu significado de dar o significado e o objetivo do Estado. OEstado no est presente para ser violento; ele est presente para adiar ou at

    mesmo eliminar a violncia; para eventualmente convert-la em disputa; paragarantir que ela no ocorra.

    Ao mesmo tempo, este pacifismo profundo dos anos 30 fruto de suajuventude, quando, aos vinte e cinco anos, recm-nomeado professor de liceu,conversa muito com amigos alguns, protestantes socialistas e, notadamente,com Andr Philippe, deputado socialista, protestante, ligado a Karl Barth, quelhe diz: Ns no podemos estar totalmente desarmados perante o que acontece,

    por exemplo, na Espanha: a repblica espanhola est sendo destruda por umgolpe militar. No podemos deixar o que est acontecendo na Alemanha; nopodemos pensar e acreditar que a paz a qualquer preo poder ser uma respostaa esta situao. Ricoeur levou muito tempo para aceitar esta objeo e omotivo pelo qual sempre houve uma defasagem sua em relao a alguns que, no

    12Idem, Op. cit.,pp. 418 434.13Paul Ricoeur se furtou a responder a essa questo quando ela lhe foi formulada pela primeira

    vez durante uma entrevista concedia revista francesaAlternatives Non Violentes, n. 80, Octobre1991 (disponvel em:http://www.fondsricoeur.fr/photo/pour%20une%20ethique%20du%20compromis.pdf. ltimoacesso em 5 de Novembro de 2010).

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    final dos anos 50, durante a guerra da Arglia, diziam: Precisamos dadesobedincia civil: no devemos obedecer a um exrcito colonial. E Ricoeur

    dizia: Sim, mas cuidado, trgico, pois significa que abandonamos o Estado,supondo que este seja maldoso e violento.

    No entanto, temos uma responsabilidade para que o Estado no sejaviolento, ento o que precisamos impedir que o poder se torne um poderviolento, um poder que faa uso da tortura. preciso democratizar a poltica e ainstituio, e no apenas dizer: ns permanecemos de fora e consideramos oEstado violento. Ento Ricoeur construiu, deste ponto de vista, um tipo detica dupla. Ele busca uma tica e isto tpico do processo de Ricoeur quemostre quo trgica a situao. Ele considera que aqueles que permanecem defora, em uma tica de desobedincia civil, uma tica do testemunho, respeitem ofato da existncia de uma tica do magistrado; que o magistrado precisa existir,ou seja, que a justia seja estabelecida interiormente e respeitada de algumaforma; que a instituio seja respeitada. Ao mesmo tempo, aqueles quepermanecerem no interior da esfera do poder precisam respeitar a objeo deconscincia, a insubmisso, como lembrete dos objetivos da poltica. E h entoum tipo de respeito mtuo, que um respeito difcil. Ocorreram perodos nahistria em que no houve conflitos, e no necessrio que clamemos sempre,em todo momento Desobedincia civil! Desobedincia civil!, porque paraRicoeur isto significaria uma falta de senso da poltica e uma falta de senso dainstituio.

    Captura: Ento, sobre a questo dos estrangeiros na Frana, porexemplo, Ricoeur no assumiria uma posio de desobedincia civil, porque uma deciso que cabe ao Estado?

    Abel: Penso que sim. Ricoeur assumiu posies muito fortes de protestoem relao a este assunto, mas o que ele diz que no devemos subestimar etratar a poltica como algo comum, como leis e tudo mais. A transgresso da lei um ato grave. Se transgredirmos as leis tranquilamente, estaremos destruindoa sociedade de direito. Se ns transgredirmos, que o faamos com prudncia. preciso, ao transgredir, que mostremos sempre a importncia da necessidade datransgresso; preciso justific-la. Isto caracterstico de Rawls, que sempre

    repete isto. Aqueles que participam do sistema devem justificar as injustias, nosentido em que so injustias amenas em relao a outras que poderiam serpiores, e que so as menos difceis tambm. Ao mesmo tempo, aqueles quesofrem estas injustias, ou aqueles que consideram que outros as sofrem

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    demasiadamente, devem justificar sua revolta contra os princpios que permitemtais injustias, por menores que sejam. Vejam ento que h um trabalho de

    justificao. Quando se deixa de fazer este trabalho de justificao, dizendoapenas que todos so loucos, maus e tolos, perde-se esta dimenso.

    Captura: O senhor poderia mencionar alguns traos distintivos entre ahermenutica de Ricoeur e a filosofia analtica de tradio inglesa?

    Abel: Seria uma pergunta mais fcil se me pedissem algum traodistintivo entre a hermenutica e a filosofia analtica, mas tratando-se dahermenutica de Ricoeur, que foi muito alm, pode-se dizer que ele se interessa

    por fenmenos da linguagem ora bem especficos, como a metfora, ora porunidades amplas, como a narrativa, ora por gneros literrios como a profecia ea potica. J a filosofia analtica se debruou muito mais, diramos, sobre alinguagem comum. No entanto, h vrios assuntos, notadamente em filosofiamoral, para os quais Ricoeur foi buscar suporte em anlises tipicamenteanalticas, como na questo sobre o que poder, o que fazer, o que dizer,como se articulam dizer e fazer, o que contar, o que imputar umaresponsabilidade, tudo isto tipicamente analtico. Sobre vrias outras

    temticas, como o reconhecimento, v-se Ricoeur fazendo um trabalho deanlise semntica muito semelhante ao que feito no mundo anglo-saxo.

    Digamos que o elemento comum entre a hermenutica e a filosofiaanaltica, o cerne comum no qual Ricoeur aproxima estas vertentes filosficas,seria a ideia de polissemia. Se existe uma polissemia, com suas confuses desentidos, ento preciso, ao mesmo tempo e esse seria talvez o ponto dedistino -, que a filosofia analtica identifique e persiga as confuses de

    sentidos presentes na polissemia, e que a hermenutica, ao invs de perseguir,se interesse pela riqueza da pluralidade semntica dos smbolos. Ento oRicoeur analtico tem de fazer distintamente e ao mesmo tempo um trabalhocrtico, no sentido analtico, para perseguir as confuses semnticas, o que lhepermite de alguma forma estabelecer distines semnticas, enquanto o Ricoeurhermeneutase interessa justamente pelos deslizamentos de sentidos por meio dametfora e pelo fato sugerido pelos smbolos, na pluralidade das sucessivasreinterpretaes.

    Ento, poder-se-ia dizer que a polissemia o lugar comum e o lugar ondeas duas filosofias so distintas. E talvez, quando Ricoeur fala de umahermenutica crtica, ele no esteja apenas integrando na hermenutica a crtica

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    das ideologias de Habermas, como tambm, a exegese histrica e crtica e todosos trabalhos de exegese. E, sem dvida, ele integra tambm a crtica semntica,

    analtica, no sentido anglo-saxo.Captura: Depois que a hermenutica e a filosofia anglo-saxnica se

    aproximaram, alguns filsofos americanos, como Richard J. Bernstein,consideraram que a hermenutica permitiria a superao da angstia cartesiana,indo alm do objetivismo e do relativismo14. Esta era a proposta de Ricoeur?

    Abel: Eu no conhecia esta observao de Bernstein, porm podemosdizer que a hermenutica do segundo perodo, no a hermenutica de Dilthey, e

    sim a hermenutica posterior a Heidegger, de alguma forma nos permite superara limitao da polaridade sujeito/objeto. Ns nos mantivemos, desde Descartesat Husserl, em uma polaridade sujeito/objeto o tempo todo, uma polaridadeque permeia tudo, o tempo todo. Tentamos incessantemente super-la, mas elase re-estabelece sempre. Eu diria que algo muito marcante dessa passagem deHusserl a Heidegger, , por um lado, uma descoberta de Heidegger, e por outrolado, uma descoberta de Husserl, no sentido de que as aporias da fenomenologiadeste ltimo j marcam por si s esta descoberta, em que o sujeito sempre se

    descobre em um mundo j existente, j interpretado, onde ele no se constitui eonde ele no pode se colocar enquanto sujeito, enquanto conscincia. Istorepresenta ao mesmo tempo uma superao da angstia e um deslocamentomuito radical do conjunto dos pressupostos da filosofia.

    Captura: Ricoeur debate acerca da teoria do texto para reformular arelao entre explicar e compreender. Para isto, concentra-se na narrativa comounidade do discurso que sempre est projetada sobre o passado. Que associao

    o senhor faz entre a narrativa e a deciso judicial, que possui esse aspectoretrospectivo, mas tambm um carter prospectivo?

    Abel: Essa uma bela pergunta. Ento, em relao a explicar ecompreender, aquilo que Ricoeur recusa de fato esta oposio queencontramos aps Heidegger. De modo geral, para Heidegger, a compreensoentende tudo. J Ricoeur no aceita que algo possa tudo compreender. No h

    14Richard BERNSTEIN. Beyond objectivism and relativism: science, hermeneutics, and praxis.Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1983, p. 110.

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    ponto de vista que possa tudo compreender15 . Ento precisamos sempre dodesvio por outra pessoa que no seja si mesmo e por esta razo que a

    compreenso precisa ser colocada em polaridade com a explicao. No queesta explicao seja suficiente por si s, explicao com caractersticaobjetivista e externa, mas ela possibilitaria compreenso ter frente a si um tipode exterioridade que lhe permitisse levar em conta a espessura da distncia. Acompreenso tenderia a reduzir tudo a um tipo de compreenso imediata.

    Fazer uso da mediao pelo distanciamento como, justamente, nos textos,mas tambm nos sinais, nos ndices e nos resqucios utilizados em umainvestigao judicial ilustra justamente o que Ricoeur escreve: o texto oparadigma do distanciamento na comunicao. E a interpretao a rplica aeste distanciamento, preciso superar uma distncia. No se tem acessoimediato, como pretenderia esta postura hermenutica, para a qualcompreenderamos tudo desde o princpio. Pelo contrrio, compreendemostudo, mas aquilo que compreendemos tambm o que no compreendemos. Obeb, no incio, entende tudo, mas por outro lado, ele no entende nada. preciso lhe ensinar a estabelecer diferenas e distines.

    De certa formam isso o que encontramos em Plato, em relao aParmnides. Para Plato, a letra existe, e torna a sofstica possvel e permitetudo. Se tudo est no ser, se o que quer que seja dito, isto existe, no h mentirapossvel. Logo, para encurralar o sofista, para encurralar o mentiroso e entoencurralar a violncia, trio que forma um conjunto, preciso justamenteestabelecer diferenas e relativizar. Ento, eu diria que precisamos colocarexplicao na compreenso, explicar para compreender, colocar distanciamentono pertencimento, distanciar-se para pertencer. Isto est relacionado

    hermenutica crtica de Ricoeur.

    Captura: O que busco aqui refletir sobre a deciso do juiz comoprocedimento de construo semelhante ao da construo da narrativa em PaulRicoeur.

    Abel: Ento, passando desta questo de explicar/compreender para aquesto da narrativa, parece-me que surge um elemento novo, o fato de apenas

    15Em seu livro, o professor Abel comenta a concluso a que Ricoeur chega ao analisar a situaode Antgona e Creonte, em que interpretar s possvel a partir de um ponto de vista e queningum est ileso de pressupostos (p. 22).

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    poder compreender e acompanhar uma histria se eu mesmo sou capaz decontar uma histria. Ou tambm, somente sou capaz de contar uma histria se

    sou capaz de compreender a histria dos outros. preciso ter esta faculdadenarrativa, que um distanciamento no tempo. A narrativa uma das maneirasde percorrer esta distncia, logo, de tentar detalhar e expor minuciosamente oque tentamos compreender quando compreendemos o passado. Ns no nosprojetamos imediatamente no passado; esta relao mediada pela distncia,pela distncia a ser narrada. Este um ponto importante. Desta maneira, anarrativa est relacionada ao passado.

    No entanto, quando seguimos uma narrativa, seguimos algo para o qual jdispomos de estruturas e esquemas, que me permitem aceitar e integrar novoselementos em algo que j existe. algo que posso antecipar, mas ao mesmotempo, existem elementos imprevisveis. Se lssemos uma narrativa onde tudofosse previsto e previsvel, j no seria uma narrativa. Ricoeur diz que anarrativa a sntese do heterogneo, ou seja, existem elementos aceitveis eimprevisveis. Todavia, o imprevisvel aceitvel, mas o que aceitamos socoisas que no podemos prever. A narrativa a concordncia destes doiselementos.

    por este motivo que, antes de nos orientarmos no sentido da promessa,muito importante para a filosofia do direito, parece haver na narrativa umarelao ao tempo que no se refere unicamente ao tempo do irreversvel, ouseja, a este passado irreparvel, mas que se refere tambm ao tempo doimprevisvel, da incerteza do futuro. A narrativa nos ensina a aceitar a incerteza,a imprevisibilidade. Ento, parece-me que a deciso judicial deve considerar,visto a maneira pela qual considera o passado, que os seres no passado tambm

    possuem elementos irreparveis, alm de estarem no imprevisvel. Ento achoimportante, com relao a esta postura da interpretao jurdica, considerar estasituao peculiar das narrativas, como das narrativas dos testemunhos, a partirdas quais se constitui a deciso judicial.

    A deciso judicial remete tambm a Dworkin, para quem cada decisojudicial acrescenta um captulo adicional, como uma boneca russa, a estahistria jurdica. No entanto, este captulo aceitvel, congruente com todas as

    decises anteriores, as quais esto relacionadas a todas estas histrias de vidaemaranhadas, era ao mesmo tempo um captulo imprevisvel. Isto significa queo direito em si tem de lidar com o imprevisvel. De outra maneira, pareceria quesempre so aplicados os textos anteriores. H um trabalho de interpretao,

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    quase um trabalho de improvisao, que precisa integrar o imprevisvel a algoque precisa ser ao mesmo tempo aceitvel e coerente com as decises judiciais

    anteriores.Captura: A vertente positivista do direito brasileiro pode ser uma

    resistncia ao pensamento de Ronald Dworkin...

    Abel: Em O justo, Ricoeur mostra justamente que precisamos ir almdeste aspecto de Dworkin na integrao da conflituosidade. Este livro trata doque ele chama de casos difceis e discute este aspecto: Infelizmente,Dworkin no aproveitou a oportunidade para coordenar a sua noo geral defit,

    e, mais especificamente, a verso narrativista deste fit com uma teoria daargumentao que poderia perfeitamente ser assumida a ttulo mesmo de critriode coerncia, quer este fosse redutvel ou no coerncia narrativa (...).Podemos ento perguntarmo-nos porque no foi Dworkin pesquisar para asbandas duma teoria mais refinada da argumentao16. Ou seja, de modo geral,Dworkin tem uma concepo da narratividade demasiadamente restrita. Umanarrao no apenas um autor que escreve uma histria, da mesma forma queo direito no uma histria escrita por vrios autores que se completariam e que

    se seguiriam uns aos outros, construindo um tipo de obra a vrias mos. Umanarrao sempre um conflito entre vrias narraes e cada narrao no deveomitir, mas pelo contrrio mostrar que existe um conflito narrativo, um conflitodos pontos de vista narrativos. Talvez neste ponto Dworkin tenha umaconcepo demasiadamente linear.

    Captura: A noo de intriga tambm est presente no processo judicial?

    Abel: Sim, uma boa pergunta tambm. Ricoeur desenvolve a noo de

    intriga narrativa aps ter desenvolvido a noo de metfora. O que lhe interessana metfora era o fato dela ser ao mesmo tempo uma aproximao e, apesardisto, ser uma resistncia a aproximao. Como, por exemplo, no caso dopredicado e do sujeito, na atribuio da metfora, que so brutalmenteaproximados, o tempo um mendigo, para retomar a expresso deShakespeare, pois uma aproximao feita e esta, no entanto, metafricaporque os termos envolvidos resistem aproximao. Trata-se desta tensoentre a aproximao e a resistncia aproximao, devida tambm ao fato de

    16Paul RICOEUR. O justo ou a essncia da justia. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 148.

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    agrupar elementos que no combinam entre si. A metfora aproxima elementosque pertencem a diferentes registros. Todo o campo da poesia trabalha com

    procedimentos deste gnero. E me parece que a intriga remete a esta mesmasituao. Colocamos juntos elementos que normalmente no deveriam estarjuntos. por isso que eu dizia que Dworkin tem uma concepo talvez muitorestrita, muito linear.

    A intriga est realmente permeada pelo conflito. Toda intriga obrigatoriamente conflituosa. No existem apenas grandes regras deconcordncia, de tempo, de lugar, de ao. No entanto, estas existem paradefinir um tipo de marco zero, de referncia, mas para serem depois quebradas.A habilidade reside no fato de uma histria poder ser contada por meio dediferentes pontos de vista. O grande filme de Kurosawa,Rashomon17, apresentaquatro narrativas diferentes do incio do livro. Existem conflitos narrativos e aintriga justamente composta de diferentes intrigas. uma intriga de intrigas,que rene elementos disparates e heterogneos que resistem integrao. E aintriga justamente isto: como reunir pontos de vista narrativos diferentes. Este o cerne da intriga.

    O processo judicial tambm vai justamente neste sentido, buscando reunire compor com estas diferenas, sem reduzir logo tudo a uma nica verso. Istosignifica que um processo judicial que logo fosse reduzido e restrito a umanica verso deveria fazer este trabalho de aceitao da pequena objeoprovinda daquela verso X, a qual deveria ser integrada a verdade e que talvezpudesse ser suficiente para rever tudo de maneira um pouco diferente e paraproduzir uma verdade um pouco mais verdadeira. Isto no significa que aprimeira verso no seja verdadeira, mas talvez j no seja exatamente isto.

    Temos uma concepo demasiadamente restrita da verdade. Falei anteriormenteda concepo restrita que tnhamos do ser; pois temos tambm uma conceporestrita da verdade. A verdade mais espessa, permeada por tenses, mais

    17 O filme de 1950 se passa no Japo do sculo XI e inicia-se com uma conversa entre trshomens: um lenhador, um padre e um plebeu. Por causa de uma tempestade, esses trs homens serefugiaram sob as runas do Portal deRashomon. O padre comea a relatar um julgamento do qual

    participou como testemunha; envolvendo o estupro de uma mulher por um bandido e oassassinato do samurai, seu marido. Enquanto o padre narra em flash back, vo se passando ascenas do julgamento, e os aspectos do crime sob o ponto de vista de cada testemunha, inclusive oprprio esprito do morto que incorporado por uma mdium.

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    intrigante, mais curiosa. E menos mono, de apenas um ponto de vista. isto.

    Captura: Para Ricoeur, a deciso judicial apenas a melhorprobabilidade de resoluo de um conflito?

    Abel: Sim, digamos que este seria o lado que ele aprendeu com afilosofia analtica, frequentando notadamente as ideias de um Aristtelesanaltico: no distinguir os tipos de verdade, pluralizar os tipos de verdade,considerar que no h um s tipo de verdade. A verdade poltica no umaverdade cientfica, no entanto existe verdade nela, uma verdade jurdica, uma

    verdade histrica, que so tipos diferentes de verdades. Esta maneira deconsiderar a verdade est relacionada a um tipo de discurso. Deve-se lembrarque nos anos 60 e 70, a Frana formula ideias em reao ao existencialismo quetraziam consigo uma carga de subjetividade enorme, distanciando-se daobjetividade das estruturas. o tempo do estruturalismo de Lvi-Strauss, deAlthusser e de Lacan, para os quais no existe sujeito, e sim estruturas eobjetividade, que so pontos de vista cientficos. Existia um discurso muitoforte que dizia o que era realmente cientfico, do tipo vocs no sabem o que

    dizem e eu vou lhes dizer, eu que sou cientista, eu que sou socilogo cientficoou psiclogo cientfico, vou lhes dizer o que vocs dizem realmente, mas queno sabem que dizem.

    Ricoeur faz pouco caso destas ideias e vai apoiar-se neste Aristtelesanaltico para dizer: o nvel mais elevado de verdade que possa ser atingidonestas disciplinas no passa do plausvel. Trata-se de algo plausvel, provvel,talvez do mais provvel ou mais verossmil. No entanto, esta postura aceita

    dizer que se trata apenas do mais verossmil, mesmo aps todo o trabalhorealizado. Assim, no se diga: pronto, essa a verdade!. Eu diria que umamaneira de estar em conformidade com o tipo de verdade de um determinadocampo o campo jurdico, por exemplo. Mas tambm uma forma de mostrarque continuamos no campo da interpretao, que no exatamente isto, que omundo no finito e que o assunto no est encerrado.

    Captura: Se o argumento jurdico um discurso semelhana danarrativa, a quem se dirige? Os juzes tm algo a dizer ao mundo?

    Abel: Sim, certamente, e provavelmente eles no sabem o que dizem. Oargumento jurdico tem vrios nveis: um deles o nvel da troca deargumentao que se d em determinado contexto, o tribunal, com regras

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    jurdicas que concernem prpria troca de argumentos jurdicos e provas, masdigamos de passagem, que concernem a todos. Logo, parece-me que a troca de

    argumentos jurdicos uma troca de argumentao sobre o que, de fato, maisimportante. Existe sempre a questo da sintaxe dos direitos, qual deles tem maisimportncia. No se trata de um conflito entre o direito e o no direito; trata-sede um conflito entre dois direitos. Poderamos imaginar que a queixa seria dizerque, em determinada situao, um direito realmente importante foi negado porcausa de outro direito menos importante; considerou-se um direito sem tantaimportncia que teve a fora para se impor perante outro direito maisimportante. E a queixa tenta repor e restabelecer a verdadeira hierarquia dos

    direitos. O argumento jurdico busca ento lembrar o que mais importante eassim, busca repor ordem no mundo. O que seria esta ordem? O que deveria ser,normalmente, a ordem? De alguma forma, o argumento jurdico constitudodentro de um campo delimitado, no entanto tem tambm um horizonte comoreferncia, que o mundo que ele tenta nos revelar com outro olhar. Penso queum grande advogado seja algum que nos faa enxergar o mundo de formadiferente, como Victor Hugo, em Os miserveis, onde nos mostrou outro olharsobre o mundo.

    Captura: Ainda em Do texto a aco18, Ricoeur considera o raciocniojurdico como o elo fundamental entre a crtica literria e a validao nascincias sociais. No livro do senhor, Paul Ricoeur, a promessa e a regra, odireito posto em evidncia como ferramenta que pode reabilitar o poltico.Que aspectos do direito mais importam na obra de Ricoeur?

    Abel: Em primeiro lugar, o raciocnio jurdico para Ricoeur primeiramente o campo por excelncia da argumentao e Ricoeur algum

    que defende a argumentao perante uma filosofia francesa que tinha certatendncia em considerar a argumentao, que de fato a troca de argumentos,como algo que aceita a presena de opinies, que no considera a cincia de umlado e a ideologia de outro. Argumentar justamente aceitar o que se est nocampo da dualidade; no se est no uno, no verdadeiro, no se est no logos.Ricoeur considera que a argumentao importante no somente em filosofia,mas em geral tambm.

    18Idem, Op. Cit., 1991.

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    O segundo registro no qual o direito um lugar de exerccio, onde halgo que lhe interessa muito, obviamente a interpretao, a relao entre a

    regra e o caso, a interpretao de um caso sob o ponto de vista de uma regra oude uma regra em relao a um caso. este vai-e-vem entre a regra e o caso nainterpretao e o conflito de interpretao das regras, a ideia mesma daexistncia deste conflito. Este o patamar da argumentao, o conflito deinterpretao das regras. Trata-se de saber qual a regra, em qual sintaxeordenar as regras, qual delas antecede a outra na ordem jurdica. Isto a meuver algo muito importante.

    Agora, em relao dimenso poltica, se representa de fato umhorizonte, considero que isto seja devido a uma briga de Ricoeur com certomarxismo que enxergava o direito como algo totalmente suprfluo, visto setratar unicamente de uma superestrutura, cujo destino era desaparecer; um tipode fachada ideolgica. Ricoeur sempre afirmou principalmente no momentodos golpes de Praga (1948) e de Budapeste (1956) que era preciso pensar dedentro do poltico. Isto remete ao que dizamos h pouco em relao instituio, que no basta dizer estando do lado de fora que a instituio ruim. preciso pensar, do lado de dentro, em uma constituio poltica quepermita liberdade, pluralidade das mdias, pluralidade dos partidos, etc.

    Ento, o direito a organizao da pluralidade dos pontos de vista, e estaorganizao da pluralidade dos pontos de vista deste ponto de vista estinteiramente em conformidade com a filosofia geral de Ricoeur. Esta filosofiasempre consiste na pluralidade dos pontos de vista e na ideia que no existe umjuiz dos juzes, um juiz absoluto. Ele diz, na obra A Memria, a Histria, oEsquecimento

    19que no existe Outro absoluto. preciso renunciar ideia da

    existncia de Outro absoluto, de um juiz dos juzes. Isto procede de umhorizonte propriamente teolgico de Ricoeur, para quem existe somente umabsoluto, que Deus. No entanto, isto no deve ser tomado positivamente, coma ideia de que haveria um Deus acima dos homens, e sim negativamente, com aideia de que no somos o juiz absoluto. A teologia cede o lugar, noplenamente, e no o fato de crermos na ideia de um juzo final (ademais,Ricoeur muito ctico em relao ideia de um juzo final; ele no aprecia demaneira alguma esta ideia), mas se trata principalmente da ideia de que, visto

    19Idem, A Memria, a Histria, o Esquecimento. Trad. Alain Franois, Campinas: Unicamp,2009.

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    no sermos o juiz absoluto, ento ns sabemos plenamente que no existe Outroabsoluto. Deste modo, o que faz a fora do poltico (da dimenso poltica)

    aceitar esta pluralidade.Captura: Se um distanciamento efetivo com relao ao texto no

    possvel, como o afirmam Ricoeur e Gadamer, como o jurista deveria procederao aproximar-se do texto?

    Abel: Para Ricoeur, preciso avaliar constantemente a distncia do textocom relao ao seu contexto inicial, do qual est desvinculado e distante. Logo,somos obrigados a contextualiz-lo novamente, mediante certa distncia, para

    poder ser interpretado. O texto ento abandonado e est entregue a nossainterpretao; ele est sob nossa responsabilidade. Ns no podemos nos ocultarsob a responsabilidade do texto, ns que somos responsveis por nossasinterpretaes. O texto no nosso responsvel, ns somos responsveis peloque fazemos a partir deste texto.

    Captura: Ricoeur afirma que a vida se expressa de maneira completa naarte, na religio e na filosofia. Por que no no Direito20?

    Abel: Sim, certamente, ele tambm diria isto para o Direito, com certeza.Alm disso, as categorias mencionadas a arte, a religio, a filosofia sorealmente categorias hegelianas, so as categorias com as quais Hegel encerraFenomenologia do esprito21,e o Estado, assim como o Direito e este comoconstituio -, esto includos nestas categorias. Ento penso que Ricoeuraceitaria certamente esta posio. Justamente, o que importa para Ricoeur queno haja nada que possa ser a expresso definitiva e completa. No se trata dareligio, nem do Estado, nem do Direito, nem mesmo da filosofia, do conceito

    absoluto do saber. Pelo contrrio, h uma pluralidade das formas de expressoda vida humana.

    Captura: Para encerrar, professor Abel, qual o balano que o senhor fariado Fonds Ricoeur?

    Abel: Estamos em um momento importante porque estamos terminandoas obras de construo, ao final de cinco anos. Vamos instalar todos os livros deRicoeur em diferentes bibliotecas, porque existem vrias bibliotecas de Ricoeur.

    20Idem.Hermenutica e Ideologias. Petrpolis: Vozes, 2008, p. 32.21HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do esprito. Petrpolis: Vozes, 2008.

  • 8/12/2019 Contribuies de Paul Ricoeur Para a Filosofia Do Direito - Uma Entrevista Com Olivier Abel

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    CRevista Discente do Curso de Ps-Graduao em Direitoaptura

    rptica Universidade Federal de Santa Catarina

    Ele diferenciou sub-bibliotecas em suas bibliotecas, que so interessantesporque distinguir crculos j representa um gesto filosfico. No existe uma

    biblioteca do A ao Z; existem sim vrios crculos de leitura. Isto representatambm o gesto do leitor vivo, que organiza crculos em torno de si. Existenotadamente um crculo filosfico, tico e poltico, ligado s questes do direitoe existem outros debates com as cincias humanas, a hermenutica e a religio.Portanto, so vrios crculos deste tipo. Ento, instalaremos isto com todos osarquivos de Ricoeur, seus manuscritos, suas aulas, suas correspondncias, emsuma, todos os seus arquivos. Isto estar disposio dos pesquisadores paraconsulta na prpria biblioteca. Alm disto, damos continuidade a uma coleo

    com um novo livro que ser publicado em breve, e talvez tenha at mesmo umtexto de hermenutica do direito. preciso disponibilizar este local para todos eesperamos estabelecer parcerias no mundo inteiro, por exemplo, com a pequenaFaculdade de Filosofia de So Luiz do Maranho. Ela poderia encontrarrecursos na Europa para permitir a ida de um estudante por ano, para fazer ps-graduao ou doutorado durante seis meses, ou trs, nos arquivos do FondsRicoeur. So projetos importantes e precisam de financiamentos, contudoestamos dispostos a participar.