contrapontos no pensamento fundamentalista: para uma ... · nara hiroko takaki pelo constante...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS KHALID BASHER MIKHA TAILCHE Contrapontos no Pensamento Fundamentalista: para uma análise crítica Versão Corrigida São Paulo 2012

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS

KHALID BASHER MIKHA TAILCHE

Contrapontos no Pensamento Fundamentalista:

para uma análise crítica

Versão Corrigida

São Paulo

2012

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS

Contrapontos no Pensamento Fundamentalista:

para uma análise crítica

Versão Corrigida

Khalid Basher Mikha Tailche

Tese de doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês do Departamento de

Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Lynn Mário T. Menezes

de Souza

São Paulo 2012

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Folha de aprovação

Khalid Basher Mikha Tailche

Contrapontos no Pensamento Fundamentalista:

para uma análise crítica

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em

Inglês do Departamento de Letras Modernas da

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, para obtenção do título de

Doutor em Letras.

Aprovado em ___ /___ / 2012

Banca Examinadora

Prof. Dr. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza (Orientador)

Instituição: Universidade de São Paulo (USP)

Assinatura:_________________________________________

Profa. Dra. Cielo Griselda Festino

Instituição: Universidade Paulista (UNIP)

Assinatura:_________________________________________

Prof. Dr. Miguel Attie Filho

Instituição: Universidade de São Paulo (USP)

Assinatura:_________________________________________

Prof. Dr. Carlos Renato Lopes

Instituição: Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

Assinatura:_________________________________________

Prof. Dr. William Mineo Tagata

Instituição: Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Assinatura:_________________________________________

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Dedicatória

Às vítimas do atentado terrorista contra a Igreja da Nossa Senhora de Salvação,

Bagdá — Iraque, 2010

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Agradecimento

A Deus, o espírito da paz, da justiça e do amor.

Ao meu orientador, Professor Doutor Lynn Mário T. Menezes de Souza,

pela sabedoria compartilhada e pelas inestimáveis orientações.

À Professora Doutora Maria Sílvia Betti, por me aceitar inicialmente como

aluno do doutorado e pelo encaminhamento ao meu atual orientador.

À Professora Doutora Glauce Rocha de Oliveira, pelas longas e meticulosas traduções e as reflexões valorosas sobre o trabalho.

À minha amiga e colega Claudia M. F. Corrêa, pelas revisões da língua

portuguesa e constante apoio e debate sobre o tema da tese.

Ao meu amigo e colega, Roberto de Sousa Causo, pelos debates sobre o tema da tese e pelas reflexões, e, principalmente, pelas longas e

cuidadosas revisões da língua portuguesa.

Aos Professores Doutores: Cielo Griselda Festino e Carlos Renato Lopes, pelas valiosas orientações dadas por ocasião do exame de qualificação.

Ao Professor Doutor Sinan Antoon pela amizade, apoio e as reflexões sobre o trabalho.

À Professora Doutora Diana Brydon, pelas as reflexões sobre o trabalho.

À Professora Doutora Dalva Lobo, pela leitura crítica da introdução deste

trabalho.

À minha amiga e colega Francesca Dell’Olio, pela tradução do italiano.

À Professora Doutora Safa Alferd Abou Chahla Jubran, pelo conhecimento compartilhado e constante apoio.

Ao Professor Doutor Miguel Attie Filho, por me apresentar ao mundo dos

filósofos árabes.

Aos Professores Doutores Mamede Mustafa Jarouche e Michel Sleiman

pelo constante apoio.

À Professora Doutora Dra. Nara Hiroko Takaki pelo constante apoio.

A meu amigo Wiliam Bruce Russell V e sua família, pela amizade e pelas reflexões sobre o trabalho.

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Aos meus amigos que me apoiaram direta ou indiretamente durante todo o processo de elaboração desta tese: Amanda Azis Alexandre, Andréa

Cotrim, Celina Dos Anjos, Emad Hanna Eesa, Irene Sinnecker Levin, Iris Maitê Fullas Aguiar, Laila Abou Mahmoud, Leda Demboscki, Luis Alberto

Beares, Maged El Gebaly, Paula Martins de Souza, Shelly e Arvind Sood, Thaís Amaral Garcia, Veridiana Morais.

A Edite dos Santos Nascimento Mendez Pi e a Valdemiro Lopes de Souza

Júnior, secretários do Departamento de Letras Modernas (Pós-Graduação)

da FFLCH.

A Ban Zaki, uma das sobreviventes do ataque terrorista contra a Igreja de Nossa Senhora da Salvação, em Bagdá. Por sua coragem que, para mim,

é um exemplo e uma fonte de constante inspiração.

A Saad N. Ibrahim, pelo grande apoio, apesar da distância.

Aos meus pais, meu irmão e minha irmã e suas famílias pelo carinho e apoio ao longo do período de elaboração deste trabalho.

A Ivete Narcay, minha prima brasileira, por me ensinar as primeiras

palavras da língua portuguesa.

À CAPES — Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal — pela

concessão de uma bolsa de estudos para a realização deste trabalho.

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“...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”

João 8: 32

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Resumo:

O objetivo deste trabalho é fornecer uma análise de formas

contemporâneas de pensamento e atitudes fundamentalistas à luz do filósofo italiano Gianni Vattimo, que postula que existiriam duas maneiras

de pensar no processo de interpretação e construção do sentido: uma forte, que pressupõe uma verdade absoluta, e a outra fraca, que

pressupõe uma verdade construída, o que não implica uma ação fraca,

mas a abertura de possibilidades para mudanças profundas. O processo de construção da verdade forte produz verdades violentas, no sentido de

que exclui outras verdades concorrentes. Neste trabalho, tomamos como base os fundamentalismos religiosos para refletir sobre outras formas

atuais de fundamentalismo. O trabalho representa uma tentativa para evitar diferentes confrontos violentos entre variados pensamentos

fundamentalistas.

Palavras-chave: Fundamentalismo; Metafísica; Violência; Diálogos; Cosmopolitismo.

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Abstract:

The objective of this work is to provide an analysis of contemporary forms of fundamentalist thought and attitudes, in line with the Italian

philosopher Gianni Vattimo, who postulates that there are two ways of thinking in the process of interpretation and meaning making: a strong

one, which presupposes an absolute truth, and a weak one, which

presupposes a constructed truth — though not implying a weak possibility of action, but an opening of new possibilities for profound changes

instead. The process of truth construction produces violent truths in the sense that it strongly excludes other competing truths. In this research,

forms of religious fundamentalism are taken as starting points in a reflection on other present-day forms of fundamentalism. This work aims

at the avoidance of various violent confrontations among several kinds of fundamentalist thoughts.

Key-words: Fundamentalism; Metaphysics; Violence; Dialogues;

Cosmopolitanism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO 1

O Pensamento Fundamentalista e a modernidade

25

1.1 O fundamentalismo religioso ligado à história e à política 26

1.1.1. Cristianismo: o caso dos Estados Unidos da América 26

1.1.2. Judaísmo: o caso do Estado de Israel

1.1.3. Islamismo: o caso do Egito e do Irã

33

35

1.2 O Deus Transcendental: a visão monoteísta e o Iluminismo 41

1.2.1 As diferentes visões monoteístas sobre Deus e o

fundamentalismo

1.2.2 Deus transcendental e o Iluminismo

41

45

1.3 O Fundamentalismo Religioso e a (pós-)modernidade 50

1.4 A morte de Deus, o fim da metafísica e o renascimento da

religião

58

1.5 A ciência, o homem-Deus e o “Novo Ateísmo” 70

1.5.1 A ciência e o homem-Deus 70

1.5.2 O “Novo Ateísmo” e o pensamento fundamentalista 79

1.6 O Fundamentalismo Econômico liberal: a utopia do livre

mercado

Conclusão do Capítulo

98 105

CAPÍTULO 2

O Pensamento Fundamentalista como base de confronto

107

2.1 O Choque das Civilizações: a religião como ameaça 108

2.2 A doutrina do choque e o fundamentalismo de livre mercado 125

2.3 O nacionalismo religioso 134

2.4 O terrorismo: a Guerra ao Terror, o terrorista suicida e a

mídia

151

2.4.1 O terrorismo e a Guerra ao Terror 152

2.4.2 O terrorismo suicida do fundamentalismo religioso

ativo

170

2.4.3 A mídia e o fator medo 180

Conclusão do Capítulo 187

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CAPÍTULO 3

Além do pensamento fundamentalista

189

3.1 O Cristianismo entre a hermenêutica e a secularização 191

3.1.1 O Cristianismo e a hermenêutica:

o amor, a amizade, a caridade

191

3.1.2 Secularização sem exclusão da religião 203

3.2 O fim da verdade na sua forma metafísica e a “tradição

inventada”

207

3.3 O Cosmopolitismo 212

3.3.1 Para resgatar o termo “cosmopolitismo”:

a globalização alternativa e a justiça global

213

3.3.2 Além do nacionalismo: hospitalidade e perdão 232

3.3.3 O cosmopolitismo tóxico 241

3.4 Para a redução da violência: a ética e o diálogo 245

3.4.1 A violência e a ética pós-metafísica 246

3.4.2 Sobre o diálogo e a superação da tolerância liberal 255

Conclusão do Capítulo 265

Considerações Finais

267

Referências Bibliográficas 272

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11

INTRODUÇÃO

O termo “fundamentalismo” surgiu entre os anos 1910 e 1915,

quando conservadores evangélicos nos Estados Unidos da América

publicaram uma série de doze panfletos intitulada The Fundametals:

Testimony to the Truth. Cerca de três milhões exemplares foram

distribuídos para todos os pastores, professores e estudantes de teologia

nos Estados Unidos. Depois dessa publicação, o termo começou a ser

utilizado para descrever os próprios conservadores evangélicos. A

linguagem desses panfletos não era nem agressiva nem militante.1

O surgimento do fundamentalismo, segundo o sociólogo Eisenstadt

(1999), foi uma reação à modernidade, à teologia modernista e à

secularização. Isso não significa que todos os movimentos de

fundamentalismo religioso sejam sempre pré-modernos ou reacionários

anti-modernos, como são muitas vezes compreendidos.2 Alguns deles, de

fato, utilizam as ferramentas da modernidade como as comunicações

modernas, a tecnologia, a propaganda e o discurso modernos, e suas

ideologias bem elaboradas fazem parte da agenda política moderna.

Para alguns críticos, o termo “fundamentalismo” não tem significado

específico, uma vez que “os grupos religiosos informalmente rotulados

como ‘fundamentalistas’ são inúmeros”.3 Outros acreditam que o termo,

mesmo não sendo preciso, ajuda-nos a analisar esse fenômeno que tem

aspectos semelhantes em diversas religiões.

1 Cf. ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no

cristianismo e no islamismo. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:Companhia das Letras,

2009. pp. 232-237. 2 Cf. EISENSTADT, S. N. Fundamentalism, Sectarianism, and Revolution: the

Jacobin Dimension of Modernity. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 2. 3 ”the range of religious groups casually labeled ‘fundamentalist’ is so wide.” (HAYNES,

Jeffrey (Ed.). The Politics of Religion: A Survey. London: Routledge, 2006. p. 73.)

(Deste ponto em diante, todas as traduções são nossas).

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Para Eisenstadt (1999), os movimentos fundamentalistas ”têm de

ser analisados no contexto tanto da experiência histórica de suas

civilizações, quanto de suas várias tradições religiosas, bem como do

programa cultural e político da modernidade”.4 Hoje, o termo

“fundamentalismo”, em geral, é utilizado também para indicar

movimentos religiosos com algumas características semelhantes em

diferentes religiões conforme a maneira que se manifestam. O objetivo

desse estudo não é definir ou comparar os movimentos religiosos que

podem ou não ser descritos como “fundamentalistas”.

O Professor Caplan (1987), antropólogo e sociólogo, acredita que o

discurso do fundamentalismo precisa ser visto como uma maneira para se

estabelecer o que o filósofo Foucault (2009) chamava de “regime de

verdade”. Segundo Foucault:

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política

geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe

e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as

instâncias que permitem distinguir os enunciados

verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e

outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados

para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o

encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.5

Com isso, Foucault não está falando de conjunto dos fatos que são

“verdadeiros”, mas de conjunto das regras que dão legitimidade e poder

ao que é considerado verdadeiro.6

Assim como Foucault (2009), Caplan (1987) relaciona o

fundamentalismo religioso com o texto e a verdade. Os fundamentalistas

religiosos interpretam os textos religiosos como válidos para todos os

4 ”[They] have to be analyzed in the context of both the historical experience of their

civilizations and their various religious traditions, as well as cultural and political program

of modernity.” (EISENSTADT, S. N. Fundamentalism, Sectarianism, and Revolution:

the Jacobin Dimension of Modernity. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p.3.) 5 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro:

Graal. 2009. p. 12. 6 Cf. ibid., p. 13.

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tempos. Isto é, ver o mundo numa forma a-histórica, ou ter uma visão

diferente da sua história.7 Para Caplan,

[o]nde prevalece o modernismo, a própria ideia de verdade

é vista como o resultado de condições sociais e culturais e,

assim, deve ser entendida histórica e contextualmente. O

fundamentalismo desafia essa versão, a respeito da verdade

como algo imutável, essencial e, fundamentalmente, como

um objeto cognoscível no mundo externo.8

Segundo Caplan (1987), o fundamentalismo transcende e, ao

mesmo tempo, abrange o domínio religioso. Os fundamentalistas alegam

que só eles é que sabem a verdade do nosso mundo. Por meio da sua

crença e prática religiosa, os fundamentalistas estabelecem uma divisão

entre si e os outros, entre os que conhecem e os que não conhecem a

verdade. Com isso, Caplan leva o conceito de fundamentalismo para outro

nível, no qual a crença em uma verdade absoluta é uma forma

“fundamentalista” de pensamento.

Para Haynes (2006), o “‘fundamentalismo’ agora engloba vários

tipos de atividades, que não são todas religiosas”.9 Sendo assim, esta

forma de pensamento não está relacionada somente ao fundamentalismo

religioso, mas a qualquer pensamento que se baseia numa verdade

absoluta e que procura aplicá-la de uma forma ortodoxa, como a única

que deve existir.

A nosso ver, uma vez que o fundamentalismo religioso é um

fenômeno que surge dentro das condições da modernidade, essas

mesmas condições servem também como um contexto para o surgimento

de outros tipos de “fundamentalismo” na forma de “pensamento 7 Cf. CAPLAN, Lionel (Ed.). Studies in Religious Fundamentalism. Albany: State

University of New York Press, 1987. p. 17. 8 “Where modernism prevails, the very idea of truth is seen to be the outcome of social

and cultural conditions, and thus to be understood historically and contextually.

Fundamentalism challenges this version, regarding the truth as unchanging, substantive

and so ultimately knowable as an object in the external world”. (Ibid., p. 21.) 9 “‘Fundamentalism’ now encompasses many types of activities, not all of them

religious.” (RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford:

Oxford University Press, 2004. p. 31.)

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fundamentalista”. Isto é, um pensamento que se manifesta em torno de

uma verdade única, que não aceita outras verdades. Esta forma de

pensamento não precisa da religião para existir.

Menezes de Souza (2004), em sua análise do pensamento de

Bhabha (1984, 2004), demonstra a ligação entre o significado e o

significante no processo de interpretação que ocorre sempre dentro certo

contexto sócio-histórico. Isto é, não há um significado original que possa

ser resgatado. Segundo Souza (2004), o significado, para Bhabha, “não é

algo que pode ser recuperado através de uma referência direta a uma

origem ‘real’ postulada”.10 Portanto, não há uma realidade original ou

transcendental para ser resgatada.

A ligação entre o significado e o significante, em termos bakhtiniano

(Bakhtin, 1973), segundo Souza (2004), ocorre em uma forma indireta

através os interpretes e os usuários de linguagem (veja a figura abaixo). E

esse processo que está sempre dentro de um “contexto, e de condições

sócio-históricas de produção e de interpretação é chamado por Bhabha de

lócus de enunciação”.11 O significado, portanto, é produto da

complexidade e diversidade em que a ilusão da unicidade, da

homogeneidade, é quebrada.

10 SOUZA, Lynn Mario T.M. Menezes de. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In:

ABDALA JR., Benjamin (Org). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras

misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 117. 11 Ibid., p. 119.

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15

Fonte: Cf. SOUZA, Lynn Mario T.M. Menezes de. (2004).

Este estudo é uma interpretação que procura um melhor

entendimento do pensamento fundamentalista, mas não procura ser a

única interpretação. Pretende fornecer argumentos que levariam à

redução da violência e ao respeito à diversidade de cada povo, cultura e

religião. Portanto, o estudo é uma tentativa de apontar a violência que

surge como resultado de pensamento fundamentalista, o que abre a

chance para o diálogo entre diferentes verdades.

Signo

Significado Significante

Intérprete

Contexto

Cultura Classe Social

História

Ideologia Raça

Religião

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16

Enquanto o fundamentalismo religioso é visto como uma reação ao

“fim das metanarrativas na modernidade”12 (o Iluminismo, a Revolução

Industrial e a Era de Progresso), outras formas de verdades

fundamentalistas surgem como espaço seguro, como verdades absolutas

e fortes, nos tempos perturbados de capitalismo. Para o filósofo italiano

Vattimo (2004b):

Os vários fundamentalismos religiosos, ou étnicos, ou de

outro tipo, que pululam no nosso mundo, com freqüência

[sic], se legitimam filosoficamente, justo em nome do fim

das metanarrativas globais.13

Para Vattimo, todas essas formas de fundamentalismo que se manifestam

com ou sem a religião, são verdades metafísicas por serem verdades

dadas, únicas e absolutas. E essas verdades metafísicas, no entendimento

de Vattimo (2002, 2011), são verdades violentas.

Nossa hipótese é de que o “pensamento fundamentalista”, que se

manifesta de diferentes maneiras, é um pensamento violento com

objetivo de dominação. Para Vattimo (2011), todas as verdades

metafísicas (verdades dadas, fixas e absolutas) são verdades violentas.

E mesmo quando se apresenta como não violento, a essência

metafísica do pensamento fundamentalista pode levar ao choque quando

se depara com outras verdades que não concordam com ela. Além disso,

a violência aplicada serve para a dominação, e em nome de se fazer o

“bem” para todos.

O objetivo desta pesquisa é entender a raiz do “pensamento

fundamentalista”, seja ele religioso ou não, e a violência gerada por este

12 A “metanarrativa” é um termo utilizado por Lyotard que indica a narrativa sobre as

narrativas. Para Lyotard, a característica essencial de pós-modernismo é sua

desconfiança sobre as grandes narrativas como elementos essenciais da modernidade.

Veja: (LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno. Trad. Ricardo Correia Barbosa. Rio de

Janeiro: José Olympio, 1986. p. xv- xvii.) 13 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 200b. p. 112.

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17

tipo de pensamento, além das possíveis formas para evitá-lo. Serão

discutidos, ainda, exemplos de segmentos nos quais o pensamento

fundamentalista se apresenta — na religião, na política, na ciência e na

economia —, gerando diferentes formas de choques. Por fim, refletiremos

sobre algumas maneiras de se evitar a violência gerada pelo pensamento

fundamentalista com base no conceito de fim da verdade metafísica, de

uma globalização alternativa mais justa através de cosmopolitismo, e de

uma ética pós-metafísica.

Nossa perspectiva se insere nos estudos de cultura, do discurso e da

construção de sentido que ocorre em um determinado contexto sócio-

histórico, mas sem que ele se constitua num estudo sociológico. Esta

pesquisa segue a metodologia contrapontual de Said (1995), como

interpretação que ocorre através de análise de duas narrativas opostas

sobre uma mesma questão. Said define uma “leitura em contraponto”

como

ler um texto entendendo o que está envolvido quando um

autor mostra, por exemplo, que uma fazenda colonial de

cana-de-açúcar é considerada importante para o processo de

manutenção de um determinado estilo de vida na

Inglaterra.14

Para Said, uma leitura contrapontual é uma leitura não unívoca e

simultânea entre a história “que está sendo narrada, e [aquelas] outras

histórias contra (e junto com) as quais atua o discurso dominante”.15

Neste estudo, analisamos o pensamento fundamentalistas na visão tanto

daqueles que adotam este tipo de pensamento, quanto pela perspectiva

dos que se colocam contra ele.

Nossa metodologia é também uma metodologia qualitativa voltada

para a bibliografia, em que o filósofo Vattimo ocupa o papel principal

nesta tese. Sua análise do pensamento de Heidegger (2009) e de 14 SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo:

Companhia das Letras, 1995. p. 104. 15 Ibid., p. 87.

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18

Nietzsche (2008), e os conceitos da morte da Deus e do fim da verdade

são essenciais para se entender o conceito de pensamento

fundamentalista.

A pesquisa foi dividida em três capítulos. No primeiro, nós nos

voltamos para a modernidade na busca das raízes que alimentam a

formação do pensamento fundamentalista, e que ultrapassam o âmbito da

religião propriamente dita. Para isso, analisamos o surgimento do

fundamentalismo religioso em relação à política e o contexto histórico.

Partimos das teorias de Caplan (1987) e de Armstrong (2008,

2009), especialista em temas religiosos, principalmente vinculados ao

judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Outros autores fazem parte da

nossa análise, principalmente Ruthven (2004), Haynes (2006), e Bellah

(1991).

Nesse mesmo primeiro capítulo, discutimos também as diferentes

visões monoteístas sobre Deus e como essa crença sobreviveu na

modernidade, em sua busca de sentido da existência humana. Além de

Armstrong, esta questão será discutida a partir do pensamento do filósofo

francês Ferry (2007), e de Prothero (2010), o professor da religião da

Universidade de Boston. Todos farão parte da nossa discussão sobre a

relação do fundamentalismo com a pós-modernidade.

Discutimos, também, a questão de “morte de Deus” em relação à

metafísica, e o renascimento da religião. Nessa parte procuramos

entender a relação do fundamentalismo religioso e a modernidade, que

faz parte da crise da pós-modernidade, principalmente através do

pensamento do filósofo e antropólogo francês Latour (1994), e a

interpretação do Vattimo (2004a, 2004b) da “morte de Deus” como a

morte de Deus na cruz, que significaria o fim de Deus violento da

metafísica, e o fim da verdade forte e violenta que faz parte de qualquer

pensamento fundamentalista.

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Seguimos nossa análise sobre a “morte de Deus” de Nietzsche

(2008), ainda com base de pensamento dos dois filósofos Ferry (2008) e

Vattimo (2004a, 2004b). Nessa análise se observa que o fim dos ídolos,

com base no espírito do Iluminismo, acabou criando novos ídolos, como

no caso dos fundamentalistas religiosos ou daqueles que combatem a

religião colocando-se no lugar de Deus.

Hoje, porém, a ciência compete com a religião como fonte de

esperança, e também a censura que a religião oferecia tradicionalmente,

como explica o filósofo Žižek.16 Analisamos igualmente a posição da

ciência na modernidade em relação à religião. E como alguns cientistas se

colocam contra a religião em nome da ciência, discutimos o exemplo dos

assim chamados “Novos Ateus”, através da obra do zoólogo, etólogo, e

evolucionista Dawkins (2006). Isto é feito com base no pensamento do

filósofo e crítico literário Eagleton (2011), e do jornalista norte-americano

e correspondente de guerra Chris Hedges, além de Vattimo e de outros

autores.

E por fim, com base de pensamento filosófico de Vattimo (2011,

2004a) e Eagleton (2011), levamos o conceito do pensamento

fundamentalista para o ambiente da economia do capitalismo liberal. Para

isso seguimos a análise do empresário e homem de negócios George

Soros, sobre o que ele chama de “Fundamentalismo do Mercado”.

O segundo capítulo demonstra alguns casos em que o pensamento

fundamentalista leva ao choque. Para isso, nós analisamos a teoria de

Huntington (1998). Na sua teoria, Huntington acredita que as identidades

culturais e religiosas serão a base para os futuros conflitos no mundo pós-

Guerra Fria. Essa teoria teve grande repercussão quando foi lançada, e

chegou a ser considerada como profecia depois dos ataques terroristas de

11 de Setembro de 2001 pela organização terrorista al-Qaeda.

16 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008. p. 81.

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20

Huntington (1998) divide as civilizações de mundo e coloca a

civilização islâmica em choque com a civilização Ocidental por serem as

únicas que têm intenções universais de expansão. Esse conflito, segundo

ele, terá bases culturais, políticas e ideológicas. Nós seguimos a crítica do

Said (2003) dessa teoria, que entende as civilizações a partir de visões

“monolíticas e homogêneas” e que enfatizam a divisão entre “nós” e

“eles”, colocando as civilizações em choques com base de interesses de

dominação.

Ainda no mesmo capítulo, e no nosso segundo exemplo, refletimos

sobre o pensamento da jornalista, escritora e ativista Klein (2008). Klein

demonstra como o pensamento dos fundamentalistas de mercado, que

seguem uma forma fundamentalista de capitalismo, pode não somente

levar a choques violentos, mas pode também gerá-los para seu próprio

benefício.

Klein (2008) explica como isso foi aproveitado depois dos ataques

de 11 de Setembro, na época do ex-presidente americano George W.

Bush, que declarou a “Guerra ao Terror”, e como essa “guerra” foi

aproveitada pelo setor privado, nos países que foram invadidos pelos

Estados Unidos, depois que a paralisação física e psicológica deixa o país

entregue para esses novos interesses privados.

Nosso terceiro exemplo de choque causado pelo pensamento

fundamentalista, discutido no segundo capítulo, é o do nacionalismo

religioso. Baseamos nossa análise no pensamento de Juergensmeyer

(2003), escritor americano da área da violência religiosa e da religião

global; e no de Aslan (2010), professor, ativista, e escritor iraniano-

americano que escreve sobre a religião; além do pensamento de Maalouf

(2003), o escritor libanês-francês e membro da Academia Francesa de

Letras.

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21

O nacionalismo religioso costuma ser visto por alguns como solução

para o fracasso do nacionalismo secular. Porém o sistema político

democrático que ele procura estabelecer terá sempre duas verdades

fortes como base: a do nacionalismo e da religião, mas com a verdade da

religião em primeiro lugar.

Enquanto o choque entre a verdade do nacionalismo e a verdade da

religião puder ser aparentemente anulado, as duas estarão sempre em

conflito. Para Maalouf (2003), o problema do nacionalismo religioso é que

ele liga a identidade nacional à identidade religiosa. Assim, ele não

somente coloca aqueles que não seguem a religião oficial do estado como

cidadãos de segunda categoria, mas chega até a eliminar a liberdade

religiosa daqueles que não seguem a religião oficial do Estado ou se

declaram ateus.

O capítulo se encerra discutindo a relação entre o pensamento

fundamentalista e o terrorismo, que constitui a forma mais violenta de

choque. Nessa parte discutimos os diferentes pontos de partida que levam

ao terrorismo.

Tentamos investigar o espaço entre o terrorismo como crime, e a

violência considerada como justificável. Para isso, seguimos o pensamento

do linguista, filósofo e ativista político Chomsky (2004), além de outros

autores como Juergensmeyer (2003), Hedges (2003), e Bauman (2008).

Discutimos também a “Guerra ao Terror” como resposta do terrorismo dos

fundamentalistas-terroristas, e também o fator medo, inseparável de

terrorismo e do papel da mídia.

No terceiro e último capítulo, procuramos refletir sobre o

pensamento fundamentalista para imaginar alternativas que evitem a

violência de choque causada por ele. Para isso, partimos do pensamento

do Vattimo (1999, 2004a, 2004b, 2011) sobre o fim de metafísica. Na

primeira parte seguimos a interpretação pós-metafísica do cristianismo

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22

realizada por Vattimo (2004b), enxergando-o como promotor de valores

como amor, amizade e caridade. Ainda com o pensamento de Vattimo,

discutimos a secularização, agora sem excluir a religião. Isto é, a

secularização como enfraquecimento do Ser, em que a religião deixa de se

colocar como uma verdade violenta.

Na segunda parte, analisamos o conceito de “tradição inventada”, de

Hobsbawm (2008), à luz do pensamento de Said (1985, 1995, 2000,

2003). Procuramos ligar esse conceito à questão do fim da verdade na sua

forma metafísica, forte e violenta. A tradição inventada é um processo de

renovação constante das verdades por meio das interpretações e em

determinados contextos socioculturais.

No terceiro momento do capítulo, procuramos um novo

entendimento do cosmopolitismo e da ética secular como procura de

justiça global e de redução da violência, podendo representar uma

possível saída do pensamento fundamentalista tanto no contexto religioso,

quanto no econômico e no político. Enquanto as outras ideologias dentro

do âmbito do modernismo, precisamos voltar para os valores de

Iluminismo que recusam o pensamento fundamentalista na sua crença em

uma verdade única e mais verdadeira de que as outras.

Analisamos o cosmopolitismo com base de diferentes autores como

Bhabha (2008), os sociólogos Beck (2003) e Kurasawa (2009), o

economista Sen (2007), e o filósofo Derrida (2004), entre outros.

Partimos com Appiah (2007a) e sua busca para resgatar o termo

“cosmopolitismo” além do seu contexto kantiano. Junto com os outros

autores, buscamos um novo conceito de cosmopolitismo ou de

globalização alternativa que seja mais justa para todos.

O cosmopolitismo, a nosso ver, envolve uma responsabilidade que

ultrapassa o nacionalismo baseado na hospitalidade e no perdão, mas ao

mesmo tempo em que não descarta sua ligação nacionalista. Por fim,

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23

discutimos o que Appiha (2007b) chama de “cosmopolitismo tóxico”, que

tenta destruir o nacionalismo e que adota certas identidades na busca de

universalismo moral que emana de uma base ideológica específica.

O terceiro capítulo termina com reflexões sobre a redução da

violência, e, a partir do pensamento do Vattimo, Žižek (2008), e Derrida

(2006), buscamos base para uma ética pós-metafísica. Também, e junto

com a professora de ciência política Brown (2006), discutimos a

importância de diálogo que supera a tolerância liberal para ser um

processo de aproximação do outro e de tentar entendê-lo, e para

descobrir o que nos une, e não somente reconhecer nossas diferenças.

A nossa conclusão é de que o pensamento fundamentalista — seja

com base religiosa ou não — que segue uma verdade forte pode levar ao

confronto na sua expressão mais violenta. Com o fim de metafísica, o

pensamento fundamentalista não precisa justificar sua legitimidade por se

ligar a Deus, basta se apresentar como uma verdade única e absoluta,

que se coloca como válida para todos e em qualquer contexto.

A continuação da verdade metafísica, implica, na concepção de

Vattimo (2011), numa manifestação da verdade na sua forma violenta. O

fim de metafísica e dessa verdade violenta, entretanto, não sugere que a

verdade não existe mais, e que precisamos abraçar o relativismo, mas de

que a verdade não existe mais na sua forma metafísica, forte e violenta. A

verdade metafísica dentro da herança religiosa se manifesta hoje

primeiramente através das religiões, e principalmente nos casos de recusa

de novas interpretações.

O estudo conclui que o pensamento fundamentalista, ao contrário

do pensamento “fraco” que Vattimo (2002) sugere, elimina a possibilidade

de diálogo, não somente por recusar essa ferramenta para entender o

outro e suas diferentes verdades, mas também por tentar impor sua

verdade em toda parte como a única que deve ser seguida. Esse

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24

silenciamento do outro é um ato de violência. E como a violência é o

oposto do poder, essas verdades violentas não representam o poder, mas

são ligadas ao interesse da dominação, e não da justiça.

Como qualquer estudo interdisciplinar, este não pretende se

aprofundar nas diferentes áreas tratadas, além daquilo que nos permita

fazer as ligações e as interpretações alinhadas com a hipótese

apresentada, na forma de uma interpretação que parte de certos

contextos sócio-históricos. O autor desta tese, sendo ele um intérprete,

também parte de seu contexto e de diversas identidades para analisar as

raízes da violência que surge como resultado de diferentes formas de

pensamento fundamentalista analisadas nesta tese. A violência como

resultado do pensamento fundamentalista, porém, não atinge somente o

autor, mas todos nós, os cidadãos de um mundo contemporâneo chamado

de pós-moderno.

Sendo assim, seguimos as palavras de Cilliers (2005), o professor

de filosofia e estudioso da teoria da complexidade, quando ele nos

conclama a ter uma postura modesta diante de qualquer estudo que

envolva uma complexidade. Segundo Cilliers (2005), sem isso a nossa

postura, não seria somente um erro técnico, mas também ético. Portanto

precisamos manter uma atitude modesta, sem que, contudo, ela seja

frágil. Dito isso, essa postura “humilde” não deve ser entendida como um

convite ao relativismo, um espaço de contradições ou de ideias vagas;

mas sim, uma interpretação responsável da verdade aberta para outras

interpretações.17

17 Cf. CILLIERS, Paul. Complexity, Deconstruction and Relativism. Theory, Culture and

Society, Vol. 22, n. 5, pp. 255-167. Disponível em:

<http: tcs.sagepub.com/cgi/contente/abstract/22/5/255>. Acesso em: nov./2010.

p. 256.

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25

Capítulo 1 – O Pensamento Fundamentalista e a

modernidade

O estudioso do fundamentalismo Caplan (1987), propõe uma visão

não monolítica sobre fundamentalismo e sem procurar classificá-lo.

Segundo ele,

uma compreensão adequada do fundamentalismo nos obriga

a reconhecer seu potencial em cada situação ou conforme

cada causa. O fundamentalismo pode, portanto, ser

considerado uma tendência não excludente e que não é

excluída por modernistas ou outras tendências religiosas

contrárias. Todos nós somos, até certo ponto e em alguns

sentidos, fundamentalistas.18

Com isso, Caplan (1987) leva o conceito do fundamentalismo – que se

iniciou com um conceito ligado somente a religião – para outro nível, que

pode atingir a todos nós.

Nesse capítulo, procuramos analisar diferentes formas de

pensamentos fundamentalistas, religiosos ou não. Não obstante, nossa

análise se inicia com o fundamentalismo religioso, tomando exemplos das

três maiores religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o

islamismo. A escolha desses três religiões parte pelo fato de que elas

oferecem uma base maior para o fundamentalismo religioso, em

comparação com outras religiões.19

Sem investigar as raízes teológicas, históricas ou psicológicas das

diferentes formas de fundamentalismo, nosso objetivo é analisá-lo como

forma de pensamento que segue uma verdade absoluta e que pode se

18 “[A]n adequate understanding of fundamentalism requires us to acknowledge its

potential in every moment or cause. Fundamentalism may therefore be regarded as a

tendency which does not exclude and is not excluded by modernist or other contrary

religious proclivities. We are all of us, to some degree and in some senses,

fundamentalists”. (CAPLAN, Lionel (Ed.). Studies in Religious Fundamentalism.

Albany: State University of New York Press, 1987. p. 22.) 19 Cf. RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford: Oxford

University Press, 2004, 169.

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manifestar tanto na religião quanto fora dela: no pensamento político,

científico, ou econômico, sendo que todos esses aspectos se integram à

modernidade, influenciam e são influenciados por ela.

1.1. O fundamentalismo religioso ligado à história e à política

Nesta parte, a identificação de alguns movimentos fundamentalistas

politicamente ativos20 será focada nas três religiões monoteístas, sem

tentar categorizá-las. Procuramos analisar a maneira em que esses

movimentos interferem na política, seja de forma legítima ou clandestina.

É importante notar que, segundo Ruthven (2004),

[n]em todos os movimentos fundamentalistas são políticos.

O engajamento fundamentalista na política, geralmente, tem

causas locais, das quais a menos importante é a busca por

poder ou influência de grupos que se consideram

marginalizados política e culturalmente.21

Portanto, a nosso ver é o contexto sócio-histórico no local onde esses

movimentos surgem que determina seus objetivos, sua formação política

e a forma de reação contra o que consideram uma ameaça à sua religião.

1.1.1. Cristianismo: o caso dos Estados Unidos da América

Nossa escolha dos Estados Unidos da América como exemplo do

fundamentalismo religioso cristão se dá por três motivos. Em primeiro

lugar, por serem hoje a maior potência política e militar no mundo, sendo

que sua influência e intervenções políticas e militares ultrapassam suas

fronteiras. Em segundo lugar, por ser um país em que o fundamentalismo 20 Nesse estudo, nós tratamos somente dos movimentos do fundamentalismo religioso

politicamente ativo, o que não inclui movimentos de fundamentalismo passivo, como o

caso do grupo religioso Amish nos Estados Unidos da América e no Canadá, que se

isolam fora da sociedade em virtude de seu ideal religioso, sem ter qualquer ambição

política. Veja: (Cf. RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The Search for Meaning.

Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 57); e (Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New

York: Picador, 2008, p. 85; 145.) 21 “[N]ot all fundamentalist movements are political. Fundamentalist engagement in

politics usually has local causes, not the least of which is the pursuit of power or

influence by groups which consider themselves to have been disenfranchised politically or

culturally.” (RUTHVEN, op. cit., pp. 86-87)

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religioso está presente na política. E por último, por ser exatamente o

lugar onde surgiu o termo “fundamentalismo religioso”.

O surgimento do termo “fundamentalismo” no começo do século XX

nos Estados Unidos da América ocorre em uma época conturbada,

marcada pelo início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Para

Armstrong (2009), ninguém pensava mais no progresso da civilização de

uma forma otimista. A economia estava também em crise – o ano de

1910 já havia marcado o início do declínio que resultou na Grande

Depressão dos anos de 1930.22

O medo e os horrores que essa época trouxe, na opinião de

Armstrong (2009), criaram uma decepção coletiva com a experiência

moderna. Houve diferentes tentativas de encontrar saídas através da arte,

da ciência e da religião. O desejo de voltar às raízes e começar a partir do

zero não seria uma forma conservadora de buscar as fontes, mas um

passo para se construir algo completamente novo.23

Nos Estados Unidos, ainda segundo Armstrong (2009), houve

aqueles que buscavam uma nova espiritualidade sem as escrituras e a

doutrina do cristianismo, o que deixou os conservadores horrorizados.24

Como resposta a essa tendência, no ano de 1910 os conservadores

formularam e publicaram “a doutrina da infalibilidade das Escrituras”.25 E

entre 1910 e 1915, foram publicados e distribuídos cerca de três milhões

22 Cf. ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no

cristianismo e no islamismo. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:Companhia das Letras,

2009, p. 232. 23 Cf. ibid., p. 233. 24 Em 1909, Charles Eliot, o professor da Universidade de Harvard, publicou seu artigo O

futuro da religião, em que ele imaginava uma religião sem igreja ou culto, baseada na

pratica concreta mais de que na crença cristão convencional. Veja: (ELIOT Charles W.

The Religion of the Future. The Harvard Theological Review, Vol. 2, no. 4. 1909,

pp.389-407. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/1507070>. Acesso em:

ago./2012.) 25 ARMSTRONG, op. cit., p. 237.

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28

de exemplares do panfleto The Fundamentals: Testimony of the Truths,

cujo conteúdo não era radical nem militante.26

Segundo Haynes (2006), os movimentos fundamentalistas não são

sempre “social e politicamente conservadores, retrógrados e

inerentemente avessos a mudanças”.27 Para ele, os movimentos

fundamentalistas da atualidade compartilham preocupações semelhantes.

Esses movimentos surgiram como resultado direto da modernidade, cujas

consequências negativas relacionadas à estrutura da família como

instituição social e à desvalorização da moralidade eram uma

preocupação. Em outras palavras, eles sentiam que “Deus está em risco

de ser substituído pelo evangelho do progresso técnico que acompanha as

mudanças socioeconômicas de amplo alcance”.28

Para Haynes (2006), até os anos setenta os movimentos

fundamentalistas cristãos nos Estados Unidos eram apolíticos. Após a

queda do domínio protestante nos anos 1960, os fundamentalistas

começaram a perceber que rejeitar o mundo não os ajudaria a atingir seus

objetivos. Foi uma era de transformação cultural, que foi marcada pelo

começo da secularização e pela modernização.29

Heynes (2006) observa ainda que o cristianismo nos Estados Unidos

tem sua importância política. A “desprivatização” da religião deu ao

cristianismo um significado político. E esta postura se manifesta

principalmente pela linha politicamente conservadora dos protestantes

evangélicos da Religious Right, também conhecida como Christian

Right (Direita Cristã). Sua influência política se manifestou claramente

26 Cf. ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no

cristianismo e no islamismo. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:Companhia das Letras,

2009, p. 237. 27 ”[S]ocially and politically conservatives, backward-looking and inherently opposed to

change”. (HAYNES, Jeffrey (Ed.). The Politics of Religion: A Survey. London:

Routledge, 2006, p. 72.) 28 “God is in danger of being superseded by gospel of technical progress accompanying

sweeping socio-economic changes.” (HAYNES, op. cit., p. 73.) 29 Cf. HAYNES, op. cit., 2006, p. 75.

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29

durante a administração do ex-presidente americano George W. Bush,

entre 2001 a 2008. Há também, por outro lado, a Igreja Católica como

sua influência social e politicamente progressista, comparativamente

falando, e que se direciona mais para as políticas e programas federais.30

A ideia de Deus e a moralidade cristã, nos Estados Unidos, tiveram

impacto muito grande no desenvolvimento do sentimento nacionalista.

Para Bellah (1991), a Guerra Civil Americana, ou Guerra da Secessão

(1861–1865), levantou dúvidas sobre o significado do nacionalismo norte-

americano. A partir daí, “um novo tema da morte, do sacrifício e do

renascimento passaram a fazer parte da religião civil”.31 A noção de

renascimento foi emprestada do cristianismo para expressar o

renascimento da liberdade depois da Guerra Civil, porém dentro de um

quadro da religião civil do governo.

Segundo Bellah (1991), o discurso religioso nos Estados Unidos não

é algo novo na política. Não obstante, a palavra ”Deus”, que aparece tanto

no papel moeda americano quanto na constituição do país, não representa

o Deus cristão. O que a palavra significa é que “a soberania pertence

certamente ao povo, mas, implicitamente e muitas vezes explicitamente,

a soberania definitiva tem sido atribuída a Deus”.32

Campbell (2009) observa que a palavra “Deus” que aparece no

Grande Selo dos Estados Unidos, representa a razão e não a revelação

divina, o que se apoia no entendimento de que

todos os homens são dotados de razão. Esse é o princípio

fundamental da democracia. Como toda mente é capaz de

adquirir um conhecimento verdadeiro, não é preciso que

30 Cf. HAYNES, Jeffrey (Ed.). The Politics of Religion: A Survey. London: Routledge,

2006, pp. 20–24. 31 “[A] new theme of death, sacrifice, and rebirth enters the civil religion.” (BELLAH,

Robert N. Beyond Belief: Essays on Religion in a post-traditional world. Berkley:

University of California Press, 1991, p. 177.) Veja mais abaixo nesta tese, para uma

discussão do conceito de “religião civil”. 32 “[S]overeignty rests, of course, with the people, but implicitly, and often explicitly, the

ultimate sovereignty has been attributed to God.” (BELLAH, op. cit., p. 171.)

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30

uma autoridade especial, ou uma revelação especial, lhe

diga como as coisas deveriam ser.33

Dessa forma, para Campbell, a razão serviu como a base para a formação

dos Estados Unidos. Para ele, os fundadores dos Estados Unidos

acreditavam na possibilidade de se enxergar Deus por meio da razão.34

Para Bellah (1991), a diferença entre a religião privada e a religião

civil nos Estados Unidos faz parte da construção política americana e

reflete a política de separação entre a religião da igreja como religião

pessoal, e a religião – ou religiosidade – do Estado como uma religião

civil, que não tem ligação com nenhuma religião específica e acabou

fazendo parte da história do país, partilhada pela maioria do povo

americano.35

No ano de 1961, durante a sua cerimônia de posse, o presidente

norte-americano John F. Kennedy mencionou a palavra “Deus” por três

vezes. Isto pode não significar nada além de um detalhe de parte do

cerimonial em um país secular. Nesse sentido, Bellah (1991), comenta

que

a única referência dele foi ao conceito de Deus, uma palavra

que quase todos os norte-americanos conseguem aceitar,

mas que significa tantas coisas diferentes para tantas

pessoas que se torna quase um signo vazio.36

Kennedy não menciona uma religião em particular, mas apenas mostra a

importância da religião na construção dos Estados Unidos. O presidente,

nesse caso, não misturou sua crença pessoal, sendo ele católico, com a

33 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas

Athena, 2009. p. 26. 34 Cf. Ibid., p. 26. 35 Cf. BELLAH, Robert N. Civil Religion in America. Journal of the American Academy

of Arts and Sciences, Vol. 96, no. 1, 1967, p. 1-21. Disponível em:

<http://www.robertbellah.com/articles_5.htm>. Acesso em: dez./2011. 36 “[H]is only reference was to the concept of God, a word that almost all Americans can

accept but that means so many different things to so many different people that is

almost an empty sign.” (BELLAH, Robert N. Beyond belief: Essays on Religion in a

post-traditional world. Berkley: University of California Press, 1991. p. 170.)

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31

postura de se falar de um “Deus” secular, própria da posição de

presidente do país.

Segundo Bellah (1991), realizar a vontade de Deus na terra, tanto

no lado privado quanto público, foi uma ideia presente nas motivações

que levaram à fundação dos Estados Unidos da América. As orientações

religiosas públicas

tiveram um papel crucial no desenvolvimento das

instituições norte-americanas e ainda fornecem uma

dimensão religiosa para toda a estrutura de vida norte-

americana, incluindo a esfera política.37

Essa relação entre a religião e a política é estável, espelhando a relação

entre a religião civil e a privada, esta representada pela igreja.

Os pais fundadores dos Estados Unidos preocuparam-se em dar

forma à religião no âmbito civil. Ainda nas palavras de Bellah (1991),

embora muito seletivamente derivada do cristianismo, essa

religião claramente não é o próprio cristianismo; justamente

porque nem Washington, nem Adams e nem Jefferson

mencionam Cristo em seus discursos de posse, assim como

os próximos presidentes não o fazem, embora nenhum deles

deixe de mencionar Deus.38

Essa religião civil, segundo Bellah (1991), teve um papel muito importante

tanto moral quanto político na abolição da escravatura nos Estados

Unidos.

A Constituição norte-americana, lembramos, estabeleceu a

separação entre a igreja e o Estado. Isto deixa os atuais fundamentalistas

americanos

37 “[P]layed a crucial role in the development of American institutions and still provide a

religious dimension for the whole fabric of American life, including the political sphere.”

(BELLAH, Robert N. Beyond belief: Essays on Religion in a post-traditional world.

Berkley: University of California Press, 1991. p. 171.) 38 “[T]hough much is selectively derived from Christianity, this religion is clearly not itself

Christianity. For one thing, neither Washington, nor Adams nor Jefferson mentions Christ

in his inaugural address; nor do any of the subsequent presidents, although not one of

them fails to mention God.” (Ibid., p. 175.)

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separados por este muro que, por motivos históricos,

tendem a não aceitar [...] Para eles, o “muro de separação”

não significa que o Estado seja ateu ou até mesmo secular

no sentido próprio da palavra: apenas significa que esse

muro mantém uma postura de neutralidade em relação a

diversas igrejas ou denominações religiosas.39

Assim, os fundamentalistas estão pré-dispostos para se defender contra

qualquer ameaça, percebida por eles, do que possa atingir a ideia de

“América Cristã”.

Essa presença mais forte da religião, na sua forma não civil, teve

um aumento notável. O atual presidente norte-americano, Barack Obama,

narra sua trajetória e sua fé pessoal no livro The Audacity of Hope. Suas

palavras mostram a forte presença cristã no discurso político norte-

americano atual, quando ele diz: “[A]joelhado ao pé da cruz, no lado sul

de Chicago, senti o Espírito de Deus me chamando. Submeti-me a Sua

vontade e me dediquei a descobrir Sua verdade”.40 Em comparação com o

discurso de Kennedy mencionado acima, Obama fala sobre sua fé como

cristão praticante e não do Deus de religião civil, tanto que, segundo

Prothero (2010), “[h]oje, é impossível entender a política americana sem

se conhecer algo da Bíblia usada no juramento de posse do presidente dos

Estados Unidos e evocada quase diariamente no Congresso americano.”41

O que pode ser mais preocupante nessa presença da religião

fundamentalista na política americana, e que se tornou mais óbvia na

época de George W. Bush, é a radicalização de atitudes conservadoras.

39 “[C]onstrained by the this wall which, for historical reasons, they are more likely than

not to accept [...] For them the ‘wall of separation’ does not mean that the state is

atheist or even secular in the fullest sense of the word: merely that it maintains a

posture of neutrality towards the different churches or religious denominations”.

(RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford: Oxford

University Press, 2004. p. 24.) 40 “[K]neeling beneath the cross on the South Side of Chicago, I felt God’s Spirit

beckoning me. I submitted myself to His will, and dedicated myself to discovering His

truth.” (OBAMA, Barack. The Audacity of Hope: Thoughts on Reclaiming the American

Dream. New York: Vintage, 2008. p. 246.) 41 PROTHERO, Stephen R. As grandes religiões do mundo. Trad. Joel Fontenelle

Macedo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 10.

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33

Para Hedges (2008a), a crescente influência da Direita Cristã se infiltrou

dentro do partido Republicano, da Câmara dos Representantes, e do

Senado dos Estados Unidos.42

Segundo Ruthven (2004), os fundamentalistas nos Estados Unidos

são contidos pela Constituição, e “ao invés de formar um partido político

com o objetivo de tomar o governo, eles fazem lobby por poder e

influência dentro do partido Republicano”.43 Apesar de eles não

representarem uma ameaça dentro de uma cultura religiosa pluralista,

para nós, o crescimento do papel político do fundamentalismo religioso

americano pode representar uma preocupação concreta, pela sua

influência na política e nas decisões do governo dos Estados Unidos.

1.1.2. Judaísmo: o caso do Estado de Israel

Nos Estados Unidos, os fundamentalistas americanos que se

identificam com Israel não vivenciam um conflito entre a religião e o

patriotismo, ao pensar os Estados Unidos como a “nação de Deus”, já que

eles seguiriam Sua vontade e leis.44 Em comparação com o

fundamentalismo politicamente ativo nos Estados Unidos, que se infiltra

no poder do Estado, a ligação do fundamentalismo judaico em Israel com

o Estado apresenta um quadro diferente.

Segundo Ruthven (2004), o Estado de Israel foi projetado pelo

sionismo secular para estabelecer uma nação para os judeus. Porém, a

escolha da terra da Palestina tem suas dimensões históricas e religiosas,

além de políticas. O retorno é visto em perspectiva do Êxodo, sendo um

sinal de Redenção em que é permitido aos judeus voltar para a terra de

Israel, a antiga Terra Prometida por Deus para o povo judeu, de acordo

42 Cf. HEDGES, Chris. American Fascists: the Christian Right and the War on America.

New York: Free Press, 2008. pp. 22-23. 43 “[R]ather than forming a religious party aiming at taking over the government, they

lobby for power and influence within the Republican Party.” (RUTHVEN, Malise.

Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford: Oxford University Press, 2004. p.

25.) 44 Cf. Ibid., p. 129.

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com o seu sistema de crenças. Isso deixa os limites entre a ideia secular e

o nacionalismo religioso judaico sem distinção clara.45

Assim, o fundamentalismo religioso judaico encontra espaço tanto

no governo na forma de partidos políticos, quanto fora nos movimentos

fundamentalistas radicais – especialmente quando estes não concorda

com a política do governo ou com seu estatuto secular.

Alguns grupos de fundamentalismo judaico ativo são caracterizados

por serem contra qualquer negociação com os palestinos. Haynes (2006)

lembra que o assassinato de Itzhak Rabin em 1995 ocorreu durante a sua

negociação de paz com Yasser Arafat (1929 - 2004), o líder da OLP

(Organização para a Libertação da Palestina) na época, admitindo

“permitir aos palestinos maior grau de autogoverno, tendo como premissa

a redução do tamanho de Israel”.46 Mesmo com as tentativas do governo

de Israel em restringir movimentos fundamentalistas internos que adotam

a violência, sua presença na política do país está longe de ser controlada.

Segundo Juergensmeyer (2003), alguns grupos de fundamentalistas

judeus tentaram dar ao Estado uma aura religiosa, como no caso do Rabi

Avraham Yitzhak Kook, que acreditava que “o Estado secular de Israel é a

vanguarda do Israel religioso, que está por vir’’.47 Por essa perspectiva, o

Estado de Israel, mesmo se declarando secular, carrega algo de sagrado

na sua essência. Essa ideia de sionismo messiânico, que se popularizou

depois que Israel ganhou a Guerra dos Seis Dias em 1967 contra os

árabes, foi, porém, recusada pelo Rabi Meir Kahane. Para Juergensmeyer

(2003), porém, Kahane acreditava que o problema “não era o fato de

serem árabes, mas o fato de serem não judeus que viviam em um lugar

45 Cf.RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford: Oxford

University Press, 2004. pp. 157–60. 46 “[A]llowing Palestinians a large measure of self-government, premised upon a

reduction in the physical size of Israel.” (HAYNES, Jeffrey (Ed.). The Politics of

Religion: A Survey. London: Routledge, 2006. p. 80.) 47 “[T]he secular state of Israel is the avant garde for the religious Israel to come [...]”

(JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global Rise of Religious

Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 55.)

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designado por Deus para o povo judeu”.48 De acordo com Juergensmeyer

(2003), Kahane odiava o Estado secular de Israel e não aos árabes. Sua

querela com os árabes seria por eles estarem no lugar errado, o que

atingiria o orgulho nacionalista dos judeus.

O pensamento de Kahane foi utilizado tanto para os ataques contra

o governo secular do Israel, quanto contra os palestinos, quando ele

convocou o povo de Israel a ocupar a Cisjordânia como um ato de “guerra

justa”. Sua crença numa guerra cósmica não deixa espaço para pensar

nos sujeitos que estão sendo atacados, porque numa guerra espiritual

todos são soldados potenciais. Kahane foi assassinado em 1990, na cidade

de Nova York, por um imigrante egípcio muçulmano fundamentalista.49

1.1.3. Islamismo: o caso do Egito e do Irã

O fundamentalismo islâmico, como no caso do fundamentalismo

cristã e judaico, inclui diversos movimentos de diferentes características.

Nosso foco é direcionado a alguns exemplos de fundamentalismo islâmico

que adotam o Islã não somente como religião, mas como um sistema

político, econômico, cultural e social. Nossa análise é centrada em dois

países muçulmanos: o Egito, em referência ao fundamentalismo sunita, e

o Irã, como um caso do fundamentalismo xiita.

Segundo Armstrong (2010), o fundamentalismo islâmico começou a

crescer depois que

as ideologias ocidentais de nacionalismo e socialismo, as

quais tinham pouco apoio da base, falharam. A religião

parecia ser uma forma de retornar para as raízes pré-

48 “[It] was not that they were Arabs but that they were non-Jews living in a place

designated by God for the Jewish people.” (JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind

of God: The Global Rise of Religious Violence. Berkeley: University of California Press,

2003. p. 56.) 49 Cf. Ibid., pp. 57–60.

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coloniais de sua cultura e recuperar uma identidade mais

autêntica.50

Depois da primeira queda do movimento pan-arabista na guerra

contra Israel de 1967, segundo Armstrong (2010) a segunda queda

ocorreu quando o presidente egípcio Muhammad Anwar al-Sadat (1918-

1981) assinou o tratado de paz com Israel, em 1979. Mas Sadat, que era

duro com os fundamentalistas, acabou sendo assassinado nas mãos de

um deles.51

Os fundamentalistas islâmicos adotam hoje uma posição contra o

“nacionalismo secular” e a favor da criação de um “nacionalismo

religioso”, que assumiria a forma de uma missão universal de alcance

superior às fronteiras do país, como é o caso do movimento wahhabita na

Arábia Saudita. Segundo Ruthven (2004), o movimento wahhabita, assim

como a Irmandade Muçulmana no Egito, “tem como objetivo revitalizar

toda a comunidade de Umma de acordo com o pensamento

fundamentalista wahhabita”.52 Para Ruthven (2004), num sentido mais

amplo, esses movimentos procuram estabelecer a Umma,53 mas podem

se conformar com o “nacionalismo religioso”.

No Egito, o islamista Sayyid Qutb deixou seus pensamentos em

vários livros, principalmente a sua obra de 1964, Ma’alim fi-l-Tariq

(Marcos no caminho), que se tornou best seller depois da sua morte.

Nesse livro, segundo Ali (2002), Qutb (escrito também como Kutb) explica

que

50 “[T]he Western ideologies of nationalism and socialism, which had little grassroots

support, appeared to have failed. Religion seemed a way of returning to the precolonial

roots of their culture and regaining a more authentic identity.” (ARMSTRONG, Karen. The

Case for God: What religion really means. New York: Anchor Books, 2010. p. 296.) 51 Cf. Ibid., pp. 296-297. 52 “[A]ims to revitalize the whole of Umma along Wahhabi fundamentalist lines.”

(RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford: Oxford

University Press, 2004. pp. 138-139.) 53 “[U]mma : comunidade, tanto de fiéis quanto no sentido nacional; o ecúmeno

muçulmano universal.” (DÉMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Editora

Contexto, 2011. p. 397.)

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os únicos muçulmanos dignos de emulação são a primeira

geração do Islã, porque eram puros de mente e espírito. Em

três parágrafos sucessivos há várias referências a “fontes

límpidas” como os únicos lugares onde os muçulmanos

“matam a sede”. A fonte límpida é o Alcorão. Em todo o livro

Kutb insiste que o Alcorão, e só ele, pode ser a fonte de

conhecimento e o guia da vida cotidiana.54

Ali (2002) explica que a missão do profeta Maomé não era o

nacionalismo que procurava unir as tribos e expulsar as forças de

ocupação; pelo contrário, ele fez isso em nome de Alá para que todos os

povos pudessem entrar nessa nova comunidade, desde que “jurassem

aliança a Alá e seu Profeta”.55 Tampouco, segundo Ali (2002), ele teria

criado um

movimento social baseado nos despossuídos, derrotado os

ricos e redistribuído a riqueza deles para os pobres. Assim

que isso fosse feito os pobres teriam corrido para o

estandarte de Alá sem qualquer persuasão [...].56

Ou seja, nessa interpretação, somente quando a sociedade se

submete às leis de Deus, há justiça social. Para Ali, o livro de Qutb foi

uma resposta clara contra o pan-arabismo e os comunistas, mas sua

mensagem política era fraca e favorecia uma volta ao antigo islã como era

visualizado no Alcorão por meio do Jihad, tanto na “pregação e

persuasão”, quanto no uso do “poder físico”.57 O pensamento de Qutb se

tornaria mais tarde a base de muitos movimentos fundamentalistas que

estão além das terras árabes.

Segundo Ali (2002), depois das novas tentativas de assassinar Abdel

Nasser, o governo egípcio aumentou sua opressão contra o movimento

islamista da Irmandade Muçulmana58 e resolveu, em 1965, prender vários

54 ALI, Tariq. Confronto de Fundamentalismos. Trad. Alves Calado. Rio de Janeiro:

Editora Record, 2002. pp. 155-156. 55 Ibid., p. 156. 56 Ibid., p. 156. 57 Cf. Ibid., p. 157. 58 O movimento foi fundado oficialmente no Egito em 1928 por Hassan al-Banna (1906-

1949), mas foi influenciada principalmente pelo pensamento e escritos do Sayyid Qutb.

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líderes da Irmandade, inclusive condenando à morte seu líder intelectual

Sayyid Qutb, que era respeitado mesmo fora do círculo religioso. Sua

execução aconteceu em 1966.

Enquanto no Egito a Irmandade Muçulmana, a maior organização do

fundamentalismo islâmico sunita e com sua grande influência no mundo

árabe, só conseguiu chegar o poder em 2012, no Irã o fundamentalismo

xiita chegou o poder em 1979, em um país que tem a maior população

xiita do mundo.

O último Xá iraniano, Reza Pahlavi (1919-1980), segundo Armstrong

“queria que o Irã parecesse moderno, apesar do conservadorismo

subjacente, e não media esforços para alcançar seu objetivo”.59 Ele tinha

o apoio dos americanos e dos britânicos na sua política de modernizar o

país. Ao mesmo tempo, ele combatia tanto o clero xiita, quanto os

defensores da democracia durante os anos setenta. A Revolução Iraniana

de 1979 acabou com a monarquia autocrática do Xá e foi instalado um

sistema político conservador islâmico liderado pelo líder espiritual e

político Aiatolá Khomeini (1902-1989).60

Segundo Demant (2011), todos os fundamentalistas islâmicos

concordam sobre alguns pontos básicos, mesmo com pequenas diferenças

nos detalhes, que são, segundo ele, a noção de que o ideal é ter um

Estado islâmico. Este Estado

será governado por uma instância islâmica que partirá da

verdade absoluta e da supremacia axiomática do islã, e que

em nome da umma imporá a todos o respeito às regras do

islã. [...] O Estado islâmico não reconhece, portanto, o

Para mais informação veja: (ALI, Tariq. Confronto de Fundamentalismos. Trad. Alves

Calado. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002. pp. 139–61). Além disso, depois da

Revolução Egípcia de 2011 e a queda do regime do ex-presidente Egípcio Husni

Mubarack, o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohammed Morsi, foi eleito presidente

do Egito em 2012. 59 ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no

cristianismo e no islamismo. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:Companhia das Letras,

2009. p. 309. 60 Cf. ALI, op. cit., pp. 189–194.

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conceito ocidental de cidadania, nem reconhece a

democracia numérica.61

O objetivo desse Estado é “estimular e facilitar uma vida religiosa para

todos os muçulmanos”.62 Ele portanto será governado de acordo com

xariá,63 a lei islâmica, e que os islamistas procuram aplicar. O problema é

que, segundo Demant (2011), a xariá

não é um sistema acabado, mas antes um método para

deduzir, com base em certas fontes islâmicas, as regras

obrigatórias (soluções) para uma ampla pauta de questões:

rituais, sociais, econômicas, familiares, comportamentais,

jurídicas, políticas etc.64

E desde que, segundo Demant (2011), não haja consenso sobre as fontes,

aplicar a xariá representa sempre um desafio, o que explica as diferentes

formas de se entender e aplicar a xariá, mesmo entre diferentes grupos

fundamentalistas.65

A nosso ver, esses movimentos fundamentalistas islâmicos, sejam

sunitas ou xiitas, e como todos os movimentos de fundamentalismo

religioso, são complexos e não devem ser compreendidos fora dos seus

contextos sócio-históricos ou de uma única forma. Seus métodos de luta,

pensamento político, objetivos e filiações são diversos. E quando

conseguem alcançar o poder, não reagem da mesma forma, e podem

cambiar sua maneira de luta entre o uso ou não da luta armada.

Mesmo assim, os movimentos de fundamentalismo religioso

compartilham alguns aspectos. De acordo com Ruthven (2004), há duas

formas para se analisar esses movimentos politicamente ativos. A

primeira parte da religião na sua forma fundamentalista como identidade

61 DÉMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Editora Contexto, 2011. p. 300. 62 Ibid., p. 301. 63 [A palavra] xariá, também grafada como xaria, sharia, shariah, shari ‘a, charia,

significa: “‘rumo para uma fonte’; o Código Legal Islâmico que, para os muçulmanos,

estabelece as regras que governam todos os aspectos da vida.” In: (Ibid., p. 396.) 64 Ibid., p. 299. 65 Cf. Ibid., p. 299.

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forte, que segue certa agenda política. A segunda linha de análise entende

o fundamentalismo religioso não em relação à sua ligação com a religião,

mas a “agenda de poder estendido ou consolidado do Estado-nação”,66 ou

como Eisenstadt (1999) prefere, o estado “jacobino”, sendo o Estado que

surgiu com a Revolução Francesa. Para nós, essas duas linhas são

interligadas e portanto importantes para o entendimento do pensamento

fundamentalista.

Segundo Eisenstadt (1999), o poder estendido ou consolidado do

Estado-nação foi seguido pelo surgimento do comunismo e do fascismo.

Eisenstadt, como nota Ruthven (2004), evita mencionar o sionismo. Os

movimentos do fundamentalismo religioso são correntes que carregam os

elementos jacobinos, como movimentos de orientação igualitária,

totalitária e participativa, e sempre foram violentos. Os movimentos

fundamentalistas podem seguir essa fórmula, se conseguem se

modernizar, no sentido de secularizar essas religiões e abandonar a ideia

do conflito cósmico.67

O fundamentalismo religioso ativo, de acordo com Ruthven (2004),

pode ser entendido como uma resposta à globalização, principalmente

“às ansiedades geradas pelo pensamento de que há modos de vida e de

crença diferentes daqueles considerados como tendo sido decretados pela

versão da divindade do próprio grupo da pessoa”.68 Essas ansiedades são

um reflexo das mudanças que a modernidade trouxe.

Para nós, tanto a verdade do fundamentalismo religioso quanto a

verdade do nacionalismo são verdades que se apresentam como

absolutas. Portanto, tentar substituir o nacionalismo secular pelo

nacionalismo religioso ou consolidar uma religião de base de pensamento

66 RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford: Oxford

University Press, 2004. p. 187. 67 Cf. Ibid., pp. 187-191. 68 “[T]he anxieties generated by the thought that there are ways of living and believing

other than those deemed to have been decreed by one’s own group’s version of the

deity.” (Ibid., p. 34.)

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fundamentalista (sob o lema que somente Deus pode salvar a nação)

dentro do sistema do Estado, é problemático para qualquer sistema

democrático.

1.2. O Deus transcendental: a visão monoteísta e o Iluminismo

Nosso segundo passo para analisar o fundamentalismo na

modernidade é entender as diferentes visões sobre Deus nas três religiões

monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. A forma de

percepção de Deus é ligada a questão de como servi-Lo e quem O

representa corretamente. Enquanto essas diferenças para a maioria não

representam um problema, elas são aproveitadas pelos fundamentalistas,

que não somente acreditam nas visões como verdades absolutas, mas que

são os únicos capazes de falar em nome de Deus e representá-Lo na

terra, o que os coloca em confronto com quem não concorda com suas

visões.

Analisamos também a relação entre Deus e o Iluminismo, à luz do

pensamento de Nietzsche. Isto e a questão da volta da religião à luz da

interpretação do Vattimo sobre o conceito de “morte de Deus” na pós-

modernidade. Nesta parte discutimos também a fé em um Deus

transcendental em relação ao Iluminismo, o problema de colocar a razão e

a fé em conflito, e a crise de sentido.

1.2.1. As diferentes visões monoteístas sobre Deus e o

fundamentalismo

Quando os fiéis das três maiores religiões monoteístas: o judaísmo,

o cristianismo e o islamismo, ouvem a palavra “Deus”, segundo Campbell

(2009), eles entendem por isso o criador do universo. Porém, a palavra

“Deus” em si

é uma palavra ambígua, em nossas línguas, pois parece

referir alguma coisa conhecida. Mas o transcendente é

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desconhecido e incognoscível. Deus, em suma, transcende

qualquer coisa, mesmo o nome “Deus”. Deus está além de

nomes e formas.69

As três religiões monoteístas, por definição, acreditam em um Deus

único transcendental que criou o mundo. O cristianismo declara que Deus

é o mesmo antigo Deus do judaísmo do Velho Testamento, e o islamismo

fala de Deus sendo o mesmo dos judeus e dos cristãos.

Depois da chegada da cristandade a Atenas, a antiga filosofia grega

influenciou essas discussões sobre a concepção de Deus. O autor que

escreveu como “Pseudo-Dionísio” tentou equiparar o Deus cristão ao Deus

grego. Ele acreditava, segundo Armstrong (2008), que

Deus não é um Ser Supremo comandando uma hierarquia

de seres menores. As coisas e as pessoas não contrapõem a

Deus como uma realidade separada ou um entre alternativo,

que pode ser objeto de conhecimento. Deus não é uma das

coisas que existem e não se parece como nada que faça

parte de nossa experiência. Na verdade, é mais exato

chamá-lo de “Nada”.70

A sua natureza divina, portanto, não pode ser julgada de acordo com

nossa percepção do mundo.

Sendo Assim, a afirmação “Eu creio em Deus” não tem um sentido

objetivo como tal, mas, como qualquer outra afirmação, só significa

alguma coisa dentro de um contexto, quando empregada por determinada

comunidade.71

Por conseguinte, as formas de agradar a Deus e se aproximar Dele

também mudam em cada tradição religiosa.

Nas três religiões monoteístas, a divergência é em relação à

maneira de enxergar Deus e cumprir Sua vontade. Isto é,

69 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas

Athena, 2009. p. 51. 70 ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo,

cristianismo e islamismo. Trad. Marcos Santarrita; Wladimir Araújo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008. p. 170. 71 Ibid., p. 10.

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[o]s monoteístas (que compreendem, na maioria, judeus,

cristãos e muçulmanos) podem adorar a mesma divindade

transcendental, seja ela conhecida pelo nome de Jeová,

Trindade ou Alá (o “Deus” assim conhecido pelos

muçulmanos). Porém, quando se trata de entender a

vontade ou as intenções Dele, Seus seguidores

autoproclamados sempre adotam pontos de vista opostos. 72

Deus pode ser entendido por meio desses livros sagrados, para os

quais os monoteístas se voltam quando o assunto é o conceito de Deus.

Cada uma dessas religiões tem seu livro sagrado, que carrega as palavras

de Deus, ditas tanto na primeira pessoa ou por meio das palavras dos

seus mensageiros.73

No caso do fundamentalismo religioso, e “uma vez que dizem que

Deus falou coisas diferentes para vários indivíduos que afirmam falar em

Seu nome, a crença na verdade defendida por uma tradição

necessariamente exclui todas as demais”.74 A divergência entre essas

religiões em si, portanto, não apresenta nenhum problema desde que não

se torne uma tentativa de provar que alguém está certo ou errado.

Os livros sagrados e o nome de Deus são levados ao extremo,

favorecendo uma religião ou uma nação a partir de certo contexto local de

interpretações que rejeita o “Outro” ou considera suas crenças ou

interpretações como falsas. Dessa forma, “os fundamentalistas estão

sempre a postos para condenar as pessoas que eles consideram inimigos

de Deus”.75 Essa verdade forte é única, exclusiva e absoluta sobre Deus, e

72 “Monotheists (who include most Jews, Christians and Muslims) may worship the same

single transcendental deity, whether known by the name of Jehova, the Trinity, or Allah

(‘the God’ as Muslims known Him). But when it comes to understanding His will, or

intentions, His self-proclaimed followers invariably adopt opposing standpoints.”

(RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford: Oxford

University Press, 2004. p. 4.) 73 Veja página 78, a citação de Vattimo, sobre a questão da interpretação. 74 “[S]ince God is reported to have said different things to the numerous individuals

claiming to speak on his behalf, belief in the truth held by one tradition necessarily

exclude all others.” (Ibid., p. 47.) 75 “[F]undamentalists are swift to condemn people whom they regard as the enemies of

God” (ARMSTRONG, Karen. The Case for God: What religion really means. New York:

Anchor Books, 2010. p. 294.)

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quando domina o discurso religioso serve como base para o

fundamentalismo religioso e às ações violentas que podem advir dele.

O que marca Deus das três religiões monoteístas é o fato de ser “um

Deus que – de algum modo – fala”.76 Essas palavras que causam forte

impacto, vieram das culturas dominadas por essas três religiões. O Deus

que fala, é um Deus ativo que participa na vida diária dos seus seguidores

escrevendo sua história e formando sua cultura; é um Deus

transcendental que fala. Suas palavras estão escritas nos livros sagrados

que foram recebidos por seus profetas.

Como efeito, os fundamentalistas acreditam no significado literal das

palavras de Deus, sem dar importância ao contexto ou ao espaço

temporal ou físico. Assim, eles

procuram a “opinião” de Deus sobre o tema em questão e

usam leituras selecionadas para questionar os governantes

seculares e também, em alguns casos, para formar

a base de um programa voltado para uma reforma radical.77

Os fundamentalistas, dessa forma, acreditam que falam em nome

de Deus por serem, segundo Ruthven (2004), os “defensores Dele”. Ao

atuar em nome de Deus, os fundamentalistas paradoxalmente ecoam as

palavras do Nietzsche sobre a supremacia da vontade humana na sua

declaração de “morte de Deus”.78

Podemos concluir que, tanto no cristianismo, quanto no judaísmo e

no islamismo, “[a] distinção entre esotérico e exotérico seria

76 ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo,

cristianismo e islamismo. Trad. Marcos Santarrita; Wladimir Araújo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008. p. 13. 77 ”[To] seek God’s ‘opinion’ on the topic in question, and use selected readings both to

challenge secular rulers and in some cases to form the basis of a programme for radical

reform.” (HAYNES, Jeffrey (Ed.). The Politics of Religion: A Survey. London:

Routledge, 2006. p. 73.) 78 Cf. RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford: Oxford

University Press, 2004. p. 94.

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extremamente importante na história de Deus”,79 quer dizer, o termo

“esotérico” não implica dificultar acesso, mas reconhecer que “nem toda

verdade religiosa pode ser expressa e definida de maneira clara e

lógica”.80

Assim, a “essência” de Deus, continua sendo incompreensível para

nós, sem que isto influencie a fé dos seus seguidores, já que a fé não se

baseia nas verdades objetivas para nós, os seres humanos, aqui na terra.

1.2.2. O Deus transcendental e o Iluminismo.

Com Iluminismo surge uma nova visão sobre Deus e sua existência.

A revolução do pensamento humano com o Iluminismo, segundo

Armstrong (2008), atingiu a religião e a figura de Deus; contudo, tanto a

arte quanto a ideia de Deus “não [evoluíram] a partir de um ponto e

[avançaram] de modo linear até um conceito final. Funcionam dessas

formas as idéias [sic] da ciência, mas não as da arte e da religião”.81 Isso

levou, muitas vezes, a um confronto entre a religião e a ciência, que

perdura até os nossos dias.

Para Armstrong (2008), a fé em Deus de acordo com a Bíblia, não

se baseia numa crença abstrata ou intelectual, mas na confiança em

Deus.82 Com o Iluminismo, o homem começou a enxergar o mundo com

os olhos da ciência, pela qual tudo no universo poderia ser estudado e

analisado. Os antigos medos do desconhecido começaram a se dissipar

cada vez mais, o que acabou levando alguns a rejeitar a existência de

Deus por falta de “provas” científicas.

79 ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo,

cristianismo e islamismo. Trad. Marcos Santarrita; Wladimir Araújo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008. p. 155. 80 Ibid., p. 155. 81 Ibid., p. 11. 82 Cf. Ibid., p. 32.

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Antes mesmo dos filósofos do Iluminismo, o filósofo árabe Al-Gazali

(1058-1111),83 segundo Armstrong (2008), considerava

inúteis os argumentos tradicionais em favor da existência de

Deus, porque nossa mente só entende coisas que existem no

espaço e no tempo e não tem competência para considerar

realidades que estão além dessa categoria.84

Os filósofos do Iluminismo também não recusaram a ideia de

existência de Deus, mas “[rejeitaram] o Deus cruel dos ortodoxos, que

ameaçava a humanidade com fogo eterno. Rejeitavam doutrinas

misteriosas sobre ele [sic] que eram incompatíveis com a razão.”85 Porém,

a nova era científica, como aponta Armstrong (2008), levou alguns

filósofos e cientistas a acreditar em uma visão mais específica que

duvidava da existência de Deus e que procurava entender a Sua

existência através da razão, o que faz dela uma questão de escolha.

A nosso ver, rejeitar a ideia da existência de Deus levanta duas

questões importantes. Em primeiro lugar, com a liberdade da escolha, e

sem o mistério do Bem e do Mal, segundo Ferry (2007), a nossa

responsabilidade do Bem se acaba.86 Essa divinização do homem tem seu

outro lado, pois, quando “o mal chega aos outros homens. À figura do

homem-Deus responde a do homem-Diabo.”87

Para Latour (1994), ninguém pode se considerar moderno sem

afastar Deus definitivamente da “dupla construção social e natural,

deixando-o ao mesmo tempo apresentável e intercambiável”.88 Ao ser

afastado das leis da natureza e também das leis da República, Deus se

83 Para saber mais sobre a vida e as obras do filósofo Al-Gazali, veja: (ATTIE FILHO,

Miguel. Falsafa: A filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002, pp. 266-99.) 84 ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo,

cristianismo e islamismo. Trad. Marcos Santarrita; Wladimir Araújo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008. pp. 391-392. 85 Ibid., p. 386. 86 Cf.FERRY, Luc. O Homem-Deus, ou, O sentido da vida. Trad. Jorge Bastos. Rio de

Janeiro: DIFEL, 2007. p. 86. 87 Ibid., p. 91. 88 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de

Janeiro: Editora 34, 2009. p. 38.

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tornou, segundo Latour (1994), o “Deus suprimido da metafísica, tão

diferente do Deus pré-moderno dos cristãos”.89 Assim, o homem moderno

sente-se capaz de se autodeclarar como ateu e ser, ao mesmo tempo,

religioso no seu comportamento humanista.

Tal reinvenção da espiritualidade serve para que, segundo Latour

(1994), “[u]ma religião totalmente individual e espiritual permita criticar

tanto a dominação da ciência quanto a da sociedade, sem com isto obrigar

Deus a intervir em uma ou outra”.90 O Deus ausente, que tomou o lugar

do Deus supremo da metafísica e da espiritualidade, pode “permanecer

eficaz e fraternal no espírito dos humanos”,91 sem preocupar mais os

modernos.

A segunda questão importante que esta recusa de Deus levantou,

para nós, é a busca pelo homem do sentido e do valor da vida, que,

mesmo com todos os valores do progresso que o Iluminismo trouxe, não

parou. Essa busca é evidenciada não somente por meio da religião, mas,

também da arte. No meio do caos que o homem pós-moderno vivencia,

somente a religião oferece ao homem a salvação e a vida eterna após a

morte.

O recuo da religião e da ideia de um Deus criador, segundo Ferry

(2007) fez com que “a questão do sentido não encontre mais um local

onde se exprimir coletivamente. Assumida, antigamente, pela fé, hoje em

dia ela tende a se tornar caduca, para não dizer ridícula.”92 Até mesmo

“as diversas variantes do comunismo não puderam fornecer sentido senão

89 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de

Janeiro: Editora 34, 2009. p. 38. 90 Ibid., p. 39. 91 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de

Janeiro: Editora 34, 2009. p. 39. 92 FERRY, Luc. O Homem-Deus, ou, O sentido da vida. Trad. Jorge Bastos. Rio de

Janeiro: DIFEL, 2007. p. 18.

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graças a uma autêntica estrutura religiosa”,93 mesmo seguindo o ateísmo

como princípio.

Isto se revela na sua própria estrutura revolucionária de salvação,

que procura “uma significação global ao projeto militante de um sacrifício

de si em nome de uma causa que, mesmo supostamente material, nem

por isso deixa de ser transcendente”.94 Naquele momento dos desafios do

nazismo e do imperialismo colonial e após a Segunda Guerra Mundial, o

marxismo se colocou como um fornecedor do sentido.

A noção de busca de sentido, segundo Ferry (2007), foi rejeitada

por Freud, por acreditar que a partir do momento que o homem inicia o

questionamento do sentido da vida e da morte, ele está doente. Apesar

disso,

se a sabedoria das grandes religiões não convém mais a

nossos tempos democráticos, se qualquer retorno parece

impossível, mesmo assim nada inventamos que possa

ocupar esse lugar de maneira aceitável.95

A procura vai além das respostas da psicanálise, tornando a religião

e Deus nesse contexto insubstituíveis.

A expressão “a morte de Deus”,96 de Nietzsche, e os termos

resultantes dela, “secularização” e “laicização”, carecem de, segundo

Ferry (2007), “‘sentido do sentido’ – a significação última de todas essas

significações particulares [...]”.97 Esse “relativo sentimento do vazio” não

93 FERRY, Luc. O Homem-Deus, ou, O sentido da vida. Trad. Jorge Bastos. Rio de

Janeiro: DIFEL, 2007. p. 19. 94 Ibid., pp. 19-20. 95 Ibid., p. 12. 96 A frase “morte de Deus” apareceu pela primeira vez na sua obra que foi publicada

inicialmente em 1882, A Gaia Ciência. Veja: (NIETZSCHE, Friedrich W. A gaia ciência.

Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2008. pp. 135; 150). Mais tarde o termo

apareceu também na sua obra Assim Falou Zaratustra. Veja: (NIETZSCHE, Friedrich.

Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de

Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.) 97 FERRY, op. cit., p. 17.

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atingiu somente a religião, mas todas as grandes utopias.98 O desencanto

com o mundo levou a fé hoje a ser atacada e até ridicularizada nas

sociedades que se declaram seculares.

O ocidente deixou Deus fora do espaço político, porque “a lei moral

perdeu, após a lei jurídica, sua característica sagrada ou, pelo menos, sua

ligação com fontes religiosas reveladas”.99 Isto, segundo Ferry (2007),

deu fim ao teológico-político, o que resultou em um “eclipse da teologia

moral”,100 como foi assim chamado pelo Papa João Paulo II (1920-2005).

Segundo Ferry (2007), “[o] mal absoluto permanece ligado à idéia

[sic] de uma separação irremediável do divino, uma privação eterna de

amor e, por isso mesmo, de sentido”.101 Vivemos atualmente, segundo

Ferry, entre dois processos que se cruzam: “a humanização do divino e a

divinização do homem.”102 E esse cruzamento, segundo ele, é um ponto

de confusão, que cria um desconforto que nos obriga a reformular nossas

crenças diante da transcendência de Deus, seja pelos olhos da ciência, ou

da religião.103

Concluímos que a crença em um Deus único, criador do universo,

muitas vezes acaba gerando revolta contra essa dominação absoluta,

principalmente nas sociedades liberais. Parte dessa revolta surge da

imagem de Deus como um juiz rigoroso que se apresenta de uma forma

sádica, que condena as pessoas ao paraíso ou ao sofrimento do inferno

pela eternidade. De acordo com Armstrong (2008), o medo de Deus como

98 Este “relativo sentimento do vazio” pode ser entendidos em termos de “logofobia” de

Michel Foucault, que denomina dois termos: “logofilia”, ter um sentido claro no discurso,

em comparação com o “logofobia”, que reflete certa angústia diante de um texto não

pronto ou validado, e que questiona as verdades dadas pelo discurso. Veja: (FOUCAULT,

Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo:

Loyola, 2008. pp. 50-51) 99 FERRY, Luc. O Homem-Deus, ou, O sentido da vida. Trad. Jorge Bastos. Rio de

Janeiro: DIFEL, 2007. p. 33. 100 Ibid., p. 33. 101 Ibid., p. 208. 102 Ibid., p. 208. 103 Cf. Ibid., p. 208.

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o todo-poderoso conduz ao esquecimento de que “há na religião outras

coisas além do medo”.104

A nosso ver, esse medo e sua forma variam entre as três religiões

discutidas, e de acordo com as diferentes interpretações. Essa postura às

vezes acaba sendo entendida como ameaça aos valores do Iluminismo.

1.3. O Fundamentalismo religioso e a (pós-)modernidade.

O reaparecimento e a continuidade da religião, depois que alguns

cientistas e escritores da modernidade como Nietzsche e Freud previram

que teria um fim, deixou, a nosso ver, a modernidade sem respostas.

Contudo, a questão da religião não foi o único problema da modernidade

apontada pelos pós-modernos.

Segundo Latour (1994), enquanto os pós-modernos detectam o

problema dos modernos, que acreditavam que “[t]udo aquilo que não

avança no ritmo do progresso é considerado [...] como arcaico, irracional

ou conservador”,105 os pós-modernos continuam a “acreditar na exigência

de novidade contínua requerida pelo modernismo”.106 Por outro lado, o

passado não é visto como interminável; pelo contrário, ele se choca com o

presente de forma provocadora.

No meio dessas transformações, e como em qualquer tempo de

mudança, nossa época atual carrega muitas novidades radicais na história

da humanidade. Essas mudanças, a nosso ver, não são fáceis de serem

absorvidas por nós e atingem as esferas da política, religião, ética e

ciência. O desespero causado pelo impacto dessas mudanças retorna à

sociedade muitas vezes de maneiras agressivas e até violentas, entre as

pessoas que acreditam nas mudanças como a única forma para o avanço

104 ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo,

cristianismo e islamismo. Trad. Marcos Santarrita; Wladimir Araújo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008. p. 6. 105 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de

Janeiro: Editora 34, 2009. p. 72. 106 Ibid., p. 73.

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de homem, e aqueles que as veem como uma forma de autodestruição –

o que não falta no meio dessas guerras de ideologias e crenças.

Ser “antimoderno”, segundo Latour (1994), indica que estaremos

sempre ligados ao passado e que nenhuma revolução poderia nos separar

dele, já que a própria concepção do tempo que passa e do progresso são

construções da modernidade. A concepção judaico-cristã do tempo

não tinha qualquer inclinação para a Constituição moderna.

É em torno da Presença (ou seja, de Deus) que eles

construíram seu regime temporal, e não em torno da

emergência do vazio, do DNA, dos chips, ou das fábricas

automáticas... A temporalidade moderna nada tem de

“judaico-cristã” e, felizmente, nada tem de durável

também.107

A concepção do tempo linear apresenta dois problemas à nossa

forma de entender o tempo e o espaço. Por sua vez, a ideia de um tempo

moderno que rompe com o passado atingiu também os antimodernos,

que, “para apagar o progresso ou a decadência, desejam retornar ao

passado – como se houvesse um passado!”108

Nestes tempos perturbados, segundo Ferry (2007), e mesmo

percebendo que algo está errado e que não temos mais para onde ir, “há

uma coisa positiva a ser dita sobre os pós-modernos: depois deles não há

mais nada”.109 A pós-modernidade serve para prolongar nossa fuga, ao

invés de nos motivar a enfrentá-la. A saída seria aceitar “o terreno dos

mundos não modernos”,110 porque esse terreno central nos permite um

equilíbrio entre o sujeito e o objeto.

Para nós, um reflexo dessa fuga é o fundamentalismo religioso

ativo, que combate a modernidade, segundo Bhikhu Parekh (2008), mas

107 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de

Janeiro: Editora 34, 2009. p. 70. 108 Ibid., p. 71. 109 FERRY, Luc. O Homem-Deus, ou, O sentido da vida. Trad. Jorge Bastos. Rio de

Janeiro: DIFEL, 2007. p. 61. 110 Ibid., p. 52.

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com “armas modernistas, com espírito modernista, e pelo interesse do

ponto de vista modernista da religião”.111 Nas palavras de Ulrich Beck

(2010), o fundamentalismo religioso se revolta contra a modernidade,

porém ele não deixa de ser um produto dela, isto porque “o

fundamentalismo antimoderno tem origem moderna. Ele surge da

intersecção do pós-modernismo e pós-colonialismo, bem como da

confirmação recíproca de cada um.”112 Sua reação, portanto, é “tanto

moderna quanto antimoderna, na medida em que usa o pós-moderno

para rejeitar a modernidade e afirma, por esse motivo, que existe

somente uma narrativa religiosa verdadeira”.113

Bauman (1998), por sua vez, afirma que o fundamentalismo

religioso “é um filho legitimo da pós-modernidade, nascido das suas

alegrias e tormentos, e herdeiro, do mesmo modo, de seus

empreendimentos e inquietações.”114 Ele não representa uma solução

para os anseios que a pós-modernidade apresenta, “uma manifestação da

eterna irracionalidade humana, [...] nem uma fuga de volta ao passado

pós-moderno”.115 Isto, segundo Bauman (1998), porque ele

adota totalmente as “reformas racionalizadoras” e os

desenvolvimentos tecnológicos da modernidade, tentando

não tanto “fazer recuar” os desvios modernos quanto “os ter

e devorar ao mesmo tempo” – tornar possível um pleno

aproveitamento das atrações modernas, sem pagar o preço

que elas exigem. O preço em questão é a agonia do

indivíduo condenado à auto-suficiência [sic], à autoconfiança

111 “but with modernist weapons, in a modernist spirit, and in the interest of modernist

view of religion.” (PAREKH, Bhikhu. A New Politics of Identity: political principals for

an interdependent world. New York: Palgrave Macmillan, 2008. p. 145.) 112 “[A]nti-modern fundamentalism is of modern origin. It springs from the intersection of

post-modernism and post-colonialism as well as their reciprocal confirmation of each

other.” (BECK, Ulrich. A God of one’s own: Religion’s Capacity for Peace and Potential

for Violence. Cambridge: Polity Press, 2010. p. 133.) 113 “[B]oth modern and anti-modern, insofar as it uses the postmodern to reject

modernity and asserts for that reason that there is only one true religious narrative […]”.

(Ibid., p. 133.) 114 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama; Cláudia

Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 228. 115 Ibid., p. 226.

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e à vida de uma escolha nunca plenamente fidedigna e

satisfatória.116

O fundamentalismo religioso se coloca como solução do problema das

escolhas que a pós-modernidade apresenta, fazendo as escolhas em nome

de nós e nosso bem.

Para Bauman (2001), o fundamentalismo promete livrar os

convertidos das agonias das escolhas oferecidas pela sociedade de

consumo pós-moderna, porém ele é “um remédio radical contra esse

veneno da sociedade de consumo conduzida pelo mercado e pós-moderna

[...]”.117 Assim, ele combate a “liberdade contaminada pelo risco [...]

abolindo a liberdade como tal, na medida em que não há nenhuma

liberdade livre de risco”.118

Dessa forma, os grupos de fundamentalismo religioso, segundo

Bauman (2001),

pertence a uma família mais ampla de reações pós-

modernas a esses medos pós-modernos que foram infligidos

aos indivíduos como indivíduos pela progressiva

desregulamentação e privatização de todas as redes de

seguro e proteção “seculares”, outrora proporcionados pelo

estado por meio das habilitações da cidadania do estado.119

Essas soluções totalitárias ou proto-totalitárias, segundo Bauman

(2001),

[incluem] muitas formas de fundamentalismo étnico, de

orientação racial ou tribal, todas constituindo oposição tanto

ao estado secular como à cidadania indiscriminada e não-

discriminadora (denegrida como “abstrata”), que vêm agora

tomar o lugar dos geralmente desacreditados movimentos

116 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama; Cláudia

Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 226. 117 Ibid., p. 228. 118 Ibid., p. 228. 119 Ibid., pp. 228-229.

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políticos totalitários (como o comunismo ou o fascismo)

[...]120

Dessa forma, o fundamentalismo que se coloca na oposição tanto do

Estado secular quanto da cidadania, segundo Bauman (2001), vem para

substituir outros movimentos políticos totalitários.

Segundo Bauman (2001), o fundamentalismo religioso não

representa uma volta para uma irracionalidade pré-moderna, mas sim

uma racionalidade alternativa. Ele seleciona e divide e “coloca a segurança

e a certeza em primeiro lugar e condena tudo o que solapa essa

certeza”.121 Com isso, a religião na sua forma fundamentalista não

representa uma escolha privatizada ou pessoal, mas um guia que alivia o

indivíduo do peso da escolha que a pós-modernidade traz, e na qual o

mercado, na visão de muitos, é frágil demais para esta tarefa.

Žižek (2008), por sua vez, questiona a autenticidade dos chamados

fundamentalistas religiosos muçulmanos ou cristãos de hoje. Ele não

baseia sua crítica na crença religiosa desses fundamentalistas, mas no

fato de que eles carecem de uma característica essencial em todo

fundamentalismo religioso, isto é: “a ausência de rancor e inveja, bem

como a profunda indiferença em relação ao estilo de vida daqueles que

não creem”.122 Tais fundamentalistas religiosos, segundo ele, seriam

falsos porque se eles realmente acreditam que conhecem o caminho para

a verdade, não precisariam se sentir ameaçados pelo outro ou invejá-lo.

Isto é o que faz a diferencia entre os fundamentalistas ativos e os

fundamentalistas passivos, os quais Žižek considera com os verdadeiros

fundamentalistas. Segundo Ruthven (2004), os fundamentalistas

passivos, como é o caso dos amish nos Estados Unidos, são felizes por

serem deixados em paz para viver suas vidas de fé e virtude longe de mar 120 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama; Cláudia

Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 229. 121 Ibid., p. 229. 122 “[T]he absence of resentment and envy, the deep indifference towards the non-

believers’ way of life.” (ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008, p. 85.)

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de pecado que os cercam. Os fundamentalistas ativos, porém, têm sua

ambição política. Eles lutam contra a sociedade secular, seja em uma

forma direita ou indireta. Portanto, eles não se limitam a um espaço

dentro do Estado secular pluralista.123

Segundo Žižek (2008), os fundamentalistas falsos são os

fundamentalistas ativos, ou os fundamentalistas-terroristas que, “ao

contrário dos fundamentalistas verdadeiros, os terroristas pseudo-

fundamentalistas são profundamente incomodados, intrigados e

fascinados pela vida pecaminosa daqueles que não creem”.124 Suas

posturas prejudicam não somente os fundamentalistas autênticos, mas

também atingem a imagem da própria religião que eles defendem.

Žižek (2008) define o problema dos fundamentalistas-terroristas

como um problema de inveja ou rancor. Esse ódio contra o Outro125 se

manifesta quando eles buscam derrotá-lo, mesmo se perdessem junto

com ele. Para ele, “o principal defeito de uma pessoa má é justamente o

fato de estar mais preocupada com os outros do que consigo mesma”.126

Este é o caso da violência dos fundamentalistas religiosos ativos.

Segundo Žižek (2008), o problema é que “os fundamentalistas já

são como nós e, secretamente, já internalizaram nossos padrões, vendo-

se com base nestes”.127 Não se trata, portanto, de um problema cultural,

em que eles procuram proteger sua identidade cultural-religiosa contra a

ameaça de civilização global de consumo, mas sim motivado por um

123 Cf. RUTHVEN, Malise. Fundamentalism: The search for meaning. Oxford: Oxford

University Press, 2004, p. 57. 124 “[I]n contrast to true fundamentalists, the terrorists pseudo-fundamentalists are

deeply bothered, intrigued, fascinated by the sinful life of the non-believers”. (ŽIŽEK,

Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008 p. 85.) 125 Aqui Žižek fala sobre “O Grande Outro” (The Big Other) em termos de Jacques Lacan.

Para Žižek o “desejo do Outro” – que, segundo ele, tem os sentidos de: desejar o Outro /

desejar ser desejado pelo Outro / e, finalmente, desejar o que o Outro deseja – e, esse

último caso, traduzido como inveja. Veja: (Cf. Ibid., p. 87.) 126 “[T]he primary vice of a bad person is precisely that he is more preoccupied with

others than with himself.” (Ibid., p. 92.) 127 “[T]he fundamentalists are already like us, that secretly they have already

internalised our standards and measure themselves by them.” (Ibid., p. 86.)

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sentimento de inferioridade perante os outros que, quando afirmam que

não se sentem superiores a eles, acabam provocando ainda mais a raiva

desses fundamentalistas.128 Assim, a religião torna-se a resposta para um

mundo ao qual eles não poderão pertencer.

Essa luta contra o Outro, empenhada pelos falsos fundamentalistas,

segundo Žižek (2008), vem como falta de convicção real, projetando seus

conflitos interiores contra o Outro. Por isso sua reação violenta vem como

uma maneira de silenciar o Outro. Assim, a religião é utilizada como

ferramenta para enfatizando a diferença entre eles e o Outro. Essa falta

de convicção real em uma verdade metafísica e absoluta, a nosso ver e

conforme argumentamos abaixo, é um problema pós-moderno.

O problema da verdade na sua forma metafísica faz Vattimo (2004a)

interpretar a declaração de “morte de Deus” de Nietzsche não somente

como o momento de transição de modernidade para a pós-modernidade,

mas também como a dissolução de fundações e como um momento de

emancipação que nos liberta da verdade na sua forma metafísica.129 Não

obstante, essa emancipação, segundo Vattimo (2004a), está alinhada com

a Bíblia quando João diz “...a verdade vos libertará”.130 A declaração de

Nietzsche, segundo esta interpretação, nos liberta por dar fim à verdade

na sua forma metafísica.

Vattimo (2007) define a ideia da metafísica como “a violenta

imposição de uma ordem que é tida como objetiva e natural e que,

portanto, não pode ser violada e não é mais um objeto de discussão”.131 O

conceito de “morte de Deus” leva Vattimo para a questão da história de

128 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008. p. 86. 129 Cf. Nihilism & Emancipation: Ethics, Politics, & Law. Trad. William McCuaig. New

York: Columbia University Press, 2004. p. xxvi. 130 BÍBLIA, N.T. João. Português. Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. (Ed

Rev.). Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Cap. 08, vers. 32 131 “the violent imposition of an order that is declared objective and natural and therefore

cannot be violated and is no longer an object of discussion.” (VATTIMO, Gianni. A Prayer for Silence: dialogue with Gianni Vattimo. In: CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After

the Death of God. New York: Columbia University Press, 2007. p. 93.)

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Ser e o problema ontológico, em que “a violência implica finalizar,

silenciar e interromper o diálogo de perguntas e respostas”.132 Portanto, a

verdade metafísica, uma verdade absoluta que procura silenciar o outro, é

uma verdade violenta ou que tende a levar à violência.

Vattimo (2007) faz uma intepretação não literal da “morte de Deus”,

que, apesar de não ser totalmente nietzschiana, é mais convincente. Isto,

segundo ele, porque o cristianismo acabou com a metafísica ao desviar a

atenção do homem para ele mesmo.133 Para Vattimo (2007),

[a] morte de Deus sobre a qual Nietzsche fala é a morte de

Cristo na cruz. Por quê? Porque é exatamente depois do

cristianismo, ou do evento do cristianismo, que se torna

possível não acreditar mais nos deuses tradicionais e

racionais dos gregos.134

Por esse ponto de vista, Nietzsche, segundo Vattimo (2002), “não

quer dizer que não existe mais valores supremos. Além disso, ele afirma

que uma multiplicidade de valores se acomodou nas bases que estavam

em ruínas”.135 Portanto, a ética cristã, segundo a visão do Vattimo (2002),

exige o fim da fé na sua forma metafisica.

Vattimo (2002) defende uma “verdade fraca” de acordo com o que

ele chama de “pensamento fraco”. Isto é, um pensamento que não supõe

uma verdade metafísica, violenta, ou “forte”; mas um pensamento que

132 “violence is the fact of shutting down, silencing, breaking off the dialogue of questions and answers”. (VATTIMO, Gianni. A Prayer for Silence: dialogue with Gianni Vattimo. In:

CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia

University Press, 2007. p. 93.) 133 Cf. Ibid., p. 90. 134 “[T]he death of God about which Nietzsche speaks is the death of Christ on the cross.

Why? Because it is exactly after Christianity, or the event of Christianity, that it becomes

possible to no longer believe in the classical, rational gods of the Greeks.” (Ibid., p. 90.) 135 “[It] doesn’t only mean that there are no longer supreme values; he also means that

a multitude of values has taken their place at the ruined foundation.” (VATTIMO Gianni;

ZABALA Santiago. “Weak Thought” and the reduction of violence: a dialogue with Gianni

Vattimo. Common Knowledge. Trad. Yaakov Mascetti. Durham: Duke University Press,

vol. 8, Issue. 3, outono 2002, pp. 452 – 463. Disponível em:

<http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/common_knowledge/v008/8.3vattimo.html> . Acesso em: maio/2012, p. 462.)

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supõe uma verdade “fraca”, no sentido de ser uma verdade construída, e

não uma ação fraca. Trata-se de um conceito que possibilita mudanças

profundas.

Nossa conclusão é que o fundamentalismo religioso, e ao contrário

de como ele muitas vezes é visto, é um produto legítimo da modernidade

que, ao mesmo tempo, utiliza suas armas para combatê-lo. O conceito da

modernidade de tempo como linear e de progresso, e a previsão de que a

religião será apagada, não somente não ocorreu, mas também influenciou

o fundamentalismo religioso, que não só não rompe com o passado, como

se coloca em confronto com o presente.

Os fundamentalistas que estão mais preocupados com o que o Outro

acredita refletem uma falha de crença real, já que a fé não precisa de

provas, o que faz deles “falsos” fundamentalistas. E para oferecer uma

solução do problema da escolha na sociedade de consumo pós-moderna,

eles resolvem apagar nossa liberdade de escolha. Para Vattimo (2004a), o

problema está ligado à questão da verdade na sua forma metafísica, o que

exige entender a verdade na sua forma “fraca” e não violenta.

1.4. A morte de Deus, o fim da metafísica, e o renascimento da

religião.

Conforme o argumento de Vattimo (2004b), as transformações das

sociedades ocidentais de grande avanço industrial incluem sua transição,

com o fim de colonialismo, para sociedades multi-étnicas pluralistas, o

que é um sinal da libertação da metafísica. Paradoxalmente, isso reabriu o

espaço para a filosofia voltar a discutir Deus. O contato do cristianismo

com as outras religiões que eram consideradas como bárbaras e primitivas

pelos colonialistas, também contribuiu para a descentralização da verdade

cristã como a única verdade possível.

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A morte de Deus, para Nietzsche, aconteceu porque os próprios fiéis

o mataram quando obedeceram seu mandamento de não mentir, e assim

eles O declararam como não existente. Porém, essa declaração não

somente acaba deixando a sombra de Deus projetada no nosso mundo,

como também abre o espaço para a criação de novos deuses, como afirma

Vattimo (2004b).

Na profícua reflexão de Vattimo (2004b), o anúncio de Nietzsche

sobre a “morte de Deus” não deve ser entendido como uma “afirmação de

ateísmo, como se ele estivesse dizendo: Deus não existe.”136 Segundo o

filósofo italiano, esse anúncio de certa maneira representa a morte de

Cristo na cruz. Isto porque Nietzsche não deseja afirmar a não-existência

de Deus como verdade absoluta, mas sim “que não há um fundamento

definitivo, e nada mais”.137 Nessa problematização, para Vattimo (2004b)

não existem razões filosóficas que possam provar a não existência de

Deus.

A declaração do Nietzsche de que Deus está morto não quer

anunciar a não extinção de Deus, porque isto envolveria “uma espécie de

tese metafísica sobre a estrutura da realidade”.138 Isto é, para eliminar

Deus é preciso ser radicalmente historicista e sem qualquer tipo de

fundação, o que implica “um tipo de diálogo transcendental que ocorre

entre mim e a história dos fundamentos e de Deus, caso contrário tudo

seria apenas um guia ao longo da história”.139 Segundo Vattimo (2004b),

a filosofia na sua forma hermenêutica ou pragmática não poderia existir

sem certa implicação religiosa.

136 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 9. 137 Ibid., p. 9. 138 “[A] sort of metafisical thesis on the structure of reality.” (RORTY, Richard; VATTIMO,

Gianni. The Future of Religion. New York: Columbia University Press, 2004. p. 63.) 139 “[A] sort of transcendental dialogue that is between me and the history of foundations

and God, otherwise everything would be a guide throughout history”. (Ibid., p. 63.)

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Para Vattimo (2004b), Nietzsche não está pregando uma metafísica

ateísta porque na sua declaração, ele não pretende descrever em uma

forma adequada a realidade dessa morte. Isto porque

[u]ma tal pretensão, como a fé na verdade, de que versa

uma página da Gaia ciência, continuaria sendo uma forma

de fé no Deus moral, ou seja, em uma ordem objetiva do

mundo que ele fundaria e garantiria.140

Assim, para Vattimo, o fim da metafísica e a morte de Deus moral

significam também o fim das metanarrativas sobre a não existência de

Deus, pois esta não pode ser comprovada por meio de experimentação

científica ou como tendo constituído uma fase anterior ao Iluminismo e à

era de razão.

Nietzsche acreditava que, depois de começar, o espírito do

Iluminismo não poderia mais ser detido, e que, consequentemente, ele

acabará com todos os ídolos. Para Ferry (2008),

O espírito crítico das luzes voltou-se contra a religião e a

metafísica para denunciar suas ilusões. Mas, em vez de

beber a taça amarga até o fim, não conseguiu resistir ao

desejo de substituir os antigos ídolos por novos.141

Esses novos ídolos incluem, segundo Ferry, “a democracia, os direitos

humanos, a república, a liberdade e, pouco depois, o socialismo, o

anarquismo, o comunismo, o cientificismo, o patriotismo etc.”.142

Para Ferry (2008), se aceitamos a afirmativa de Nietzsche de que

“Deus está morto”, então o “Homem do humanismo também está: o que

significa que são todos os ídolos, todos os ideais na medida em que

mantêm involuntariamente a estrutura fundamental da religião”.143 E

140 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 21. 141 FERRY, Luc. Vencer o Medo: a filosofia como amor à sabedoria. Trad. Claudia

Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p. 71. 142 Ibid., p. 71. 143 Ibid., p. 72.

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61

esses ideais ou ídolos, sejam religiosos ou não, uma vez provocados,

segundo Ferry (2008), podem atacar.

Vattimo (1999) acredita, portanto, que a religião não morre, mas se

transforma. Para ele,

[o] retorno da religião e do problema relacionado à fé não

está dissociado da história do mundo, não sendo apenas

reduzido a uma transição entre as fases da vida, as quais

sempre são concebidas de acordo com o mesmo padrão.144

O encontro com o limite está presente tanto nas circunstâncias

históricas quanto na psicologia de envelhecimento que leva as pessoas a

pensarem em Deus. E ao descobrirmos nossos limites quando falhamos

em realizar a justiça na terra, resolvemos colocar nossa esperança em

Deus.

As religiões retornam como guia para o futuro, segundo Vattimo

(1999), depois de serem consideradas como práticas a caminho da

extinção durante o século XX. Isto com base no Iluminismo e no

pensamento positivista, e por não fazer parte de forma “moderna” da

vida, com seu avanço tecnológico e científico, além da racionalização da

vida social e o avanço da política democrática. Tudo isso indicava o fim da

religião.145

Mas com essa volta da religião, devemos diferenciar entre o uso do

símbolo ou da celebração religiosa como já integrado na própria cultura

laica, da religião que carrega uma identidade forte. Vattimo (2004b)

fornece um exemplo contemporâneo dessa diferenciação:

[...] a proibição do chador para as moças muçulmanas nas

escolas públicas francesas pode ser justificado somente com

base no fato de que ali se trata de uma afirmação de

144 “[T]he return of religion and of the problem of faith is not unrelated to world history,

and it is not merely reducible to a transition between life-stages always conceived

according to the same pattern”. (VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca DΊsanto; David

Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p. 24.) 145 Cf. Ibid., p. 28.

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identidade forte, uma espécie de profissão de

fundamentalismo.146

Isso porque, sem a identidade forte da religião, os símbolos religiosos

podem conviver de uma forma democrática simbólica. Tais símbolos

podem conviver pacificamente – usando outro exemplo dado por Vattimo

–, como no caso das peças expostas em museu, por ser este um espaço

de aproximação entre diferentes estilos, gostos e culturas.

Esse retorno da religião, ou de Deus na nossa cultura e pensamento

contemporâneo, em que a Razão enfrenta diferentes crises, não significa

que não podemos superar a imagem divina na sua forma metafísica. Na

visão de Vattimo (1999), isto pode acontece através de noção de

niilismo147 e a fim da verdade na sua forma metafísica.148

No plano filosófico, não podemos negar a existência de Deus com

base racional. Isto, segundo Vattimo (1999), porque a metafísica deixou

de ser uma verdade objetiva na modernidade. Isso significa, segundo

Pecoraro (2005), que “Deus (e todos os seus sinônimos) não pode ser

deixado para trás, como algo que usamos e que podemos de repente

abandonar”.149 Isso acontece em razão de que

[u]ma grande parte das conquistas teóricas e práticas da

razão na modernidade, da organização racional da sociedade

ao liberalismo e a democracia, está enraizada na tradição

judaico-cristã e não pode ser concebida fora dela.150

146 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 127. 147 Pecoraro busca as raízes da noção filosófica sobre niilismo, que, com Nietzsche,

“alcanço seu mais alto grau”, porque ele “não somente diagnostica a doença do nosso

tempo como tentar indicar um remédio”. Com Vattimo, o conceito assume “a perda da

verdade e o fim dos valores supremos e que dessa perda e de tal fim extrai a força para

se tornar o pressuposto e o movente de um processo de libertação e criação”. Veja: (Cf.

PECORARO, Rossano. Niilismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. pp. 10; 59). 148 Cf. VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University

Press: Stanford, 1999. p. 29. 149 PECORARO, Rossano. Niilismo e (Pós) modernidade: introdução ao “pensamento

fraco” de Gianni Vattimo. Rio de Janeiro: Ed. PUC, 2005. p. 106. 150 “[A] great part of the theoretical and practical conquests of reason in modernity, up to

the rational organization of society, to liberalism and democracy, is rooted in the Judaeo-

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O que nos obriga a analisar a época da pós-metafísica não como um

fenômeno “externo”, sem qualquer perspectiva histórica, mas como uma

época de renascimento do Iluminismo que podemos abordar através da

interpretação.

De modo semelhante, não podemos mais evitar falar da religião ou

descartá-la como falsa com base em um pensamento racional, ou de um

ateísmo filosófico. Para Vattimo (2004b), “[s]e não é mais válida a

metanarrativa do positivismo, não se pode mais pensar em Deus [como]

não existente porque este não é um fato demonstrável cientificamente”.151

Advém daí, segundo ele, o paradoxo da narrativa nietzschiana, quando

declara a morte de Deus – é o mesmo pensamento que acaba abrindo o

espaço para o nascimento de outros deuses.

A filosofia, por sua vez, deveria parar de ser ateia ou de descartar a

religião, mas ao mesmo tempo mantendo, segundo Vattimo (2004b), “um

comportamento crítico com relação ao renascimento da religião e dos seus

perigosos traços fundamentalistas”.152 Assim, não há mais motivos

racionais para a filosofia tornar-se ateia justamente como consequência

do próprio processo de secularização iniciado com o fim da ideia de Deus

na sua forma forte. Para Vattimo (2007),

[a]tualmente, não existe filosofia moderna sem qualquer

referência possível à Bíblia ou, mais especificamente, que

não seja oriunda das lutas em torno do significado bíblico.153

A filosofia, segundo Vattimo (2007), continua presente na

consciência comum, porém ela deve ter sempre o entendimento do fim da

Christian tradition, and cannot be conceived outside it.” (VATTIMO, Gianni. Belief. Trad.

Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. pp. 67-68.) 151 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 109. 152 Ibid., p. 111. 153 “There is no modern philosophy today that exists without any possible reference to

the Bible or, more specifically, that is not born out of the struggles surrounding the

meaning of the Bible”. (VATTIMO, Gianni. A Prayer for Silence: dialogue with Gianni Vattimo. In: CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York:

Columbia University Press, 2007. p. 102.)

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metafísica e das grandes narrativas. Sem isto, seremos alvo das práticas

de pensamento fundamentalista que ameaçam destruir nossa sociedade.

Num outro âmbito, a recusa da metafísica no século XX pode ser

percebida não somente na religião, mas também na arte e na literatura

com base da filosofia do século XX, que pregava o ser como fundamento.

Isso porque, segundo Vattimo (2004b),

a cultura europeia percebeu que existem outras culturas que

não podem ser classificadas simplesmente como

“primitivas”, ou seja mais atrasadas do que nós, ocidentais,

no caminho do “progresso”.154

Essa nova consciência, que reconhece a existência de diversas

culturas históricas além das europeias, não aceitava mais um curso único

da história. Isto se materializou com as guerras de libertação de povos

das colônias, com os conflitos ocorridos no processo de descolonização.

A nosso ver, uma vez que o pensamento europeu moderno foi

baseado numa ideia fundamental que entendia a história de pensamento e

a história de Iluminismo de uma forma constante e linear, o pós-

modernismo, por sua vez, é marcado pelo abandono dessa lógica e pela

negação de tempo histórico unilateral. Isto porque, num mundo pluralista,

não cabe mais um pensamento único e que poderia abranger toda a

verdade de uma forma definitiva.

Pecoraro (2005), na sua leitura do Vattimo, descreve essa época

pós-moderna em que

o homem rodeia como um turista no jardim da história, que

considera um depósito de máscaras teatrais que podem ser

usadas e abandonadas conforme o seu prazer, o seu gosto,

a sua utilidade.155

154 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. pp. 10-11. 155 PECORARO, Rossano. Niilismo e (Pós) modernidade: introdução ao “pensamento

fraco” de Gianni Vattimo. Rio de Janeiro: Ed. PUC, 2005. p. 70.

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Assim, o fim da história significa o fim do entendimento da história como

“processo unitário, linear e progressivo”.156

Vattimo (2004b) explica a ligação entre o pensamento filosófico de

Nietzsche e de Heidegger, assim como o fim de colonialismo, e a fé cristã,

quando define a época pós-moderna como

[a]quela em que não mais podemos pensar a realidade como

uma estrutura fortemente ancorada em um único

fundamento, que a filosofia teria a tarefa de conhecer e a

religião, talvez, a de adorar.157

Para Vattimo (1987), a consciência de que “a noção de verdade não

se sustenta mais e os fundamentos bem assentados já não funcionam

mais como base para o pensamento”,158 e nossa percepção da

impossibilidade de ultrapassar a modernidade, em que o ser foi reduzido

ao conceito de “novo” por meio da crítica, é o que nos torna pós-

modernos. O niilismo, segundo Vattimo (1987), é o único meio que

poderia nos levar para fora da modernidade.

O niilismo, no seu contexto nietzschiano, não significa não acreditar

em nada. Aqui, é importante entender que o niilismo para o Nietzsche,

como explica Ferry (2008), indicava

[o]s ideias, todos os ideias – os “ídolos” como ele os chama

– são não só “irreais” como, além disso, mantêm a

estrutura metafísico-religiosa do além, que é então usado

para aniquilar o real.159

156 PECORARO, Rossano. Niilismo e (Pós) modernidade: introdução ao “pensamento

fraco” de Gianni Vattimo. Rio de Janeiro: Ed. PUC, 2005. p. 73. 157 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 11. 158 “[T]he notion of truth no longer holds and carefully laid ‘foundations’ no longer

function as basis for thought.” (VATTIMO, Gianni. Verwindung: Nihilism and the

Postmodern in Philosophy. SubStance, vol. 16, no. 2, Issue 53: Contemporary Italian

Thought (1987),p.7–17. Disponível em: <http://www.jstore.org/stable/3685157>.

Acesso em: out. 2010. p. 9.) 159 FERRY, Luc. Vencer o Medo: a filosofia como amor à sabedoria. Trad. Claudia

Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p. 73.

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Segundo Ferry (2008), o niilismo para Nietzsche, ter ideias religiosas ou

não, como convocações fortes e altamente morais, é negar o real em

nome de um ideal.

Porém, o niilismo na leitura do Vattimo (2007) é como a história do

enfraquecimento do conceito do Ser. Para Vattimo (2007), o niilismo de

Nietzsche significa que, “à medida que o mundo objetivo se consome, este

dá lugar a uma crescente transformação subjetiva não de indivíduos, mas

de comunidades, culturas, ciências e línguas”.160 Isto é o que Vattimo

chama de “pensamento fraco”.

A partir dessa perspectiva, Vattimo (2011) constrói sua teoria do

pensamento fraco, que ele resume da seguinte maneira: “Se há uma via

possível de emancipação na história humana, esta não se encontra no fato

de, finalmente, se perceber uma essência dada no início dos tempos.”161

Isto é, as verdades não são estruturas congeladas além do tempo e do

espaço, mas estão sempre sujeitas a serem interpretadas culturalmente.

Tanto a morte de Deus quanto o fim de metafísica não devem ser

registrados de maneira “objetiva”. Para Vattimo (2004b), mesmo que

Heidegger não desejasse reconhecer o conceito de “morte de Deus”, sua

ideia do “fim da metafísica” representa o fim de “um fundamento último

da realidade sob a forma de uma estrutura objetiva que se dá fora do

tempo, como uma essência ou uma verdade matemática”.162 Assim,

Vattimo (2004b) afirma que o evento de “fim de metafísica” tem o mesmo

sentido da “morte de Deus” como verdade forte, porque nos dois eventos

160 “[A]s the objective world consumes itself, it gives way to a growing subjective

transformation not of individuals but of communities, cultures, sciences, and languages.” (VATTIMO, Gianni. A Prayer for Silence: dialogue with Gianni Vattimo. In: CAPUTO, John

D; VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia University Press,

2007. p. 40.) 161 “If there is a possible thread of emancipation in human history, it doesn’t lie in finally

realizing an essence given at the outset for all time.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to

truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. 74.) 162 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 10.

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o “Deus moral”, o Deus “violento” das religiões naturais e fundamento da

metafísica, foi abandonado.

Segundo Vattimo (2004b), na nossa época pós-moderna, a morte

de Deus significa que “este Deus-fundamento último, que é a estrutura

metafísica do real, não é mais sustentável, [e] torna-se novamente

possível uma crença em Deus”.163 Porém, essa crença renovada em Deus

não está direcionado ao Deus da metafísica medieval, ou da metafísica

moderna com base de Deus da Bíblia, como entidade racional e com

determinado fundamento absoluto e definido. Isto porque

[n]ão cremos em um tal Deus no sentido “forte” da palavra,

como se a sua realidade tivesse sido demonstrada melhor do

que aquela das coisas sensíveis ou dos objetos da física e da

matemática.164

Assim, a “morte do Deus” da metafísica, “Deus moral”, Deus dos filósofos,

ofereceu o espaço a uma nova abertura para a renovação da religião e o

renascimento do sagrado em várias formas.

A importância desse entendimento das novas condições da

existência de Deus está no fato de que

ainda estamos por demais oprimidos pelo peso da “letra” –

tanto do rigorismo dos textos sacros (fetiche dos

fundamentalistas de todo tipo) quanto da letra da

materialidade do mundo, das necessidade insatisfeitas e das

injustiças cometidas na distribuições dos bens indispensáveis

à vida.165

Dessa forma, para a espiritualização se manifestar conforme nossas

“condições pós-modernas”, ela acaba tomando “qualidades secundárias”

como uma forma de “emancipação estética”.

163 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 12. 164 Ibid., p. 15. 165 Ibid., p. 72.

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O paradoxo, porém, é que o renascimento da religião parece estar

procurando alcançar uma verdade última. Isto é, segundo Vattimo

(2004b),

se realmente a morte de Deus moral-metafísico deva ter

como resultado o renascimento dos fundamentalismos

religiosos, ou étnico-religiosos, ou comunitário-religioso, que

vemos aumentar ao nosso redor.166

Em termos filosóficos, o problema é se essa renovação com base de

superação de metafísica acaba sendo somente uma legitimação do

fundamentalismo.

Segundo Pecoraro (2005), a teoria de “pensamento fraco” de

Vattimo vai além do pensamento nietzschiano, no qual não podemos

evitar falar em termos metafísicos ou objetivos, isto porque “o

pensamento fraco não se afasta, não supera, não abandona ou deixa

simplesmente atrás de si a dialética e o pensamento da diferença, mas os

considera parte construtiva do seu passado [...]”.167 Isto é, não podemos

deixar a metafísica para trás como uma fase que deve ser ultrapassada,

mas como parte da nossa experiência.

Para Vattimo (2004b), seguir a ideia de Nietzsche, isolada do

contexto, significa “reduzir o fim da metafísica e a morte do Deus moral a

uma legitimação do relativismo e do fundamentalismo [...]”.168 Por isso, o

fim da metafísica não deve ser entendido como uma “pura e simples re-

legitimação do mito, da ideologia e, mesmo, do salto pascaliano na fé”.169

Para Heidegger, segundo Vattimo (2004b), a única forma de não pensar

em termos metafísicos ou objetivos é pensando o Ser como evento, e não

com o caráter de estrutura objetiva que a tradição metafísica queria dar a

ele.

166 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 29. 167 PECORARO, Rossano. Niilismo e (Pós) modernidade: introdução ao “pensamento

fraco” de Gianni Vattimo. Rio de Janeiro: Ed. PUC, 2005. p. 41. 168 VATTIMO, op. cit., p. 30. 169 VATTIMO, op. cit., p. 31.

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Concluímos que, enquanto a declaração de Nietzsche de “morte de

Deus” não representa uma verdade absoluta, ela marcou o pensamento

pós-moderno. Não há razões filosóficas para não falar de Deus dentro de

contexto da pós-modernidade. Isto, segundo Vattimo (1999), porque a

própria modernidade foi construída com base de pensamento judaico-

cristã.

A “morte de Deus”, que marcou a pós-modernidade, não deve abrir

o espaço para criar outros “deuses” no Seu lugar. Isto porque o espírito

do Iluminismo não pode ser apagado. O renascimento da religião na pós-

modernidade, porém, vem em uma forma de fundamentalismo de verdade

forte que vem se chocando com outros aspectos da época pós-moderna. O

fundamentalismo religioso é moderno e antimoderno ao mesmo tempo,

por combater a modernidade.

Por outro lado, Vattimo interpreta a “morte de Deus” como a morte

da verdade na sua expressão metafísica e violenta. Isto inclui todas as

verdades fortes, seja de religião ou não. Assim, o fim da verdade

metafísica (ou forte) inclui a verdade sobre o outro, como é o caso da

visão da cultura europeia sobre as outras culturas colonizadas como

inferiores, vistas a partir da ideia de progresso em um tempo linear. As

verdades não se sustentam mais em fundações a-históricas, mas em

intepretações contextuais.

Na pós-modernidade não podemos mais pensar em um único

fundamento. Seja qual for o pensamento, a crença ou a religião.

Acreditaremos sempre em uma verdade, mas essa verdade não precisa

mais ser uma verdade forte e, consequentemente, violenta, que procura

condenar ou eliminar aquelas que não concordam com ela. Tais verdades

metafísicas não têm lugar num mundo pós-moderno.

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1.5. A ciência, o homem-Deus, e o “Novo Ateísmo”.

Nesta parte, e em continuação da parte anterior em que discutimos

a “morte de Deus” e o fim da verdade na sua forma metafísica, buscamos

analisar outros tipos de pensamento fundamentalista além da religião. Na

primeira parte analisamos a relação entre a ciência moderna e o sagrado,

e a questão da verdade científica.

E em seguida analisamos um caso de chamado “novo ateísmo”,

tipificado na obra de Dawkins (2007), na qual sua crença em uma verdade

cientifica é colocada como uma verdade forte que elimina qualquer

verdade que não esteja de acordo com ela. Dawkins utiliza sua crença em

uma verdade única e absoluta como uma plataforma para atacar não

somente os fundamentalistas, mas também a religião e qualquer fé em

Deus.

1.5.1. A ciência e o homem-Deus.

Segundo Eagleton (2011), na modernidade, Deus e a religião no Ocidente

foram transferidos do ambiente público para o ambiente privado,

assumindo muitas vezes o caráter de uma religião passiva. Por exemplo, o

surgimento de várias religiões da Nova Era, fenômeno próprio da pós-

modernidade, “oferece uma fuga do mundo, não a missão de transformá-

lo”.170 E, apesar das diferenças, segundo Armstrong (2008), foi a ideia de

Deus que

inspirou um ideal de justiça social, embora se deva admitir

que judeus, cristãos e muçulmanos muitas vezes não

corresponderam a esse ideal e o transformaram num Deus

do status quo.171

170 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 46. 171 ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo,

cristianismo e islamismo. Trad. Marcos Santarrita; Wladimir Araújo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008. pp. 35-36.

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Porém, essas três principais religiões monoteístas, em sua expressão

fundamentalista, têm a missão de transformar o mundo e não de fugir

dele.

Para Žižek (2008), a ciência hoje compete com a religião para

fornecer a esperança e a censura que a religião oferecia tradicionalmente.

Assim, a ciência oferece a segurança que a religião oferecia, enquanto a

religião acaba abrindo uma plataforma de dúvidas e críticas sobre as

sociedades atuais.172

A ciência moderna começou, para muitos, no século XVII, com a

introdução do “método científico” de investigação, o que criou uma nova

forma de enxergar a ciência a partir de coleção de dados sólidos ou

“puros”, segundo um processo sistemático e não intuitivo. O antigo termo

“filosofia natural” foi substituído gradualmente pela palavra “ciência”.

No século XIX, esta postura se tornou ainda mais clara com o

surgimento dos debates entre os grupos de especialistas que atuam em

áreas diferentes. A praticidade da ciência se concretizou no século XX,

com a ligação entre o conhecimento científico e o tecnológico.173

Para a ciência moderna, Feynman (2008) observa que a “verdade” é

aquela que pode ser provada com métodos científicos, pois “[o]

experimento é o único juiz da "verdade" científica. Mas qual é a origem do

conhecimento?”174 A polêmica entre o que pode ou não ser considerado

172 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008. pp. 81-82. 173 Cf. REES, Martin. Scientific Horizons. Disponível em:

<http://www.bbc.co.uk/iplayer/episode/b00sp194/The_Reith_Lectures_Martin_Rees_Sci

entific_Horizons_ 2010_What_Well_Never_Know/>.

Acesso em: dez./2010. 174 FEYNMAN. Richard P; LEIGHTON, Robert B.; SANDS, Matthew. Lições de Física de

Feynman. Trad. Adriana Válio Roque da Silva; Kaline Rabelo Coutinho. Porto Alegre:

Bookman, 2008. v. 1, cap. 1, p.1.

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conhecimento científico está longe de ser resolvida e ainda gera muitas

discussões.175

Segundo Ferry (2007), a ciência passou a ser entendida como

sinônimo da razão e de que “tudo é racional, e a partir disso, o sujeito que

se entrega à atividade científica pode dominar o mundo [...]”.176 Por outro

lado, as “razões que [nos unem] ao passado são infinitas tanto na ordem

coletiva (História e Sociologia) quanto na ordem individual

(Psicanálise)”.177 A tarefa da ciência é infinita por sua base estar na razão

mundana, e não transcendental. A ciência, portanto, nunca sai da sua

rede prática.

O surgimento da ciência moderna, com sua verdade forte, acabou

colidindo com a religião desde tempos anteriores. Durante o século XX e

quando surge o fundamentalismo moderno, esse conflito se intensificou.

Isso, segundo Latour (1994), gerou uma crise de separação entre “o céu e

a terra, o global e o local, o humano e o inumano”.178 Começamos a não

olhar mais para isso como um tecido uno e que constrói o nosso mundo.

Essas representações que são científicas e políticas, segundo Latour

(1994), “inventaram o nosso mundo moderno, um mundo no qual a

representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre

dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social”.179

Para Latour (1994), a crise de separação nos faz sentir em um

“navio sem rumo: à esquerda o conhecimento das coisas, à direita o

175 Aqui também o conceito da “verdade” nos leva de volta para o conceito das verdades

fortes, que se apresentam como absolutas, dadas e a-históricas, e as verdades fracas

como verdades construídas e que fazem parte de certo contexto. 176 FERRY, Luc. O Homem-Deus, ou, O sentido da vida. Trad. Jorge Bastos. Rio de

Janeiro: DIFEL, 2007. p. 46. 177 Ibid., p. 47. 178 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de

Janeiro: Editora 34, 2009. p. 8. 179 Ibid., p. 33.

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interesse, o poder e a política dos homens”.180 Sem as relações das coisas

entre si e dos homens um para o outro, ficaríamos presos pelas

representações das linguagens e dos textos. Na procura pela descoberta

da verdade das coisas, os cientistas não estão descontextualizados do

mundo lá fora.

Quando os cientistas falam, segundo Latour (1994), eles

representam “[o]s próprios fatos, sem dúvida nenhuma, mas também

seus porta-vozes autorizados. [...] Estes mudos são, portanto capazes de

falar, de escrever, de significar”181 tanto no ambiente artificial do

laboratório quanto no mundo exterior. Segundo Foucault (2009), uma vez

que ”[n]ão é possível que o poder se exerça sem saber [...]”,182 esse

conhecimento que os cientistas representam não é neutro nem passivo.

A partir desse ponto, para Latour (1994), e quando “o conhecimento

se iguala ao poder, tudo se encontra reduzido: o soberano, Deus, a

matéria e a multidão”.183 Ao passar pela mediação do laboratório,

as ideias relativas a Deus, ao rei, à matéria, aos milagres e à

moral são reduzidas, transcritas e obrigadas a passar pelo

detalhes de funcionamento de um instrumento.184

Com isso, Deus se torna nada além que um objeto de análise da ciência,

sem mais.

Quando Nietzsche declarou a “morte de Deus”, a modernidade

estava para começar no Ocidente, e junto com ela as grandes

transformações culturais e políticas. Essa ausência da religião sugerida

pelos filósofos do Iluminismo e os progressistas como Marx significava,

segundo Ferry (2007), que

180 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de

Janeiro: Editora 34, 2009. p. 8. 181 Ibid., p. 34. 182 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro:

Graal. 2009. p. 142. 183 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de

Janeiro: Editora 34, 2009. p. 25. 184 Ibid., p. 26.

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cada sábio traz sua contribuição, mesmo que modesta, ao

edifício da ciência. Os “grandes homens” inclusive se alçam,

nesse modo laicizado, a uma forma de imortalidade,

estabelecidos que estão nos novos textos sagrados, que são

os livros de história.185

Esses pensadores fundaram a base para o pensamento moderno, e

parecia que o ateísmo estava tomando o lugar da religião, cuja existência

foi condenada pelo novo racionalismo científico laico.

Vattimo (2007) afirma que “a verdade que, de acordo com Jesus,

nos libertará, não é a verdade objetiva da ciência ou a da tecnologia”.186

Segundo Vattimo, isto acontece porque

[o]s cientistas optaram por não ter nada a ver com seus

próprios interesses e descrever apenas o que diz respeito a

sua ciência – seu conhecimento, como tal, é

deliberadamente limitado. Eles nunca sabem tudo.187

Assim, nessa perspectiva, o conhecimento da ciência é limitado aos

objetivos de interesse que os cientistas determinaram para os seus

campos, portanto “os cientistas não são movidos pelo ímpeto da verdade.

A relação entre o mundo e o conhecimento a respeito do mundo não

funciona como um espelho.”188

Segundo Vattimo (2002), Heidegger também percebeu que, quando

a ciência se declara como objetiva, ela parte do seu próprio interesse. Na

interpretação de Vattimo,

185 FERRY, Luc. O Homem-Deus, ou, O sentido da vida. Trad. Jorge Bastos. Rio de

Janeiro: DIFEL, 2007. pp. 14-15. 186 “The truth that, according to Jesus, shall make us free is not the objective truth of

science or even that of theology.” (RORTY, Richard; VATTIMO, Gianni. The Future of

Religion. New York: Columbia University Press, 2004. p. 50.) 187 “[S]cientists have chosen not to have anything to do with their own private interest,

and describe only what concerns their science, their knowledge as such is deliberately

limited. They never know everything.” (VATTIMO, Gianni. Toward a Nonreligious Christianity. In: CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New

York: Columbia University Press, 2007. p. 27.) 188 “[S]cientists are not moved by the impulse of truth. The relation between the world

and the knowledge of the world does not function as a mirror.” (Ibid., p. 28.)

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[a] ciência é uma disciplina que não coloca para si o

problema da verdade historicamente construída. Ela trabalha

dentro de um contexto histórico específico, sendo sua

natureza aquela que demonstra ou falsifica proposições com

base em critérios que ela mesma não inventa, mas que

simplesmente melhora ou transforma.189

Isto é, para Vattimo existe o mundo e alguém que está nesse

mundo que utiliza seu conhecimento.

Ao mesmo tempo a verdade das escrituras não nos dá respostas

sobre as ciências naturais ou a natureza de Deus, como se a nossa

salvação não acontecesse através desse conhecimento. A prática da

religião, Segundo Vattimo (2007), é culturalmente situada, portanto,

[q]uando rezo, sei exatamente que as palavras que estou

proferindo não têm a intenção de transmitir alguma verdade

literal. Faço minhas orações mais pelo amor à tradição do

que pelo amor a uma realidade mítica.190

Isso, para Vattimo, não significa que acreditamos em algo “falso”,

justamente porque o próprio ato de fé como ato de amor e de caridade

não está sujeito à experimentação científica.

Em nossa experiência humana moderna, segundo Vattimo (1999),“a

ciência trata, cada vez menos, de objetos que podem ser comparados

àqueles do cotidiano. Não está mais claro o que chamar de ‘realidade’.”191

189 “Science is a discipline that does not itself pose the problem of historically determined

truth. Science works within given historical contexts, its nature being to demonstrate or

falsify propositions on the basis of criteria that it does not itself invent but simply

improves, transforms.” (VATTIMO Gianni; ZABALA Santiago. “Weak Thought” and the

reduction of violence: a dialogue with Gianni Vattimo. Common Knowledge. Trad.

Yaakov Mascetti. Durham: Duke University Press, vol. 8, Issue. 3, outono 2002, pp. 452

– 463. Disponível em:

<http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/common_knowledge/

v008/8.3vattimo.html> . Acesso em: maio/2012. p. 454.) 190 “[W]hen I pray I know precisely that the words I am using are not intended to convey

some literal truth. I pray these words more for the love of tradition than I do for the love of some mythic reality.” (VATTIMO, Gianni. Toward a Nonreligious Christianity. In:

CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia

University Press, 2007. p. 42.) 191 “[S]cience speaks increasingly little of objects that can be compared with those in

everyday experience, it is no longer clear what to call ‘reality’.” (VATTIMO, Gianni.

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A tecnologia e os produtos criados “configuram o mundo de forma

artificial, no qual não se consegue mais distinguir as necessidades básicas

e naturais daquelas induzidas ou manipuladas pela publicidade.” 192 Assim,

não podemos mais distinguir entre o que é real e o que é “inventado”.

Para Vattimo (2004), ainda examinando as ideias de Heidegger, a

ciência moderna “não é uma das possíveis formas de conhecimento”.193

Isto porque a ciência e o conhecimento não são alinhados num plano

transcendental. Portanto,

[q]uando Heidegger afirma que “a ciência não pensa”, isso

quer dizer que a ciência calcula, mas isso não muda muito o

verdadeiro trabalho dos cientistas porque eles são

simplesmente lembrados de que têm de “pensar”, discutir os

paradigmas e levar em consideração as consequências

sociais de suas descobertas. No entanto, tudo fica mais ou

menos do mesmo jeito.194

Heidegger desenvolve sua filosofia que entende o Ser em termos

não metafísicos, mas em base ética e política.

A necessidade de interpretação, segundo Vattimo (2001), vem do

fato de que “[p]rovavelmente não existe nenhum aspecto do que é

chamado de mundo pós-moderno que não esteja marcado pelo alastrar-se

da interpretação”.195 Isto pode ser anotado, segundo Vattimo, em

Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p.

31.) 192 “[They] configure the world as an artificial world, where one cannot distinguish

between natural, basic needs and those induced and manipulated by advertisement.”

(VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press:

Stanford, 1999. p. 31.) 193 VATTIMO, Gianni. As aventuras da diferença: o que significa pensar depois de

Heidegger e Nietzsche. Trad. José Eduardo Rodil. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 33. 194 “[W]hen Heidegger says that ‘science does not think’, this only implies that science

calculates, but it does not change very much the actual work of the scientists because

they are simply reminded that they have to ‘think,’ to discuss the paradigms, to take into

account the social consequence of their discoveries, but everything remains more or less

the same.” (RORTY, Richard; VATTIMO, Gianni. The Future of Religion. New York:

Columbia University Press, 2004. p. 77.) 195 VATTIMO, Gianni. A tentação do realismo. Trad. Reginaldo Di Piero. Rio de Janeiro:

Lacerda Ed.: Instituto Italiano di Cultura, 2001. p. 26.

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diferentes indicações, como a difusão de meio de comunicação, a

autoconsciência da historiografia em que a ideia da história não vale mais

como princípio da realidade, a multiplicidade das culturas, e finalmente, a

destruição psicanalítica da fé.196

A interpretação, para Heidegger e ainda segundo Vattimo (2007), se

resume ao seguinte:

Eu sou um intérprete, à medida que não sou alguém que

olha o mundo do lado de fora. Vejo o mundo externo,

porque estou dentro dele. Por ser no mundo, meus

interesses são muito complexos. Não posso dizer

exatamente como as coisas são, mas apenas como elas são

a partir desse ponto de vista, como elas me parecem ser e

como acho que elas são.197

A ciência, portanto, não descreve o mundo de uma forma objetiva,

mas se posiciona fora do mundo, pois a ciência utiliza métodos rigorosos e

instrumentos precisos, mesmo no caso do uso da linguagem, já situados

historicamente, uma vez que nenhuma ciência começa no zero, sem

conhecimento, mas sim com base numa história anterior.

Pecoraro (2005) explica que, para Vattimo, a interpretação é um

produto histórico motivado em que

a interpretação é um fato, apesar de ela ser apenas uma

perspectiva historicamente motivada, no sentido de que

ninguém (nem sequer um cientista) olha o mundo

“objetivamente”, por amor à verdade ou por corresponder a

um dever eterno.198

196 Cf. VATTIMO, Gianni. A tentação do realismo. Trad. Reginaldo Di Piero. Rio de

Janeiro: Lacerda Ed.: Instituto Italiano di Cultura, 2001. pp. 26-27. 197 “I am an interpreter as long as I am not someone who looks at the world from the

outside. I see the external world because I am inside it. As being-in-the-world, my

interests are very complicated. I cannot say precisely how things are, but only how they

are from this point of view, how they seem to me and how I think they are.” (VATTIMO, Gianni. Toward a Nonreligious Christianity. In: After the Death of God. New York:

Columbia University Press, 2007. p. 28.) 198 PECORARO, Rossano. Niilismo e (Pós) modernidade: introdução ao “pensamento

fraco” de Gianni Vattimo. Rio de Janeiro: Ed. PUC, 2005. p. 29.

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Assim há sempre diferentes motivações e causas que levam o

homem a procurar tal “verdade”.

Essa constante interpretação que nós fazemos acontece pelo fato de

que, segundo Vattimo (2011),

[n]ão há experiência de verdade que não seja interpretativa.

Eu não sei nada a não ser o que me interessa, mas, se algo

me interessa, evidentemente, não o observo de uma forma

desinteressada.199

E desde que estou no mundo, o mundo nunca está integral ou concreto.

Assim, somente podemos descrever o mundo a partir do ponto de

vista de quem está nele. Por causa dessa questão de ponto de vista, a

ciência não representa um conhecimento objetivo da realidade de mundo.

Segundo Vattimo (2011), “[n]inguém nunca diz a verdade, toda a verdade

e nada mais que a verdade. Toda declaração implica uma escolha daquilo

que consideramos ser relevante, e essa escolha nunca é

desinteressada”.200 Mesmo no caso da ciência, há sempre diferentes níveis

de interesses que motivam as pesquisas.

Para Vattimo (2011), nossa época é uma época de niilismo. Isto é,

uma época que adota a caridade em vez da verdade na sua forma

metafísica. Assim, “podemos afirmar que vivemos na era do Espírito”.201

Por isso, a fé na forma de caridade não depende da verdade objetiva da

ciência, tampouco considera os livros sagrados como manual de ciência

natural. Assim, “[o] jogo linguístico da ciência é completamente

dissociado daquele da religião e não pode arrogar-se o direito da última

199 “There is no experience of truth that is not interpretive; I know nothing unless it

interests me, but if it interests me, evidently I don’t gaze upon it in a disinterested

fashion.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York:

Columbia University Press, 2011. p. 64.) 200 “No one ever tells the truth, the whole truth and nothing but the truth. Every

statement entails a choice of that which we take to be relevant, and this choice is never

disinterested.” (Ibid., p. 9.) 201 “[W]e could say that we are living the age of the Spirit.” (Ibid., p. 59.)

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palavra”.202 Assim a mitologia não deve ser uma alternativa à ciência nem

tentar desafiar a sua verdade.

1.5.2. O “Novo ateísmo” e o pensamento fundamentalista

A despeito dos confrontos entre os cientistas e os defensores da

religião que já existiam na Europa antes do século XX, o novo

fundamentalismo religioso é um filho legítimo da modernidade. Quando o

fundamentalismo religioso moderno nasceu nos Estados Unidos no começo

do século XX, não demorou muito para este desafiar a ciência quando

suas teorias não combinavam literalmente com as escrituras,

principalmente no caso da teoria de evolução proposta pelo cientista

inglês Darwin.203 Os confrontos continuam até hoje, aumentando a crise

de separação entre a verdade religiosa, por um lado, e a científica, por

outro.

Enquanto o processo da purificação da religião acaba levando seus

seguidores muitas vezes ao fundamentalismo, a purificação da ciência

está longe de ser separada da construção política e social. Essa forma de

enxergar o mundo através da ciência com base na razão e relacioná-la

com o progresso, alinhado ao tempo, incentivou alguns cientistas ateus a

atacar a religião como se fosse uma superstição do passado, situando a

ciência frente a frente com a religião.

O começo do século XXI testemunhou um assalto de vários

escritores “novos ateus” contra a religião, como Dawkins e Harris, entre

outros. Esses escritores, segundo Prothero (2010), que são de áreas

diversas, “pregam uma visão pós-moderna da filosofia perene ao

202 “Science’s linguistic game is completely detached from that of religion, and neither

can arrogate to itself the right to the last word.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to truth.

Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. 61.) 203 DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Trad. Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1981.

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colocarem todas as religiões no mesmo barco”.204 Suas críticas sobre a

religião, portanto, são generalizadas.

Esse assunto nos interessa por dois motivos: o primeiro, é

questionar a tese de que a religião em geral, seja ela fundamentalista ou

não, só pode ser uma força do mal e nunca do bem; em segundo lugar,

analisar o comportamento agressivo de ataque contra a religião, o que de

certa forma se assemelha ao discurso radical dos fundamentalistas

religiosos, acreditando numa verdade forte, e que serve como base de

uma identidade forte usada para atacar os demais.

Para esta análise, escolhemos como exemplo o cientista ateu e

biólogo darwiniano Dawkins, que ataca a religião em nome da ciência. No

seu livro Deus, um Delírio, Dawkins (2007) acredita que a religião

atrapalhou e ainda atrapalha o progresso humano e, ao final, só pode

trazer danos.

O que nos interessa nesse livro é o fato de um cientista tomar essa

postura política de atacar a religião em geral – apesar de ele concentrar

seus exemplos nas três religiões monoteístas –, e que assume ao mesmo

tempo a estratégia extremamente fanática de adotar a ciência como base

forte para o seu argumento.

Sua resposta aos críticos é clara, quando ele diz que

os apologistas religiosos seriam mais sábios se ficassem

calados do que normalmente são sobre as pessoas que

querem usar como exemplo, pelo menos no que diz respeito

aos cientistas.205

O argumento autoritário de Dawkins de certa forma é semelhante ao

discurso dos fundamentalistas religiosos, que não deixam possibilidade

para outro ponto de vista, ou para outra verdade existir além daquela em

204 PROTHERO, Stephen R. As grandes religiões do mundo. Trad. Joel Fontenelle

Macedo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 8. 205 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 145.

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que acreditam. A sua posição é um bom exemplo de como uma reação

secular agressiva e generalizada contra a religião, e especificamente

contra a ideia da existência do Deus monoteísta, não pode apenas

provocar os fundamentalistas religiosos, como também lhes dá a chance

de divulgar e valorizar suas ideias, quando elas são atacadas pelo

secularismo. Contudo, o mais importante é mostrar como o secularismo

não é uma garantia contra a violência em suas variadas formas.

Os ataques dos fundamentalistas religiosos contra o darwinismo não

são novos. Segundo Armstrong (2009), em 1925 os fundamentalistas

americanos protestantes iniciaram o conhecido julgamento do professor

de biologia John Scopes (1900–1970), por defender o darwinismo.206 A

posição deles, segundo Hedges (2008a), se baseava na afirmativa de que

o livro do Gênesis “não foi escrito para entender o criador do Universo,

sobre o qual esses escritores nada sabiam. Ele foi escrito para ajudar a

explicar o propósito da criação”.207

Em contrapartida, Dawkins se coloca como defensor e representante

da ciência contra a religião em geral. E dessa posição ele ataca a religião

por ser, como ele afirma, um “perigo”. Ele portanto insiste no papel de

dominação da religião, e, ao mesmo tempo, na pureza da ciência, que é

para ele a fonte de verdade.

Alguns pontos que podem ser observados no argumento de Dawkins

(2007) nos ajudarão a entender e comparar o discurso secularista tendo

de um lado o ponto de vista de um cientista ateu e, de outro, o discurso

fundamentalista. Por meio dessa análise, podemos entender não somente

como a crítica de Dawkins não consegue enxergar a profundidade da

206 Cf. ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no

cristianismo e no islamismo. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras,

2009. pp. 244-245. 207 “[It] was not written to explain the processor of creation, of which these writers knew

nothing. It was written to help explain the purpose of creation.” (HEDGES, Chris.

American Fascists: the Christian Right and the War on America. New York: Free Press,

2008a. p. 7.)

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religião no seu contexto sóciocultural, como ela também acaba por

fortalecer o discurso fundamentalista religioso ao combatê-lo por meio de

um discurso fundamentalista.

O primeiro ponto é própria posição de Dawkins de atacar a religião

pela perspectiva científica, baseando-se em sua verdade construída na

razão dos cálculos. Ele se posiciona entre a maioria dos cientistas ao

afirmar que “[a] imensa maioria dos integrantes do Royal Society, assim

como a imensa maioria dos acadêmicos dos EUA, é de ateus.”208 Esta

afirmativa exclui cientistas como Francis S. Collins, que em seu livro A

Linguagem de Deus,209 argumenta que a religião e a ciência não são

incompatíveis.

Para Eagelton (2011), o ponto de vista arcaico sobre a ciência, o

qual Dawkins apresenta, é o de que há

uma ideia científica ultrapassada a respeito do que seja

prova. Para Dawkins, a vida parece se dividir em duas

metades perfeitas: aquilo que é possível provar sem dúvida

alguma, e a fé cega.210

Essa postura baseada na verdade absoluta é a fonte de qualquer

pensamento fundamentalista.

Dawkins chega a declarar que “a religião pode colocar em risco a

vida do indivíduo devoto, assim como a de outras pessoas”,211 e que a

religião não oferece nenhum “benefício” no sentido darwinista, isto é, ela

não significa “alguma vantagem para a sobrevivência dos genes do

indivíduo”.212

208

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 144. 209 COLLINS, Francis S. A Linguagem de Deus: um cientista apresenta evidências de

que Ele existe. Trad. Giorgio Cappelli. São Paulo: Editora Gente, 2007. 210 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 17. 211 DAWKINS, op. cit., p. 217. 212 DAWKINS, op. cit., p. 218.

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O autor destaca sua identidade como ateu, enquanto suas outras

identidades pessoais são vistas a partir dessa. A dicotomia que ele

estabelece entre crentes ou féis de um lado, e ateus de outro, nos leva de

volta para a maneira com que os fundamentalistas enxergam o mundo.

O segundo ponto é a maneira com que Dawkins aborda a religião.

Apesar de rejeitar a religião em geral, Dawkins construiu sua teoria para

criticar a religião a partir da ideia monoteísta de um Deus criador do

universo. Sua crítica é direcionada às três religiões monoteístas – o

judaísmo, o cristianismo e o islamismo –, descontextualizando-as do seu

contexto sócio-histórico. Ao mesmo tempo, seu argumento se remete à

Bíblia como um registro histórico e citando o cristianismo como um

exemplo. Dawkins baseia seu livro no ataque à ideia do Deus monoteísta

como criador do universo, e se dirige principalmente ao Cristianismo.

Segundo Eagleton,

[p]ara a teologia cristã, Deus não é um megafabricante, mas

aquele que assegura a existência de tudo por meio do seu

amor, e assim continua a ser ainda que o mundo não tivesse

começado. A criação nada tem a ver com deslanchar coisa

alguma. Deus, ao contrário, é a razão por que existe algo

em vez de nada, a condição da possibilidade de toda e

qualquer entidade.213

A visão de Dawkins sobre o Deus cristão é incorreta diante do

pensamento teológico mais aprofundado, e ficaria ainda menos correta ao

ser comparada com o judaísmo e o islamismo.

Em relação à existência de Deus como criador, e depois de seu

longo discurso para provar que Deus não existe, Dawkins volta a dizer que

“Deus, quase com certeza, não existe”,214 deixando a dúvida estabelecida

pela ausência de uma prova científica.

213 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 18. 214

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 214.

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O que Dawkins ignora é que ”a coisa suprema, seja o que for, está

além de ser e não ser [...] Deus, como supremo mistério de ser, está

além do pensamento”,215 nas palavras de Joseph Campbell. Enfim, aplicar

o método científico para provar a existência de Deus ignora o fato de que

a fé “não é primariamente uma crença em que algo ou alguém existe,

mas um compromisso e uma aliança”.216 Enquanto que, para Dawkins, a

questão não ultrapassa o âmbito da ciência.

Dawkins sintetiza sua visão sobre o fundamentalismo pontuando

que

[t]alvez os cientistas sejam fundamentalistas quando se

trata de definir de um jeito meio abstrato o que “verdade”

significa. Mas tudo mundo é assim. Não sou mais

fundamentalista quando digo que a evolução é uma verdade

do que quando digo que é verdade que a Nova Zelândia fica

no hemisfério sul.217

Portanto, na sua opinião, há uma forma da verdade forte e absoluta com a

qual todo mundo deve concordar.

Dawkins tenta justificar sua postura agressiva ao que ele chama de

“religião fundamentalista”, afirmando,

como cientista, sou hostil à religião fundamentalista porque

ela debocha ativamente do empreendimento científico. Ela

nos ensina a não mudar de idéia [sic], e a não querer saber

de coisas emocionantes que estão aí para ser aprendidas.218

Todavia o escritor não ataca somente a religião na sua forma

fundamentalista. Em sua opinião, a religião em geral facilita a tarefa dos

fundamentalistas em divulgar suas ideias e influenciar a educação das

crianças e, por conseguinte, da sociedade. Novamente, seu discurso

215 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas

Athena, 2009. p. 65. 216 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 43. 217 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 363. 218 Ibid., p. 364.

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contra a religião é muito parecido com o discurso dos fundamentalistas na

sua falta de imaginação, e em sua motivação maior – para eles, a religião

ameaça a humanidade.

A nosso ver, em sua crítica e, principalmente no que tange o

cristianismo, Dawkins trata a Escritura Bíblica e a teologia Cristã como um

registro histórico de fatos, eliminando, assim, a sua complexidade. Esse

tipo de ignorância teológica é justamente aquela que cria o

fundamentalismo religioso.

A certeza científica que ele convoca em sua discussão sobre a

existência ou não de Deus, nos traz de volta para o discurso dos

fundamentalistas que afirmam que só eles conhecem a verdade absoluta e

universal de Deus e a forma correta para adorá-lo, e acusam aos demais

de que suas verdades não são compatíveis com a deles.

Essa purificação da ciência como neutra em relação ao mal que

atinge o homem descarta o contexto sócio-histórico e sugere avaliar

qualquer movimento pelas suas piores consequências – o que não deixa

nenhum movimento escapar à crítica, até mesmo a própria ciência.

Portanto, a descontextualização e a generalização que Dawkins faz em

relação à religião não possui base teórico-científica.

Dawkins termina seu discurso sobre a dificuldade do homem de

enxergar além da matéria “de verdade”, dizendo que “[o] que vemos do

mundo real não é o mundo real intocado [...]”,219 o que contraria a sua

própria postura, que rejeita a existência de qualquer forma de

espiritualidade, de religião ou de Deus, pois abre a possibilidade de

enxergar o mundo além da nossa limitação humana.

Para nós, o terceiro ponto, nessa abordagem generalizada de

Dawkins é considerar a violência como em desdobramento lógico da

219 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 471.

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religião. Para Dawkins, o fato de se respeitar a religião somente por ser fé

religiosa, abre o caminho para os fundamentalistas e o extremismo

religioso longe de seus variados contextos. Partido desse ponto de vista,

todas as atrocidades, a violência e o terrorismo que foram e ainda são

cometidas em nome da religião, não devem ser ligadas ao

fundamentalismo ou ao extremismo religioso, mas à própria religião.

Segundo Sen, a religião é “associada com a violência global na mente de

muitas pessoas, assim como a pobreza e a desigualdade global são”.220

Dawkins, portanto, não discute esse aspecto, limitando-se a subscrevê-lo.

Longe de qualquer contexto sócio-histórico e político, Dawkins cita

como exemplo o “Iraque, [que,] em consequência de invasão anglo-

americana de 2003, entrou numa guerra civil sectarista entre muçulmanos

sunitas e xiitas. É claramente um conflito religioso [...]”221 Para ele, o

assunto não passa a ser uma “faxina” religiosa.

Sua intepretação também foge de pensamento de Bhabha, segundo

Souza (2004), sendo que a verdade entre o significado e o significante

ocorre indiretamente através da interpretação,

mediada por intérpretes ou usuários da linguagem sempre

situados socialmente em determinados contextos

ideológicos, históricos e sociais, marcados por todas as

variáveis existentes nesses contextos (classe social, sexo,

faixa etária, origem geográfica etc).222

Em termos de Vattimo, Dawkins interpreta a verdade da religião, de

acordo com seu entendimento da verdade como fixa, dada e absoluta.

Isto é, uma verdade forte, e não como verdade construída dentro de certo

contexto como uma verdade fraca.

220 ”[It is] associated with global violence in the minds of many people, then so are global

poverty and inequality.” (SEN, Amartya. Identity and Violence: The Illusion of Destiny.

London: Penguin Books, 2007. p. 142.) 221 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 46. 222 SOUZA, Lynn Mario T.M. Menezes de. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In:

ABDALA JR., Benjamin (org). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras

misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 119.

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E interessante notar que o filósofo Daniel Dennett, citado por

Dawkins em seu livro por ser um filosofo ateu, disse que acredita que a

invasão americana do Iraque,

talvez, na verdade, teria funcionado desde o início se a força

tivesse sido potente o bastante, além de treinada o

suficiente e bem posicionada para tranquilizar as pessoas

sem ter de dar um tiro.223

A posição política de Dennett (2006) se coloca independentemente do fato

dele ser ateu.

O outro exemplo usado por Dawkins é o ex-presidente norte-

americano George W. Bush. Segundo Dawkins, ele teria afirmado que

“Deus disse a ele que invadisse o Iraque (é uma pena que Deus não tenha

lhe concedido a revelação de que não havia armas de destruição em

massa)”.224 Para Eagleton (2011), essa ironia de Dawkins implica que “[o]

Todo-Poderoso, para ele, é uma espécie de versão cósmica da CIA, que

nos mantém sob constante vigilância”.225

Segundo nossa análise, Dawkins compara a religião ao ateísmo e

direciona suas acusações contra a religião como fonte da violência,

afirmando que os “[a]teus podem fazer maldade, mas não fazem maldade

em nome do ateísmo.[...][Porém] não consigo pensar em nenhuma

guerra que tenha sido combatida em nome do ateísmo”.226 Aqui também,

Dawkins coloca o ateísmo como a solução da violência causada pela

religião.

223 “It might actually have worked from the outset if the force had been large enough and

well enough trained and deployed to reassure people without having to fire a shot.”

(DENNETT, Daniel C. Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon. New York:

Viking Penguin, 2006. p. 282.) 224 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 125. 225 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 54. 226 DAWKINS, op. cit., p. 358.

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Ao reconhecer sua própria hostilidade contra a religião, Dawkins

disse que “esta hostilidade que eu ou os outros ateus às vezes

expressamos contra a religião limita-se a palavras”,227 e, em sua

concepção, o ataque à religião não faz dele um ateu fundamentalista.

Sua conclusão, portanto, é de que a religião hoje é nada mais que

uma doença ou um vírus que, ao atingir o ser humano, pode levá-lo a

morrer ou a matar os outros. Ele afirma que “[a] religião é sem dúvida

uma força que provoca divisões, e essa é uma das principais acusações

levantadas contra ela”,228 e acrescenta:

a religião é um rótulo para a inimizade entre integrantes do

grupo/forasteiros e para a vendeta, não necessariamente

pior que outros rótulos como a cor da pele, a língua ou o

time de futebol preferido, mas freqüentemente [sic]

disponível quando outros rótulos não estão disponíveis.229

Por conseguinte, Dawkins concorda que, mesmo que a religião não possa

ser considerada como a única fonte da violência, ela é mais perigosa por

estar disponível a todos.

Logo, ele volta a afirmar que “as poderosas tendências da

humanidade para a lealdade dentro do grupo e a hostilidade a forasteiros

existiriam mesmo na ausência da religião”.230 Portanto, se concordarmos

em rejeitar a violência seja qual for a sua fonte, essa acusação à religião

não têm fundamento quando colocada fora dos seus contextos

socioculturais e políticos.

Da mesma forma, não podemos condenar a educação religiosa que

as crianças recebem como uma forma de programá-los para empregar a

religião como uma desculpa para qualquer forma de violência cometida

com base na influência que a religião pode ter na vida dessas crianças.

227 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 362. 228 Ibid., p. 334. 229 Ibid., p. 334. 230 Ibid., p. 336.

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O quarto ponto é a noção das consequências da ausência da religião

ou de Deus. Dawkins concorda que a eliminação de Deus ou da religião

deixará um vazio na vida do homem. Então, segundo ele,

[s]e a eliminação de Deus vai deixar uma lacuna, cada um

vai preenchê-la à sua maneira. Minha maneira inclui uma

boa dose de ciência, a empreitada honesta e sistemática

para descobrir a verdade sobre o mundo real.231

Para Dawkins, a ciência pode substituir Deus e tudo que ela

representa para o homem. E a moralidade, segundo Dawkins, não precisa

da religião – para ser bom, o homem não precisa de vigilância de Deus. O

que não fica claro é que a moralidade que surge da religião, ou pelo

menos no caso do cristianismo que Dawkins cita, é baseada na compaixão

e não na vigilância do Deus que pune.

O autor observa que “a moralidade, na verdade, provavelmente

precedeu a religião”,232 e volta para confirmar mais tarde que a

modernidade tardia, “venha de onde vier, não se origina da Bíblia”.233 Por

outro lado, combater a queda da moralidade na modernidade secular é

um dos objetivos principais declaradas pelo fundamentalismo religoso.

Ao tentar analisar a ligação entre a Bíblia e a moralidade, Dawkins

não chegou a uma visão clara, quando procura aplicar a teoria da

evolução a todos os aspectos da vida. Ao mesmo tempo, ele ignora todo o

contexto sociocultural que está ligado à religião, e coloca a moralidade

como técnica ou manual de comportamento para a sobrevivência da raça

humana.

Para Dawkins, o humanismo como um sistema ético que acompanha

o ateísmo provavelmente fortalece a moralidade. Porém, segundo

Eagleton (2011),

231 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 458. 232 Ibid., p. 273. 233 Ibid., p. 318.

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[n]a visão de Nietzsche, a morte de Deus deve também

significar a morte do Homem – ou seja, o fim de um

determinado humanismo senhorial, presunçoso – se o poder

absoluto não for simplesmente transplantado de um para o

outro. Do contrário, o humanismo sempre será secretamente

teológico, uma continuação de Deus por outros meios.234

Segundo esse raciocínio, o conceito de Deus continua vivendo através da

moralidade.

Quanto à questão do sentido da vida, Dawkins (2007) argumenta

que “[t]alvez a vida seja vazia [...]”235 e que a necessidade de Deus para

lhe dar sentido seja uma atitude infantil. Porém, para Eagleton (2011),

“[n]o auge de sua segurança, o Homem do Iluminismo se descobre

assustadoramente sozinho em um universo onde não conta com nada

além de si mesmo para autenticá-lo”.236

O quinto e último ponto é a comparação que Dawkins (2007) faz

entre religião, paixão e nacionalismo. Para ele, o único concorrente no

caso do absolutismo moral, além da religião, é o patriotismo. Esse é um

ponto que será discutido nesta tese, pois há ligação entre o

fundamentalismo e o nacionalismo como pensamento forte que pode levar

ao conflito.

Para Dawkins, é fácil confundir fundamentalismo religioso com

paixão. Ele enxerga sua posição de defender a ciência como uma atitude

de paixão e não de fundamentalismo. Nesse sentido, ele afirma:

Fiz a comparação entre a paixão e a religião em 1993,

quando observei que os sintomas de um indivíduo infectado

pela religião “podem remeter surpreendentemente àqueles

234 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 25. 235 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 456. 236 EAGLETON, op. cit., p. 80.

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mais freqüentemente [sic] associados ao amor sexual.

[...]237

Porém, esse foi o argumento que Dawkins usou para explicar sua relação

com a ciência. No entanto, tanto ele quanto os fiéis ou os

fundamentalistas são movidos pela paixão, cada um por aquela paixão

que considera como verdade.

Os Novos Ateus, assim como os fundamentalistas religiosos,

separam o mundo entre aqueles que sabem a verdade e os que não

sabem. Isto é, segundo Hedges (2008b), “eles dividem o mundo entre

raça superior e inferior, entre aqueles iluminados pela razão e pelo

conhecimento e aqueles guiados pelas crenças irracionais e perigosas”.238

Portanto, a única verdade que aceitam é a verdade deles, e como uma

verdade universal.

Para Hedges, o problema é que a ideia utópica de que eles são

“racionais” por seguir o “Iluminismo”, os Novos Ateus se vê como aptos

para orientar o resto de humanidade sobre o que é melhor para ela. Para

Hedges (2008b), os Novos Ateus “não conseguem ver sua própria

irracionalidade na irracionalidade daqueles a que eles se opõem. Eles se

esqueceram de que também são humanos.”239 Por acreditar que somente

eles saber a verdade comportam-se de maneira igual aos

fundamentalistas religiosos que acreditam que somente sua religião e

seus textos sagradas podem salvar o mundo.

Enquanto os fundamentalistas religiosos que prometem nos ter tudo

que desejamos se cremos em Deus, para os Novos Ateus nós precisamos

crer na Razão. E como os fundamentalistas religiosos, os Novos Ateus

237 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007. p. 246. 238 “[T]hey divide the world into superior and inferior races, those who are enlightened by

reason and knowledge, and those who are governed by irrational and dangerous beliefs.”

(HEDGES, Chris. I Don’t Believe in Atheists. New York: Free Press, 2008. p. 6.) 239 “They fail to see their own irrationality in the irrationality of those they oppose. They

have forgotten that they too, are human.” (Ibid., p. 39.)

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também acreditam que somente eles sabem tudo sobre suas crenças na

Razão, transformando os valores de Iluminismo para servir às suas ideias

que partem dos seus próprios medos e senso de superioridade.

Assim, tanto os fundamentalistas religiosos quanto os Novos Ateus

acreditam na ideia utópica de que o único caminho que pode nos salvar é

aquele que eles defendem. Por isso, eles têm medo dos outros que não

compartilham suas crenças, e acusam os outros por tentar eliminá-los.

Para Hedges (2008b), “a pior tirania na história humana foi a dos

idealistas utópicos”,240 referindo-se aos diversos regimes totalitários do

século XX. E essas ideias utópicas doentes já causaram muitas guerras e

genocídios. Anular o outro em nome de tais ideias utópicas, segundo

Hedges, é um terrível ato de violência, que no final acaba anulando a si

próprio.241

Porém, os Novos Ateus, como no caso do Dawkins, pregam que as

pessoas deixem a religião e adotem a razão como crença que pode

preencher o espaço vazio depois do fim da religião. O problema é que os

Novos Ateus só veem uma versão da religião, uma versão que enxerga

somente os aspectos negativos, como no caso do terrorismo de base

religiosa. Eles não enxergam qualquer lado bom da religião, como por

exemplo, a possibilidade de ela ser uma força para combater a

injustiça.242

Para os Novos Ateus, a verdade da religião não é uma verdade

científica, portanto uma verdade “falsa”. Segundo Hedges (2008b), “eles

[os Novos Ateus] não conseguem enxergar a verdade humana subjacente

e a realidade expressa por meio do mito religioso”.243 Por isso, suas

240 “[T]he worst tyranny in human history was carried out by utopian idealists.”

(HEDGES, Chris. I Don’t Believe in Atheists. New York: Free Press, 2008. p. 43.) 241 Cf. Ibid., p. 43. 242 Cf. Ibid., p. 30; 33. 243 “They are blind to the underlying human truth and reality expressed through religious

myth.” (Ibid., p. 34.)

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acusações contra a religião, de ser uma fonte ganância, de destruição da

vida humana e de injustiça no mundo de hoje, é muito limitada.

Diferentemente de uma postura crítica construtiva, atacar a religião

com base em um pensamento fundamentalista não serve à ciência nem o

espírito do Iluminismo. Isto, segundo Hedges (2008b), porque “os ateus,

incluindo aqueles que nos trouxeram o Iluminismo, têm sido uma força

benéfica na história do pensamento humano e da religião”.244 Sua crítica

foi de grande importância contra a hipocrisia das instituições religiosas

que seguem muitas vezes os interesses do poder das elites e das classes

dominantes, além de ter um papel importante em defender a liberdade de

conhecimento e os valores de humanismo.

Segundo Hedges (2008b), a visão da história como narrativa do

progresso é um produto tanto da fé cristã quanto do Iluminismo. Porém,

no caso do cristianismo, o conceito de pecado deixa essa visão mais

moderada, visão que o Iluminismo abandonou. Assim, podemos nos

desenvolver moralmente, como espécie humana, sem que a razão seja

uma receita para o mundo perfeito. Nossa imperfeição está sempre

presente e ao longo da história humana, entre injustiças, guerras e

barbaridades. Por isso, segundo Hedges, a história humana não é uma

história progressiva.245

Para Hedges (2008b), entender o pensamento darwinista como uma

receita que serve para explicar tudo o que existe no mundo seria uma

forma fundamentalista de pensamento. Para Hedges, a teoria darwinista

não sugere que estamos no caminho do desenvolvimento para alcançar

um estado de perfeição. Segundo Hedges, esse pensamento sugere a

transformação da teoria de evolução em darwinismo social.

244 “Atheists, including those who brought us the Enlightenment, have often been a

beneficial force in the history of human thought and religion” (HEDGES, Chris. I Don’t

Believe in Atheists. New York: Free Press, 2008. p. 25.) 245 Cf. Ibid., p. 42.

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A crítica de Hedges ao darwinismo social se concentra na sua

postura subjacente de indiferença em relação ao capitalismo agressivo e o

sofrimento dos mais pobres e fracos, assumido uma expressão da ordem

natural. Assim,

[o] darwinismo social possui muitas semelhanças com o

fundamentalismo religioso, justificando a dominação política,

social e econômica daqueles que são mais fracos ou pobres.

Nele, é a natureza, ao invés de Deus, que abençoa os fortes

e os privilegiados.246

Portanto, adotar a noção darwinista de “sobrevivência do mais apto” sem

perguntar “mais apto para quê?” é um conceito perigoso que pode

justificar atos de injustiça e de violência contra o outro.247

Por outro lado, as ideias utópicas sobre a possibilidade de se criar

um mundo de harmonia total são geradas por diferentes razões, como o

medo, a ignorância ou a falta uma visão mais profunda. Segundo Hedges

(2008b), são as ideias que nos levam a adotar o conceito de “mal radical”

de Kant. E para erradicar esse “mal”, nós não somente dividimos o mundo

entre o “bem” e o “mal”, mas também nós permitimos executar qualquer

ato violento visando destruir o mal, em nome dessa verdade absoluta, e

sem qualquer contextualização sociopolítica ou histórica.

A violência em nome de uma utopia para erradicar o “mal” e

estabelecer o “bem” acaba gerando mais violência. Por isso, para Hedges

(2008b), as guerras são como a Caixa de Pandora que, uma vez aberta,

só pode trazer mais horrores. Para ele, “a violência como um instrumento

de mudança altera cenários radicalmente, criando uma nova realidade

246 “Social Darwinism bears many similarities to religious fundamentalism. It justifies the

political, social and economic domination of those who are weaker or who are poor. In

Social Darwinism it is nature rather than God that blesses the strong and the privileged”.

(HEDGES, Chris. I Don’t Believe in Atheists. New York: Free Press, 2008. p. 49.) 247 Cf. Ibid., p. 51.

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muitas vezes tão sangrenta quanto aquela que tentou combater”.248 A

invasão do Iraque para derrubar a ditatura do Saddam Hussein (1937-

2006) é um bom exemplo dessa perspectiva utópica da guerra, como

confronto entre o “bem” total contra o “mal” total. Essa guerra e suas

consequências acabaram gerando danos ainda maiores de que a

população sofria durante a ditadura.

Para Hedges (2008b), Dawkins e muitos outros Novos Ateus

procuram nos convencer de que a humanidade está marchando de forma

linear para a perfeição, e de que somente a fé na ciência e na

racionalidade pode nos salvar.249

Segundo Hedges, a história humana já nos mostra que nada disso é

verdadeiro, mas mesmo assim é isso o que queremos acreditar. Enquanto

o pensamento religioso nos faz lembrar constantemente que somos

imperfeitos, acreditar na narrativa de perfeição através da ciência e da

razão torna-se nossa esperança, o que nos trás orgulho de nós

mesmos.250

Hedges (2008b) critica as ideias utópicas que procuram estabelecer

uma sociedade perfeita, como forma de salvação coletiva, seja pela fé

com base religiosa ou com base no Iluminismo e em nome da ciência. Por

isso é importante saber que as ideias não são informações codificadas que

podem ser transferidas de uma forma perfeita. Ao mesmo tempo,

precisamos conhecer a nós mesmos e a nossa capacidade como ser moral

ou imoral, longe de sonhos utópicos.

Enquanto a fé e a razão forem colocadas uma contra a outra, não

vamos chegar a um fim para esse tipo de conflito. As duas são verdades

que podem coexistir. Segundo Campbell (2009), os pais fundadores dos

248 “Violence as an instrument of change alters landscapes so radically that it creates a

new reality often as bloody as the one it attempted to halt”. (HEDGES, Chris. I Don’t

Believe in Atheists. New York: Free Press, 2008. p. 124.) 249 Cf. Ibid., pp. 183; 184. 250 Cf. Ibid., pp. 184-85.

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Estados Unidos paradoxalmente acreditavam que ”a razão coloca você em

contato com Deus”.251 Isto, segundo ele, pode ser visto no caso dos

Estados Unidos sendo “a primeira nação do mundo que se edificou com

base na razão, não no espírito guerreiro”.252 Segundo Campbell, o

significado da frase “Confiamos em Deus” escrita nas cédulas do dólar

norte-americano indica o Deus da razão.

A tentativa de mostrar que uma dessas verdades é mais forte ou

tentar impor uma delas por meio da força, não vai fortalecer essa

verdade, mas enfraquecê-la. Para Paul Veyne (1984),

a ciência não encontra verdades, quantificáveis ou

formalizáveis, ela descobre fatos desconhecidos que podem

ser glosados de mil maneiras [...] As ciências não são mais

sérias do que as letras, e uma vez que em história os fatos

não são separáveis de uma interpretação e que se pode

imaginar todos as interpretações que se quiser, deve

acontecer o mesmo nas ciências exatas.253

Os chamados “Novos Ateus” adotam a verdade da ciência como

absoluta, e nisso eles têm uma visão simplista da verdade da religião.

Segundo Armstrong, “como todos os fundamentalistas religiosos, os novos

ateus acreditam que só eles têm a verdade”,254 o que é uma das bases do

pensamento fundamentalista.

Quando as afirmações religiosas são entendidas pelos

fundamentalistas como conhecimento direto, os céticos cínicos, como no

caso dos “Novos Ateus”, enxergam isso como algo ridículo. A fórmula do

fundamentalismo, segundo Žižek (2006), ocorre quando

251 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas

Athena, 2009. p. 26. 252 Ibid., p. 26. 253 VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos?: Ensaio sobre a imaginação

constituinte. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 132. 254 “Like all religious fundamentalists, the new atheists believe that they alone are in

possession of the truth.” (ARMSTRONG, Karen. The Case for God: What religion really

means. New York: Anchor Books, 2010. p. 303.)

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aquilo que foi retirado do simbólico (da crença) retorna ao

Real (conhecimento direto). O fundamentalista não crê, ele

já sabe. Ou seja, tanto o cínico liberal e cético quanto o

fundamentalista têm a mesma característica subjacente: a

perda da capacidade de acreditar no sentido próprio do

termo.255

O perigo do fundamentalismo, segundo Žižek, “não está no fato de que

ele ameaça o conhecimento científico secular, mas no fato de que

representa ameaça à crença autêntica em si”.256

Ainda para Armstrong (2010), o perigo desse tipo de reação

direcionada aos movimentos fundamentalistas, vindo do ocidente, está no

fato de que

[a] história do fundamentalismo mostra que, quando tais

movimentos são atacados, quase sempre se tornam mais

extremos. O ataque ateu pode levar os fundamentalistas a

um comprometimento ainda maior com o criacionismo, e seu

desdém pelo Islã é um presente para os extremistas

muçulmanos, que podem usá-lo como argumento de que o

Ocidente, de fato, tem a intenção de iniciar uma nova

Cruzada.257

Esta reação agressiva contra a religião só pode agravar a situação e

tornar o conflito mais violento, dando mais credibilidade ao discurso dos

fundamentalistas.

255 “[W]hat is foreclosed from the symbolic (belief) returns in the Real (of direct

knowledge). A fundamentalist does not believe, he knows directly. To put it in another

way: both liberal-skeptical cynicism and fundamentalism thus share a basic underlying

feature: the loss of the ability to believe in the proper sense of the term.” (ŽIŽEK, Slavoj.

The Parallax View. Cambridge: The MIT Press, 2006. p. 348.) 256 “[It] lies not in the fact that it poses a threat to secular scientific knowledge, but in

the fact that it poses a threat to authentic belief itself.” (Ibid., p. 348.) 257 “The history of fundamentalism shows that when these movements are attacked, they

nearly always become more extreme. The atheist assault is likely to drive the

fundamentalists to even greater commitment to creationism, and their contemptuous

dismissal of Islam is a gift to Muslim extremists, who can use it to argue that the West is

indeed intent on a new Crusade.” (ARMSTRONG, Karen. The Case for God: What

religion really means. New York: Anchor Books, 2010. p. 308.)

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1.6. O Fundamentalismo Econômico liberal: a utopia do livre

mercado.

O outro exemplo que segue o padrão do pensamento

fundamentalista é o chamado o “Fundamentalismo de Livre Mercado”, e

que se popularizou com o uso da expressão por Soros (2001) para indicar

o conceito errôneo de que o mercado é autorregulável. Soros, ele mesmo

um especulador financeiro, ganhou a sua fortuna aproveitando a onda de

privatização mundial. Segundo Klein (2008), Soros assumiu uma nova

postura no final dos anos 1990 contra a chamada “terapia de choque” de

implantação do livre mercado no mundo, direcionado sua fortuna para as

ONGs que combatem as políticas de privatização.258

Soros prefere usar o termo “Fundamentalismo de Livre Mercado” em

vez da expressão laissez faire utilizada no século XIX para descrever essa

ideologia porque, segundo ele,

“[f]undamentalismo” implica uma crença que foi levada a

extremos. Trata-se de uma crença na perfeição, uma fé que

fornece uma solução para todos os problemas. Postula uma

autoridade do conhecimento perfeito, ainda que este não

seja prontamente acessível para os reles mortais.259

Para Soros, este novo sistema financeiro-politico é baseado numa

ideia falsa, por ignorar suas ligações políticas e humanas. Ele considera

que “[o] fundamentalismo de mercado veio a dominar as políticas por

volta de 1980, quando Reagan e Thatcher assumiram o poder”.260 Esse

conceito foi a base da globalização e liberalização do mercado financeiro

mundial. Ele abriu uma nova era de livre mercado que tornaria o controle

de seus mecanismos bem mais complicado, além de dificultar a cobrança

258 Cf. KLEIN, Naomi. A doutrina de choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre.

Trad. Vania Maria Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 277. 259 SOROS, George. A Crise do Capitalismo Global. Trad. Cristiana Serra. Rio de

Janeiro: Campus, 2001. p. 194. 260 Ibid., p. 196.

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99

de impostos, o que acabou gerando um aumento no crédito e também dos

resgates financeiros do governo.

Soros explica o que ele chama de Fundamentalismo de Livre

Mercado ao afirmar que

[o] sistema capitalista global é sustentado por uma ideologia

baseada na teoria da concorrência perfeita. Segundo tal

teoria, os mercados tendem ao equilíbrio, e a posição de

equilíbrio representa a alocação de recursos mais eficiente

possível. Todas as restrições impostas à livre concorrência

interferem com a eficiência dos mercados; devem ser, pois,

evitadas.261

Por outro lado e ao mesmo tempo em que nós temos hoje um mercado

global, os interesses políticos são ligados à soberania absoluta de cada

país.

Seguir essa linha de pensamento de forma cega tem as

características do fundamentalismo religioso, que acredita em uma

verdade pura e absoluta. Isso gira em torno de uma série de problemas

ligados ao sistema financeiro mundial, e que atingem outros aspectos da

vida humana.

Segundo Soros (2001), a expansão do crédito, que cresceu em uma

forma acelerada depois da Segunda Guerra Mundial, criou um sistema

financeiro global baseado em outra ideia falsa, a de que

o interesse público é melhor atendido quando se permite que

as pessoas persigam seus próprios interesses. É uma idéia

[sic] atraente, mas apenas uma meia-verdade. Os mercados

são eminentemente adequados à satisfação de interesses

privados, mas não foram criados para cuidar do interesse

comum. A própria preservação do mecanismo do mercado é

um desses interesses comuns. Os participantes de mercado

261 SOROS, George. A Crise do Capitalismo Global. Trad. Cristiana Serra. Rio de

Janeiro: Campus, 2001. p. 194.

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não competem para preservar a concorrência, mas para

vencer; se pudessem, eles a eliminariam.262

Dessa forma, ganhar se torna uma verdade absoluta, perante a qual as

outras verdades são descartadas ou consideradas como menos

importantes.

O que aconteceu dentro do sistema capitalista global foi que o

Estado “não foi extinto como última fonte de poder; apenas deixou de ser

a principal fonte de prosperidade”.263 Para Soros (2001), este é um

problema que continua não resolvido, o que ele considera como uma

distorção da globalização. Para Soros, já que não existe uma sociedade

global, não no sentido de Estado Global, e também de uma lei global que

garanta os direitos de todos, a economia global não tem como funcionar.

A resistência contra a autoridade reguladora internacional vem no

primeiro lugar dos próprios Estados Unidos. Para Soros (2001),

[e]nquanto os Estados Unidos vêem-se [sic] como paladinos

de princípios elevados, outros não vêem nada além da

arrogância do poder. Pode parecer chocante, mas creio que

a atual postura unilateralista dos EUA constitui uma séria

ameaça à paz e prosperidade mundiais.264

Vê-se, portanto, que essa política faz parte das distorções da globalização,

que deveria ser um sistema internacional, mas que é controlado pelos

mais poderosos, com os Estados Unidos na liderança.

Segundo Vattimo (2011), o problema é que, enquanto os países

mais desenvolvidos estão tentando manter sua forma de vida através de

consumismo, o chamado Terceiro Mundo está imitando o mesmo modelo,

ao procurar alcançar o mesmo nível de consumismo.265 Para Vattimo,

262 SOROS, George. A Crise do Capitalismo Global. Trad. Cristiana Serra. Rio de

Janeiro: Campus, 2001. pp. 11-12. 263 Ibid., p. 170. 264 Ibid., p. 15. 265 Cf. VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York:

Columbia University Press, 2011. p. 127.

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101

nenhuma lei econômica é absoluta a ponto de servir como modelo

universal.

Ainda segundo Vattimo (2011), o colonialismo e o imperialismo

europeus foram os modelos da ordem vigente no mundo, ordem que foi

enfrentada com a revolta dos povos colonizados, cansados de serem

explorados e tratados como gente primitiva. Hoje, segundo ele, essa luta

mudou, pois “o que está acontecendo é que os mestres, atualmente não

mais os estados coloniais, mas os novos conglomerados do poder

econômico global, se recusam a abandonar sua posição dominante”.266

Assim, a competição capitalista transformou a velha Guerra Fria numa

“guerra quente” em muitos lugares do mundo sujeitos à violência dos

choques econômicos da competição capitalista.

Vattimo (2009) é pessimista em relação à situação atual da

globalização, em seu contexto político e econômico. Ele afirmou que

[o] capitalismo, que vive de suas próprias crises, parece não

oferecer nenhuma solução. Eu não acredito na ideologia do

“crescimento” econômico: da maneira como vejo as coisas, é

imprescindível que venhamos a reduzir, ao invés de

aumentar, o nível de consumo, ou, pelo menos, que

venhamos a diminuir nosso consumo.267

O problema não se limita à questão econômica ou social, mas também se

apropria de uma natureza que não pode mais sustentar a política de

consumismo sem limite.

266 “[W]hat is happening is that the masters, now no longer colonial states but the new

conglomerations of global economic power that have taken their place, are refusing to

abandon their dominant position”. (VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad. William

McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. 116.) 267 “[T]he capitalism that lives off its own crises seems to offer no way out, and I have no

faith in the ideology of economic “growth”: as I see things, it is imperative that we

attempt to reduce rather than increase the level of consumption, or at least our level of

consumption.” (VATTIMO, Gianni. Philosofy as Ontology of Actuality. A biographical-

theoretical interview with Luca Savarino and Federico Vercellone. Iris. I, 2 October 2009,

p. 343.)

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Bauman (2008) chama a globalização atual de “globalização

negativa”, e, para ele, sua base na ideia de “mercado sem fronteiras” não

somente pode nos levar à injustiça, mas também à desordem mundial,

pois

a globalização atual seletiva do comércio e do capital, da

vigilância e da informação, da coerção e das armas, do crime

e do terrorismo, todos os quais agora desdenham a

soberania nacional e desrespeitam quaisquer fronteiras entre

os Estados.268

As sociedades sentem-se indefesas contra essas forças de mercado, e o

sentimento de vulnerabilidade gerado pela globalização negativa tem

raízes políticas e éticas.

Para Vattimo (2004a), só podemos ter igualdade quando todos os

povos “tiverem a chance de modificar suas próprias condições no mundo

por meio de projetos que necessitem de consenso e colaboração, para que

possam ser efetivamente realizados”.269 Isto porque a igualdade como

ideia democrática não é um fato natural, o que exige adotar a lei de razão

ao invés da lei natural.

As situações catastróficas que a sociedade capitalista tardia vem

enfrentando não representam somente uma ameaça apocalíptica, mas

também uma chance para uma nova experiência humana. Para a

democracia funcionar, precisamos de igualdade de distribuição de

recursos. Enquanto a religião muitas vezes é apontada como a vilã nos

conflitos sociais e políticos, a brecha entre os ricos e os pobres está

aumentando. Rorty (2004) não acredita nem no socialismo e tampouco no

capitalismo. Para ele,

268 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. p. 126. 269 “have the chance to alter their own situations in the world through projects that will

need consensus and collaboration if they are to be effectively realized”. (VATTIMO,

Gianni. Nihilism & Emancipation: Ethics, Politics, & Law. Trad. William McCuaig. New

York: Columbia University Press, 2004. p. 103.)

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[o] que vivenciamos neste momento é o ressurgimento de

todas as piores características do capitalismo – na ausência

de um governo mundial, ou seja, na ausência de uma

autoridade global que poderia colocar o capitalismo mundial

a serviço da democracia.270

Vattimo não enxerga saída se não desafiarmos a verdade objetiva

representada pela fé absoluta no mercado.

E finalmente, segundo Eagleton (2011), enquanto o

fundamentalismo é visto como uma ameaça aos valores da modernidade,

sua base foi sedimentada na linguagem do Iluminismo, a qual

foi sequestrada em nome da ganância corporativa, do estado

de polícia, de uma ciência politicamente comprometida e de

uma permanente economia de guerra.271

Os valores do Iluminismo se tornaram reféns dos interesses

particulares e podem facilmente ser ajustados para servir aos interesses

do poder, transformando o Estado liberal em um estado de vigilância.

Segundo Vattimo (2004a), o retorno do fundamentalismo religioso é

uma reação à queda dos horizontes que acompanha o avanço com a

sociedade de mercado. Para Vattimo, a “ideologia de livre mercado e do

fundamentalismo têm o mesmo objetivo velado: reduzir o pacto social ao

nível mais baixo”.272 Para Vattimo (2004a), isto explica por que os

fundamentalistas apoiam o programa de livre mercado e as leis que

favorecem este tipo de educação.

270 “What we are seeing now is that, in the absence of a world government – in the

absence of a global authority that could put global capitalism in the service of democracy

– all the worst features of capitalism are reemerging.” (RORTY, Richard; VATTIMO,

Gianni. The Future of Religion. New York: Columbia University Press, 2004. p. 75.) 271 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 70. 272 “Free-market ideology and fundamentalism have the same unconcealed aim: to

reduce the social pact to a minimum.” (VATTIMO, Gianni. Nihilism & Emancipation:

Ethics, Politics, & Law. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press,

2004. p. 91.)

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O capitalismo avançado que se apresenta como completamente

agnóstico, exige uma crença com parte do clima cultural dentro qual ele

trabalha.273 Para Eagleton (2011),

[o] problema é que esse clima cultural também costuma

corroer os valores metafísicos dos quais a autoridade política

em parte depende. O capitalismo não pode facilmente

dispensar esses valores metafísicos, nem levá-los demasiado

a sério. [...] A fé religiosa, dentro dessa visão, tanto é vital

quanto vazia.274

Assim, enquanto a religião é invocada no discurso político, ela não faz

parte das organizações que constituem o sistema capitalista.

Esta civilização capitalista agnóstica, segundo Eagleton (2011),

ajudou a promover uma exacerbação da crença. Isso não se

deu apenas porque ela ajudou a criar as condições para o

fundamentalismo, mas também porque, quando se torna

demasiado dominadora, calculista e instrumental, a razão

acaba se transformando em solo por demais raso para um

tipo razoável de fé florescer.275

Para Eagleton (2011), isso acaba transformando a fé em fideísmo,

ignorando a razão completamente e abrindo as portas para o fanatismo,

que é o contraponto do racionalismo. O problema é que o

fundamentalismo religioso

oferece uma cura ainda pior que a doença. [...] Os

fundamentalistas, em sua maior parte, são aqueles que o

capitalismo deixou para trás, aqueles cuja confiança o

capitalismo traiu, como trairá a de qualquer um e qualquer

coisa que não mais gere lucro.276

273 O capitalismo pode ser entendido também como uma religião de culto puro, mas sem

dogma, que se desenvolveu na forma de parasita do cristianismo no Ocidente. Veja:

(BENJAMIN, Walter. Capitalism as Religion. In: BULLOCK, Marcus; JENNINGS, Michael

(Eds.). Walter Benjamin Selected writings: vol. I: 1913-1916. Cambridge: The

Belknap Press of Harvard University Press, 1996, pp. 288-291.) 274 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 131. 275 Ibid., pp. 135-136. 276 Ibid., p. 47.

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Os fundamentalistas são aceitos assim que eles voltam a fazer parte do

capitalismo que ocupa a sociedade pós-moderna.

O importante é que até hoje, segundo Eagleton (2011), “o

capitalismo não abandonou sua superestrutura religiosa e metafísica,

independentemente do que se sinta no futuro impelido a fazer”.277 O

perigo é que o mercado abraça alguns valores da religião para seu próprio

benefício.

Concluímos que o “Fundamentalismo de Livre Mercado” é um

sistema financeiro-político que se baseia em um pensamento

fundamentalista. Sua crença na verdade absoluta de funcionamento

perfeito do livre mercado, e em qualquer contexto, ignora os diversos

fatores políticos e humanos. Este pensamento contribui para tornar a

globalização atual, em termos de Bauman (2008), em uma “globalização

negativa”. Isto é, uma globalização injusta com base na exploração e no

interesse de quem está no controle do comércio e do capital.

Conclusões do capítulo:

Neste capítulo procuramos relacionar o pensamento fundamentalista à

modernidade. Por esta razão partimos do pensamento de Caplan (1987),

que leva o conceito de fundamentalismo para outro nível como uma forma

de pensamento que pode atingir a todos nós. Ao longo do capítulo,

analisamos diversas formas de fundamentalismo que se manifestam pela

estrutura do pensamento fundamentalista na religião, na política, na

teoria econômica, e na ciência.

Procuramos demonstrar a ligação que o fundamentalismo religioso

com a política que ocorre dentro de certo contexto sócio-histórico de cada

exemplo. Portanto, discutimos a questão de Deus transcendental e as

diferentes visões que as três religiões monoteístas apresentam sobre Ele.

277 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 50.

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A influência de Iluminismo e o conflito entre razão e a fé à luz da

declaração de Nietzsche da “morte de Deus” também foi discutida. E, por

fim, falamos sobre a questão do medo relacionado a um Deus todo-

poderoso, que a denominação absoluta traz.

Foi discutida igualmente a ligação entre o fundamentalismo religioso

e a pós-modernidade. Analisamos a crise da pós-modernidade e a solução

que o fundamentalismo oferece ao fazer as escolhas por nós, eliminando

nossa liberdade de escolha. Foi analisado também o fim da verdade na

sua forma metafisica e forte, à luz do pensamento de Vattimo (2004a,

2004b) e sua interpretação de “morte de Deus” como uma nova

interpretação que parte de nosso contexto atual pós-moderno, para uma

re-legitimação do mito religioso.

Analisamos também um caso de “novo ateísmo” na obra de

Dawkins (2007), que entende a verdade científica como a única, e se

coloca contra a verdade da religião, vista por ele como falsa. Seu

pensamento serve como um exemplo do pensamento fundamentalista que

acredita em uma verdade absoluta, em conflito com qualquer verdade que

não esteja de acordo com ela. Dawkins se coloca em confronto não

somente com os fundamentalistas religiosos, mas com a religião em geral.

Por fim, falamos sobre o “Fundamentalismo de Livre Mercado”, com

base no pensamento de Soros (2001). Este é também mais um

pensamento que adota uma verdade absoluta como base de pensamento

e que acredita na sua verdade como absoluta.

As diferentes formas de pensamento fundamentalista que surgem

dentro de âmbito da modernidade fazem parte das mudanças que ela

trouxe, sendo que eles as influenciam e são influenciados por ela. E como

qualquer verdade metafísica, o pensamento fundamentalista é um

pensamento violento que se coloca em confronto com qualquer verdade

que não esteja de acordo com a sua verdade, que ele apresenta como a

única e absoluta.

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CAPÍTULO 2 - O Pensamento Fundamentalista como base

de confronto.

À luz da nossa análise no primeiro capítulo sobre as diferentes

formas de fundamentalismo dentro de contexto da modernidade, e a raiz

da violência daquele pensamento fundamentalista que segue uma verdade

metafísica; analisamos no segundo capítulo as diferentes formas de

fundamentalismo contemporâneo, e ao confronto a que elas podem

conduzir.

Para isso, analisamos o pensamento de Huntington na sua teoria

sobre o choque de civilizações. Huntington (1998) elaborou uma teoria

que categoriza e divide as civilizações mundiais. Procuramos provar que

sua postura parte da vontade ocidental de dominação, e segue um

pensamento com base em uma verdade forte sobre essas civilizações e os

choques futuros entre elas e o Ocidente. Procuramos provar que as

verdades fortes que Huntington adota são verdades violentas, a serviço do

discurso de dominação, e que coloca o Ocidente em constantes choques

com essas outras civilizações.

Será discutido também o pensamento da escrita de Klein (2008),

sobre a doutrina do choque, que se manifesta no mecanismo de chamado

fundamentalismo econômico liberal. Demonstramos através da visão de

Klein a violência que este pensamento provoca, em diferentes níveis.

Procuramos também demonstrar o confronto que ocorre ao se

juntar o fundamentalismo religioso com o nacionalismo, em razão de os

dois seguirem verdades fortes e absolutas. Esta mistura não somente

pode provocar mais violência, mas prejudica tanto o estado secular na sua

forma democrática, quando a própria religião, que acaba sendo uma

ferramenta de poder, geradora de conflitos políticos. Nessa parte,

seguimos principalmente o pensamento de Juergensmeyer (2003, 1994),

de Hedges (2008), e de Aslan (2010).

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O pensamento de diversos autores — Chomsky (2002, 2004, 2007),

Hedges (2003), Juergensmeyer (2003), Pape (2006), e Al-Zayyat (2005)

— fará parte na nossa análise da questão de terrorismo, que ocorre como

o resultado da extrema violência potencial do pensamento

fundamentalista. O terrorismo, como qualquer violência, não precisa de

uma verdade metafísica para ocorrer, mas quando ocorre tendo por base

um pensamento fundamentalista, suas consequências são catastróficas.

Para isso, será analisada a “Guerra ao Terror” declarada pelo ex-

presidente americano George W. Bush. Discutimos também o caso do

terrorismo suicida do fundamentalismo religioso, e, por fim, o papel da

mídia em relação ao medo que esses atos de terrorismo provocam.

2.1. O Choque das Civilizações: a religião como ameaça

Enquanto o pensamento fundamentalista como um Pensamento Forte278

pode moldar a religião e levá-la a um confronto com os conceitos da

modernidade, outras ideologias não religiosas podem construir suas

teorias ideológicas dentro do mesmo conceito do pensamento forte. A tese

do “Choque de Civilizações”, que prevê o choque de bases culturais e

religiosas entre as civilizações, apontando futuros conflitos, é exemplo de

teoria que adota uma verdade forte como estruturante de sua análise.

Isto expressa outra forma de pensamento fundamentalista, mesmo sendo

não religioso, que confronta as outras verdades que não fazem parte da

sua verdade. Como qualquer pensamento forte, ele é violento e com

objetivo de dominação.

278 O pensamento forte tem como base uma verdade metafísica, em comparação com o

pensamento “fraco”, em termos de Vattimo, no qual sua verdade é uma verdade “fraca”,

por ser não metafísica, e portanto uma verdade não violenta. Veja: ZABALA Santiago.

“Weak Thought” and the reduction of violence: a dialogue with Gianni Vattimo. Common

Knowledge. Trad. Yaakov Mascetti. Durham: Duke University Press, vol. 8, Issue. 3,

outono 2002, pp. 452 – 463. Disponível em:

<http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/common_knowledge/

v008/8.3vattimo.html> . Acesso em: maio/2012.

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No livro intitulado O Choque de Civilizações e a Recomposição da

Ordem Mundial, Huntington (1998) discorre sobre sua teoria com mais

profundidade. A obra é uma expansão das ideias apresentadas em um

artigo quase homônimo, exceto por um ponto de interrogação, publicado

no jornal Foreign Affairs em 1993. A tese de Huntington foi inspirada pelo

artigo The Roots of Muslim Rage.279

O mundo pós-Guerra Fria marcou o fim dos conflitos anteriores às

duas Guerras Mundiais e criou o que o Huntington chamou de “nova fase

da política mundial”. Essa fase promete, segundo ele, gerar novos

conflitos entre sete ou oito civilizações sugeridas pelo autor, o que levará

à limpeza étnica e ao crescimento do fundamentalismo religioso. Porém, o

pensamento teórico de que os conflitos terão sempre uma base ideológica

e não econômica ou social entre as civilizações do mundo continuará

determinante para Huntington.

Partindo da proposição que afirma que “a Humanidade está dividida

em subgrupos — tribos, nações e entidades culturais mais amplas

normalmente chamadas de civilizações.”280 Huntington (1998) acredita

que, depois da Guerra Fria, o mundo entrou em uma nova fase que

alterou os conflitos gerados anteriormente entre os campos ideológicos

presentes no primeiro, segundo e terceiro mundo. A partir desse momento

na história, o conflito se estabelece entre civilizações diferentes, e a

cultura é a nova base desse conflito, colocando em lados opostos a

civilização ocidental e as outras civilizações do mundo.

A civilização ocidental, de acordo com Huntington, torna-se o centro

das outras civilizações. Se por um lado o autor descarta a divisão da

civilização europeia entre “Leste” e “Oeste”, por outro ele acredita que

279 O artigo foi publicado por Bernard Lewis, em 1990, na revista The Atlantic. Veja:

(Lewis, Bernard. The Roots of Muslim Rage. The Atlantic. Disponível

em:<http://www.theatlantic.com/magazine/archive/1990/09/the-roots-of-muslim-

rage/4643/>. Acesso em: jun./2011.) 280 HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem

mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 66.

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“em vez de ‘Leste e Oeste’, é mais apropriado falar-se de ‘o Ocidente e o

resto’, que pelo menos, implica a existência de muitos não-Ocidentes”.281

Esta divisão mantém o Ocidente em prontidão para a luta, mantendo-se

forte para enfrentar as ameaças das outras civilizações através da

promoção de conflitos e das divisões entre elas. Desta forma, as

civilizações podem ser mantidas sob controle, garantindo o direito à

proteção dos valores e interesses do Ocidente. Na visão do Huntington, a

intervenção agressiva da ocidentalização gera conflitos que, de certa

forma, reforçam as ideias da Guerra Fria, prolongando a criação de

divisões, fazendo daquela uma guerra infinita.

Huntington explica essa mudança no caráter dos confrontos ao dizer

que, “[n]a Guerra Fria, o Ocidente rotulou-se adversário do ‘comunismo

ateu’; no conflito de civilizações pós-Guerra Fria, os muçulmanos vêem

seu adversário como o ‘o Ocidente ateu’”.282 A religião, neste sentido, é

colocada no centro da sua análise, em relação à outras questões culturais

e históricas.

A Civilização Islâmica é apresentada por ele como inserida dentro de

um grupo de religiões que estão em conflitos permanentes. Huntington

afirma que

[u]ma guerra global que envolve os Estados-núcleos das

principais civilizações do mundo é altamente improvável,

mas não impossível. Como sugerimos, uma guerra desse

tipo poderia surgir da escalada de uma guerra de linha de

fratura entre grupos de civilizações diferentes, mais

provavelmente envolvendo muçulmanos de um lado e não

muçulmanos do outro.283

281 HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem

mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 34. 282 Ibid., p. 268. 283 Ibid., p.398.

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O islamismo é portanto colocado como a maior ameaça à Cultura

Ocidental, tendo a religião como a base geradora de conflitos.

Ao final, Huntington (1998) alerta sobre o perigo dos choques de

civilizações. Para ele,

[n]a era que está emergindo, os choques das civilizações são

a maior ameaça à paz mundial, e uma ordem internacional

baseada nas civilizações é a melhor salvaguarda contra a

guerra mundial.284

Sua teoria de um o choque entre o Ocidente e o Islã ganhou relevo

após os ataques terroristas nos Estados Unidos, em 2001, terem sido

entendidos como uma prova desse conflito entre o Ocidente e o Islã.

Embora sua teoria seja difundida no Ocidente, ela recebe muitas

críticas devido a sua apresentação de divisão do mundo em blocos

culturais. Um de seus críticos mais ferrenhos foi Edward Said (2003,

2011).285 A crítica de Said à teoria de Huntington, para nós, tem uma

importância especial. Isto porque essa crítica vem não somente da parte

de um dos acadêmicos mais conhecidos mundialmente, mas por ser uma

pessoa de diferentes identidades e que se identificava como árabe,

palestino, de minoria cristã, acadêmico, americano, amante da música

clássica e que tocava piano perfeitamente, entre várias outras

identidades. Ele que era exemplo de alguém que não pertencia somente a

uma única civilização ou um único país, ou a um pensamento único. Era

um exemplo de convivência das civilizações e não de choque entre elas. E

mesmo na sua longa defesa da causa palestina, sempre reconheceu e

284 HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem

mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p.410. 285 A crítica de Said ocorreu na sua palestra The Myth of the “Clash of Civilization” ou (O

Mito do Choque de Civilizações), realizada na Universidade de Massachusetts em 1996.

Veja: (SAID, Edward. The Myth of the “Clash of Civilzations”. Disponível

em:<http://www.youtube.com/watch?v=aPS-pONiEG8>. Acesso em: jun./2011.);

também em seus artigos do ano 2001 intitulados O Choque da Ignorância. Veja (SAID,

Edward W. Cultura e Política. Trad. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo: Boitempo

Editorial, 2007.); e O Choque de Definições. Veja: (SAID, Edward. Reflexões sobre o

exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras,

2003.)

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declarou o direito dos dois povos, os palestinos e os judeus, de viver em

paz.

Said (2003), criticou Huntington por entender as civilizações como

“monolíticas e homogêneas” por um lado, e enfatizar a separação entre

“nós” e “eles”, por outro. Segundo Said,

tanto no contexto colonial como pós-colonial, as retóricas da

cultura geral ou da especificidade civilizacional marcham em

duas direções potenciais: uma utópica, que insistia num

padrão geral de integração e harmonia entre todos os

povos; a outra que sugeria que todas as civilizações eram de

fato tão específicas e ciosas, monoteístas, a ponto de se

rejeitarem entrarem em guerra contra todas as outras.286

Um exemplo do primeiro tipo é a instituição das Nações Unidas depois da

Segunda Guerra Mundial, enquanto a teoria e a prática da Guerra Fria e a

teoria de Choque de Civilizações são exemplos da segunda.

Para Said (2003), a visão de Huntington é suspeita por provocar e

enfatizar as divisões entre as civilizações. Ele questiona o motivo da

posição assumida por Huntington. Said afirma que ela é uma forma de

agravar a situação entre as variadas culturas, reduzindo-as a uma forma

generalizada e abstrata, como, por exemplo, “o Ocidente”, “o Islã”, “o

confucionismo”, o que prejudica o diálogo intercultural. Isto é, um diálogo

que procura entender a verdade de outro, sem procurar classificá-lo ou

condená-lo a partir da nossa cultura ou verdade.

Segundo Said (2003), Cada um dos países imperialistas criou sua

superioridade pela invenção de sua própria “teoria do destino cultural”,

acreditando que algumas raças e culturas são mais elevadas do que as

outras. Isso não só justifica a ocupação dos territórios das culturas ditas

inferiores, mas também o sacrifício para alcançar seus objetivos

imperialistas. O objetivo final dessa competição de choque é “o auto-

286 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 323.

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engrandecimento, o poder, a conquista, o tesouro e o orgulho sem limites

de si mesmo”.287

Em contraponto, Said (2003) acredita que a época em que vivemos

não está marcada pelo choque de civilizações, mas sim pelo choque de

definições, ou seja, “as declarações sobre o que ‘nossa’ cultura ou

civilização é ou deve ser envolvem necessariamente uma disputa sobre a

definição”.288 No caso de Huntington, é necessário que ele defina qual será

o cânone da civilização Ocidental ou dos Estados Unidos, antes de tentar

definir as outras civilizações ou culturas como ameaça.

Said (2003) critica o argumento do Huntington em sua análise das

formações culturais por falta de profundidade ao tratar dessas culturas

para compreender seu funcionamento e transformação. A definição que

Huntington faz sobre as culturas é generalizada para servir de base para

sua teoria de conflito.289

De acordo com Said (2003), para entender a cultura é necessário

estabelecer as diferenças entre cultura oficial e não oficial. A primeira fala

em nome de todos, é representada pelo Estado, por uma autoridade

religiosa e pelos acadêmicos, incluindo o nacionalismo, as fronteiras

geográficas e o senso de cidadania. Ao lado dessa cultura oficial ou

ortodoxa, há também as contraculturas, que são as culturas alternativas

ou heterodoxas.290

A base de um dos questionamentos levantados por Said (2003) está

no fato de que essas contraculturas estão sempre num processo de

provocação às culturas ortodoxas do mainstream. Portanto, a ideia de que

287 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 321. 288 Ibid., p. 324. 289 Cf. Ibid., p. 318. 290 Cf. Ibid., p. 325.

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existe certa homogeneidade entre a cultura e a identidade de um certo

povo ignora essa diversidade cultural.291

A constante mudança e o debate sem-fim para definir culturas e

civilizações ocorre tanto no Oriente como no Ocidente. Segundo Said, há

sempre um processo de diálogo e troca entre as culturas, o que pode ser

observado, por exemplo, na literatura e na arte. Said afirma que

Huntington é um ideólogo, alguém que quer transformar

“civilizações” e “identidades” no que elas não são: entidades

fechadas, lacradas, e que foram expurgadas da miríada de

correntes e contracorrentes que animam a história humana,

e que ao longo dos séculos tornaram possível para essa

história incluir não apenas guerras de religião e conquista

imperial, mas também ser uma história de trocas,

fertilização mútua e compartilhamento.292

Said lembra que até a própria tradição pode ser inventada, destruída ou

manipulada de acordo com o contexto.

Se tal posição não for considerada no processo de análise de uma

cultura é possível que uma visão generalizada sobre a essência dessas

culturas seja gerada. Dessa forma,

[a]s autoridades de Huntington não são as próprias culturas,

mas um pequeno punhado de indivíduos escolhidos por ele

porque enfatizam a belicosidade latente em uma ou outra

declaração de um ou outro assim chamado porta-voz

daquela ou sobre aquela cultura.293

Portanto, entender as culturas como fixas e, no caso da civilização

islâmica, colocar a identidade religiosa como dominante, só serve para

justificar a teoria de choque.

291 Cf. SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 325. 292 SAID, Edward W. Cultura e Política. Trad. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo:

Boitempo Editorial, 2007. p. 43. 293 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 318.

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Huntington critica a “civilização islâmica”, o que, de certa forma,

reflete sua própria teoria. Segundo Huntington,

[n]a realidade, é difícil encontrar declarações por qualquer

muçulmano, seja político, alto funcionário, acadêmico,

homem de negócio ou jornalista, que elogie os valores e as

instituições ocidentais.294

O autor reduziu toda a diversidade de culturas de diferentes povos numa

identidade religiosa única.

Huntington explica a fonte desse ódio pelo ocidente dizendo que

[o]s muçulmanos cada vez mais atacam os ocidentais não

por professaram uma religião imperfeita e errônea, que é,

não obstante, uma ”religião do Livro”, mas por não

professarem nenhuma religião em absoluto. Aos olhos

muçulmanos, o secularismo, a irreligiosidade e, portanto, a

imoralidade são males piores do que o Cristianismo

ocidental, que os produziu.295

Isto é, o choque não está entre o Islã e o Cristianismo, mas entre o Islã e

a civilização ocidental que não segue nenhuma religião.

Para justificar seu argumento, Huntington (1998) mostra a diferença

entre os muçulmanos, nomeadamente, os árabes e o Ocidente

moderno.296 Segundo Huntington, o conceito de umma, é uma prova de

que as estruturas fundamentais do mundo árabe são baseadas no Islã.

O termo umma ou (ummah) pode representar tanto a família, o clã,

quanto a tribo, além da religião, da cultura e do império. Assim,

[e]m todo o Islã, o grupo pequeno e a grande fé, a tribo e a

ummah, foram os principais focos de lealdade e

devotamento, e o Estado-nação foi menos importante [...]

Além disso, a ideia de Estados-nações soberanos é

294 HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem

mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 267. 295 Ibid., p. 267. 296 Huntington entende a civilização Ocidental ou Árabe como homogênea. Veja pp. 119-

20.

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incompatível com a crença na soberania de Alá e o primado

da ummah. Na condição de movimento revolucionário, o

fundamentalismo islâmico rejeita o Estado-nação em favor

da unidade do Islã,[...].297

O conceito de umma, por estar acima do Estado-nação, é para

Huntington uma escolha de todos os muçulmanos. Isto, segundo ele,

porque o Islã é uma religião que não foi modernizada e que não adotou a

separação entre a “Igreja” e o Estado, o que torna os muçulmanos

incapazes de entender as outras civilizações.

Este objetivo pode ser verdadeiro para alguns grupos de

fundamentalistas islâmicos, como no caso de organização terrorista al-

Qaeda. Para al-Zayyat,298 al-Qaeda acredita em uma essência perdida

que tem que ser trazida de volta:

É verdade que as palavras de Zawahiri e bin Laden têm o

objetivo de despertar a umma e trazer de volta a civilização

islâmica que precedeu outras civilizações. Essas questões

são realmente importantes a todos os árabes e a todos os

muçulmanos, [...].299

Mesmo considerando a libertação das terras árabes como objetivo

prioritário, principalmente a Palestina, Zayyat acredita no conceito de

umma como uma identidade forte que unifica os países árabes e

muçulmanos no mundo inteiro.

Segundo Zayyat (2005), é necessário adotar políticas equilibradas e

de “estabelecer uma frente que ultrapasse as fronteiras criadas pelo

homem entre os países muçulmanos”.300 Para ele, somente uma liderança

297 HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem

mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 219. 298 Advogado e escritor egípcio. Foi preso junto com Zawahiri em 1981, por ser membro

de movimento islamita suspeito no assassinado do então presidente Egípcio Anwar al-

Sadat no mesmo ano. 299 AL-ZAYYAT, Montasser. Os Caminhos da Al-Qaeda: a história do braço direito de

Bin Laden. Trad. Eduardo Rado. São Paulo: Outras Palavras, 2005. p. 110. 300 Ibid., p. 110.

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muçulmana pode preservar a identidade do país contra as tentativas de

mesclar os princípios estrangeiros com os islâmicos.

Para Demant (2011), “[n]ão foi Huntington, mas Mawdudi e Qutb os

autênticos inventores do conceito de ‘choque das civilizações’”.301 Isso,

segundo Demant, reflete um problema entre o Islã e a modernidade

Ocidental, mas não sugere que há incompatibilidade total entre eles.

A postura do Huntington, a nosso ver, coloca a civilização Ocidental

acima das outras civilizações de mundo, e, portanto, tem seu paralelo no

pensamento dos grupos fundamentalistas islâmicos, que enxergam a

civilização islâmica como a mais elevada.

Para Bauman (2008), ser muçulmano não explica nada além da

preferência em seguir uma religião e não a outra. Com o começo de

século XXI, os muçulmanos jovens sentem-se presos aos seus governos

tanto na “emancipação pessoal na busca de felicidade”, quanto pelo fato

de “[pertencerem] a uma população oficialmente classificada como

parcela atrasada em relação ao restante ‘avançado’, ‘desenvolvido’ ou

‘progressista’”.302 O contexto sociopolítico, portanto, é um elemento

basilar na formação da identidade desses jovens, e não somente a religião

a qual pertencem.

Said (2003) acredita que a idealização de uma cultura, raça, religião

ou povo, não se restringe ao Ocidente por movimentos que procuram

excluir ou até exterminar o outro, enquanto adotam a ideia da separação

acima das outras. O que ocorreu, segundo Said, foi que

no mundo islâmico houve um ressurgimento de retóricas e

movimentos que enfatizam a inimizade do islã em relação ao

Ocidente, assim como na África, na Europa, na Ásia e em

outros lugares apareceram movimentos que sublinham a

301 DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Editora Contexto, 2011. p. 246. 302 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. p. 152.

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necessidade de excluir determinados outros como

indesejáveis.303

Essa noção de “nós versus eles” é utilizada como discurso de poder tanto

por parte do dominador — na forma de conflito —, quanto como forma de

resistência.

Essa forma de ver a identidade de um país ou sociedade é, para

Said (2003),

em grande medida, uma função da interpretação histórica,

prenhe de reivindicações e contra-reivindicações. Os Estados

Unidos estão hoje justamente numa dessas situações. Há

um debate semelhante no mundo islâmico, o qual se perde

de vista totalmente em meio à gritaria histérica sobre a

ameaça do Islã, do fundamentalismo islâmico e do

terrorismo, gritaria encontrada com tanta freqüência [sic] na

mídia ocidental.304

Said critica Huntington por ignorar a diversidade das identidades dos

muçulmanos tanto no mundo árabe como fora dele. Colocá-los em uma

única categoria só pode prejudicar a diversidade, a complexidade e o

hibridismo dessas culturas.

Quando o assunto é o fundamentalismo islâmico, Huntington não

revela o que incentivou e fortaleceu esses movimentos, para além da

religião em si. Para Eagleton (2011), há fatores além da religião que

podem explicar o crescimento dos movimentos fundamentalistas

islâmicos. Entre esses fatores está

o pós-modernismo ocidental [que] tem algumas raízes no

fracasso da política revolucionária. De maneira similar, o

radicalismo islâmico não nasceu apenas de uma reação

contra a política predatória do Ocidente, mas também [...]

da aniquilação das várias formas de secularismo, liberalismo,

nacionalismo e socialismo muçulmano. O fundamentalismo

islâmico é, entre outras coisas, uma reação virulenta à

303 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 323. 304 Ibid., p. 326.

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derrota da esquerda muçulmana — uma derrota para a qual

o Ocidente conspirou ativamente.305

Fatores políticos e os interesses pelo poder, segundo Eagleton, são

essências para entender o contexto em que esses movimentos ganharam

mais espaço naquelas sociedades.

A nosso ver, e a partir da lógica dos autores citados acima, tanto

Huntington quanto os fundamentalistas islâmicos enxergam o mundo a

partir de uma verdade forte, e cada um utiliza sua verdade forte não

somente para condenar o outro, mas também para dominá-lo. E desde

que esses fundamentalistas islâmicos — o caso discutido é o da al-Qaeda

— não representam todos os muçulmanos, Huntington e sua teoria

também não representa o Ocidente. Os dois entendem as identidades

como entidades fechadas, ignorando as diversidades e complexidades das

outras culturas ou civilizações.

Said (2003) considera o fato de Huntington ter concluído sua análise

focando num conflito futuro que ocorreria entre o Ocidente e o Islã, e de

que “o desafio para os formadores de política do Ocidente é assegurar que

o Ocidente se torne mais forte e resista a todos os outros, ao Islã em

particular”.306 Para Said (2007a), a teoria de Huntington cria divisões

também; “entre o passado e o presente, nós e eles, sem falar dos

próprios conceitos de identidade e nacionalidade sobre os quais há

infindável desacordo e debate.”307

A divisão adotada por Huntington não representa uma forma neutra

de ver essas civilizações. Nesse sentido, segundo Eagleton (2011),

[a]inda é possível falar de um debate entre civilizações e

barbárie, mas uma forma mais sutil da mesma disputa é

falar de um conflito entre civilização e cultura. [...] Mais

305 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 149. 306 SAID, Edward W. Cultura e Política. Trad. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo:

Boitempo Editorial, 2007. p. 43. 307 Ibid., p. 45.

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precisamente, nações colonizadoras são civilizações,

enquanto a maioria das colônias ou ex-colônias são

culturas.308

Nesse contexto, Eagleton entende as diferenças entre “cultura” e

“civilização” de três maneiras. Para ele,

[a] civilização é preciosa, mas frágil; a cultura é pedra bruta,

mas potente. As civilizações matam para proteger seus

interesses materiais, enquanto as culturas matam para

defender a própria identidade. Quanto mais pragmática e

materialista se torna a civilização, mais a cultura é chamada

a satisfazer as necessidades emocionais e psicológicas com

as quais a civilização é incapaz de lidar, ou seja, mais as

duas descambam para antagonismo mútuo.309

Para Eagleton, a religião faz parte tanto da civilização no aspecto

estrutural, quanto a cultura inclui o mítico e o ritual.

Finalmente e ainda segundo Eagleton (2009), “[c]omo a cultura

significa, entre outras coisas, que não é possível realmente evitar crer no

que se crê, ela se torna um substituto para o debate racional”.310 Esta

irracionalidade é aproveitada no caso de teoria de choque de civilizações e

também pelos Novos Ateus. Em termos pós-modernos, e com o fim do

significado transcendental, a cultura acaba ocupando o lugar da religião

como motivação forte da fé. Até a arte se torna uma prática misteriosa

dessa fé na cultura, nesta era agnóstica.311

Por sua vez, Said (2003) critica o próprio uso das palavras “cultura”

e “civilização” por Huntington, justamente porque para Huntington as

duas representam “objetivos fixos e reificados, em vez das coisas

dinâmicas e sempre turbulentas que elas são de fato”.312 Além disso, o

308 EAGLETON, Terry. O debate sobre Deus: razão, fé e revolução. Trad. Regina Lyra.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 141. 309 Ibid., p. 142 310 Ibid., p. 143. 311 Cf. Ibid., pp. 144-145. 312 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 328.

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uso do termo “identidade de civilização”, que Huntington utiliza, também

é falho, de acordo com os estudos culturais mais recentes, que nos deram

uma percepção muito mais clara não somente da natureza

dinâmica e duvidosa da identidade cultural, mas da medida

em que a própria idéia [sic] de identidade envolve fantasia,

manipulação, invenção, construção.313

A própria história do mundo, de acordo com Said, tem que ser

entendida como um intercâmbio entre civilizações, mesmo no caso de

choque entre elas, como se fossem conflitos de identidade permanentes.

Para Said (2007a), “há laços mais profundos entre civilizações

aparentemente rivais do que a maioria de nós gostaria de acreditar;

[...]”.314 Esses laços, portanto, não se restringem às guerras religiosas,

mas representam uma troca bem maior.

A visão de Huntington de que os conflitos futuros terão a religião

como base, ao definir as culturas como identidades fortes baseadas na

religião, nos remete ao pensamento fundamentalista, que tende a ver-se

como único, puro e autêntico, o que lhe atribui o direito de condenar, e

até mesmo de atacar o outro.

Segundo Žižek (2008), a postura daqueles que atacam o Ocidente e

que ligam o imperialismo Ocidental, o hedonismo e materialismo, a

política e a religião (cristã e judaica) como um só, generalizam o Ocidente

numa identidade única. Em suas palavras,

[a]queles que propõem o termo “Ocidentalismo” em

contrapartida ao “Orientalismo” de Edward Said estão

corretos até certo ponto: nos países muçulmanos, existe

uma determinada visão ideológica sobre o Ocidente que o

313 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 329. 314 SAID, Edward W. Cultura e Política. Trad. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo:

Boitempo Editorial, 2007. p. 46.

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distorce da mesma forma que a visão Orientalista, de um

modo diferente, faz com o Oriente.315

Isto, de acordo com Žižek, explica a reação violenta de muitos

muçulmanos aos eventos que eles consideram como ofensivas à sua

religião.

A nosso ver, nas futuras guerras e os futuros choques entre culturas

não precisam ter base religiosa, mas sim qualquer tipo de pensamento

forte, que acredita numa verdade absoluta como modelo que deve ser

seguido por todos, seja ele fundamentalismo religioso, imperialismo ou

qualquer sistema ideológico que acredita na verdade na sua forma única e

superior, que diminui o outro e o condena para justificar seus atos de

agressão e dominação.

Segundo Armstrong (2010), “culpar o Islã é muito fácil, porém

contraproducente. É muito menos desafiador do que examinar as

questões políticas e as reivindicações que ecoam em grande parte do

mundo muçulmano.”316 Na esteira de Armstrong, Said (2003) acredita que

é

a coisa mais fácil e menos correta é dizer: isso é o mundo do

islã e veja como são todos terroristas e fundamentalistas, e

veja também como eles são diferentes de nós.317

As proposições de Armstrong (2010) e Said (2003) são

complementares no sentido que os fatores que são a base da violência

cometida em nome do Islã vão além da religião em si, mesmo sem negar

315 “Those who propose the term “Occidentalism” as the counterpart to Edward Said’s

‘Orientalism’ are right up to a certain point: what we get in Muslim countries is a certain

ideological vision of the West which distorts Western reality no less, although in a

different way, than the Orientalist vision distorts the Orient.” (ŽIŽEK, Slavoj. Violence.

New York: Picador, 2008. p. 60.) 316 “[B]laming Islam is simple but counterproductive answer; it is far less challenging

than examining the political issues and grievances that resonate in so much of the

Muslim world.” (ARMSTRONG, Karen. The Case for God: What religion really means.

New York: Anchor Books, 2010. p. 301.) 317 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 333.

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a responsabilidade das autoridades religiosas para combater essa

violência.

Sobre esses tempos modernos definidos por Said (2007a) como

“difíceis”, ele afirma que “estamos todos nadando nessas águas -

ocidentais, muçulmanos e outros. E já que as águas são parte do oceano

da história, tentar ará-las ou dividi-las com barreiras é algo fútil.”318 Por

conseguinte, os desafios que a modernidade nos coloca não se restringem

a uma religião, cultura ou povo.

Para Vattimo (2007), “o conceito de choque de civilizações foi

desenvolvido sob a influência da ideologia política em geral”.319 Ele

nomeia a teoria do Huntington de negra “profecia”, por não oferecer

nenhuma esperança além de choque entre as civilizações.

As divisões e os conflitos internos e externos existiam e ainda

existem nas três religiões monoteístas mais difundidas (o islamismo, o

catolicismo e o judaísmo) e, nesse sentido, Said (2007a) alerta que “[n]ão

há ainda uma história decente ou uma desmistificação da competição

multifacetada entre essas três religiões [...]”.320 Ele cita a Palestina como

exemplo de como é difícil alcançar a reconciliação entre essas três

religiões. Logo, a tese de Huntington como “busca de grandes abstrações”

não serve para se entender essas religiões, tampouco as culturas ligadas

a elas.

Mesmo acreditando que as diferenças entre o cristianismo e o

islamismo não serão resolvidas facilmente — por exemplo, através de um

dialogo inter-religioso entre crentes tradicionais —, Prothero (2010) não

acredita que estamos “testemunhando um ‘choque de civilizações’ entre o

318 SAID, Edward W. Cultura e Política. Trad. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo:

Boitempo Editorial, 2007. p. 47. 319 “[T]he notion of the clash of civilization was developed under the influence of general

political ideology.” (VATTIMO, Gianni. A Prayer for Silence: Dialogue with Gianni Vattimo. In: CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia

University Press, 2007. p. 104.) 320 SAID, op. cit., p. 47.

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cristianismo e o Islã”.321 Para ele, a diversidade religiosa sempre existiu,

porém todas as religiões concordam sobre o limite de conhecimento

humano.

Para Vattimo (1999), a atenção dada às autoridades religiosas no

mundo islâmico

[n]ão teria sido possível sem a “guerra” do petróleo nos

anos de 1970 e o terrorismo do fundamentalismo islâmico

nas décadas seguintes, que tinham mais a ver com o fim do

colonialismo do que com o avivamento da religião.322

Essa erosão entre a fé e a política é portanto resultado de transformações

políticas.

Para Said (2003), Huntington, que sugere na sua tese uma

separação entre cultura e civilização, não percebe, ou não quer falar sobre

“o fenômeno chamado na literatura de globalização do capital”.323 Essa

situação, que é o resultado de capitalismo global, resume-se a

[u]m Norte industrial pequeno, que compreendia as

principais potências econômicas europeias, americanas e

asiáticas, e um Sul enorme, que abrangia o antigo Terceiro

Mundo mais um grande número de nações em estado de

extrema pobreza. O problema político do futuro seria como

imaginar a relação entre as duas, à medida que o Norte

ficaria maia rico, o Sul mais pobre e o mundo mais

interdependente.324

A nosso ver, essas divisões na forma de separação entre o Norte e

Sul, civilização ocidental e as outras civilizações, ou com base de uma

visão monolítica sobre o conceito de cultura ou civilização, só podem

321 PROTHERO, Stephen R. As grandes religiões do mundo. Trad. Joel Fontenelle

Macedo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 11. 322 “[It] would not have been possible without the petrol ‘war’ in the seventies and the

terrorism of Islamic fundamentalism in the following decades, which had more to do with

the epoch of the end of colonialism than with religious renewal.” (VATTIMO, Gianni.

Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p.

27.) 323 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 334. 324 Ibid., p. 334.

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agravar os conflitos já existentes, além de criar outros novos. Isto porque

ver o mundo a partir de uma verdade única é um pensamento de cunho

fundamentalista que coloca uma verdade em confronto contra as demais.

Enquanto isso, a divisão econômica que atinge atualmente o mundo

inteiro e em diferentes níveis — seja que for sua cultura, civilização ou

religião, e em que a globalização do crédito em uma nova forma de

colonização — acaba sendo abafada por esses conflitos de poder.

2.2. A doutrina do choque e o fundamentalismo de livre mercado

O pensamento fundamentalista se manifesta também na teoria

econômica. Klein (2008) descreve dois tipos de choque: o primeiro é

físico, como nos casos das torturas e das guerras; e o segundo, o

econômico, é representado pelo sistema neoliberal. O choque econômico,

segundo Klein, atinge as sociedades depois dos desastres causados pela

natureza ou pela intervenção humana — como no caso das guerras.

Klein constrói seu argumento em relação às teorias econômicas de

Milton Friedman (1912-2006), professor da Universidade de Chicago, que

estabeleceu as regras de livre mercado e é considerado um ícone de

pensamento teórico do liberalismo econômico. Segundo Klein, Friedman

procurava, por meio do choque, devolver as sociedades a um “estado de

capitalismo puro, livre de todas as interrupções — regulação

governamental, barreiras comerciais e interesses entrincheirados”,325 e

acreditando na possibilidade de atingir esse estado econômico purista e

utópico.

O conceito de doutrina do choque, segundo Klein (2008), está

fundamentado na analogia de que chocar uma sociedade é similar a

chocar uma pessoa psicológica ou fisicamente, obrigando-a a aceitar o

325 KLEIN, Naomi. A doutrina de choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre. Trad.

Vania Maria Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 66.

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que ela não aceitaria em situações normais.326 A ideia utópica de

Friedman não era simplesmente o capitalismo, mas algo melhor, livre do

mal do capitalismo; isto é, o capitalismo radical de livre mercado;

considerado puro, segundo Friedman, ele pertence ao mesmo projeto ao

qual o povo livre pertence.

Dessa forma, Friedman criou esse movimento de ideias econômicas

como

uma tentativa de libertar o mercado das interferências do

Estado, mas o que acontece na prática, quando sua visão

purista é implementada, é algo muito diferente.327

Um exemplo de suas ideias é a abolição de todas as barreiras para

se controlar o lucro, privatizar as empresas para que gerem lucro, e

reduzir drasticamente os recursos financeiros dirigidos a programas

socais. Segundo Klein (2008), a intervenção do governo, para Friedman,

só pode piorar a situação — mesmo na tentativa de implementar

melhorias. Isto é, os resultados positivos vêm sempre do livre mercado e

não por meio da intervenção do governo.

Para Klein, “essa forma fundamentalista de capitalismo sempre

precisou do desastre para prosseguir”.328 E quando esses desastres não

surgem pela natureza, eles são criados. A ideia é ganhar cada vez mais

tirando proveito dos desastres que chocam as sociedades.

Depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, essa

ideologia, ainda segundo Klein, começou a ser adotada até mesmo nos

Estados Unidos, o que deu ao ex-presidente George W. Bush a

oportunidade para privatizar as empresas públicas. Porém, ao invés de

seguir o sistema de privatização dos anos noventa − que consistia em

vender as impurezas do governo −, novas instituições foram criadas

326 Cf. KLEIN, Naomi. A doutrina de choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre.

Trad. Vania Maria Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 26; 27. 327 Ibid., pp. 24; 25. 328 Ibid., p. 19.

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devido à então chamada “Guerra ao Terror” e, em seguida, foram

entregues ao setor privado.

Embora o objetivo declarado fosse a guerra contra o

terrorismo, seu efeito foi a criação do complexo do

capitalismo de desastre – uma nova economia apoiada em

segurança doméstica, guerra privatizada e reconstrução de

desastres, encarregada de construir e administrar um Estado

de segurança privatizado, dentro e fora de casa.329

A aliança entre o poder político e o livre mercado, que adota a

doutrina do choque para promover a privatização, pode utilizar até da

própria máquina da guerra para alcançar seus objetivos.

Ao mesmo tempo, a agressão em nome do ideal econômico não

acontece de maneira pacífica, visto que,

[a]ssim como não existe um modo delicado e gentil de

ocupar um país contra a vontade de seu povo, não há

maneira pacífica de retirar das pessoas aquilo que elas

necessitam para viver com dignidade.330

O que ocorre na realidade é que o uso da força como ferramenta de

choque pode ser empregado de diferentes formas, como aconteceu no

caso do Iraque, que sofreu sanções econômicas antes da intervenção

militar.

No arsenal de opções de força, até mesmo a tortura é empregada.

Porém, “[c]omo meio de extração de informação durante interrogatórios,

a tortura é notoriamente duvidosa; mas, como meio de aterrorizar e

controlar o povo, é bastante efetiva”.331 Para Klein, a tortura é usada

como ferramenta de choque para implantar o livre mercado global, e que,

[a]pesar da mística que a cerca, e do impulso compreensível

de tratá-la como um comportamento aberrante além do

329 KLEIN, Naomi. A doutrina de choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre. Trad.

Vania Maria Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 353. 330 Ibid., p. 153. 331 Ibid., p. 153.

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campo político, a tortura não é particularmente complicada

ou misteriosa. Uma ferramenta do tipo mais cruel de

coerção, ela se manifesta com grande previsibilidade sempre

que um déspota local ou um invasor estrangeiro carece do

consentimento necessário para governar [...] [A] tortura é a

espécie indicativa de um regime que está engajado num

projeto antidemocrático profundo, mesmo que tenha

chegado ao poder por meio de eleição.332

Há uma crença de que a democracia e o capitalismo podem ser

considerados como dois lados da mesma moeda. Segundo George Soros,

isso não faz sentido porque o capitalismo e a democracia têm objetivos

diferentes, isto é,

[o] capitalismo é muito bem-sucedido na geração de

riqueza, mas não podemos contar com ele para assegurar

liberdade, democracia e respeito à lei. Os negócios são

motivados pelo lucro; não foram criados para resguardar

princípios universais.333

Essa relação é bem mais complexa, uma vez que o sistema capitalista

precisa da democracia para manter-se equilibrado. Sem isso, o

capitalismo acaba caindo no desiquilíbrio, em sua procura pela obtenção

de um capital cada vez maior. Essa postura, segundo Soros (2001),

presume que

o capitalismo associa-se de alguma modo, na política, à

democracia. É um fato que os países centrais, hoje, são

democráticos, mas o mesmo não é verdadeiro no tocante a

todos os países da periferia. Com efeito, muitos defendem a

necessidade de algum tipo de ditadura para gerar

desenvolvimento econômico.334

Ou seja, para Soros (2001), o capitalismo atual não precisa mais da

democracia no seu mecanismo, sendo que “[u]m regime autocrático, 332 KLEIN, Naomi. A doutrina de choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre. Trad.

Vania Maria Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 152. 333 SOROS, George. A Crise do Capitalismo Global. Trad. Cristiana Serra. Rio de

Janeiro: Campus, 2001. p. 11. 334 Ibid., p. 179.

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capaz de impor sua vontade ao povo, talvez seja mais favorável ao capital

que um democrático, sensível aos desejos do eleitorado”.335

Soros observa que “[h]á uma dificuldade mais fundamental no

raciocínio de que o capitalismo conduz à democracia”.336 Para ele, os

interesses das corporações multinacionais são mais ligados a um sistema

de governo forte ou até mesmo autoritário, e a democracia pode ser um

risco para seus interesses. São objetivos diferentes: enquanto o núcleo do

capitalismo é o dinheiro, no caso da democracia o núcleo é o voto livre do

cidadão.

Para Klein, “os regimes autoritários têm o hábito de abraçar a

democracia sempre que seus projetos econômicos estão prestes a

implodir.”337 Da mesma forma, o livre mercado sobreviveu aproveitando a

implantação da democracia no mundo.338

Segundo Klein, “[o] anseio pelos poderes divinos de criação total

é a razão pelo qual os ideólogos do livre mercado são tão apegados a crise

e desastres”.339 Esta característica é compartilhada pelos fundamentalistas

religiosos ativos, que procuram defender suas ideias utópicas de que o

livre mercado é um “sistema científico prefeito”340. Assim, este sistema

econômico é considerado perfeito, e qualquer resultado é explicado e

justificado pela máxima de que “o mercado não está verdadeiramente

livre. Deve haver algum tipo de interferência, alguma distorção no

sistema.”341 Essa fé absoluta no livre mercado acredita na sua essência

perfeita.

335 SOROS, George. A Crise do Capitalismo Global. Trad. Cristiana Serra. Rio de

Janeiro: Campus, 2001. p. 179. 336 Ibid., p. 180. 337 KLEIN, Naomi. A doutrina de choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre. Trad.

Vania Maria Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 211. 338 Cf. Ibid., p. 182. 339 Ibid., p. 30. 340 Ibid., p. 67. 341 Ibid., p. 68.

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Por sua vez, Soros (2001) acredita que a crise do capitalismo surge

como resultado da fé obsessiva nas forças de mercado. Isto acontece

porque

[o] fundamentalismo de mercado desempenha um papel

crucial no sistema capitalista global. Fornece a ideologia que

motiva muitos participantes bem-sucedidos e orienta as

políticas. Em sua ausência, não se poderia justificar falar em

um sistema capitalista global.342

A intervenção do Estado no mercado pode produzir resultados

negativos, o que ampara os fundamentalistas de mercado em sua crença

deque ”os mercados livre serão necessariamente perfeitos”.343

O triunfo do capitalismo não faz dele um sistema prefeito; por

conseguinte, “[p]odemos falar em um triunfo do capitalismo no mundo,

mas não ainda em um triunfo da democracia. Há uma grave desproporção

entre as condições políticas e econômicas que prevalecem no mundo

hoje.”344 Soros observa que

[o] sistema capitalista global gerou um campo de jogo muito

desigual. A distância entre ricos e pobres está aumentando.

Isso é um perigo, pois um sistema que não oferece alguma

esperança e benefícios para os perdedores corre o risco de

ver-se dilacerado por atos de desespero.345

Enquanto não encontramos a saída do capitalismo global, precisamos

procurar alternativas que sejam menos agressivas e mais justas.

Klein deixa claro sua crença de que o sistema de mercado não

precisa ser violento por natureza, e de que “[é] possível a existência de

uma economia de mercado que não exija tamanha brutalidade nem

342 SOROS, George. A Crise do Capitalismo Global. Trad. Cristiana Serra. Rio de

Janeiro: Campus, 2001. pp. 195-196. 343 Ibid., p. 195. 344 Ibid., p. 10. 345 Ibid., p. 17.

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imponha esse tipo de purismo ideológico”.346 Em suas palavras, o

“Capitalismo de desastre” é o resultado do fundamentalismo de

Mercado,347 que tem “essa mesma incapacidade de distinguir entre

destruição e criação, entre ferir e curar”.348 Os fundamentalistas de

Mercado, e como todos os fundamentalistas,

não têm capacidade para coexistir com outras crenças; seus

seguidores deploram a diversidade e exigem caminho livre

para implementar seu sistema perfeito. O mundo como ele

realmente é deve ser apagado para dar lugar à sua invenção

purista.349

Os fundamentalistas de mercado acreditam na perfeição do livre mercado

e na sua capacidade de manter seu próprio equilíbrio.

Essa visão purista utópica dos fundamentalistas de mercado é

criticada por Soros (2001), que afirma:

os fundamentalistas de mercado, ao apelarem para o

conceito de equilíbrio, equivocam-se em sua interpretação

do processo. Não é a tendência ao equilíbrio que cria

riqueza, mas a liberdade de energias criativas. A criação de

riqueza é um processo dinâmico, que não se auto-regula

[sic] nem assegura a justiça social.350

Os fundamentalistas não procuraram um equilíbrio de mercado, mas

procuram ”abolir o processo decisório coletivo e impor a sua supremacia

dos valores de mercado sobre todos os valores políticos e socais”.351

Klein (2008) compara o pensamento dos fundamentalistas de

mercado — divulgado pelas pessoas e organizações que defendem de

346 KLEIN, Naomi. A doutrina de choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre. Trad.

Vania Maria Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 30. 347 O “Fundamentalismo de livre mercado”, também chamado de “fundamentalismo de

mercado”, segue uma crença absoluta na capacidade do livre mercado de resolver os

problemas que atingem a sociedade e sem qualquer interferência de Estado. Veja a

explicação de Soros em seguida. 348 Ibid., p. 60. 349 Ibid., p. 29. 350 SOROS, George. A Crise do Capitalismo Global. Trad. Cristiana Serra. Rio de

Janeiro: Campus, 2001. p. 150. 351 Ibid., p. 22.

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maneira extremada um mercado livre e independente, e que procuram

realizar um estado puro de capitalismo como forma de sistema científico

perfeito, que, para Klein, pode na verdade distorcer o sistema de livre

mercado — com uma forma de fé fundamentalista.352 Seguindo este viés,

Soros também faz a mesma comparação:

Os fundamentalistas de mercado opõem-se à intervenção

governamental na economia; os fundamentalistas religiosos,

aos padrões liberais, tais como os direitos de aborto,

impostos pelo Estado. Os fundamentalistas de mercado são

contrários à cooperação internacional pelo mesmo motivo de

não gostarem de um governo muito amplo: querem dar aos

negócios liberdade de ação. Isolacionistas, sindicalistas e

fundamentalistas religiosos são contrários pelo motivo

oposto: ressentem-se com a ameaça que os mercados

globais constituem para seus valores e interesses.353

Isto nos leva de volta ao conceito da verdade forte, segundo o qual a

verdade existe na sua forma absoluta, e sobre o qual o conceito de

fundamentalismo está alicerçado, como foi explicado no primeiro capítulo.

Para Žižek (2008), o problema é que o capitalismo hoje se

apresenta como sua face “humana” e enquanto esses “comunistas

liberais” parecem bons cidadãos que se preocupam com o mundo, eles

estão doando para a sociedade o que já tiraram dela. A agressividade do

sistema capitalista é encoberta pelos atos filantrópicos, e o ato de

caridade esconde a exploração econômica.354

Portanto, quando o capitalista doa sua fortuna acumulada para o

público, na realidade, “sua vida adquire sentido, negando-se como mera

personificação do capital e a circulação reprodutiva deste.”355 Esse ato

352 Cf. KLEIN, Naomi. A doutrina de choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre.

Trad. Vania Maria Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. pp. 67-68. 353 SOROS, George. A Crise do Capitalismo Global. Trad. Cristiana Serra. Rio de

Janeiro: Campus, 2001. pp. 312-313. 354 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008. pp. 22-23. 355 “[T]he mere personification of capital and its reproductive circulation: his life acquires

meaning.” (Ibid., p. 23)

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extraeconômico de caridade ajuda o capitalismo atual a reproduzir-se e

perpetuar-se.

Enquanto a globalização procura abolir as barreiras de comércio

global, ela constrói novas barreiras para proteger os interesses dos mais

privilegiados. Segundo Žižek (2008),

[n]a tão aclamada livre circulação instaurada pelo

capitalismo global, são as “coisas” (mercadorias) que

circulam livremente, ao passo que a circulação das pessoas

está cada vez mais controlada.356

Neste sentido, a globalização acaba sendo uma ferramenta para a

segregação das pessoas e limitação dos acessos.

A única solução, segundo Žižek (2008), não está na retirada das

barreiras de divisão, mas no fim das barreiras socioeconômicas para

transformar as sociedades, gerando justiça para todo o mundo, e,

consequentemente, limitando os movimentos de imigração desesperada

para os países mais ricos em busca de melhor renda.

O capitalismo não representa uma cultura ou uma civilização

específica, portanto sua ligação com a Europa onde nasceu já terminou.

Segundo Žižek (2008), “o problema com o capitalismo não é seu viés

eurocêntrico camuflado, mas o fato de ser realmente universal, isto é,

uma estrutura natural que permeia as relações sociais”.357

A nosso ver, o capitalismo fundamentalista de livre mercado, como

qualquer verdade forte, é uma verdade potencialmente violenta. Assim,

cada vez que procuramos alcançar sua origem pura, teremos mais

violência e menos justiça.

356 “[I]n the much-celebrated free circulation opened up by global capitalism, it is ‘things’

(commodities) which freely circulates, while the circulation of ‘persons’ is more and more

controlled.” (ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008. p. 102.) 357 “[T]he problem with capitalism is not its secret Eurocentric bias, but the fact that it

really is universal, a natural matrix of social relations.” (Ibid., p. 156.)

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2.3. O nacionalismo religioso

Segundo Juergensmeyer (2003), com o fim da Guerra Fria e o

crescimento da economia global, os modelos políticos morais entre a

democracia e o comunismo foram substituídos pelo mercado global.

Assim, “à medida que ambos os valores cristãos e do Iluminismo foram

deixados de lado, o comércio transnacional difundiu aspectos da cultura

popular ocidentalizada pelo resto do mundo”.358 Essa influência cultural

vem em diversas formas, desde músicas, filmes e roupas, até os hábitos

alimentares.

As mudanças globais manifestam-se não somente nos aspectos

culturais, mas também econômicos e políticos. Os fundamentalistas

religiosos, tanto no Oriente quanto no Ocidente, se colocaram no papel de

críticos dos governos seculares por serem tirânicos e ateus. Para eles, o

pluralismo da identidade é uma prova de que o governo seja contra a

religião.

Ironicamente, isso faz com que grupos fundamentalistas

considerados rivais tenham a mesma postura diante de seus governos

seculares. Logo, “a guerra religiosa em Israel e na Palestina não tem sido

uma guerra entre religiões, mas um conjunto de duas guerras religiosas –

Judeus e Muçulmanos – contra o secularismo”.359 Mesmo nos Estados

Unidos, o encantamento com a política do governo abriu espaço para os

grupos de direita religiosa.

Juergensmeyer (2003) observa que nesses países houve uma

“perda de fé” nos valores Ocidentais modernos e, consequentemente, na

358 “[W]hile both Christian and Enlightenment values where left behind, transnational

commerce transported aspects of Westernized popular culture to the rest of the world.”

(JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global Rise of Religious

Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 229.) 359 “[T]he religious war in Israel and Palestine has not been a war between religions, but

a double set of religious wars – Jewish and Muslim – against secularism.” (Ibid., p. 230.)

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ideologia do nacionalismo secular.360 Logo, a ideologia religiosa procura

oferecer uma alternativa à ideologia secular. Tanto o colapso espiritual

quanto o politico, segundo Juergensmeyer leva ao terror.

Apesar de Juergensmeyer (2003) basear sua análise na dicotomia

entre Ocidente e os outros – que também foi adotada por Huntington, o

que, em nossa opinião acaba enfraquecendo seu argumento —, ele

apresenta o conceito do “Nacionalismo Religioso”, que pode ser uma

ameaça para a política mundial corrente. Segundo ele, os nacionalistas

religiosos islâmicos não devem ser entendidos simplesmente como

fanáticos religiosos; pelo contrário, eles são ativos politicamente e

procuram reformatar o sistema político e oferecer novas bases para o

Estado-nação. Isto explica suas atitudes agressivas contra a ideologia

política Ocidental.361 Para o autor, esses movimentos existentes no

Oriente podem ser violentos e ameaçar os governos seculares.

Juergensmeyer (1994) também deixa aberta a pergunta sobre a

possibilidade de o Nacionalismo Religioso representar uma nova Guerra

Fria. Comparando os dois casos, afirma Juergensmeyer:

Como a Guerra Fria, o confronto entre essas novas formas

políticas com base cultural e o estado secular é global em

seu escopo, binário em sua oposição, violento em algumas

vezes e, essencialmente, implica uma diferença de

ideologias. Além disso, cada lado tende a estereotipar o

outro. […] Ao contrário da Guerra Fria, o Ocidente,

coadunado com os líderes seculares da então União

Soviética, enfrenta uma oposição que não é nem

politicamente aliada nem, neste momento, militarmente

forte. Por essa razão, não é, muitas vezes, levado a sério.

Acredito que essa atitude é um engano.362

360 Cf. JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global Rise of Religious

Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 231. 361 Cf. JUERGENSMEYER, Mark. The New Cold War?: Religious Nationalism Confronts

the Secular State. Berkeley: University of California Press, 1994. p.xiii. 362 “Like the Cold War, the confrontation between these new forms of culture-based

politics and the secular state is global in its scope, binary in its opposition, occasionally

violent, and essentially a difference of ideologies; and, like the Cold War, each side tends

to stereotype the other […] Unlike the Cold War, however, the West (now aligned with

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Nesse ponto, Juergensmeyer está alinhado à teoria de Huntington, que

sugere a renovação de conflito da Guerra Fria, tendo na religião sua base

ideológica.

Para Juergensmeyer (1994), o secularismo nacional pode ser

considerado “culturalismo nacional”, porque “não existe um conceito de

nacionalismo que sobrepuja a cultura”.363 No caso do Ocidente, a base da

política secular está ligada não somente a cultura cristã-europeia em que

o cristianismo e o secularismo atuam. Segundo ele, “o nacionalismo

secular do Ocidente é uma máscara para certa forma de cultura cristã

europeia”.364 Portanto podemos chamá-lo de nacionalismo cristão ou de

nacionalismo cultural europeu.

Isso explica o problema gerado como resultado do encontro entre o

Ocidente com outras sociedades religiosas. Para Juergensmeyer, a

rejeição religiosa do nacionalismo secular ocorre pelo fato de que ele está

em posição de competição com a religião, tanto no Ocidente quanto no

Oriente. Juergensmeyer, assim como Huntington, acredita nessa divisão

entre o Ocidente e o resto.

Os países muçulmanos, ainda segundo Juergensmeyer, não devem

ser confundidos com a “Civilização Ocidental”, a “Cristandade”, ou ser

colocados num “molde ocidental de referências. Nessa visão de mundo,

eles são partes intrínsecas da civilização islâmica e não da Ocidental. Seria

um ato de imperialismo concebê-los de outra forma.”365 Para

Juergensmeyer, o problema é que a civilização islâmica tem com o

the secular leaders of the former Soviet Union) confronts an opposition that is neither

politically united nor, at present, military strong. For that reason, it is often not taken

seriously. This attitude, I believe, is a mistake.” (JUERGENSMEYER, Mark. The New Cold

War?: Religious Nationalism Confronts the Secular State. Berkeley: University of

California Press, 1994. p. 2.) 363 “[T]here is no such thing as a concept of nationalism that stands above culture.”

(Ibid., p. 16.) 364 “[T]he secular nationalism of the West is a mask for certain form of European

Christian culture.” (Ibid., p. 18.) 365 “[The] Western frame of reference. In this view of the world they are intrinsically part

of the Islamic, not Western, civilization, and it is an act of imperialism to think of them in

any other way.” (Ibid., p. 19.)

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Ocidente é porque se sente ameaçada pela cultura e sistema político

Ocidental. A ideia de nacionalismo secular é uma ideia Ocidental, e vista,

muitas vezes, no mudo islâmico como uma força que compete com o Islã.

Segundo Juergensmeyer (1994), O problema nos países do

chamado “Terceiro Mundo”, é que nesses países os nacionalistas seculares

são considerados inimigos por imitar o Ocidente secular, o que criou certa

competição entre os missionários e os colonizadores liberais: “quando os

europeus colonizaram o resto do mundo, foram, muitas vezes, motivados

pelo desejo de fazer com que esse mundo fosse igual a eles.”366

Isto, segundo Juergensmeyer, suscita nesses países a ideia de que

haja uma conspiração contra a religião islâmica movida pelo Ocidente, e

orquestrada pelos Estados Unidos. Para eles, os problemas gerados pelo

nacionalismo secular em seus países são vistos com prova da sua falha. O

problema, segundo Juergensmeyer (1994), é que

[o] nacionalismo secular é visto como entidade religiosa,

embora seja considerado sinistro. Essa visão pode ser

explicada, em parte, pela síndrome do “anjo caído”: quanto

mais altas as expectativas, mais grave a recriminação.

Muitos membros dos países que foram colonizados tiveram

altas expectativas em relação a (muita fé em) um

nacionalismo secular, a ponto de sua decepção ter sido

extrema quando de seu fracasso.367

Essa decepção levou à conclusão que as instituições seculares falharam.

O sonho do nacionalismo secular dessas sociedades é utópico.

Por outro lado, o nacionalismo religioso ganha mais espaço porque, em

parte, “promete um futuro que não pode ser malsucedido: seus objetivos

366 “[W]hen Europeans colonized the rest of the world, they were often sustained by a

desire to make the rest of the world like themselves.” (JUERGENSMEYER, Mark. The

New Cold War?: Religious Nationalism Confronts the Secular State. Berkeley: University

of California Press, 1994. p. 29.) 367 “[S]ecular nationalism is seen as a religious entity, albeit a sinister one, and this view

can be explained in part, by the ‘fallen-angel’ syndrome: the more vaunted the

expectations, the more severe the recrimination. Many members of formerly colonized

countries had had such high expectation of – such great faith in – secular nationalism

that their disappointment in its failure was also extreme.” (Ibid., p. 23.)

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morais e espirituais são transcendentes e não são tão facilmente

mensuráveis como as promessas mais materialistas dos nacionalistas

seculares.”368 A decepção com o nacionalismo secular é percebida na fala

dos seus líderes e políticos, porque eles também perderam a fé no

nacionalismo secular.

Portanto, isso não aconteceu somente nos países muçulmanos. No

caso dos Estados Unidos, o nacionalismo secular também teve suas

falhas, o que abriu mais espaço para a religião, e isso pode ser visto no

crescimento da influência do fundamentalismo religioso e da direita cristã

na política.

A diferença, porém, é que no Ocidente e nos Estados Unidos, o

nacionalismo secular foi um produto da cultura ocidental, sem ser

importado ou introduzido. Nota-se que, segundo Juergensmeyer (1994),

“o nacionalismo norte-americano desenvolveu suas próprias

características religiosas, misturando as ideias do nacionalismo secular e

os símbolos do cristianismo naquilo que foi chamado de ‘religião civil’”.369

Estes movimentos procuram se encaixar no nacionalismo secular sem

tentar substituí-lo pelo nacionalismo religioso.

A importância da criação do estado-nação na política mundial deve-

se a sua importância para o sistema econômico global. Hoje, para

Juergensmeyer (1994), há uma competição entre os dois sistemas de

ordem social: “o nacionalismo secular (aliado ao estado-nação) e a

religião (aliada a grandes comunidades étnicas).”370 Apesar de serem

368 “[I]t promises a future that cannot easily fail: its moral and spiritual goals are

transcendent and not as easy to gauge as are the more materialistic promises of secular

nationalists.” (JUERGENSMEYER, Mark. The New Cold War?: Religious Nationalism

Confronts the Secular State. Berkeley: University of California Press, 1994. p. 24.) 369 “American nationalism developed its own religious characteristics blending the ideals

of secular nationalism and the symbols of Christianity into what has been called “civil

religion.” (Ibid., p. 28.) 370 “[S]ecular nationalism (allied with nation-state) and religion (allied with large ethnic

communities).” (Ibid., p. 30.)

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consideradas sistemas socais, as duas ideologias, o nacionalismo secular e

a religião, estão em competição.

A religião, semelhante ao nacionalismo secular, articula as

comunidades e as duas exigem lealdade à autoridade, o que gera

discordância porque cria um conflito de poder entre seus direitos para

manter a ordem na sociedade, inclusive o direito de matar.371 Este direito

é das autoridade políticas, e não religiosas, portanto

[é] dado ao Estado, e somente ao Estado, o poder de matar

de forma legítima, ainda que para determinados fins: defesa

militar, proteção policial e pena de morte. No entanto, todo

o resto do poder do Estado para influenciar e moldar a

ordem social é oriundo desse poder fundamental.372

Logo, o conceito do Estado se baseia nessa autoridade de exercício da

violência.

Acomodar a religião ao nacionalismo secular aconteceu mesmo nos

Estados Unidos e na Europa. Assim sendo, alguns componentes da cultura

religiosa da sociedade foram introduzidos ao nacionalismo secular,

ajudando o Estado em diferentes formas, como destaca Jergensmeyer

(2003): “inserir elementos da religião no nacionalismo, impede a religião

de formar sua própria base de poder antinacional, confere legitimidade

religiosa ao estado e ajuda a dar ao nacionalismo uma aura religiosa.”373

Há um perigo dessa difusão entre a religião e o nacionalismo porque

“uma fusão entre o absolutismo do nacionalismo e o absolutismo da

religião pode criar uma regra tão sofisticada e firme que poderia tanto se

371 Cf. JUERGENSMEYER, Mark. The New Cold War?: Religious Nationalism Confronts

the Secular State. Berkeley: University of California Press, 1994. p. 33. 372 “The state, and the state alone, is given the power to kill legitimately, albeit for

limited purposes: military defense, police protection, and capital punishment. Yet all the

rest of state´s power to persuade and to shape the social order is derived from this

fundamental power.” (Ibid., p. 33.) 373 “[C]oopting elements of religion into nationalism keeps religion from building its own

antinational power base; it provides religious legitimacy for the state; and it helps to give

nationalism a religious aura.” (Ibid., p. 35.)

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140

destruir quanto as pessoas ligadas a ela”.374 Esses dois absolutismos são

duas verdades fortes, que, ao serem fundidas, representam um perigo

maior.

Os movimentos islâmicos, em particular, procuram um “ideal

supranacional”. Essa procura de “o estado global de harmonia religiosa é

um antigo sonho islâmico, e, há anos, os grandes impérios islâmicos

pareciam estar à beira de tornar esse sonho uma realidade”.375 Alguns

chegam a enxergar a ideia de nacionalismo como anti-islâmica, porém a

maioria desses ativistas está satisfeita com o nacionalismo islâmico local.

A procura do nacionalismo pelo ideal não se restringe o islamismo.

O Estado de Israel pode ser considerado um nacionalismo religioso

realizado com o Estado judeu. Isto explica porque um nacionalista judeu

como Rabbi Meir Kahane (1932–1990), o porta-voz do partido radical

Kach, se identificava mais com o Aiatolá Khomeini, o líder espiritual e

político da revolução iraniana de 1979, que aos políticos seculares.376

Nos Estado Unidos, a mudança da percepção do cristianismo como a

fé dominante também está enfrentando desafios da linha fundamentalista.

Os fundamentalistas daquele país também falam em Deus para realizar

seu reino na terra.

A nosso ver, os fundamentalistas americanos ativos, como muitos

outros fundamentalistas ativos no islamismo e no judaísmo, acabam

reduzindo a mensagem da sua religião a uma mensagem de conflito. O

que é preciso é trocar a identidade nacional na sua forma secular pela

religiosa. O nacionalismo com seu conceito clássico de identidade limitada

374 “[A] merger of the absolutism of nationalism with the absolutism of religion might

create a rule so vaunted and potent that it could destroy itself and its neighbors as well.”

(JUERGENSMEYER, Mark. The New Cold War?: Religious Nationalism Confronts the

Secular State. Berkeley: University of California Press, 1994. p. 41.) 375 “[The] global state of religious harmony is an old Islamic dream, and for years the

great Islamic empires appeared to be on the verge of making that dream a reality.”

(Ibid., p. 47.) 376 Cf. Ibid., p. 63.

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141

às fronteiras de um país está mudando. Os fundamentalistas religiosos

aproveitam esse momento de enfraquecimento do espírito nacionalista, e

apresentam a religião na sua forma fundamentalista como uma alternativa

para unificar a nação.

Segundo Said (2007b), no nosso mundo atual, marcado pelas

transformações e as novas misturas de culturas e raças,

todo o conceito de identidade nacional tem de ser revisado

[...] e, que, toda bagagem herdada do pensamento político

de século XIX, a noção de uma identidade nacional

homogênea, coerente, unificada é a mais repensada, e essa

mudança está sendo sentida em toda esfera da sociedade e

da política.377

A mudança é aproveitada apropriada pelos fundamentalistas religiosos.

Enquanto o nacionalismo como identidade secular normalmente abre

espaço para diversas identidades, o fundamentalismo tenta absorvê-lo em

favor de uma identidade única ambicionada por aquela religião. O

nacionalismo como identidade forte não somente enfatiza a ideia de

separação entre as nações, mas suas narrativas podem ser também

bélicas e dirigidas aos seus inimigos.

Nessa linha de pensamento, para Maalouf (2003), a palavra

“identidade” é um falso cognato. Isto porque ela começa como aspiração,

e logo pode ultrapassar a questão de “nós” e “eles”, para ser uma guerra

entre aqueles que estão no nosso lado, e os que estão no lado oposto, e

que têm pouco em comum conosco. Para Maalouf, é difícil delimitar a

legitimidade de uma identidade para determinar onde ela começa ou

termina.378

Segundo Maalouf (2003), o nacionalismo religioso representa um

problema de identidade em primeiro lugar. Para ele, “atualmente não

377 SAID, Edward. Humanismo e Crítica Democrática. Trad. Rosaura Eichenberg. São

Paulo: Companhia das Letras. 2007. p. 44. 378 Cf. MAALOUF, Amin. In the Name of Identity: violence and the need to belong.

Trad. Barbara Bray. New York: Penguin Books, 2003. p. 32.

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basta separar a Igreja do Estado: o que tem a ver com a religião deve ser

desconectado daquilo que tem a ver com identidade.“379 Isto porque a

religião é a única afiliação que tem o poder de fornecer e satisfazer muitas

necessidades humanas essenciais, que não são substituíveis por outras

identidades.

Maalouf afirma que precisamos urgentemente de um novo conceito

de identidade que nos impeça de enxergá-la como “essência” de uma

afiliação única na forma de uma verdade forte e fundamental que

classifica a pessoa desde o nascimento, e que não muda mais.380 Segundo

ele,

[c]ada indivíduo é um ponto de encontro para diversas

lealdades, e, às vezes, estas entram em conflito umas com

as outras, além de confrontarem a pessoa que as mantém

com escolhas difíceis. Em alguns casos, a situação é óbvia à

primeira vista; ao passo que outras precisam ser observadas

com mais atenção.381

Isso não quer dizer que cada um de nós tem várias identidades de forma

compartimentada, mas uma só que engloba suas diversas identidades. A

redução de identidade a uma afiliação única, segundo Maalouf (2003), é

muito comum e simplista.

O problema, para Aslan (2010), está no fato de que o nacionalismo

secular já era uma ideia instável desde seu começo, principalmente nas

ex-colônias que se tornaram países independentes. Segundo ele,

[o] mapa do Oriente Médio é um palimpsesto com fronteiras

arbitrárias, nomes inventados e nacionalidades fabricadas,

muitas vezes, impostas de forma agressiva pelos

379 “It is not enough now to separate Church from State: what has to do with religion

must be kept apart from what has to do with identity.” (MAALOUF, Amin. In the Name

of Identity: violence and the need to belong. Trad. Barbara Bray. New York: Penguin

Books, 2003. p. 96.) 380 Cf. Ibid., pp. 2; 35. 381 “Every individual is a meeting ground for many different allegiances, and sometimes

these loyalties conflict with one another and confront the person who harbours them with

difficult choices. In some cases the situation is obvious at a glance; others need to be

looked at more closely”. (Ibid., p. 4.)

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colonizadores. Nessa região, o nacionalismo nunca foi o

principal marcador de identidade coletiva.382

Isto porque, segundo Aslan, o estado moderno alega seu monopólio tanto

no uso da força quanto da identidade nacional, controlando em diferentes

níveis a vida social pública e privada.

Aslan define o nacionalismo religioso no mundo islâmico chamado

de “islamismo”, dizendo que

[o] Islamismo é uma filosofia política que busca estabelecer

um estado islâmico – seja com bases no ativismo social e

político, seja por meio de uma revolução violenta –,

construído sobre uma estrutura moral nitidamente

islâmica.383

No Egito, por exemplo, enquanto alguns grupos islamistas como a

Irmandade Muçulmana é cometida a participação democrática e civil na

sociedade, outros como o Jihad Islâmico seguem o caminho da luta

armada.

Para Aslan, o sucesso do nacionalismo secular no começo do século

XX, em grande parte, foi por causa do apoio das autoridades e das

instituições religiosas. Porém, o nacionalismo, por sua alegação de ser o

“centro da identidade coletiva”, acabou sendo visto como uma

“alternativa” para a religião.384

O problema do nacionalismo religioso islâmico, segundo Aslan

(2010), não está nos valores e as costumes que transmite ou força a

sociedade aceitá-las. “[O] problema é que as identidades religiosas não

382 “The map of the Middle East is a palimpsest, with arbitrary borders, made-up names,

and fabricated nationalities often aggressively imposed by colonizers. In this region,

nationalism has never been the primary marker of collective identity.” (ASLAN, Reza.

Beyond Fundamentalism: Confronting Religious Extremism in the Age of Globalization.

New York: Random House, 2010. p. 21.) 383 “Islamism is a political philosophy that seeks to establish an Islamic state – either

through grassroots social and political activism or through violent revolution – built upon

a distinctly Islamic moral framework.” (Ibid., p. 23.) 384 Cf. Ibid., p. 23.

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144

podem ficar presas ao estado-nação”,385 afirma ele. Mesmo assim, para

Aslan, o nacionalismo religioso pode até acomodar no sistema

democrático, e com o tempo ele começa a se aperfeiçoar para realizar a

função de governo.

Segundo Aslan (2010), “a verdadeira ameaça contra a paz e a

segurança mundial é oriunda do surgimento de movimentos religiosos

transnacionalistas que não podem ser restritos aos limites territoriais”.386

Para Aslan, os mais perigosos desses grupos, como é o caso de al-Qaeda,

segue uma ideologia de jihadismo global, que, e ao contrário do

islamismo, rejeita totalmente o conceito de Estado-nação.387

O jihadismo global, segundo Aslan (2010), apesar de ser visto como

antimoderno, é filho da modernidade. O jihadismo global aproveita tudo o

que a globalização oferece entre comunicação e tecnologia, tanto para

divulgar suas ideias quanto para atacar. Com sua rejeição do Estado-

nação, a guerra do jihadismo acaba sendo global. Para os jihadistas, essa

guerra cósmica é uma obrigação ética de todos os muçulmanos,

independentemente de qualquer instituição política ou religiosa.388

Atualmente, enquanto o islamismo é um movimento de

“nacionalismo religioso”, o jihadismo apóia o “transnacionalismo

religioso”, querendo eliminar todas as fronteiras, fazendo dele um

movimento antinacionalista e transnacionalista ao mesmo tempo. Sua

guerra cósmica é travada entre aqueles que acreditam no Islã, e os que

não acreditam, numa guerra em que ninguém está neutro. Sem o Estado-

nação, seu objetivo na terra é unir a umma islâmica. Ironicamente, ao

colocar o Islã em choque com as outras civilizações, os jihadistas

385 “The problem is that religious identities cannot be tethered to the nation-state.”

(ASLAN, Reza. Beyond Fundamentalism: Confronting Religious Extremism in the Age

of Globalization. New York: Random House, 2010. p. 24.) 386 “[T]he real threat to global peace and security comes from the rise of religious

transnationalist movements that cannot be contained within any territorial boundaries.”

(Ibid., p. 24.) 387 Cf. Ibid., pp. 25; 32. 388 Cf. Ibid., pp. 25-26.

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concordam com a teoria do Huntington de Choque de Civilizações, a

mesma teoria que serviu como base para o início da Guerra ao Terror

declarada pelos Estados Unidos.389

Por outro lado, é evidente que o nacionalismo religioso não se

restringe ao islamismo. E enquanto o fundamentalismo religioso islâmico é

visto como um perigo, a atual posição do fundamentalismo religioso no

Oriente está entranhada no sistema político. Segundo Ruthven (2004),

“alguns estudiosos veem o fundamentalismo e o nacionalismo como

ideologias rivais nos Estados Unidos, bem como em Israel; tais

movimentos, muitas vezes, mal se distinguem”.390 Este tipo de discurso

político, no qual o fundamentalismo tem voz em um país que é uma

potência mundial como os Estados Unidos, as consequências serão óbvias

tanto na política interna quanto externa do país.

Segundo Juergensmeyer (1994), a influência religiosa no discurso

político estadunidense desde a época do presidente Ronald Wilson Reagan

(1911–2004), utilizava o dualismo entre as noções de “bem” − liderado

pelos Estados Unidos e seus aliados − e “mal”. Portanto, quando a direita

cristã procura justificar as guerras dos Estados Unidos contra outras

partes do mundo por serem “infiéis”, ela utiliza-se do mesmo discurso dos

terroristas militantes islâmicos que atacam o Ocidente. Sobre essa

dualidade, Juergensmeyer pontua que o

patriotismo norte-americano frequentemente sofre a fusão

com imagens bíblicas e a retórica cristã-protestante, criando

uma “religião civil” que é tão nacionalista a seu modo quanto

a irmandade muçulmana no Egito […] O envolvimento dos

evangélicos e dos grupos protestantes fundamentalistas na

389 Cf. ASLAN, Reza. Beyond Fundamentalism: Confronting Religious Extremism in the

Age of Globalization. New York: Random House, 2010. pp. 32-33; 163. 390 ”[S]ome scholars see fundamentalism and nationalism as rival ideologies, in America,

as in Israel, the movements are often barely distinguishable.” (RUTHVEN, Malise.

Fundamentalism: The Search for Meaning. Oxford: Oxford University Press, 2004. p.

129.)

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política norte-americana na década de 1980 revelou o poder

político que está potencialmente no seu comando.391

Essa influência não vem como força externa que quer invadir o

sistema político do Estado-nação na sua forma Ocidental; pelo contrário,

Juergensmeyer (1994) acredita que o nacionalismo religioso não seja um

perigo nesse caso, e que existe uma chance de que um governo de

nacionalismo religioso tenha um governo democrático. Os nacionalistas

religiosos são modernos sem serem modernistas, portanto, segundo ele, o

nacionalismo religioso pode representar uma chance de moderar os dois

elementos.392

Porém, o que os nacionalistas religiosos pretendem criar acaba

sendo uma nova tirania em nome da religião. O nacionalismo religioso,

por mais que seja disfarçado de democracia, ainda tem como objetivo

final politizar uma religião única, colocando-a no comando do país, acima

de qualquer processo democrático. Segundo Hedges (2008a), O conflito

no qual estão engajados

[não] é um conflito político natural, em que as pessoas de

boa vontade podem discordar; estão fazendo um jogo

político de forma agradável. Elas fingem ser um jogo

político, quando, na verdade, trata-se de uma luta entre

Deus e o Diabo.393

Nesse entendimento de tendências absolutas, mundo está dividido entre o

bem e o mal; entre aqueles que seguem a religião dominante e os outros.

391 “American patriotism is often fused with biblical images and Protestant Christian

rhetoric, creating a ‘civil religion’ that is as nationalist in its own way as the Muslim

Brotherhood in Egypt […] The involvement of evangelical and fundamentalist Protestant

groups in American politics in the 1980s revealed the political power that is potentially at

their command.” (JUERGENSMEYER, Mark. The New Cold War?: Religious Nationalism

Confronts the Secular State. Berkeley: University of California Press, 1994. p. 145.) 392 Cf. Ibid., p. 191. 393 “[I]s not a natural political conflict where people of good will can disagree, and they’re

playing a political game beautifully. They pretend that it’s a political game, whereas in

fact it’s a fight between God and Satan.” (HEDGES, Chris. American Fascists: the

Christian Right and the War on America. New York: Free Press, 2008. p.113.)

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147

O nacionalismo religioso de direita cristã nos Estados Unidos se

infiltra no sistema democrático para fundir os valores do nacionalismo com

o capitalismo por meio da religião. Os problemas econômicos do país e

das pessoas, segundo Hedges (2008a), são explicados em termos

religiosos, como se fosse uma subversão da sagrada escritura, “para

servir ao Deus norte-americano do Capitalismo e colocar em descrédito os

valores iluministas que outrora apreciamos”.394 O nacionalismo religioso,

apesar de sua veste religiosa, tem sua agenda política como qualquer

fundamentalismo ativo.

Para Juergensmeyer (1994), “o nacionalismo religioso trouxe novas

esperanças e também surgiu a tempo de resgatar a ideia do estado-

nação”.395 O que está acontecendo não é a “politização da religião”, mas a

religionização da política, ou seja, a substituição das expressões

ideológicas seculares pelas formações ideológicas religiosas. Para ele, o

nacionalismo religioso torna-se uma esperança não somente para o

Oriente, mas também para a utopia da teoria política ocidental, que,

muitas vezes, acabou se perdendo ao longo do processo democrático.

Contudo, a nosso ver, os problemas ocorrem quando o nacionalismo

religioso recusa a lei secular, supondo que uma terra tem que ser

dominada por uma religião única, ou quando os nacionalistas religiosos

colocam os direitos da comunidade acima dos direitos dos indivíduos. O

problema não está ligado a certa religião, mas ao fato de que uma nação

vem sendo liderada diretamente a partir dos valores de uma única

religião, não na forma de religião civil ou como fonte de inspiração, mas

como uma identidade forte e absoluta.

394 “[T]o serve America’s god of capitalism and discredited the Enlightenment values we

once prized.” (HEDGES, Chris. American Fascists: the Christian Right and the War on

America. New York: Free Press, 2008. p. 137.) 395 “Religious nationalism raised new hopes, and it also came along in time to rescue the

idea of the nation-state.” (JUERGENSMEYER, Mark. The New Cold War?: Religious

Nationalism Confronts the Secular State. Berkeley: University of California Press, 1994.

p. 194.)

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148

Nos países com governos liderados pelo nacionalismo religioso, a

democracia acaba sendo limitada à “vontade de maioria”, sem suas outras

extinções de direitos. Afinal, segundo Juergensmeyer (1994), “não é a

vontade do povo que importa num contexto de referência religioso, mas a

vontade de Deus”,396 pois o voto não pode ultrapassar a palavra de Deus.

A verdade da religião é suprema e além de qualquer processo

democrático, e

[a] democracia mantém a fé religiosa numa esfera privada,

garantindo que todos os fiéis tenham uma medida igual de

proteção e pratiquem a tolerância mútua. A democracia não

estabelece nenhum ideal religioso. Ela simplesmente garante

a coexistência, possibilitando que o indivíduo não seja

incorporado pela multidão – o que é o principal objetivo do

totalitarismo, que procura dizer a todos os cidadãos o que

acreditar, como se comportar e como se expressar.397

A democracia torna-se nominal e seu valor máximo de livre escolha estará

sempre preso os valores daquela religião.

Para nós, além de ser uma ameaça ao sistema democrático, o

nacionalismo religioso apresenta outros desafios em relação ao direito das

minorias religiosas que não fazem parte da religião dominante. Quando o

fervor religioso cresce em um país acima do poder administrativo do

governo, o resultado atinge as minorias em diferentes formas, como o

abuso de seus direitos como cidadãos e pode chegar até tentar a eliminá-

los.

O nacionalismo religioso não terá a chance de ser neutro em relação

à diversidade cultural, étnica e religiosa de qualquer nação, incluindo a 396 “[I]t is not the will of the people that matters in a religious frame of reference but the

will of God,” (JUERGENSMEYER, Mark. The New Cold War?: Religious Nationalism

Confronts the Secular State. Berkeley: University of California Press, 1994. p. 174.) 397 “Democracy keeps religious Faith in the private sphere, ensuring that all believers

have an equal measure of protection and practice mutual tolerance. Democracy sets no

religious ideal. It simply ensures coexistence. It permits the individual to avoid being

subsumed by the crowd – the chief goal of totalitarianism, which seeks to tell all citizens

what to believe, how to behave and how to speak.” (HEDGES, Chris. American

Fascists: the Christian Right and the War on America. New York: Free Press, 2008. p.

199.)

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149

sua. A nação se torna dividida entre aqueles que têm o poder político e

falam em nome da religião dominante, e os outros que não falam a

mesma linguagem. Para a direita cristã americana, segundo Hedges

(2008a),

[n]esse mundo binário, partes da raça humana são

destituídas de reconhecimento moral e ético. Uma vez que

os seguidores do fundamentalismo vivem num universo

binário, eles são incapazes de ver os outros além dos

reflexos invertidos de si mesmos. Se procuram destruir os

infiéis para criar uma América do Norte cristã, logo os infiéis

devem querer destruí-los também.398

O nacionalismo religioso procura construir um Estado puritano de “bem”,

de acordo com a religião dominante. O perigo dessa ideia puritana é que o

Estado acabe tendo o poder para falar em nome de Deus.

No caso do monoteísmo, o nacionalismo religioso transforma a

religião politizada num regime totalitário com poder divino. Para Bauman

(2008),

[n]o mundo loucamente multivocal, confuso e

desconcertante das mensagens entrecruzadas, porém

mutuamente incompatíveis, cujo principal propósito pode

muito bem ser o questionamento e a destruição da

credibilidade do outro, as crenças monoteístas acopladas às

visões maniqueístas do tipo preto branco constituem as

últimas fortalezas do "mono": de uma verdade, um modo,

uma fórmula de vida — da certeza e da autoconfiança

inexoráveis e belicosas; os derradeiros refúgios dos que

buscam a clareza, a pureza e a liberdade em relação à

dúvida e à indecisão.399

398 “In this binary world segments of human race are disqualified from moral and ethical

consideration. And because fundamentalist followers live in a binary universe, they are

incapable of seeing others as anything more than inverted reflections of themselves. If

they seek to destroy nonbelievers to create a Christian America, then nonbelievers must

be seeking to destroy them.” (HEDGES, Chris. American Fascists: the Christian Right

and the War on America. New York: Free Press, 2008. p. 154.) 399 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. pp. 147–148.

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Substituir o nacionalismo religioso pelo nacionalismo secular não resolve

os problemas socioeconômicos dos quais as sociedades pós-modernas

sofrem.

A religião se coloca como verdade forte, como aquela que tem a

solução diante da falha do Estado. Portanto, a redução dos problemas e os

conflitos políticos, econômicos e sociais a uma visão de confronto entre o

“bem" e o “mal” é muito perigosa. Este tipo de regime acaba tendo o

poder de dizer ao povo o que é certo e/ou errado do ponto de vista moral

e político, estabelecendo um estado policial em que, segundo Hedges

(2008a),

[t]odos são orientados a prestar atenção àqueles que se

desviam social e politicamente, num contexto em que: (i) há

apenas uma verdade ortodoxa, (ii) toda dissidência é

heresia, e (iii) aqueles que não têm caráter de “alto nível” e

não se submetem ou fazem aquilo que lhes é dito não são

autorizados a degradar o domínio público.400

O povo, segundo esse sistema político, acaba imprensado entre duas

ideias fortes, a do nacionalismo e da religião dominante, em um Estado

que baseia seu sistema político na verdade metafísica e absoluta do poder

divino.

Para Hedges (2008a), aqueles que apoiam o nacionalismo religioso

se veem sempre como estando do lado do "bem", o que apresenta um

problema, porque,

[q]uando as pessoas passaram a acreditar que são imunes

ao mal e que não há nenhuma semelhança entre elas e

aqueles que são definidos como inimigos, inevitavelmente

400 “[A]ll are told to watch for social and political deviants, where there is only one orthodox truth, where all dissent is heresy, where those who are not of "high character,”

those who do not submit and do what they are told, are not allowed to contaminate the

public domain.” (HEDGES, Chris. American Fascists: the Christian Right and the War on

America. New York: Free Press, 2008. pp. 160–161.)

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151

essas pessoas crescem incorporando o mal que pretendiam

combater.401

O “mal” acaba sempre ligado aos outros, e os conflitos políticos tornam-se

facilmente conflitos entre o "bem" e o “mal" num discurso político-

religioso.

Uma vez que o nacionalismo religioso se apóia na verdade

metafísica forte da religião, o sistema político que ele procura estabelecer

terá sempre as duas verdades fortes como base: a do nacionalismo e da

religião, mas com a verdade da religião sempre como a dominante,

ampliando a possibilidade de futuros choques internos e externos, na

tentativa de encaixar a verdade forte da religião dentro do sistema político

do país. Este sistema político é transformado num sistema político-

totalitário-religioso que não respeita a verdade daqueles que não

encaixam na sua verdade nacionalista-religiosa.

2.4. O terrorismo: a Guerra ao Terror, o terrorismo suicida, e a

mídia.

Seguindo nossa análise em que diferentes verdades com base em

um pensamento fundamentalista podem levar ao confronto com outras

verdades, analisamos na última parte deste capítulo a questão de

terrorismo como a forma da violência mais grave. Nossa análise do

terrorismo é contrapontual e procura detectar o pensamento

fundamentalista tanto da parte dos terroristas, quanto de parte de quem

os combate. Para isso, discutimos a questão de terrorismo (religioso ou

não), a postura dos Estados Unidos na sua guerra ao terror, e por fim o

medo e o papel da mídia.

401 “When people come to believe that they are immune from evil, that there is no

resemblance between themselves and those they define as the enemy, they will

inevitably grow to embody the evil they claim to fight.” (HEDGES, Chris. American

Fascists: the Christian Right and the War on America. New York: Free Press, 2008. p.

154.)

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152

2.4.1. O terrorismo e a Guerra ao Terror.

A palavra “terrorismo” é um termo que não carrega uma definição

única, pois pode abranger todos os casos existentes de terrorismo ao logo

da história humana. O terrorismo pode ser físico, psicológico, político, e

econômico. Não há um consenso acadêmico ou aceito pela comunidade

global sobre a definição desse tipo de crime.

A definição do termo “terrorismo”, segundo Juergensmeyer (2003),

não é uma tarefa fácil; pelo contrário, é muitas vezes problemática. Suas

variações e motivos são amplos. Terrorismo, para ele,

tem o propósito de aterrorizar. A palavra vem do latim

terrere (“fazer tremer”) e entrou em uso na acepção política,

como uma violação da ordem civil, quando do Reino do

Terror da Revolução Francesa no final do século XVIII.402

Os atos que são descritos como terrorismo pelo público ou pela mídia são

assim chamados porque eles carecem de qualquer objetivo militar claro,

e, além de espalhar o sentimento de medo, acabam gerando raiva

popular. Porém, há cientistas sociais que definem o terrorismo como

violência encoberta praticada por alguns grupos para fins políticos.403

Entre os problemas do uso da palavra “terrorista” é que ela não faz

uma distinção clara entre os organizadores, os atacantes, e aqueles que

os apoiam. Além do mais, a palavra cria “uma determinada espécie

restrita de pessoas denominadas ‘terroristas’ que estão voltadas a atos

violentos”,404 nas palavras de Juergensmeyer. Os grupos terroristas

muitas vezes são descritos como grupos militantes por aqueles que

402 “[T]errorism is meant to terrify. The word comes from the Latin terrere, “to cause to

tremble,” and came into common usage in the political sense, as an assault on civil

order, during the Reign of Terror in the French Revolution at the close of the eighteenth

century.” (JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global Rise of

Religious Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 5.) 403 Cf. Ibid., p. 124. 404 “[C]ertain limited species of people called ‘terrorists’ who are committed to violent

acts” (Ibid., p. 7.)

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apoiam seus atos. Essa categorização leva à lógica de que, ao eliminar os

terroristas, podemos acabar com o terrorismo.

Em 2005, o ex-secretário geral das Nações Unidas, Kofi Annan,

declarou que não há qualquer justificativa para o cometimento de atos de

terrorismo, e pediu para que se definisse “terrorismo”. Segundo Annan

(2005), o terrorismo

compreende qualquer ação que cause a morte ou graves

lesões corporais de civis ou não combatentes, com o

propósito de intimidar uma população ou de coagir uma

organização governamental ou internacional a agir, ou não,

de determinada forma.405

Segundo essa declaração, o terrorismo será tratado como crime

contra a humanidade.

Tal crime nunca é justificado seja quem for o atacante e por

qualquer que seja o motivo. Além do mais, no relatório In Larger

Freedom, de 21 de Março de 2005, o secretário-geral das Nações Unidas

afirmou: “[É] hora de deixar de lado discussões sobre o chamado

‘terrorismo de Estado’. O uso da força pelos Estados já é completamente

regulamentado pelo Direito Internacional.”406 Na ocasião, o debate sobre

o uso do termo “terrorismo de Estado” também foi rejeitado.

Para Derrida (2004), “nem toda experiência de terror é

necessariamente o efeito de algum terrorismo”.407 Derrida pergunta o que

405 “[A]ny action constitutes terrorism if it is intended to cause death or serious bodily

harm to civilians and non-combatants, with the purpose of intimidating a population or

compelling a Government or international organization to do or abstain from doing an

act.”(Annan lays out detailed five-point UN strategy to combat terrorism. UN News

Center. Disponível em:

<http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=13599&Cr=terror&Cr1=>. Acesso

em: nov./2011.) 406 “It is time to set aside debates on so-called ‘State terrorism’. The use of force by

States is already thoroughly regulated under international law.” (Report of the

Secretary-General: 21 March, 2005. Capítulo III, item no. 91. Disponível

em:<http://www.un.org/largerfreedom/chap3.htm>. Acesso em: ago./2011.) 407 BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror: diálogo com Jürgen

Habermas e Jaques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

p. 112.

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é o terror, o que o destinge de outros sentimentos como medo, pânico ou

ansiedade. Segundo ele, precisamos tomar muito cuidado ao utilizar o

termo “terrorismo”, e principalmente o “terrorismo internacional”. Para

ele,

a história política da palavra “terrorismo” deriva em grande

parte de uma referência ao reinado do Terror durante a

revolução Francesa, um terror conduzido em nome do

Estado e que de fato pressuponha um monopólio legal da

violência.408

Atualmente as definições de terrorismo que o entendem como crime

contra a vida humana, violência das leis nacionais ou internacionais,

supõem que as vítimas de terrorismo são civis, e que seu objetivo é

mudar ou influenciar a política de certo país ao aterrorizar sua população.

Enquanto “terrorismo de Estado” acabou assumindo outros nomes para

legitimar ou até legalizar atos de natureza semelhante.409 Para Chomsky

(2004), porém, o termo “terrorismo de Estado” já foi utilizado nos anos de

1980 para descrever países que participam ou patrocinam atos de

terrorismo, como no caso do Irã ou da Líbia. O problema, segundo ele, é

que

[a]s definições oficiais não respondem com precisão a todas

as perguntas. Elas não estabelecem, por exemplo, uma

fronteira definida entre terrorismo internacional e agressão,

ou entre terrorismo e resistência. Esses temas surgiram de

forma interessante, que têm estreita relação com a guerra

redeclarada ao terrorismo e as manchetes de hoje. [Ênfase

no original]410

A distinção entre atos de terrorismo e atos de resistência apresenta um

problema de legitimidade, tanto para definir aqueles que comete o ato de

terrorismo, quanto para legitimar as ações daqueles que os combatem.

408 BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror: diálogo com Jürgen

Habermas e Jaques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

p. 112. 409 Cf. Ibid., p. 112. 410 CHOMSKY, Noam. O Império Americano: hegemonia ou sobrevivência. Trad. Regina

Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 191.

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O terrorismo não se restringe ao chamado “terrorismo religioso”.

Com o fim de Guerra Fria, os Estados Unidos sempre consideraram o

terrorismo em nome da religião ou da etnia como seu primeiro inimigo.

Para Juergensmeyer (2003),

[o]s Estados Unidos foram, com justiça, acusados de

terrorismo devido às atrocidades cometidas durante a

Guerra do Vietnã. Há também algumas razões para

considerar os bombardeios nucleares de Hiroshima e

Nagasaki atos terroristas.411

Mesmo que o terrorismo esteja associado aos atos de violência cometidos

por grupos independentes que procuram compartilhar ou controlar o

poder, as atrocidades de guerra, nas quais civis são atacados diretamente

podem também ser consideradas atos de terrorismo.

O ataque dos Estados Unidos a Hiroshima e Nagasaki com bombas

atômicas durante a II Guerra Mundial não deve ser entendido somente

como uma questão em termos de certo ou errado. Hedges (2003) observa

que

[i]sso significa que somos ingênuos em ignorar estes e

outros inúmeros eventos, bem como enaltecer o massacre

indiscriminado e o assassinato em grande escala. A guerra

moderna é, sobretudo, contra civis.412

O mito da guerra, segundo Hedges (2003), cria uma nova realidade para

que aceitemos, mesmo com remorso, o ato de matar os outros. Ou seja,

um novo código da moralidade é criado.

411 “The United States has rightfully been accused of terrorism in the atrocities committed

during the Vietnam War, and there is some basis for considering the nuclear bombings of

Hiroshima and Nagasaki as terrorist acts.” (JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind

of God: The Global Rise of Religious Violence. Berkeley: University of California Press,

2003. p. 5.) 412 “It means that we are naïve to ignore these and countless other events, to ennoble

indiscriminate slaughter and industrial killing on so vast scale. Modern war is directed

primarily against civilians.” (HEDGES, Chris. War is a Force that Gives us Meaning.

New York: Anchor Books, 2003. p. 28.)

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Os massacres contra grupos religiosos ou étnicos durante os tempos

da guerra não são raros, como no caso do massacre dos armênios, em

que, segundo Hedges (2003), “o assassinato de mais de um milhão de

armênios na Turquia é, frequentemente, citado como um ato inaugural

referente aos genocídios que marcaram o século XX”,413 um massacre que

é negado pela Turquia até hoje. O maior massacre moderno ocorreu

durante o regime nazista na Alemanha: o Holocausto contra os judeus,

que também é negado por alguns. Há debates sobre considerar esses

massacres como atos de “genocídio” ou de “terrorismo de Estado”.

O termo “terrorismo” pode ser também manipulado quando utilizado

para descrever os atos do inimigo ao atacar “alvos fáceis”, e o direito de

responder a esses ataques sem restrição. Decidir se a ação pode ser

considerada “[...] terrorismo ou causa nobre é algo que depende de quem

seja o agente”.414 Para Chomsky (2004), muitos atos de invasão militares

dos Estados Unidos podem ser enquadrados como atos de terrorismo

quando são motivados pelos interesses imperialistas próprios, e não pela

iniciativa tomada pela comunidade internacional para utilizar a força

militar no combate a esse tipo de crime gravíssimo.

Dessa forma, segundo Chomsky (2004), mesmo para aceitar o

“consenso quase universal” sobre o uso do termo “terrorismo”, teremos

um problema de legitimidade ao combater as ações por trás do termo,

sem causar danos que ultrapassem o próprio araque. Chomsky reconhece

o perigo que ataques de terrorismo como os de 11 de setembro

representam para a paz mundial, mas combatê-los na forma da “Guerra

ao Terror” que foi declarada por George W. Bush depois dos ataques,

413 “[T]he murder of more than one million Armenians in Turkey is often cited as the

opening act for the genocidal campaigns that convulsed the twentieth century.”

(HEDGES, Chris. War is a Force that Gives us Meaning. New York: Anchor Books,

2003. p. 126.) 414 CHOMSKY, Noam. O Império Americano: hegemonia ou sobrevivência. Trad. Regina

Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 194.

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acaba por legitimar qualquer agressão militar mesmo quando esconde

outros interesses de dominação, e isso é algo grave.

Para Chomsky (2002), a reação violenta dos Estados Unidos depois

dos ataques de 11 de setembro, com a invasão do Afeganistão e o Iraque,

serve para “mobilizar outros em torno de sua causa hedionda”.415 Ao

mesmo tempo, ao desestabilizar os regimes moderados, abrem espaço

para os movimentos radicais. Para Chomsky, a invasão do Iraque ajudou

a popularização do discurso antidemocrático de radicais como os da al-

Qaeda e de outros movimentos no mundo muçulmano.

Segundo Chomsky (2002), bin Laden já declarou claramente quis

são os objetivos da rede al-Qaeda, isto é,

estão promovendo uma Guerra Santa contra os regimes

não-islâmicos, corruptos e repressores da região, e contra

todos que os sustentam, do modo que lutaram uma Guerra

Santa contra os russos, nos anos 1980.416

A luta desses grupos terroristas, portanto, não se limita ao inimigo

distante, nesse caso, os Estados Unidos, mas também os inimigos

próximos, que são os governos árabes que eles consideram como

corruptos e não islâmicos. Um exemplo dessa luta contra um inimigo

próximo seria o assassinato do ex-presidente egípcio Anwar al-Sadat em

1981.

Chomsky critica a visão de alguns intelectuais ocidentais que

entendem ataques terroristas como o resultado de um choque entre o Islã

e o Ocidente, e do ódio islâmico contra o progresso e os valores

ocidentais. Segundo ele, esta acusação ignora duas questões: a primeira

sobre o origem da rede terrorista de bin Laden, e a segunda, os atos que

provocaram o ódio contra os Estados Unidos pelos povos desses países,

415 CHOMSKY, Noam. 11 de setembro. Trad. Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2002. p. 30. 416 Ibid., p. 34.

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ódio do qual as células islâmicas terroristas podem se abastecer.417 Isto

não quer dizer, segundo Chomsky (2002), que os atentados contra os EUA

sejam um resultado direito da política americana, “[m]as indiretamente,

são: não há a mínima controvérsia a esse respeito.”418

Enquanto o terrorismo religioso é ligado a certa interpretação da

religião, sua guerra contra o Estado tem dimensão política. Na sua fatwa

de 1998, de acordo com Juergensmeyer (2003), bin Laden deixou claro

que “não foi ele quem começou a Guerra, mas os norte-americanos por

meio de suas ações no Oriente Médio”.419 Segundo sua declaração, bin

Laden entendia a política dos Estados Unidos no Oriente Médio,

principalmente nos países muçulmanos, como uma guerra contra Deus, o

que ele repetiu nas suas declarações pós-ataques de 11 de setembro de

2001. Portanto, bin Laden declarou guerra contra o Estado americano,

com uma justificativa político-religiosa.

A resposta dos Estados Unidos, segundo Juergensmeyer (2003):

A estratégia da Guerra ao Terror pode ser perigosa, na

medida em que pode vender a imagem de um mundo em

guerra entre as forças seculares e religiosas, situação essa

que os próprios terroristas religiosos fomentaram.420

Para Habermas (2004), o uso do termo “guerra” apresenta dois

problemas:

Do ponto de vista normativo, ele está elevando os

criminosos ao status de inimigos de guerra; e,

pragmaticamente, não podemos conduzir uma guerra contra

417 Cf.CHOMSKY, Noam. 11 de setembro. Trad. Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2002. p. 89. 418 Cf. Ibid., p. 94. 419 “[I]t was not he who started the war, however, but Americans, through their actions

in the Middle East.” (JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global

Rise of Religious Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 148.) 420 “[T]he war-against-terrorism strategy can be dangerous, in that it can play into the

scenario that religious terrorists themselves have fostered: the image of a world at war

between secular and religious forces.” (Ibid., p. 235.)

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uma “rede”, caso queiramos dar ao termo “guerra” qualquer

significado definido.421

O problema, como pontuou Hedges (2003), é que “nós norte-

americanos nos encontramos numa posição perigosa, a de entrar em

guerra não contra um estado, mas contra um fantasma”.422 Em nome da

justiça e da liberdade, esta guerra foi colocada como uma guerra contra o

“eixo do mal”, que, como consequência, levou os Estados Unidos a invadir

o Afeganistão e o Iraque. Para Hedges (2003), corre-se o perigo de uma

indesejada aproximação com as motivações e os sentimentos do inimigo,

pois,

[q]uando utilizamos a guerra como um entorpecente,

sentimos o que aqueles que procuramos destruir, inclusive

os fundamentalistas islâmicos que são retratados como

alienígenas, bárbaros e não civilizados, sentem. Trata-se do

mesmo narcótico.423

Ao mesmo tempo, quando a guerra é vista como o conflito entre o “bem”

e o “mal”, e quando nos colocamos no lado do ”bem”, nossa violência se

torna não somente justificada, ela passa a carregar também uma

dimensão sacra.

As imagens de guerra divina, segundo Juergensmeyer, “não são

novidades, mas herança da tradição religiosa que remonta à Antiguidade.

Os vários exemplos de estado de guerra podem ser encontrados em

textos sagrados.”424 Esta tradição pode se tornar um problema, uma vez

que

421 BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror: diálogo com Jürgen

Habermas e Jaques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

p. 47. 422 “[W]e Americans find ourselves in the dangerous position of going to war not against

a state but against a phantom”. (HEDGES, Chris. War is a Force that Gives us

Meaning. New York: Anchor Books, 2003. p. 4.) 423 “[W]hen we ingest the anodyne of war we feel what those we strive to destroy feel,

including the Islamic fundamentalists who are painted as alien, barbaric, and uncivilized.

It is the same narcotic.” (Ibid., p. 5.) 424 “[They] are not new but a part of the heritage of religious traditions that stretch back

to antiquity, and abundant examples of warfare may be found in sacred texts.”

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[n]ós nos vemos do lado dos anjos e acatamos um sistema

de crença teológico ou ideológico que se define como a

personificação da bondade e da luz, o que resta é apenas

como executaremos o assassinato.425

Uma guerra com esse perfil não somente pode dar sentido a ações

violentas em tempos conturbados, mas também pode criar novos

sentimentos de rancor étnico e racial.

Uma “guerra justa” contra o terror internacional se torna uma

chance para se alcançar outros objetivos, como o da globalização

neoliberal, criando um círculo vicioso de violência. Para Chomsky,

[a]s atrocidades de 11 de setembro servem de dramático

lembrete do que há muito se sabia: os ricos e poderosos já

não detêm o quase monopólio da violência que detiveram,

predominantemente, ao longo da história.426

E provavelmente, ainda segundo Chomsky (2004), os crescentes negócios

globais influenciam o crescimento desse tipo de terrorismo.

Enquanto a preocupação mundial é direcionada cada vez mais para

o combate à violência do terrorismo, a preocupação principal se dirige

para a proteção dos negócios globais, visto que

a volatilidade financeira muito provavelmente significa

crescimento mais lento, acompanhando o padrão da

globalização neoliberal (para aqueles que seguiram as

regras) e prejudicando principalmente os pobres.427

A agressividade da política baseada nesses interesses, segundo

Chomsky, provoca mais violência associada à globalização neoliberal, o

(JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global Rise of Religious

Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 149.) 425 “[O]nce we see ourselves on the side of angels, once we embrace a theological or

ideological belief system that defines itself as the embodiment of goodness and light, it is

only a matter of how we will carry out the murder.” (HEDGES, Chris. War is a Force

that Gives us Meaning. New York: Anchor Books, 2003. p. 9.) 426 CHOMSKY, Noam. O Império Americano: hegemonia ou sobrevivência. Trad. Regina

Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 211. 427 Ibid., p. 211.

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que intensifica o extremismo, seja ele religioso, ideológico ou étnico, além

de causar desatinos políticos e culturais.428

O pensamento fundamentalista dos terroristas é enfrentado pelo

pensamento fundamentalista daqueles que os combatem. Segundo

Chomsky (2004), “o terrorismo deles contra nós e nossos clientes, uma

questão, sem dúvida, extremamente séria.”429 Um bom exemplo disso é a

invasão do Iraque em 2003. O antigo regime do ditador iraquiano foi

acusado, sem evidências, de apoiar o terrorismo e de ter “armas de

destruição em massa” que ameaçavam a segurança internacional. Assim,

a invasão do Iraque foi colocada como parte da “Guerra ao Terror”.

As atrocidades que foram cometidas durante e depois da invasão

dos Estados Unidos ao Iraque, contra os milhares que morreram como

resultado da guerra e com os conflitos sectários, os ataques terroristas, e

a falta de serviços com a destruição de infraestrutura do país, foram

justificados como “danos colaterais” no caminho de implantar a

democracia naquele país. A invasão, porém, em vez de combater o

terrorismo internacional, tornou o Iraque um espaço de combate para

diversos grupos terroristas que aproveitaram a situação caótica do país

pós-invasão. Ao contrário do que foi divulgado pelos Estados Unidos como

justificativa de sua invasão ao Iraque — principalmente as armas de

destruição em massa —, a escolha de invadir aquele país foi mais

provavelmente devido a sua grande reserva de petróleo, além da

localização estratégica na região. A invasão aconteceu apesar de o então

presidente iraquiano Saddam Hussein não representar ameaça à

segurança dos Estados Unidos — suas negociações com as companhias de

petróleo russas e francesas não agradaram as companhias de energia

estadunidenses.430

428 Cf. CHOMSKY, Noam. O Império Americano: hegemonia ou sobrevivência. Trad.

Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 211. 429 Ibid., p. 200. 430 Cf. KLEIN, Naomi. A doutrina de choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre.

Trad. Vania Maria Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 372.

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Ironicamente, enquanto a guerra contra o Iraque foi declarada

oficialmente para combater o terror, os ataques terroristas no Iraque

somente começaram depois da invasão dos Estados Unidos em 2003, e

não pararam mesmo depois da retirada oficial das tropas de combate

norte-americanas do Iraque, em dezembro de 2011.

Para Chomsky, “há quem argumenta que o mal do terrorismo seja

‘absoluto’ e mereça uma ‘doutrina de reciprocidade absoluta’”.431 A

referida doutrina não pode ser legítima ao atacar outros países ou invadi-

los como reação justificada pelas atrocidades dos terroristas atacantes. O

uso de força bruta contra outros países para combater o terrorismo acaba

aumentando a patologia do ódio entre “eles” e “nós”. O ódio torna-se

cíclico. A questão, segundo Chomsky, é que “eles não nos odeiam, [mas]

odeiam as políticas do nosso governo, o que é bem diferente”.432

Para Chomsky (2004), o problema no mundo islâmico não está em

aceitar os valores da liberdade e da democracia ocidental, ou de fazer

parte da “globalização”, mas na política de imperialismo que resulta em

tal ódio. Tanto os fundamentalistas islâmicos quanto os nacionalistas

seculares nos países de maioria muçulmana, têm a mesma postura em

relação à presença americana em seus países.433 E mesmo que isso não

seja justificativa aos ataques dos terroristas, essa postura acaba

motivando seu discurso.

Precisamos estar sempre atentos para não aceitar o discurso da

guerra sem o rígido controle que justifica esse ato de violência, e controlá-

lo para que ela não se torne apenas uma manifestação de poder contra o

outro. Nas palavras de Hedges, “devemos nos proteger contra o mito da

Guerra e da letargia da Guerra que, juntos, nos deixam cegos e

431 CHOMSKY, Noam. O Império Americano: hegemonia ou sobrevivência. Trad. Regina

Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 206. 432 Ibid., p. 216. 433 Cf. Ibid., p. 218.

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insensíveis como algumas daquelas pessoas contra as quais lutamos”.434

Para isso, precisamos de humildade e de compaixão.

A paixão pela guerra não é nova e sua trajetória vem de longe:

Os antigos gregos ligavam a Guerra ao amor. Afrodite, a

deusa do amor e esposa de Hefesto, o ferreiro manco que

fabricava as armas e armaduras para os deuses, foi amante

de Ares, deus da guerra.435

Fazer a guerra per se, sentir prazer em matar o outro, são sintomas

patológicos. Mas quando essa paixão pela latência se junta à ideia de

sacrifício, seja pelo nacionalismo ou pela religião, o resultado é ainda mais

grave.

Ironicamente, segundo Hedges (2003), a mesma guerra que destrói

o amor, cria a condição para o amor em um contexto de sacrifício, o

sacrifício que as pessoas demonstram nela. Mas esse amor não tem

felicidade, pois ele é um amor sem significado, um delírio em que a nossa

vida e a vida dos outros perde o valor. Este amor é um amor fanático e

frio. Como bem definiu Hedges, “a Guerra é necrofilia. E essa necrofilia é

fundamental para a formação dos soldados, do mesmo modo que é

essencial para a criação de homens-bomba e terroristas.”436 Esse amor

doentio está escondido sob os princípios de dever e camaradagem.

Somente o amor gera a felicidade e o significado. É o amor que só

pode ser realizado ao amar-se o outro, e não a guerra:

No início, a Guerra se assemelhava ao amor. Entretanto, ao

contrário do amor, não dá nada em troca, além de uma

434 “[W]e must guard against the myth of war and the drug of war that can, together,

render us as blind and callous as some of those we battle”. (HEDGES, Chris. War is a

Force that Gives us Meaning. New York: Anchor Books, 2003. p. 17.) 435 “[T]he ancient Greeks linked war and love. Aphrodite, the goddess of love and the

wife of Hephaestos, the lame blacksmith who forged the weapons and armor for gods,

became the mistress of Ares, the god of war.” (Ibid., p. 100.) 436 “[W]ar is necrophilia. And this necrophilia is central to soldiering, just as it is central

to the make-up of suicide bombers and terrorists.” (Ibid., p. 165.)

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dependência cada vez mais profunda, como todos os

narcóticos, no caminho para autodestruição.437

Aqueles que amam a guerra não sentem amor pelo outro, e tampouco são

amados. Somente através do amor ao outro podemos reconhecer-nos no

outro, amor que pode combater este impulso de violência e

autodestruição.438

Hedges (2003) reconhece que esse amor pela guerra não é a única

motivação, pois os soldados são obrigados a respeitar o poder acima

deles. Essa combinação de mito da guerra com o poder do Estado é o

resultado do fato de que “o Estado precisa do mito, assim como de seus

soldados e das suas máquinas de guerra, para sobreviver”.439 Aqueles que

procuram um significado no patriotismo para justificar a matança, não

querem saber da verdade da guerra, que o mito oculta.

As certezas que o discurso da guerra, segundo Hedges (2003), nos

impõe dão ao Estado uma aura religiosa, que não nos permite aos seus

cidadãos pensar ou discutir: “a certeza moral do estado durante a guerra

é um tipo de fundamentalismo”.440 A forma messiânica da religião, com

sua certeza absoluta, é um perigo se apropriada pelo Estado porque

Há um perigo de junção, cada vez maior, entre aqueles que

promovem a guerra — tanto a favor quanto contra o Estado

moderno — e aqueles que acreditam que sabem e podem

atuar como agentes de Deus.441

437 “In the beginning war looks and feels like love. But unlike love it gives nothing in

return but an ever-deepening dependence, like all narcotics, on the road to self-

destruction.” (HEDGES, Chris. War is a Force that Gives us Meaning. New York:

Anchor Books, 2003. p. 162.) 438 Cf. Ibid., pp. 159–601. 439 “[T]he state needs the myth, as much as it needs its soldiers and its machines of war,

to survive.” (Ibid., p. 173.) 440 “[T]he moral certitude of the state in wartime is a kind of fundamentalism.” (Ibid., p.

147.) 441 “[T]here is a danger of growing fusion between those in the state who wage war —

both for and against modern states — and those who believe they understand and can

act as agents for God.” (Ibid., p. 147.)

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Portanto, “o perigo não é que o fundamentalismo vá crescer a ponto de a

sociedade moderna e secular se degradar”.442 O verdadeiro perigo é que,

dentro de contexto mundial que vivemos, as catástrofes podem ser

fatores adequados para o surgimento de um Estado-igreja autoritário,

dentro do sistema democrático.

Vattimo (2011) questiona que tipo de verdade pode ter uma política

posterior à guerra do Iraque, em que líderes das maiores nações do

mundo mentiram sobre a existência de armas de destruição em massa no

país, como justificativa para invadi-lo. Segundo Vattimo, “a tolerância com

a inverdade sempre foi presente e aceita desde o início dos tempos na

prática da política, mas era vista como uma violação que merecia a

censura no âmbito da ética”.443 Essa questão da verdade política

representa um problema quando o assunto é o terrorismo, e sem

considerar a complexidade de seus contextos.

Segundo Juergensmeyer (1994), os grupos radicais religiosos que

praticam o terrorismo contra o Estado ou contra outros grupos têm papel

político e não devem ser vistos como crimes comuns, pois

[e]sses jovens radicais religiosos ganharam uma certa

notoriedade por serem perigosos e acabaram legitimando

seus atos ao disfarçá-los por meio da fachada moral da

religião. Uma vez que suas atividades são sancionadas pela

religião, elas não são apenas atos aleatórios de terror, mas

ações políticas estratégicas, que quebram o monopólio

estatal em relação à matança moralmente aceita. Ao colocar

o direito de matar em suas próprias mãos, os autores da

violência religiosa estão ousadamente reivindicando poder

442 “[T]he danger is not that fundamentalism will grow so much as that modern, secular

society will wither.” (HEDGES, Chris. War is a Force that Gives us Meaning. New

York: Anchor Books, 2003. pp. 147; 148.) 443 “Tolerance of untruth has been present and accepted since the dawn of time in

practical politics, but it was seen as a violation deserving censure in the realm of ethics.”

(VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia

University Press, 2011. p. xxvi.)

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em nome daqueles que, anteriormente, eram impotentes e

que foram ignorados por aqueles que estavam no poder.444

O ato de matar em nome de certo código moral é portanto um ato

político, e ao realizá-lo os terroristas reivindicam tal poder como legítimo

na defesa daqueles que não têm voz ou poder, procurando estabelecer

uma ordem pública diferente da ordem do Estado secular, e nisso

demonstrando a fragilidade do poder moral do Estado.445

O terrorismo, visto no seu calibre global, representa um sério

problema já que “as Nações Unidas não têm capacidade militar nem a

capacidade de recolher informações, para lidar com o terrorismo no

mundo inteiro”.446 De certa forma, isso força algumas nações do mundo a

assumir esse papel. Porém, corre-se o perigo de acabar provocando uma

escalada do terrorismo, como no caso da “Guerra ao Terror”.

Combater o terrorismo, segundo Juergensmeyer (1994), é uma

responsabilidade moral de todos os governos, pois

[q]uando os governos abandonam seus próprios princípios

morais ao reagirem ao terrorismo, eles inadvertidamente

validam a crítica mais devastadora que os ativistas religiosos

lhes fazem: a de que as políticas seculares carecem de

moralidade.447

444 “By being dangerous, these young religious radicals have gained a certain notoriety,

and by clothing their actions in the moral grab of religion they have given those actions

legitimacy. Because their activities are sanctioned by religion, they are not just random

acts of terror, but are strategic political actions: they break the state’s monopoly on

morally sanctioned killing. By putting the right to kill in their own hands, the perpetrators

of religious violence are making a daring claim to power on behalf of those who

previously had been impotent and ignored by those in power.” (JUERGENSMEYER, Mark.

The New Cold War?: Religious Nationalism Confronts the Secular State. Berkeley:

University of California Press, 1994. p. 170.) 445 Cf. JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global Rise of Religious

Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 218. 446 “[T]he United Nations lacks the military capability and intelligence-gathering capacity

to deal with worldwide terrorism.” (Ibid., p. 147.) 447 “[W]hen governments abandon their own moral principals in responding to terrorism,

they inadvertently validate the religious activists’ most devastating critique of them: that

secular politics are devoid of morality.” (Ibid., p. 244.)

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167

Essa responsabilidade, porém, não deve ser restrita ao Ocidente ou a um

único governo.

Chomsky (2007) critica os Estados Unidos por assumirem o papel de

combater o terrorismo através de guerras e invasões de outros países por

decisão unilateral. Para ele, o país precisa deixar que as Nações Unidas

“assumam a liderança na crise internacional, além de apoiarem-se mais

nas medidas diplomáticas e econômicas do que nas militares, contra a

‘guerra ao terror’”.448 Mas os interesses políticos e econômicos fazem os

Estados Unidos se colocar na posição de policial que garante a lei e a

ordem no mundo.

Para Chomsky (2002), enquanto os radicais islâmicos chamados de

fundamentalistas são considerados como os inimigos dos Estados Unidos,

[n]o mundo islâmico, o Estado mais rigidamente

fundamentalista, depois do Governo Talibã, é a Arábia

Saudita, um aliado dos EUA desde suas origens; o Talibã é,

de fato, um ramo de versão saudita do Islã.449

Porém, por ser aliada dos EUA e um dos países de maior reserva de

petróleo do mundo, a Arábia Saudita raramente é acusada de ser um país

não democrático e com graves problemas relacionadas às liberdades das

mulheres, das minorias, sem falar do cerceamento da liberdade religiosa.

Quando em 1980 os EUA, com ajuda da inteligência paquistanesa, e

ajuda de Arábia Saudita, Inglaterra e outros países,

recrutaram, armaram e treinaram os fundamentalistas

islâmicos mais radicais que puderam encontrar, com o

448 “[…] take the lead in international crisis, and rely on diplomatic and economic

measures more than military ones in the “war on terror”. (CHOMSKY, Noam. Failed

States: the abuse of power and the assault on democracy. London: Penguin Books Ltd,

2007. p.229.) 449 CHOMSKY, Noam. 11 de setembro. Trad. Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2002. p. 24.

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168

objetivo de causar o maior dano possível aos soviéticos no

Afeganistão.450

Como consequência, o regime moderado que governava o Afeganistão foi

substituído pelos fanáticos. Osama bin Laden, segundo Chomsky, foi um

dos beneficiários indiretos dessa mudança.

Said também questiona o papel dos Estados Unidos na sua Guerra

ao Terror. Said (2007a) afirma que, “para um país que prega contra a

violência e o ‘terrorismo’ em todo o mundo, ser mais violento que

qualquer outra nação do planeta é algo profundamente contraditório”.451

Outros países, como a Rússia, também tiveram interesses políticos

globais, o que resultou no crescimento do fundamentalismo religioso ativo

e do terrorismo, como aconteceu no Afeganistão com o seu apoio aos

Talibãs.

Enquanto as atenções são direcionadas somente aos grupos

terroristas, a reação pode produzir mais danos que a própria ação

terrorista. Vejamos a análise de Bauman (2008):

Num círculo vicioso, a ameaça do terrorismo se transforma

na inspiração para mais terrorismo, cuspindo em seu

caminho volumes cada vez maiores de terror e massas

maiores ainda de pessoas aterrorizadas — dois produtos que

os atos terroristas, cujo nome deriva exatamente de tais

intenções, tendem a produzir, e tramam para tal. Pode-se

dizer que as pessoas aterrorizadas são os aliados mais

confiáveis, ainda que involuntários, dos terroristas.452

A população, sem entender a razão por trás dos atos terroristas, fica

chocada e assustada, procurando mais segurança como solução. A

ameaça do terrorismo é vista como externa, e não mais como um produto

negativo da nossa modernidade.

450 CHOMSKY, Noam. 11 de setembro. Trad. Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2002. p. 91. 451 SAID, Edward W. Cultura e Política. Trad. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo:

Boitempo Editorial, 2007. p. 85. 452 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. p. 161.

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Portanto, segundo Bauman (2008), antes de procurar estabelecer

um mecanismo para combater o terrorismo, precisamos examinar os

desafios globais atuais. O terrorismo é apenas um desses desafios,

colocado perante o Estado na sua forma ortodoxa, e reflete sua ineficácia

em combater a problemática global.453 Isto acontece porque a

[d]esregulamentação das forças de mercado e a submissão

do Estado à globalização “negativa” unilateral (ou seja,

globalização dos negócios, do crime ou do terrorismo, mas

não das instituições políticas e jurídicas capazes de controlá-

los) precisam ser pagas, e diariamente, na moeda da

ruptura e devastação social.454

Como consequência, as ferramentas do Estado para combater esses males

não são mais eficazes. A expressão “Guerra ao Terror” ou qualquer outra

expressão semelhante que indique uma guerra que não pode ser vencida

militarmente, mas economicamente, faz parte dessa conjuntura

econômica global que procura ganhar tirando proveito deste tipo de

desastre.

Enquanto alguns veem o terrorismo do fundamentalismo islâmico

ativo como resposta à injustiça criada pela globalização, para Chomsky

(2002), bin Laden e sua rede “já causaram um enorme dano às

populações pobres e oprimidas da região, que não são levadas em

consideração pelas redes terroristas”.455 Porém, os terroristas aproveitam

“a reserva de ódio, medo, e desesperança” que esses pobres e oprimidos

apresentam, para ganhar sua simpatia ou até mesmo apoio.

A nosso ver, enquanto o terrorismo deve ser combatido em todas

suas formas, é preciso examinar o conjunto dos fatos que influenciam o

crescente nível de violência, e que podem ir ao ponto de promover o

terrorismo. Procurar combater as verdades fortes de fundamentalistas-

453 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. p. 165. 454 Ibid., pp. 175–176. 455 CHOMSKY, Noam. 11 de setembro. Trad. Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2002. p. 30.

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terroristas com base de outras verdades fortes que têm como objetivo

manter a dominação política e econômica só pode provocar ainda mais

violência. Portanto, o terrorismo deve ser entendido no contexto em que

os diferentes fatores econômicos, políticos, culturais, sociais e religiosos

interagem. O combate ao terrorismo precisa começar pelas suas raízes e

pelo contexto em que ele surge.

2.4.2. O terrorismo suicida do fundamentalismo religioso ativo.

O terrorismo suicida, apesar de não ser um fenômeno novo,

aumentou de forma drástica nos últimos anos ao redor de mundo. Depois

que a organização terrorista islâmica al-Qaeda assumiu a responsabilidade

pelos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, o terrorismo suicida

religioso ganhou destaque mundial, deslocando as atenções para o

fundamentalismo religioso, o terrorismo religioso e, às vezes, até para a

própria ideia de religião.

O uso da religião como cobertura para justificar o terrorismo suicida

e para a elevação dos suicidas a mártires não é fácil sem o contexto de

ocupação estrangeira. Segundo Pape (2006), uma “organização terrorista

deve, normalmente, superar as arraigadas normas religiosas e sociais, a

fim de persuadir suas comunidades a apoiar as campanhas de suicídio”.456

Sem a ocupação estrangeira como ameaça, os grupos não teriam uma das

principais justificativas para seus atos.

A nosso ver, ideia de mártir não está restrita à religião, e

acompanhou o nacionalismo secular até os dias de hoje. A paixão que os

terroristas-fundamentalistas religiosos têm apresentado na defesa da

religião até a morte, encontra seu contraponto no nacionalismo, em que

os soldados pagam com suas vidas para defender o Estado. Porém, a

456 “[…] a terrorist organization must typically overcome deep religious and social norms

in order to persuade their communities to support suicide campaigns.” (PAPE, Robert A.

Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism. New York: Random House,

2006. p. 83.)

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grande diferença é que matar os inocentes, muitas vezes civis

desarmados, de propósito e em nome da sua ideologia ou causa, é um ato

covarde de terrorismo. O ato desmoraliza o terrorista e a causa que ele

alega defender.

Os terroristas religiosos não se matam para servir a Deus, seu país

ou o povo; pelo contrário, tudo é feito para obter o poder indiscriminado

da morte como arma numa luta política. Quem morre nas mãos deles não

precisa saber o porquê, pois o desejo dos terroristas é usar sua morte

como arma contra os vivos, e não como fim em si. Bauman (2008)

observa o seguinte:

Nós, e só nós entre os seres conscientes, somos obrigados a

viver nossas vidas inteiras com esse conhecimento. E só nós

demos à morte um nome — colocando em curso um cortejo

virtualmente infinito de conseqüências [sic] que se mostram

tão inevitáveis quanto eram (e ainda são) imprevistas.457

A morte na modernidade foi incorporada à vida cotidiana, deixando de ser

uma passagem para a imortalidade, mas sim o medo de ser excluído. Os

terroristas fundamentalistas religiosos procuram anular o outro não

somente na terra, mas também na pós-vida. Esta dimensão divina faz do

terrorismo religioso o mais grave.

O terrorismo suicida, segundo Pape (2006), é quatorze vezes mais

fatal que qualquer outro. Todos esses grupos são letais e tentam matar o

máximo número de pessoas nos seus ataques. Porém, atos de ataques

suicidas como dos kamikazes japoneses da Segunda Guerra Mundial,

normalmente não são considerados terroristas porque seus atos foram

planejados pelo governo e direcionadas contra as tropas americanas de

invasão, para forçá-las a negociar o resultado da guerra.458

457 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. p. 70. 458 Cf. PAPE, Robert A. Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism. New

York: Random House, 2006. pp. 13; 35.

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Na sua análise e de acordo com as estatísticas, Pape (2006) afirma

que “há pouca ligação entre o terrorismo suicida e o fundamentalismo

islâmico, ou qualquer outra religião do mundo”.459 O objetivo desses

grupos, apesar das suas formações religiosas, é secular e estratégico. Eles

procuram

[o]brigar as democracias modernas a retirar as forças

militares do território que os terroristas consideram ser sua

pátria. Raramente, a religião é a causa principal, embora,

muitas vezes, seja usada, por organizações terroristas, como

uma ferramenta de recrutamento e em outras ações a

serviço de um objetivo estratégico mais amplo.460

Há uma relação direta entre o terrorismo suicida moderno e a ocupação

militar estrangeira. Há também incidentes isolados que não se encaixam

nessa categoria de estratégia moderna de libertação nacional.

Os ataques por terroristas islâmicos, segundo Pape (2006), fazem

alguns acreditarem que o problema é restrito ao fundamentalismo

islâmico por abraçar uma ideologia radical antiamericana e antiocidental,

ignorando as divisões e diferenças ideológicas entre os grupos

fundamentalistas. Isso pode criar confusões políticas, ao se entender al-

Qaeda como a base de todos os ataques terroristas suicidas.461

Há aqueles que acreditam que futuros ataques só poderão ser

evitados por meio da transformação completa das sociedades árabes-

muçulmanas, uma postura que facilitou formar a opinião pública para a

invasão do Iraque, por exemplo. A estratégia é equivocada porque,

segundo Pape (2006), o “fundamentalismo islâmico não é a principal

459 “[T]here is little connection between suicide terrorism and Islamic fundamentalism, or

any one of the world’s religion.” (PAPE, Robert A. Dying to Win: The Strategic Logic of

Suicide Terrorism. New York: Random House, 2006. p. 4.) 460 “[T]o compel modern democracies to withdraw military forces from territory that the

terrorists consider to be their homeland. Religion is rarely the root cause, although it is

often used as a tool by terrorist organizations in recruiting and in other efforts in service

of the broader strategic objective.” (Ibid., p. 4.) 461 Cf. Ibid., p. 106.

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causa do terrorismo suicida”.462 A religião pode servir como base

ideológica para esses ataques. Porém, as estatísticas demonstram que o

terrorismo suicida, mesmo quando cometido por grupos fundamentalistas

religiosos, normalmente ocorre por outros motivos além da religião. E

mesmo que o fundamentalismo islâmico receba maior atenção da mídia

ocidental, apenas metade dos ataques terroristas entre 1980 e 2003

foram ligadas a ele.463

Não obstante, para Juergensmeyer (2003), “[t]odo terrorismo é

violento, e sua violência pode ser cometida por razões simbólicas e

estratégicas”.464 “O terrorismo pode ter outras bases ideológicas não

religiosas, mas, na espiritualização da violência, portanto, a religião deu

ao terrorismo um poder extraordinário.“465 Esse poder se torna ainda mais

perigoso quando associado ao nacionalismo.

Pape afirma que, “uma vez que as identidades nacionais e religiosas

muitas vezes se sobrepõem, distinguir o principal motivo de certas

campanhas suicidas terroristas pode parecer demasiadamente difícil”.466

Nesse sentido, a indefinição permite que os terroristas se aproveitem

tanto do sentimento religioso quanto do nacional, para obter o máximo de

apoio para os seus ataques. Afinal, ao juntar a identidade religiosa à

nacional como justificativa para seus ataques, os terroristas não atacam

necessariamente os mesmos “inimigos”, e pelos mesmos motivos que eles

declaram. Um exemplo desses ataques suicidas ocorreu contra a igreja de

Nossa Senhora da Salvação, em Bagdá, Iraque, durante a missa de

462 “Islamic fundamentalism is not the main cause of suicide terrorism.” (PAPE, Robert A.

Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism. New York: Random House,

2006. p. 241.) 463 Cf. Ibid., p. 17. 464 “All terrorism is violent, and its violence may be performed for symbolic as well as

strategic reasons.” (JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global

Rise of Religious Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 220.) 465 “[I]n spiritualizing violence, therefore, religion has given terrorism a remarkable

power.” (Ibid., p. 221.) 466 “[S]ince national and religious identities often overlap, distinguishing the main motive

for particular suicide terrorist campaigns may seem excessively difficult.” (PAPE, op. cit.,

p. 46.)

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domingo em 31 de outubro de 2010, resultando na morte de pelo menos

58 pessoas de minoria cristã iraquiana.467

Os executores do ataque suicida contra a igreja, que são membros

do Estado Islâmico do Iraque — uma organização terrorista ligada à al-

Qaeda —, consideram os cristãos iraquianos como parte da “Cruzada” das

tropas de invasão estadunidense-ocidental contra a terra árabe-

muçulmana. Eles descartam os cristãos iraquianos como cidadãos,

considerando-os como parte das forças invasoras, mesmo não havendo

qualquer evidência de colaboracionismo.

Os ataques terroristas no Iraque da pós-invasão, devastado pelas

guerras e conflitos sectários e com um governo fraco e dividido entre

diferentes grupos religiosos, atingiu também a maioria muçulmana da

população, divida entre sunitas e shiitas. Segundo Pape,

[o] terrorismo suicida no Iraque não é movido pela religião,

mas por um objetivo estratégico claro: impedir o

estabelecimento de um governo que esteja sob o controle

dos Estados Unidos.468

Mesmo assim, na ausência de um Estado secular forte, a religião é

utilizada como fonte de poder tanto pelos grupos políticos quanto pelos

terroristas que procuram utilizá-lo para legitimar suas atrocidades contra

os inocentes. Embora no momento não pareça, esses ataques podem

provocar uma guerra civil entre os dois maiores grupos religiosos no

Iraque: os shiitas e os sunitas.

Segundo Pape (2006), há diferenças entre as identidades do

ocupante estrangeiro e do ocupado. Quanto mais o ocupante é visto como

467 Cf. SHADID, Anthony. Church Attack Seen as Strike at Iraq’s Core. New York Times.

Disponível em: <http://www.nytimes.com/2010/11/02/world/middleeast/02iraq.html>.

Acesso em: fev./2012. 468 “[S]uicide terrorism in Iraq is driven not by religion, but by a clear strategic objective:

to prevent the establishment of a government under the control of the United States.”

(PAPE, Robert A. Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism. New York:

Random House, 2006. p. 255.)

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estranho, mais isto provoca o medo dele. As diferenças religiosas, nesse

caso, se tornam essenciais nos ataques terroristas suicidas quando a

religião do ocupante é diferente daquela do ocupado, porque as diferenças

religiosas são mais exclusivas que as diferenças nacionais. As pessoas

normalmente podem ter duas ou mais nacionalidades, mas raramente

serão aceitas em mais de uma religião ao mesmo tempo.469

Para Pape (2006), apesar de serem vistos como monstros

sangrentos, os terroristas suicidas se assemelham mais a burocratas que

procuram fazer o seu trabalho da melhor forma possível. Mas, para isso,

eles quebram dois tabus sociais: matar os inocentes e matar a si

mesmos.470 Os terroristas-fundamentalistas suicidas não são grupos

criminosos comuns ou grupos religiosos isolados da comunidade nacional

a qual eles pertencem, mas têm o apoio das comunidades, uma vez que

“possuem objetivos nacionalistas legítimos, especialmente os ligados à

libertação da ocupação estrangeira”.471

Mesmo assim, Pape (2006) acredita que não são todas as ocupações

estrangeiras que provocam ataques terroristas suicidas. Segundo ele, a

maior parte do terrorismo suicida apresenta seus próprios objetivos

políticos, na forma de punição contra o governo, para alcançar suas

exigências, ou contra as forças de ocupação, visando a sua retirada

daquele local que consideram sua terra pátria. E mesmo que suas chances

de mudar as atitudes do Estado atacado sejam poucas, eles conseguem

criar uma ameaça de terror perene na forma de uma violência que o

Estado não controla.

Se por um lado Pape analisa os ataques terroristas suicidas aos

grupos de terroristas islâmicos como uma reação contra as invasões

469 Cf. PAPE, Robert A. Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism. New

York: Random House, 2006. pp. 86-87. 470 Cf. Ibid., pp. 217-218. 471 “[P]ursuing legitimate nationalist goals, especially liberation from foreign occupation.”

(Ibid., p. 22.)

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estrangeiras, por outro Abu-Rabi (2005)472 acredita que “precisamos fazer

uma análise cuidadosa sobre as raízes da violência nas sociedades árabes

e muçulmanas contemporâneas”.473 Segundo ele, os grupos que pregam a

violência são produto de certos contextos políticos, econômicos e sociais,

contextos que têm o papel de transformar esses grupos em promotores

da violência contra o Estado.

Segundo Abu-Rabi (2005), os movimentos do fundamentalismo

islâmico se dividem em três: o pré-colonial, como no caso do Wahabismo;

o colonial, como o Movimento de Irmandade Muçulmana no Egito; e o

pós-colonial, como a Jihad Islâmica e Gamaa al-Islamiyya também no

Egito. Os dois últimos se formaram dentro da prisão egípcia entre os anos

de 1960 e 1970, acreditando no uso da violência para derrubar o Estado e

estabelecer um regime islâmico. Pape acredita que a organização

terrorista de al-Qaeda combate o que seus líderes chamam de “o

colonialismo disfarçado”.

Muitas organizações começaram seus movimentos de resistência

sem missões de terrorismo suicida, e depois mudaram suas políticas

diante da percepção de um estrago maior e maior eficácia do terrorismo

suicida, em comparação com os métodos tradicionais. Por isso, para Pape

(2006), os grupos terroristas optam por utilizar os ataques suicidas como

“extensão de uma estratégia mais ampla de guerra de guerrilha”,474 e não

como escolha definida entre ataques terroristas suicidas e não suicidas. A

política dos terroristas, sejam eles religiosos ou nacionalistas, segue

objetivos claros em relação ao Estado, mas o que os distingue é sua

472 Professor de Estudos Islâmicos e Relações Cristãs-Muçulmanas — Hartford Seminary. 473 ABU-RABI, Ibrahim M. Introdução. In: AL-ZAYYAT, Montasser. Os Caminhos da Al-

Qaeda: a história do braço direito de Bin Laden. Trad. Eduardo Rado. São Paulo: Outras

Palavras, 2005. p. 25. 474 “[A]n extention of a broader guerilla warfare strategy.” (PAPE, Robert A. Dying to

Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism. New York: Random House, 2006. p. 93.)

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crença na eficácia da violência em alcançar os objetivos que a sociedade

quer atingir.475

Para a organização terrorista al-Qaeda, a ambição dos Estados

Unidos em controlar os países árabes-muçulmanos pelo apoio aos seus

governos opressores é uma tentativa para manter o controle político

desses países através de uma aliança do tipo “Cruzada-Zionista”. Essa

comparação, segundo Pape (2006), é comum no mundo Islâmico. O então

chefe de al-Qaeda, Osama bin Laden (1957-2011), comparava a

“Cruzada-Zionista” às “Cruzadas Cristãs” de século XI para reconquistar a

Palestina, a Terra Santa, com os ataques dos Estados Unidos conduzidos

no Oriente Médio, na atualidade.476

Por isso, bin Laden preferia chamar a al-Qaeda de “Frente

Internacional para Jihad contra os Judeus e Cruzados”. Zayyat lembra que

a organização, no seu início em fevereiro de 1998,

emitiu uma fatwa (ordem ou proclamação muçulmana

relacionada a um assunto religioso) dizendo que todos os

muçulmanos deveriam matar americanos, fossem militares

ou civis, e tomar seu dinheiro.477

Essa fatwa foi marcante porque ela levou à estratégia de luta de se

combater inimigos à mão para atingir a inimigos distantes.

Segundo Zayyat (2005), Ayman al-Zawahiri “como muitos outros

jovens egípcios e árabes da sua época, foi duramente atingido pelo

trauma da derrota de 1967 [na Guerra dos Seis Dias]”.478 A derrota não

significava somente a perda da guerra, mas a queda de símbolos como

Gamal Abdel Nasser (1918-1970), o então presidente egípcio, que era

visto como um grande líder nacionalista e pan-arabista, embora para

475 Cf. PAPE, Robert A. Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism. New

York: Random House, 2006. pp. 43-44. 476 Cf. Ibid., pp. 117-118. 477 AL-ZAYYAT, Montasser. Os Caminhos da Al-Qaeda: a história do braço direito de

Bin Laden. Trad. Eduardo Rado. São Paulo: Outras Palavras, 2005. p. 68. 478 Ibid., p. 34.

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Zayyat ele não passasse de um tirano em uma época de supressão

política. A partir dessa derrota do nacionalismo, os movimentos de Jihad

começaram a crescer, cada vez mais fortes.

Ayman al-Zawahiri, o médico egípcio que era o homem número dois

da al-Qaeda, se tornou número um após a morte de saudita bin Laden. Os

dois são de origem aristocrática. Para Zayyat (2005), “a pobreza pode

realmente levar à violência, mas não é a pobreza que leva à ideologia

islâmica”.479 Os terroristas suicidas têm origens diversas, porém a pobreza

não parece ser a motivação desses ataques. Mesmo assim, um dos

motivos para Zawahiri juntar sua organização Jihad Islâmica Egípcia à de

bin Laden foi a falta de recursos financeiros para manter sua organização.

Zawahiri, porém, insistiu em deixar a liderança para bin Laden.

As mudanças para Zawahiri poderiam vir através de um golpe

militar que derrubaria o Estado para estabelecer um governo de acordo

com a xariá. Segundo Zayyat,

[O] modo de pensar de Zawahiri pode nos explicar algo

sobre o estilo de governo do movimento Talibã, estabelecido

no Afeganistão depois de tomar o controle da maioria do

território afegão em 1996.480

Tal modelo de governo, para Zayyat, é muito semelhante do ponto de

vista de Zawahiri. É um governo que proibiu o álcool, a vida noturna e a

jogatina, além de controlar a mídia e a TV. O governo do Talibã chegou a

obrigar as mulheres a cobrir o rosto, e os homens deveriam ter barba.

Segundo Zayyat (2005), os movimentos de fundamentalismo

islâmico que promovem a violência são poucos, mas os erros de Zawahiri

e a decisão de atacar os Estados Unidos os colocaram em grande perigo.

O assassinato de Sadat em 1981 havia colocado os membros da Jihad

Islâmica e Gamaa al-Islamiyya em uma situação difícil. Porém depois dos

479 AL-ZAYYAT, Montasser. Os Caminhos da Al-Qaeda: a história do braço direito de

Bin Laden. Trad. Eduardo Rado. São Paulo: Outras Palavras, 2005. p. 44. 480 Ibid., p. 53.

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ataques de 11 de setembro de 2001, todos os movimentos islâmicos

começaram ser vistos mundialmente como extremistas ou terroristas.481

Depois dos ataques, a al-Qaeda foi criticada por grupos fundamentalistas

islâmicos que não concordavam com suas ideias.

Embora Zayyat (2005) acredite que “estar contra os Estados Unidos

é um dever islâmico”,482 ele preferiu seguir o caminho pacífico de dawa,

pois, segundo ele, “uma estratégia pacífica não necessariamente significa

objetivos fracos”.483 Zayyat explica o que ele quer dizer com isso. Para

ele, o Islã é uma questão de escolha ideológica e religiosa, e uma

expressão de identidade. Assim, ele aceita tolerar as opiniões diferentes,

mas sempre pensando no Islã como a identidade religiosa forte dominante

nas terras de maioria muçulmana.

De acordo com Zayyat (2005), depois dos ataques de 11 de

setembro, os Estados Unidos começaram a combater grupos

fundamentalistas islâmicos, quer apoiassem a al-Qaeda ou não. Os

ataques tiveram um impacto político e “deram margem a uma nova

modalidade de globalização: a globalização da segurança”.484 Segundo

Zayyat, a repercussão dos ataques no Ocidente acabou ligando a violência

da al-Qaeda ao Islã.

O problema, segundo Zayyat (2005), é que cada um dos líderes dos

movimentos fundamentalistas islâmicos acha que a sua voz é a única.

Para Zayyat, “[a] principal característica de uma geração derrotada é que

ela insiste em apenas uma interpretação do Alcorão e da Sunna [Tradições

do Profeta]”.485 Essa postura, segundo ele, não pode durar para sempre,

por falhar em acompanhar as constantes mudanças no mundo.

481 Cf. AL-ZAYYAT, Montasser. Os Caminhos da Al-Qaeda: a história do braço direito de

Bin Laden. Trad. Eduardo Rado. São Paulo: Outras Palavras, 2005. pp. 16-17; 20. 482 Ibid., p. 96. 483 Ibid., p. 79. 484 Ibid., p. 109. 485 Ibid., p. 118.

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180

O que se vê no terrorismo de base fundamenta religiosa é a adoção

de uma ideologia que nega o poder do Estado, por um lado, e que assume

o poder de Deus, por o outro. Matar o outro se torna justo e tem

permissão divina. Com isto, ele se apresenta como um exemplo extremo

do pensamento forte como verdade única, absoluta e que se manifesta da

maneira mais violenta.

2.4.3. A Mídia e o fator Medo

A complexidade da vida moderna apresenta novos desafios que não

existiam no começo do Iluminismo. As transformações que a modernidade

trouxe não somente modificaram nossa percepção do medo, mas também

introduziram novos motivos para sua existência. Nas palavras de Bauman

(2008),

[a] vida inteira é agora uma longa luta, e provavelmente

impossível de vencer, contra o impacto potencialmente

incapacitante dos medos e contra os perigos, genuínos ou

supostos, que nos tornam temerosos.486

Esses medos atingem a todos num mundo em que os perigos parecem

mais próximos do que nunca. Nesse sentido, a mídia tem papel

preponderante na difusão de medos reais ou presumidos, funcionando

com espada de dois gumes, às vezes independentemente do seu país de

difusão.

A mídia tem papel importante também na criação de imagens da

sociedade, algo que pode ser aproveitado. Segundo Juergensmeyer

(1994), por exemplo,

[o]s meios de comunicação globais, de forma exagerada,

trouxeram aos líderes religiosos em países não ocidentais a

486 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. p. 15.

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181

mensagem de que existe um profundo mal-estar nos

Estados Unidos causado pelas carências sociais.487

A identidade do outro é generalizada, e, por outro lado, a distorção que os

fundamentalistas religiosos atribuem ao Outro parte da sua própria forma

de enxergar o mundo, na qual tudo passa pela religião como identidade

forte e única. Essa postura faz com que eles vejam os demais como

ameaça.

Segundo Bauman (2008), os medos são tratados e transmitidos

através da mídia, chocando nossa velha distinção entre o “bem” e o “mal”.

Portanto, “[d]e modo geral, as relações humanas não são mais espaço de

certeza, tranqüilidade [sic] e conforto espiritual. Em vez disso,

transformaram-se numa fonte prolífica de ansiedade”.488

Esta situação deixa-nos aturdidos para definir quem são nossos

amigos ou inimigos eternos, que podem ser trocados instantaneamente. O

mal pode estar em qualquer lugar, e a retórica alarmista da mídia assume

essa perspectiva de maneira acrítica.

O telespectador, que se sente mais seguro atrás da tela da sua

televisão, pois ela o separa da violência transmitida, é relembrado sempre

da existência do perigo lá fora. Como afirma Bauman,

[o] fato de tais medos não serem absolutamente imaginários

pode ser confirmado pela autoridade dominante da mídia,

que defende — visível e tangivelmente — uma realidade que

não se pode ver nem tocar sem a ajuda dela.489

487 “The global mass media in their exaggerated way have brought to religious leaders in

non-Western nations the message that there is a deep malaise in the United States

caused by the social failures.“ (JUERGENSMEYER, Mark. The New Cold War?: Religious

Nationalism Confronts the Secular State. Berkeley: University of California Press, 1994.

p. 23.) 488 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. p. 93. 489 Ibid., p. 29.

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Novamente, o papel da televisão é basilar visto que o impacto da imagem

é mais forte que as palavras escritas ou faladas, ou porque nós

acreditamos que as imagens não podem mentir.

A nosso ver, muitas pessoas assistem a canais de televisão que

transmitem as palavras dos líderes religiosos, mas não são praticantes.

Para Vattimo (2007), “há uma confusão entre tecnologia moderna e as

afiliações religiosas reais ou falsas”.490 O telespectador não precisa nem

participar fisicamente no ritual religioso, pois há alguém que faz tudo por

ele.

Nós não precisamos fazer mais nada além de assistir a televisão;

enquanto alguém reza, chora, pratica esporte, coloca-se em perigo ou

mesmo se mata. Nós acreditamos que estamos participando da atividade,

mesmo à distância. Segundo Žižek (2008), no caso de algumas formas de

fé, isto ocorre porque transferimos nossa crença ou fé para o Outro, por

meio de uma construção de imagens na comunidade virtual da qual

participamos. E que esse Outro, que possui uma fé forte, faça o trabalho

por nós.491

A televisão permite ao telespectador identificar-se com as

informações fora do seu contexto, segundo Hedges (2008a), porque

[ela] desestimula a comunicação real. Seus quadros e sua

movimentação rápida, seu uso constante de imagens que

mexem com nossa emoção e sua súbita mudança de um

tema para outro não correlacionado comprometem a lógica e

a razão de forma estarrecedora. Ela também nos faz sentir

bem, além de prometer que nos protegerá e nos salvará.

Promete ainda nos levantar e nos faz vibrar de emoção.492

490 “There is a mixture between modern technology and real or pretended religious belongings.” (VATTIMO, Gianni. A Prayer for Silence: Dialogue with Gianni Vattimo. In:

CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia

University Press, 2007. p. 104.) 491 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008. p. 97. 492 “Television discourages real communication. Its rapid frames and movement, its

constant use of emotional images, its sudden shift from one theme to an unrelated

theme, banish logic and reason with dizzying perplexity. It, too, makes us feel good. It

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Na frente da tela, não há limites entre a ficção e a realidade, e

nossos sentimentos também se confundem entre medo, tranquilidade,

tristeza e alegria.

Mesmo que o uso de mídias como a televisão seja uma ferramenta

eficaz para a construção do pensamento, é importante lembrar, como

explica Arendt (2011), que o seu uso nunca é suficiente para intimidar o

povo:

Os homens podem ser “manipulados” por meio da coerção

física, da tortura ou da fome, e suas opiniões podem formar-

se arbitrariamente em função da informação deliberada e

organizadamente falsa, mas não por meio de “persuasores

ocultos”, tais como a televisão, a propaganda ou quaisquer

outros meios psicológicos em uma sociedade livre.493

O efeito da mídia como ferramenta não pode substituir o uso da violência

pelos terroristas. O uso da mídia como ferramenta para espalhar o terror

e intimidar o povo perde seu efeito se não for acompanhado pelos ataques

terroristas.

Para nós, uma vez que os grupos terroristas de afiliação religiosa

não têm o poder e a legitimidade de matar como os governos têm, eles

procuram tornar seus ataques imprevisíveis, para provocar o máximo de

medo. Quando ações do terrorismo se apóiam em símbolos religiosos, os

terroristas procuram justificar os massacres cometidos em nome da

religião. Mas mesmo com seus objetivos políticos alcançados, com o uso

da mídia o terrorismo religioso acaba ligando as imagens da violência à

religião que ele declara defender. Isso faz alguns acreditarem que a

religião é a fonte lógica e única desse tipo de crime.

too, promises to protect and save us. It, too, promises to lift us up and thrill us.”

(HEDGES, Chris. American Fascists: the Christian Right and the War on America. New

York: Free Press, 2008. p. 177.) 493 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p.

45.

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Crimes de assassinato ocorrem regularmente no mundo inteiro.

Por isso o pânico em torno do terrorismo talvez fosse bem menor, sem a

mídia para espalhar o medo. Para Juergensmeyer (2003), “o que faz um

ato de terrorismo é o fato de alguém estar aterrorizado por ele”.494 Sem

os espectadores horrorizados, o terrorismo não terá sentido. Portanto, os

terroristas estão sempre ligados ao modo como seus atos são

representados pela mídia, principalmente porque o terrorismo se tornou

mais notável nos últimos anos através da cobertura global da mídia.

Esse medo esconde outro ainda maior, que a humanidade já

testemunhou através dos massacres em massa no século XX, realizados

com o avanço tecnológico. Segundo Bauman,

A humanidade tem agora todas as armas necessárias para

cometer o suicídio coletivo, seja por vontade própria ou falha

– para aniquilar a si mesma, levando o resto do planeta à

perdição.495

O perigo do uso das bombas nucleares fez Hedges concluir que “o

terrorismo nuclear é o resultado lógico de uma guerra industrial

moderna”.496 A possibilidade de terroristas obterem e utilizarem armas de

destruição em massa é total e legitimamente assustadora.

Mesmo assim, a arma mais poderosa dos terroristas é o próprio

medo. Durante a Guerra ao Terror, a mídia foi uma ferramenta importante

para servir ao Estado. Segundo Bauman (2008), sessenta anos antes

dessa “Guerra ao Terror”, que prometia combater o medo do terrorismo

por tempo indeterminado, o presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-

1945) declarava a “Guerra aos Medos” para garantir as liberdades e

combater a pobreza e a perseguição religiosa, sugerindo a continuidade

494 “What makes an act of terrorism is that someone is terrified by it.” (JUERGENSMEYER,

Mark. Terror in the Mind of God: The Global Rise of Religious Violence. Berkeley:

University of California Press, 2003. p. 141.) 495 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. p. 96. 496 “[N]uclear terrorism is the logical outcome of modern industrial warfare.” (HEDGES,

Chris. War is a Force that Gives us Meaning. New York: Anchor Books, 2003. p. 28.)

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de uma retórica caracteristicamente americana em torno de “guerra” e

“temor”.497

Para Bauman (2008), “o principal e mais poderoso produto da

guerra travada contra os terroristas acusados de fomentar o medo tem

sido, até agora, o próprio medo”.498 Essa guerra gerou também limitações

às liberdades pessoais, a condenação à prisão ou até a morte dos

suspeitos de terrorismo, sem que se seguisse as leis nacionais ou

internacionais. E o medo das armas de destruição de massa foi a

justificativa que os Estados Unidos utilizaram para invadir o Iraque.

A nosso ver, depois dos ataques de 11 de setembro, por terroristas

afiliados à organização conhecida como al-Qaeda, a reprodução das

imagens de violência, repetida milhares de vezes nas telas de televisões

mundo afora, aumentaram as repercussões do medo. Apesar de

condenação de muitas autoridades religiosas no mundo islâmico aos

ataques suicidas — tanto quanto contra o Islã por matar inocentes —, os

danos e as consequências gerados pelos ataques foram drásticos.

Além dos objetivos políticos, Juergensmeyer (2003) afirma que os

ataques são mais um tipo de “mensagem simbólica”, na forma de um

ritual ou evento dramático sagrado:499

Assim como um ritual religioso ou teatro de rua, estes são

dramas fabricados para impactar os diversos públicos que

eles afetam. Aqueles que testemunham a violência —

mesmo à distância, via mídia — são, portanto, uma parte do

que se sucede.500

497 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2008. pp. 203-204. 498 Ibid., p. 196. 499 Cf. JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global Rise of Religious

Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. pp. 125–126. 500 “[L]ike religious ritual or street theater, they are dramas designed to have an impact

on the several audiences that they effect. Those who witness the violence – even at a

distance, via the news media – are therefore a part of what occurs.” (Ibid., p. 126.)

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Simultaneamente, eventos são multifacetados por apresentarem

diferentes significados a diferentes pessoas, uma vez que as palavras têm

seu poder não somente de transmitir a realidade, mas também de formá-

la.

Nesse espetáculo de terror, segundo Juergensmeyer (2003), o

terrorismo ganha um status de celebridade, dando às suas ações a ilusão

de importância. O objetivo desse espetáculo é cumprido quando seus

executores são vistos com credibilidade, como pessoas que estão prontas

para matar e morrer por causa da sua fé.501 E como qualquer espetáculo,

o ataque terrorista é rápido e chamativo — e quanto mais rápidos são os

perigos, maior a nossa demanda por soluções mais rápidas, fáceis e

instantâneas.

Para Vattimo (2007), o mundo tornou-se um sonho. A mídia nos

coloca num mundo de realidade televisiva, e o que vemos na televisão

representa uma verdade forçada:

Há uma espécie de falso universalismo promovido pela

mídia, o qual é muito contraditório. As pessoas estão muito

mais interessadas no espetáculo religioso do que no

engajamento propriamente dito. [...] Por meio das

mitologias criadas pela televisão, a ameaça é de

reconstruirmos uma espécie de religiosidade primitiva, ou

uma forma de superstição — um espetáculo religioso,

contrário à devoção.502

Em linha com o alerta de Nietzsche, Vattimo (2007) enfatiza que,

“se há alguma coisa que lhe parece ser absolutamente evidente, você

deve desconfiar dela. Provavelmente, é alguma brincadeira que incutiram

501 Cf. JUERGENSMEYER, Mark. Terror in the Mind of God: The Global Rise of Religious

Violence. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 128. 502 “[T]here is a sort of false universalism promoted by the media, which is very

contradictory. People are more interested in religious show than they are in religious

engagement. […] The threat is that, with the means of mythologies created by television,

we reconstruct a sort of primitive religiosity, a form of superstition — a religious show in contrast to devotion.” (VATTIMO, Gianni. A Prayer for Silence. In: CAPUTO, John D;

VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia University Press, 2007.

p. 96.)

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na sua cabeça.”503 Nossas certezas podem ser o resultado das influências

geradas por nossas famílias, sociedade, instituição religiosa, educacional

ou, finalmente, pela mídia. De qualquer modo, são essas certezas fortes

que alimentam muitas das posturas fundamentalistas por trás do

terrorismo e das reações exacerbadas a ele.

Conclusão do Capítulo:

Discutimos neste capítulo casos de pensamento fundamentalista,

definido como originado de um pensamento de verdades fortes, na teoria

política, na teoria econômica, no nacionalismo religioso, no terrorismo e

nos excessos do Estado no combate ao terrorismo ou apoiando-se nele

para a realização de projetos pouco transparentes. Em todos esses casos,

detectamos o pensamento fundamentalista como base da violência gerada

contra o Outro.

Analisamos a teoria de Huntington (1998), em que ele afirma que as

identidades culturais e religiosas servem como terreno para os futuros

conflitos no mundo pós-Guerra Fria. Seguimos a crítica de Said (2003,

2007a) à teoria de Huntington: ela entende as civilizações a partir de uma

visão “monolítica e homogênea”, e que enfatiza a divisão entre “nós” e

“eles”. Este tipo de pensamento é também um pensamento

fundamentalista.

Analisamos o pensamento fundamentalista também através da

doutrina do choque, de acordo com o pensamento de Klein (2008). As

situações de instabilidade e os desastres que atingem um país são

aproveitadas para aplicação de medidas econômicas agressivas de livre

mercado, que não seriam aceitáveis em condições normais. A crença no

503 “if there is anything that appears to you to be absolutely self-evident, you must

distrust it. It is probably some joke that has been inserted in your brain.” (VATTIMO, Gianni. Toward a Nonreligious Christianity. In: CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After

the Death of God. New York: Columbia University Press, 2007. p. 44.)

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livre mercado como uma verdade perfeita e que pode ser aplicada em

qualquer contexto é mais um exemplo de pensamento fundamentalista.

Discutido também a questão do nacionalismo religioso,

principalmente a partir do pensamento de Juergensmeyer (2003), Aslan

(2010), de Maalouf (2003). Enquanto o nacionalismo religioso é visto

como solução para os desafios que o nacionalismo secular enfrenta

atualmente, a combinação que ele realiza de duas verdades fortes é

problemática. Esta combinação se torna uma forma de pensamento

fundamentalista que prejudica tanto a religião como a fé, além do

nacionalismo na sua forma democrática.

Por fim, discutimos a questão de terrorismo como a espécie mais

grave de pensamento fundamentalista. O terrorismo, como forma de

violência, não precisa de um pensamento forte para ocorrer, mas quando

parte desse tipo de pensamento ele acaba sendo desastrosa. Discutimos

também a “Guerra ao Terror” depois dos ataques terroristas de 11 de

Setembro. Por fim, analisamos o fator do medo ligado ao terrorismo e ao

papel da mídia. Para isso, seguimos o pensamento de diferentes autores,

principalmente de Chomsky (2004), Juergensmeyer (2003), Hedges

(2003), e Bauman (2008).

Concluímos que, quando uma verdade é vista como perfeita e

adotada como a única a ser aplicada em qualquer contexto, ela se coloca

em confronto com as outras verdades. A violência resultante, que ocorre

em nome do ideal, pode se manifestar em diferentes níveis: na política,

na teoria econômica, no nacionalismo, na religião, e no terrorismo. Todos

esses fatores que carregam certo pensamento fundamentalista interagem

em diferentes contextos dentro do âmbito (pós-)moderno. O confronto

gerado entre diferentes verdades fortes ocorre em diversos níveis, o que

exige uma forma de pensamento novo para diminuir a violência provocada

por elas.

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CAPÍTULO 3 – Além do pensamento fundamentalista

Depois que analisamos no segundo capítulo exemplos de confrontos

que se manifestam em diferentes formas no pensamento fundamentalista,

discutimos neste último capítulo alguns modos de evitar tais confrontos,

como propostas para redução da violência. Nossa discussão se baseia

principalmente no pensamento de Vattimo (1999, 2004a, 200b, 2011)

sobre o fim da metafísica, o que Vattimo interpreta como o fim da verdade

na sua forma forte e violenta. Isto não implica, porém, o fim da noção da

verdade, mas em um processo de enfraquecimento em que as verdades

“fracas” são verdades interpretadas, sem que haja fragilidade dos seus

conceitos. Uma verdade “fraca” é uma verdade construída a partir de

certo contexto, o que não faz dela menos “verdadeiras” em comparação

com as verdades fortes, que são verdades violentas.

Discutimos na primeira parte desse capítulo a interpretação que

Vattimo (1999, 200b) faz do cristianismo. Demonstramos que o conceito

da interpretação da verdade não significa aceitar qualquer ideia vaga ou

contraditória, mas sim um ato de responsabilidade. Desse modo, esta

interpretação que Vattimo faz de cristianismo está alinhada com o

conceito de fim da verdade na sua forma metafísica. Este processo

representa uma forma de secularização sem exclusão da religião.

No segundo momento do capítulo faremos a ligação entre o fim da

verdade na sua forma metafísica, de acordo com Vattimo (1980, 2007,

2011), e o processo da criação das verdades como parte de “tradição

inventada”, um conceito que surgiu inicialmente no pensamento de

Hobsbawm (2008), e que ecoou no trabalho e pensamento de Said (1985,

1994, 2003). A tradição inventada representa as verdades como sendo

sempre atualizadas com novas intepretações e dentro de seus contextos

sócio-históricos.

Na terceira parte de capítulo falamos sobre o cosmopolitismo,

considerando que o cosmopolitismo que nós discutimos representa uma

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maneira de prevenir os piores resultados do pensamento fundamentalista

no futuro. Para isso procuramos resgatar o termo “cosmopolitismo” da sua

origem kantiana. Sem o Ocidente nem a Razão como base, o

cosmopolitismo apresentado é uma proposta para todos, na busca de

justiça global e redução da violência.

Para isso, iniciamos nossa discussão com Appiah (2007a, 2007b),

que procura resgatar o termo “cosmopolitismo”. Logo falamos da questão

da globalização atual, chamada por Bauman (2008) de “globalização

negativa”, para buscar uma forma de globalização alternativa, segundo o

pensamento de Kurasawa (2009).

Ainda sobre o cosmopolitismo, e principalmente com base de

pensamento de autores como Benhabib (2002) e Appiah (2007),

discutimos os desafios que o nacionalismo enfrenta em um mundo cada

vez mais globalizado. Procuramos ultrapassar a limitação do nacionalismo

por intermédio do pensamento de Derrida (2006) sobre a hospitalidade e

o perdão, como uma forma de levar o nacionalismo para além de âmbito

nacional, sem diminuir seu papel local.

Por último, falaremos sobre o “cosmopolitismo tóxico”, com base de

pensamento de Appiah (2007), segundo quem este tipo de

cosmopolitismo representa um ameaça, por empregar o conceito de

cosmopolitismo com um objetivo de dominação e com base em uma

ideologia que parte do pensamento fundamentalista.

Encerrado este capítulo, escrevemos sobre a ética pós-metafísica

com base de pensamento de Vattimo (2009), e como estratégia de

redução da violência. Discutimos também a questão daquele diálogo que

não parte da ideia de tolerância liberal, mas como espaço de

transformação e intepretação, e sem que seja uma busca por uma

verdade única e unificadora. Desde que o nosso conhecimento nunca é

perfeito, o diálogo, dessa forma, nos aproxima das verdades do outro e de

seu contexto, e como um modo de evitar os confrontos e diminuir a

violência.

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3.1. O Cristianismo entre a hermenêutica e a secularização

Neste parte do capítulo, seguimos Vattimo (1999, 1997, 2004b,

2011) na interpretação que ele faz sobre o cristianismo no tempo de pós-

metafísica. Esta interpretação entende o cristianismo em termos de

solidariedade, amizade e caridade. O processo de secularização ou de

niilismo, para Vattimo (2011), não significa eliminar a religião, mas é um

processo que representa a essência tanto da modernidade quanto do

cristianismo, e que faz parte do processo de enfraquecimento do Ser, ou

então, a verdade na sua forma metafísica.

3.1.1. O Cristianismo e a hermenêutica: o amor, a amizade e a

caridade

Vattimo (2011) explica por que não descartar a religião no Ocidente

no tempo de pós-metafísica. Em suas palavras:

Não podemos nos expressar senão como cristãos, porque

somos incapazes de nos construir, no sentido de que somos

incapazes de articular um discurso dentro de nossa cultura

sem aceitar certas premissas [...] O cristianismo tem

poderes latentes para libertar, e isso, ouso dizer,

compreende a libertação da verdade.504

Dessa forma, Vattimo entende o cristianismo em termos de fim de

metafísica e da verdade objetiva, a partir do seu contexto europeu.

Segundo Vattimo (2004b), a cultura europeia da modernidade tardia

percebeu o efeito da interpretação na mensagem cristã, o que influenciou

sua preservação dessa mensagem.505 O cristianismo, para Vattimo

(2011), é uma doutrina de interpretações, portanto, “a mensagem do 504 “We cannot speak ourselves otherwise than as Christians, because we are unable to

formulate ourselves, meaning we are unable to articulate a discourse within our culture

without accepting certain premises. […] Christianity has latent powers to liberate, and

that, I make bold to say, includes liberation from the truth.” (VATTIMO, Gianni. A

farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011.

p. 71.) 505 Cf. VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso.

Trad. Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 82.

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cristianismo é verdadeira porque Cristo se apresenta como alguém que

está ali para interpretar uma escritura anterior (o que chamamos de

Antigo Testamento), que é muito enigmática”.506 Partindo dessa postura,

a interpretação é essencial para se entender os textos Bíblicos e a

mensagem do cristianismo.

Segundo Vattimo (1999), a morte de Deus “não pode ser concebida

nem como a negação parcial de Deus nem como justificativa de qualquer

interpretação específica das Escrituras sagradas”.507 Vattimo redescobre a

história da revelação Cristã e a história do niilismo no contexto do fim da

metafísica, entendendo a secularização na modernidade como uma

continuação e dessacralização da mensagem Bíblica.508

Assim, segundo Vattimo (1996), quando Nietzsche declara que não

existem mais fatos, apenas interpretações, e que a verdade tornou-se

fábula, e, “de fato, o lugar de uma experiência que não é ‘mais autêntica’

do que a experiência aberta pela metafísica”.509 Isto porque a própria

autenticidade acabou juntamente com a morte de Deus. A história, para

Vattmimo (2004b), enfraquecida do Ser é interpretada como

uma realidade concebida como jogo de interpretações e não

(mais) como presença estável de coisas definidas em si

mesmas que a mente tem por tarefa simplesmente espelhar

objetivamente é, em muitos sentidos, uma realidade

enfraquecida.510

506 “[T]he message of Christianity is true because Christ presents himself as one who is

there to interpret a preceding scripture (what we call the Old Testament), and the Old

Testament itself is highly mysterious.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad.

William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. 69.) 507 “[It] can be conceived neither as the indefinite negation of God nor as a justification

of any particular interpretation of the sacred Scriptures.” (VATTIMO, Gianni. Belief. Trad.

Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p. 63.) 508 Cf. Ibid., p. 41. 509 VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade : Niilismo e hermenêutica na cultura pós-

moderna. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1996. p. 11. 510 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 65.

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Segundo Nietzsche (2005, 2011), o mundo que conhecemos é um jogo de

interpretações que não existe independentemente de nosso contexto

histórico.

Redescobrir o cristianismo em termos do fim de metafísica significa,

segundo Vattimo (1999), “o fim das filosofias objetivistas e dogmáticas,

bem como da alegação feita pela cultura europeia de que ela descobriu e

compreendeu a verdadeira ‘natureza’ da humanidade”.511 Com isso,

nossas certezas, como base da verdade na sua forma metafísica, não

existem mais, nem o fundamento como verdade última. Tampouco a

diferença entre a história dos homens e a história de salvação.

Esta salvação não vem como resultado de seguir literalmente as

escrituras da Bíblia, de sorte que pela tentativa de entender o significado

das escrituras no contexto atual. Para Vattimo (2004a), “quando se pensa

na popularidade de tantas formas de fundamentalismo até mesmo na

sociedade moderna tardia do Ocidente, essa tarefa filosófica não parecerá

supérflua”.512 Procurar o significado do Ser supremo num mundo em que

os princípios da realidade foram absolvidos nas interpretações exige

cautela para que isso não signifique um retorno às formas de realidade

forte.

Com isso, a história da salvação, segundo Vattimo (2004b), “não é

somente a história daqueles que recebem o anúncio, e sim, sobretudo, a

história do anúncio”513, ou seja:

[É] uma história que está em curso, de forma cada vez mais

evidente, promovendo a educação da humanidade no que

511 “[T]he end of objectivistic-dogmatic philosophies as well as of European culture´s

claim to have discovered and realized the true ‘nature’ of humanity.” (VATTIMO, Gianni.

Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p.

62.) 512 “[I]f one thinks of the popularity of so many forms of fundamentalism even in the

late-modern society of the West, this philosophical task will not appear otiose.”

(VATTIMO, Gianni. Nihilism & Emancipation: Ethics, Politics, & Law. Trad. William

McCuaig. New York: Columbia University Press, 2004. p. 20.) 513 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. Trad. Cynthia Marques. Rio de Janeiro:

Record, 2004, p. 39.

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diz respeito à superação da violência originária, essencial ao

sagrado e à própria vida social.514

Uma vez que a historia da salvação está sempre em andamento, ela não

representa a verdade na sua forma objetiva.

A ligação complexa entre a interpretação e a história da salvação,

no caso do cristianismo, tem o próprio Jesus como uma interpretação viva

das Escrituras, contudo ele não é totalmente hermenêutico. Isso porque,

segundo Vattimo (2004a), a filosofia hermenêutica significa “o abandono

dos fundamentos metafísicos [...] e o conceito do mundo como um

conflito de intepretações”.515 As diferentes verdades interpretadas não são

verdades metafísicas, portanto não entram em confronto com as outras

verdades para provar sua essência mais “verdadeira”.

Segundo Vattimo (2007), a história da salvação e a história de

interpretação estão ligadas. O Cristo representa o agente de interpretação

que, ao contrário de Moisés, não transcreveu literalmente a palavra de

Deus, mas a interpretou.516 Portanto, para Vattimo (1999),

[n]ão é só para ser salvo que é necessário ouvir,

compreender e aplicar corretamente o ensinamento

evangélico na própria vida. A salvação se manifesta na

história também por meio de uma interpretação cada vez

"mais verdadeira" das Escrituras.517

514 “[C]ontinues to realize itself more and more clearly by furthering the education of

mankind concerning the overcoming of originary violence essential to the sacred and to

social life itself.” (VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford

University Press: Stanford, 1999, p. 48.) 515 “[T]he abandonment of metaphysical foundationalism […] and a concept of the world

as conflict of interpretations.” (VATTIMO, Gianni. Nihilism & Emancipation: Ethics,

Politics, & Law. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2004. p.

90.) 516 Cf. VATTIMO, Gianni. Toward a Nonreligious Christianity. In: CAPUTO, John D;

VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia University Press, 2007.

p. 34. 517 “It is not just in order to be saved that one needs to hear, understand and apply

correctly the evangelical teaching in one´s own life. Salvation unfolds in history also by

way of an increasingly ‘truer’ interpretation of Scripture.” (VATTIMO, op. cit., p. 49.)

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Neste sentido, para acreditar no evangelho, é preciso, em primeiro lugar

que a linguagem não represente somente uma verdade objetiva.

A interpretação do Ser, denominada “história do Ser” pelo filósofo

Heidegger, segundo Vattimo (2001) é entendida não como

totalidade fixa de objetos independentes do meu

conhecimento, mas sim a herança de outras interpretações,

por sua vez inseparáveis do que se apresenta a elas como

objeto.518

Assim, é preciso abandonar a ideia da existência estável dos objetos no

mundo “lá fora” independentemente de qualquer interpretação.

Vattimo (2004) entende o Ser como evento em que a verdade deixa

de ser uma “estrutura eterna do real” para se tornar uma mensagem

histórica. O problema é “até onde podemos supor que esta nova atitude

pós-metafísica deixa de lado completamente o mundo real ideal 'lá

fora'?”519 Ao descrever como as coisas estão no mundo, ficamos mais

ligados ao campo das relações humanas. Por conseguinte:

O problema religioso parece ser sempre a recuperação de

uma experiência que alguém, de alguma forma, já teve.

Nenhum de nós, em nossa cultura ocidental – e talvez nem

em outra cultura –, começa do zero com a questão da fé

religiosa.520

Para nós, Vattimo trata essa relação com o sagrado na forma de

Deus ou de razão última da existência, e que todos nós experimentamos

de maneiras diferentes. Por isso, mesmo quando descartada, esta ligação

vive no nosso inconsciente.

518 VATTIMO, Gianni. A tentação do realismo. Trad. Reginaldo Di Piero. Rio de Janeiro:

Lacerda Ed.: Instituto Italiano di Cultura, 2001. p. 42. 519 “[H]ow far can we imagine that this new postmetaphysical attitude leaves aside

completely the ideal real world ‘out there’?” (RORTY, Richard; VATTIMO, Gianni. The

Future of Religion. New York: Columbia University Press, 2004. p. 57.) 520 “The religious problem seems to be always the recovery of an experience that one has

somehow already had. None of us in our western culture – and perhaps not in any

culture - begins from zero with the question of religious faith.” (VATTIMO, Gianni. Belief.

Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p. 21.)

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Vattimo (1987) afirma que a metafísica não deve ser entendida

como um erro dos filósofos ou do homem, pois isto indicaria que há um

Ser em um lugar que pode ser visto por outro homem, em outro lugar. O

Ser precisa ser visto como um evento, não como estrutura por existir

mesmo antes da própria distinção entre o sujeito e o objeto.521

Isto significa, a nosso ver, que a metafísica não pode ser tratada

como se fosse uma ideia antiga que não nos interessa mais, uma vez que

ela está fortemente enraizada na história do homem. Porém nossa

esperança que ela mude de direção é totalmente irreal, porque contradiz

sua própria natureza. Por isso, uma postura pós-metafísica não deve

deslocar a metafísica tradicional para outro “objeto”.

A interpretação do enfraquecimento da história do Ser, segundo

Vattimo (2004b), tem base na herança judaico-cristã em que a

interpretação, principalmente dos textos sagrados, foi sempre ligada à

salvação. Esta afirmação, porém, também é uma interpretação, mas

[e]stamos dispostos a abandoná-la caso alguém nos

proponha outra melhor, porém não renunciaremos a ela com

base no argumento “realista” de que ela seja “somente” uma

interpretação.522

Não é qualquer interpretação que é válida, pois “é preciso que pareça

válida para uma comunidade de intérpretes”.523 Aceitar a prevalência da

intepretação não significa aceitar o relativismo.

Dessa forma, e para que uma intepretação seja válida, não podemos

aceitar qualquer ideia vaga ou contraditória como uma interpretação. Para

Vattimo (1999), as verdades “fracas”, e ao contrário das verdades fortes e

521 Cf. VATTIMO Gianni. Verwindung: Nihilism and the Postmodern in Philosophy.

SubStance, vol. 16, no. 2, Issue 53: Contemporary Italian Thought (1987), pp.7–17.

Disponível em: <http://www.jstore.org/stable/3685157>. Acesso em: out. 2010, pp.12;

13. 522 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 67. 523 Ibid., p. 86.

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absolutas, não são uma descrição ‘objetiva’ de como as coisas são, mas

“interpretações razoáveis de nossa condição aqui e agora.”524 Isto é parte

do desafio da era pós-metafísica, que procura um discurso persuasivo e

que não se situe como uma “verdade universal”. Ao mesmo tempo, não

podemos categorizar as interpretações entre as falsas, ou menos

aceitáveis; e as verdadeiras, ou mais aceitáveis. Porque essa divisão nos

leva de volta para a ideia metafísica de que há sempre uma verdade mais

autêntica ou “verdadeira”.

A fim de rejeitar a metafísica, segundo Vattimo (1997), a

hermenêutica precisa se apresentar como sendo

a interpretação filosófica mais convincente de uma situação

ou "época", e, assim, necessariamente, de uma linhagem.

Incapaz de oferecer qualquer evidência estrutural, a fim de

justificar-se racionalmente, [a hermenêutica] pode

argumentar a favor de sua própria validade apenas a partir

de um processo que, em sua opinião, prepara "logicamente"

um determinado resultado.525

A hermenêutica, portanto, é a filosofia de modernidade. Ela está sempre

ligada aos problemas religiosos, políticos e sociais, e se vê como o

resultado desses acontecimentos.

Para Vattimo (1999) a reencarnação na fé cristã representa o fim do

sagrado como violento. Isto porque a crucificação de Jesus representa o

fim do Deus violento da metafísica:

A encarnação, ou seja, a vinda de Deus ao plano humano, o

que o Novo Testamento chama kenosis de Deus, será

interpretada como o sinal de que o Deus não violento e não

524 “[R]easonable interpretations of our condition here and now.” (VATTIMO, Gianni.

Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p.

46.) 525 “[T]he most persuasive philosophical interpretation of a situation or ‘epoch’, and

thereby, necessarily, of a provenance. Unable to offer any structural evidence in order to

justify itself rationally, it can argue for its own validity only on the basis of a process

that, in its view, ‘logically’ prepares a certain outcome.” (VATTIMO, Gianni. Beyond

Interpretation: The Meaning of Hermeneutics for Philosophy. Trad. David Webb. Polity

Press: Cambridge, 1997.p. 10.)

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absoluto da época pós-metafísica tem como traço

característico a própria vocação de enfraquecimento, da qual

a filosofia heideggeriana trata.526

Em suma, somente um Deus que não seja metafísico pode nos salvar.

Com o fim de metafísica, Deus, segundo Vattimo (2011), pode ser

chamado de “Deus relativista” ou de “Deus fraco” porque: “um Deus

‘diferente’ do Ser metafísico não pode mais ser o Deus da verdade

definitiva e absoluta, o qual não admite variação doutrinária”.527 O “Deus

relativista” não procura mostrar nossas fraquezas para afirmar sua

soberania e onipotência. O Cristianismo é visto não como um fator

positivo de identidade, mas na sua forma pós-moderna como numa força

unificadora.

Está “fé” é uma aposta arriscada como qualquer aposta de amor. Ela

envolve aceitação, não dos dogmas e das disciplinas regidas e

preestabelecidas, mas do espírito de caridade presente na tradição cristã

e, principalmente, no pensamento de Santo Agostinho em que, segundo

Vattimo (1999), “a herança cristã que 'retorna' no pensamento fraco é,

principalmente, o preceito cristão da caridade e sua rejeição da

violência”.528 Por isso “o único limite para a espiritualização da mensagem

bíblica é a caridade”.529 O termo "caridade" remete-se ao Cristianismo, em

526 “[T]he incarnation, that is, God’s abasement to the level of humanity, what the New

Testament calls God’s kenosis, will be interpreted as the sign that the non-violent and

non-absolute God of the post-metaphysical epoch has as its distinctive trait the very

vocation for weakening of which Heideggerian philosophy speaks.” (VATTIMO, Gianni.

Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p.

39.) 527 “[A] God “different” from metaphysical Being can no longer be the God of definitive

and absolute truth that allows no doctrinal variation.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to

truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. 55.) 528 “[T]he Christian inheritance that ‘returns’ in weak thought is primarily the Christian

precept of charity and its rejection of violence.” (VATTIMO, op. cit., p. 44.) 529 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004b. p. 63.

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que o amor, surge como principal preceito e que ultrapassa o conceito de

justiça de um Deus severo e magistral530

Dessa forma, a interpretação, segundo Vattimo (1999), significa:

“ler os sinais dos tempos com nenhum outro recurso a não ser o do

mandamento do amor, o qual não pode ser secularizado.”531 O amor não

representa uma aplicação limitada aos ensinamentos da Bíblia, mas é o

nosso meio para comunicar aos intérpretes aquilo que nos impede de

fechar a possibilidade de interpretação.

Existe diferença entre a violência da religião natural e o cristianismo

como Jesus queria nos ensinar, segundo Vattimo (2011), porque:

a revelação judaico-cristã está no anúncio de que Deus não

é violento, mas amor, o qual é um anúncio escandaloso,

tanto que Jesus foi condenado à morte por causa dele.532

A importância dessa revelação recebida de um Deus encarnado vai além

da capacidade de conhecimento humano, tornando o sacrifício das

religiões naturais algo primitivo que não passa de uma invenção social que

procura direcionar a violência a um “bode expiatório”.

A Bíblia, afirma Vattimo (1999), fala mais sobre a “piedade” do que

sobre a “justiça”, o que o leva a acreditar que,

a relação entre as duas faces de Deus, na realidade,

constitui uma relação entre diferentes momentos da história

da salvação, e que a justiça divina é um atributo bastante

próximo da concepção natural do sagrado, que deve ser

530 Cf. VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University

Press: Stanford, 1999. p. 64. 531 “[R]eading the signs of the times with no other provision than the commandment of

love, which cannot be secularized”. (Ibid., p. 66.) 532 “[T]he Judeo-Christian revelation lies in the announcement that God is not violent but

love, which is a scandalous announcement, so much so that Jesus was put to death for

it.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia

University Press, 2011, p. 85.)

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"secularizada" precisamente em nome do mandamento do

amor.533

O maior mistério é que, ao mesmo tempo em que Deus é um juiz,

Ele perdoa e todos nós que precisamos de Seu perdão. Isto acontece “não

porque nós rompemos com princípios sagrados que foram aprovados

metafisicamente, mas porque nós 'falhamos' em relação àqueles que

deveríamos amar”.534 O outro, para Vattimo (1999), é o vizinho que

procura minha ajuda ou, no mínimo, porque quero tentar entender o seu

sofrimento.

Sem o Deus da metafísica moral, a nossa crença é justificada

porque nós ouvimos sua palavra, o que criou em nós um “sentimento de

amizade, de amor e de respeito. [...O] amor é cego e não vê as coisas tal

como elas são na sua forma verdadeira “objetiva”.535 Vattimo fundamenta

sua análise nas palavras do evangelista São Paulo, que diz: “Agora, pois,

permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior

destes é o amor.”536 As questões da tradição e da verdade se agregam no

espaço mitológico.

Não podemos viver sem esse amor porque, segundo Vattimo

(2004),

[o] amor é uma espécie de sentimento de dependência que

não está relacionado a uma patologia. Ninguém se revolta

contra o sentimento de dependência que alguém tem em

533 “[T]he relation between the two faces of God in fact constitutes a relation between

different moments of the history of salvation, and that divine justice is an attribute that

is rather close to the natural conception of the sacred, which must be “secularized”

precisely in the name of the commandment of love.” (VATTIMO, Gianni. Belief. Trad.

Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. pp. 89-90.) 534 “[N]ot because we have broken sacred principles that were metaphysically

sanctioned, but rather because we have ‘failed’ toward those whom we were supposed to

love”. (Ibid., p. 90.) 535 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. Trad. Cynthia Marques. Rio de Janeiro:

Record, 2004, p. 15. 536 BÍBLIA, N.T. 1 CORÍNTIOS. Português. Bíblia sagrada. Trad. João Ferreira de

Almeida. (Ed Rev.). Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Cap.13, vers. 13.

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relação às pessoas que ama, e isso tem sérias implicações

na nossa vida social e assim por diante.537

Não obstante, tal amor nos liberta da verdade forte e violenta.

Segundo Vattimo (2004b), a única verdade revelada para nós e que

não pode ser demitologizada é a verdade do amor e da caridade. E

quando a religião insiste em se apresentar em termos de identidade forte,

a sociedade liberal precisa manifestar sua laicidade por meio da “redução

da visibilidade de cada símbolo religioso na vida civil, para não suscitar a

reação desta ou daquela minoria ou das religiões e culturas ‘outras’”.538

Essa resistência da cultura clássica é uma manifestação que faz parte da

responsabilidade social.

Esse amor ao outro, segundo Vattimo (2004b), é uma amizade que

“pode se tornar princípio, fator de verdade, somente depois do

pensamento ter abandonado todas as pretensões de fundamento objetivo,

universal, evidente”.539 Por consequência, com a dissolução da metafísica

podemos enxergar o outro em termos de amizade sem o risco de cair no

pragmatismo ou no simples moralismo.

Nossa percepção de Deus como “Deus fraco” não significa que Ele

está deixando seu lugar para nós, mas sim que esta é uma fase elevada

de nossa relação com Deus. Ele está nos tratando como “amigos” e não

mais como escravos. O amor, na forma de amizade ou vontade de aceitar

o outro, supera a preferência de procurar uma verdade na forma do Deus

moral.

De acordo com a interpretação de Vattimo (1999), a cristandade na

modernidade “[n]ão é, portanto, um Cristianismo brando, mas

537 “[L]ove is a sort of feeling of dependence that is not involved with a pathology; one

does not revolt against the feeling of dependence one has in relation to people one loves,

and this has serious implications in our social life and so on.” (RORTY, Richard; VATTIMO,

Gianni. The Future of Religion. New York: Columbia University Press, 2004. p. 78.) 538 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 128. 539 Ibid., p. 139.

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benevolente, assim como o próprio Cristo pregou para nós”.540 Por isso,

não podemos mais aceitar Deus na sua forma metafísica e violenta.

Vattimo (1999) se posiciona contra o que ele chama de “cristandade

trágica”, com sua imagem apocalíptica, que

[c]ulmina no fundamentalismo, na clausura de si mesmo

dentro dos limites das comunidades, na violência implícita no

modelo da Igreja como um exército pronto para a batalha,

na propensão para resistência às facilidades da existência

prometidas, e, em parte, concretizadas pela ciência e pela

tecnologia.541

O que deve sempre permanecer é a caridade e a concepção de Deus e da

religião na sua forma “amigável”, seguindo o próprio Deus da caridade (cf.

Vattimo 1999).

O pensamento fraco, portanto, significa a secularização do

pensamento Cristão, mas não o fim da fé como uma interpretação atual:

Eu me definiria, nos termos cristãos de hoje, como alguém

que herdou a ideia de kenosis, a crença de reduzir a

violência ligada às reivindicações da objetividade e, acima de

tudo, todas as concepções de caridade.542

Por conseguinte, o cristianismo, segundo essa interpretação, tornar-

se uma fonte de inspiração para o abandono da verdade na sua forma

objetiva, metafísica e violenta ao favor dos conceitos de solidariedade,

amizade e a caridade e com base de verdade de amor como verdades não

objetiva.

540 “It is not, therefore, an easy Christianity, but rather a friendly one, just as Christ

himself preached it to us.” (VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb.

Stanford University Press: Stanford, 1999. p. 55.) 541 “it culminates in fundamentalism, the enclosure of oneself within the restricted

horizon of communities, the violence which is implicit in the model of the Church as an

army that is ready for battle, the inclination to be ill-disposed towards the easing of the

existence promised, and partly realized, by science and technology.” (Ibid., pp. 97-98.) 542 “I would define myself in Christian terms today in the sense of someone who has

inherited the idea of kenosis, the idea of reducing the violence that is bound up with the

claims to objectivity, and above all the idea of charity.” (VATTIMO, Gianni. Philosofy as

Ontology of Actuality. A biographical-theoretical interview with Luca Savarino and

Federico Vercellone. Iris. I, 2 October 2009, p. 338.)

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A nosso ver, sem a interpretação da verdade, a volta da religião na

pós-modernidade se coloca como verdade forte, e que muitas vezes se

manifesta na forma de fundamentalismo religioso. Essa verdade forte nos

tempos conturbados marcados pelas mudanças que a pós-modernidade

trouxe, representa uma fuga desses contextos atuais. A verdade forte,

que é uma verdade violenta, condena todas as outras verdades que não

estão de acordo com ela, portanto ela não tem espaço no contexto pós-

moderno.

Concluímos que esta interpretação de Vattimo, que se baseia no

cristianismo, não deve ser a única, mas serve como exemplo de outras

interpretações com base religiosa ou não, e que expressam os valores do

amor, da amizade e da caridade, não como verdades objetivas, mas como

diferentes interpretações com o objetivo de redução da violência e a

convivência entre diferentes verdades através da interpretação.

3.1.2. Secularização sem exclusão da religião

Os termos “secularização” ou “niilismo” são empregados por Vattimo

como a essência não somente da modernidade, mas do próprio

cristianismo. O niilismo é semelhante ao cristianismo, porque “Jesus veio

ao mundo não para mostrar qual era a ordem "natural", mas apenas para

destruí-la em nome da caridade”.543 Por isso, a prática moral da caridade

do cristianismo acaba ocupando o espaço da verdade.

A secularização, por outro lado, não está no sentido de negar a

existência de Deus, mas de propor uma nova relação com Deus na qual

teremos mais autonomia e que nos libertará da escravidão da palavra,

tornando-nos mais livres. Segundo Vattimo (2004), o futuro da religião

depende na sua capacidade de se tornar um guia sem a verdade

metafísica como base. Ao mesmo tempo, não podemos descartar que há

543 “Jesus came into the world not to demonstrate what the ‘natural’ order was but to

demolish it in the name of charity.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad.

William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. 59)

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um problema social da religião pelo fato de que a história da metafísica

sempre foi envolvida na história das instituições sociais.544

Para Vattimo (1999), o termo “secularização” “não significa que a

Igreja deveria continuar com a separação cada vez mais nítida entre sua

doutrina e a ligação com a história”.545 Uma vez que o secularismo é a

base da história da salvação, não podemos ligar a história do cristianismo

a certa época histórica sem que ela seja interpretada para podermos

reconhecer nossa própria historicidade.

Os fundamentalistas religiosos se sentem inspirados com o fim das

metanarrativas do racionalismo, do Iluminismo, do Imperialismo e do

Colonialismo. Porém, segundo Vattimo (2004b),

é quase “natural” que a relação entre a religião e a política

seja vista como um risco para a autonomia da política, e só

raramente, ou quase nunca, como a eventualidade de que a

religião contribua positivamente para enriquecer e melhorar

a política.546

Essa conclusão é o resultado da experiência histórica de se colocar a

religião no espaço da política.

A secularização da sociedade europeia carrega uma herança cristã

que se torna óbvia ao misturar-se a outras culturas. Nesse caso, o

liberalismo foi colocado ao lado da religião no “espaço do privado, do

sentimento, da fé que não ‘interfere’ nas escolhas políticas e na normal

dialética do poder”,547 revelando sua base sólida sob a qual foi construído,

apesar da secularização ser criticada pelo pensamento cristão como uma

traição e abandono da verdade.

544 Cf. RORTY, Richard; VATTIMO, Gianni. The Future of Religion. New York: Columbia

University Press, 2004. pp. 69; 80. 545 “[It] does not mean that the Church should proceed towards an increasingly sharp

separation of its doctrine from an involvement with history.” (VATTIMO, Gianni. Belief.

Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p. 53.) 546 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 118. 547 Ibid., p. 120.

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Com a secularização sendo uma característica da modernidade, a

religião, com sua base judaico-cristã, deixou de ser um fator de conflito

no Ocidente. Por outro lado, segundo Vattimo (2004b), a ideia de

pluralismo das culturas humanas colocadas em linhas de evolução em

comparação com a civilização cristã ocidental, não está mais sustentável.

Isto porque não há mais razão para acreditar que

[o]s povos pagãos deviam ser convertidos ao cristianismo, e

as sociedades “primitivas” deviam se tornar sociedades

modernas, ou seja, modeladas segundo aquelas ocidentais,

caracterizadas também em sentido leigo, liberal,

democrático.548

Com isso, o cristianismo, e depois da sua dura experiência histórica que

terminou com a revolta dos povos colonizados, o cristianismo está

renunciando sua missão civilizadora para recuperar seu papel de

solidariedade com a modernização.549

E para que o cristianismo se torne um interlocutor de diálogo

intercultural,550 segundo Vattimo (2004b), ele precisa ser autêntico em

relação ao elemento essencial da sua identidade, o que não faz dele uma

religião entre outras. Assim, “o cristianismo deveria desenvolver a sua

vocação leiga, aquela que já está manifesta ao tornar possível e ao

favorecer o nascimento da ideia de laicidade na modernidade europeia”.551

Dessa forma, seu papel será diferenciado por criar novas condições e

relações entre culturas e povos diversos.

Por isso, segundo Vattimo (1999), a secularização é tida como uma

experiência religiosa autêntica, ao encontrar um paralelo entre uma

teologia de secularização e uma ontologia de enfraquecimento:

548 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.

Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 121. 549 Cf. Ibid., pp. 121 – 122. 550 O papel de “interlocutor de diálogo cultural” pode ser entendido também através de

pensamento do Edward Said, e como já foi analisada no segundo capítulo dessa tese,

através da sua crítica ao Huntington por tratar as civilizações como blocos monolíticos. 551 Ibid., p. 124.

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206

Secularização significa especificamente uma relação com

uma essência sagrada da qual nós procedemos e nos

afastamos, mas que, apesar de tudo, permanece atuante

mesmo em sua forma “caída” e deturpada, reduzida a

condições absolutamente mundanas.552

Dessa forma, a secularização não elimina a existência de Deus, mas O

aproxima a nós, algo que não ocorre com Deus de metafísica.

Portanto, quando Vattimo (2000) fala de secularização em termos de

enfraquecimento do Ser, essa secularização ou niilismo não deve ser

entendida como metafísica do nada, e “só pode ser pensado como um

processo indefinido de redução, de adelgaçamento, de

enfraquecimento”553 em termos de superação da metafísica. Por isso

segundo Pecoraro (2005), “é necessário considerar a morte de Deus e a

perda da verdade como ‘fatos’ extremamente positivos; [...]”.554 O que

era considerado “negativo e trágico” se transforma numa esperança, uma

abertura de novas possibilidades na experiência humana.

A nosso ver, a questão da “morte de Deus” em termos de fim da

metafísica não deixa espaço para um pensamento fundamentalista. No

caso da religião, esta secularização não significa a negação de existência

de Deus, mas representa nossa única chance para a superação de

metafísica, o que significa também a superação da base do pensamento

fundamentalista religioso. E apesar de que os movimentos

fundamentalistas são produtos de outras questões sociais e históricas

além da questão da metafísica, este pensamento segue o processo de

“enfraquecimento de Ser” com uma forma de evitar a violência da verdade

na sua forma metafísica.

552 “[S]ecularization means precisely a relation of provenance from a sacred core from

which one has moved away, but which nevertheless remains active even in its ‘fallen’,

distorted version, reduced to pure worldly terms.” (VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca

DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. pp. 21-22. 553 VATTIMO, Gianni. O vestígio do vestígio. In: Vattimo, Gianni; Derrida, Jaques Derrida

(Orgs.). A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 107. 554 PECORARO, Rossano. Niilismo e (Pós) modernidade: introdução ao “pensamento

fraco” de Gianni Vattimo. Rio de Janeiro: Ed. PUC, 2005. p. 63.

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207

3.2. O fim da verdade na sua forma metafísica e a tradição

inventada

A metafísica, na sua forma clássica como ciência das Primeiras

Causas, sobreviveu na modernidade como metafísica moderna depois de

Kant no historicismo. Porém, para Vattimo (1987), “[a] dissolução da

própria ideia de fundamentos destitui as noções de desenvolvimento

histórico e o progresso de qualquer significado aceitável”.555 Isto, segundo

o autor, pode ser observado em todas as revoluções culturais do Ocidente

que se apresentaram sempre como legítimas forças de inovação em

comparação com a origem.

Vattimo (1987) vê o destino de Ser como ser absorvido,

desaparecido ou enfraquecido pela falta da noção de fundamentos: “Ser

não é outra coisa senão a transmissão de revelações históricas e

determinadas pelo destino que constitui a possibilidade de acesso ao

mundo pela humanidade, em cada época.”556 A filosofia pós-metafísica

não pode mais sobreviver num mundo que tenta unir todo o conhecimento

num único fundamento.

A emancipação da história humana, segundo Vattimo (2007), não

ocorre por meio da realização de uma finalidade que tem certa essência

pura como base, mas com uma transformação maior sob forma de cultura

ou matéria para o espírito. Em termos hegelianos isso significa

transformar a casa em um lar, pelo fato que “[o] que torna sua casa um

lar é a ordem artificial que você estabelece”.557 As verdades sobre nosso

555 “The dissolution of the very idea of foundations deprives the notions of historical

development and progress of any possible significance.” (VATTIMO Gianni. Verwindung:

Nihilism and the Postmodern in Philosophy. SubStance, vol. 16, no. 2, Issue 53:

Contemporary Italian Thought (1987), pp.7–17. Disponível em:

<http://www.jstore.org/stable/3685157>. Acesso em: out. 2010, p.10. 556 “Being is none other than transmission of historico-destinal disclosures which

constitute the possibility of access to the world for humanity in each epoch.” (Ibid.,

p.14.) 557 “What makes your house a home is the artificial order you establish.” (VATTIMO, Gianni. Toward a Nonreligious Christianity. In: CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After

the Death of God. New York: Columbia University Press, 2007. 40.)

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passado que utilizamos para construir nosso mundo estão sempre

interpretadas e não são absolutas como verdades metafísicas. Essa ordem

artificial é essencial tanto na preservação da memória quanto na forma

como nós lembramos e relacionamos a memória com o nosso contexto

atual.

A partir de Nietzsche e Heidegger, Vattimo (1980) faz sua leitura do

conceito da “doença histórica” como um traço da consciência moderna.

Segundo Vattimo, Nietsche fala da “doença histórica”

antes de mais, para sublinhar que o excesso de consciência

historiográfica que ele considera como característico do

século XIX é também, inevitavelmente, uma incapacidade

para criar nova história.558

Sem a capacidade de transformar a história passada em uma história do

presente, o homem se torna menos homem, isto porque sua ação será

deficiente por não conseguir relacionar o que ele considera como fatos do

passado com o contexto atual.

Para a superação da doença histórica, segundo Vattimo (1980),

precisamos “estabelecer a base de uma história que não seja doença,

cisão entre o interior e o exterior, ausência de estilo”.559 Sem isto, a ação

histórica acaba sendo uma ação inconsciente. Em outras palavras, uma

doença histórica, como a fé fundamentalista, congela a verdade do

passado fora do nosso contexto atual, sendo preservada e relembrada

sempre no seu contexto original.

Precisamos da consciência de que esses “fatos” sobre o passado são

verdades construídas em seu contexto. Segundo Valgenti (2011), para

Vattimo, “a verdade não é encontrada, mas construída com consenso e

respeito pela liberdade de todos, bem como pelas diversas comunidades

558 VATTIMO, Gianni. As aventuras da diferença: o que significa pensar depois de

Heidegger e Nietzsche. Trad. José Eduardo Rodil. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 21. 559 Ibid., p. 44.

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que vivem juntas, sem se misturarem, em uma sociedade livre”.560

Portanto, “[e]screver a história é um processo pelo qual a

peremptoriedade da realidade é reduzida e no qual a realidade torna-se

um conjunto de imagens compartilhadas – um discurso”.561 A história não

representa uma verdade absoluta, mas uma verdade que está sendo

sempre (re)interpretada e (re)construída.

A nosso ver, essa forma de ver a verdade histórica como construída

de acordo com seus contextos corresponde ao conceito de “tradições

inventadas”, proposto por Eric Hobsbawm, o qual ele define como:

reações a situações novas que ou assumem a forma de

referência a situações anteriores, ou estabelecem seu

próprio passado através da repetição quase que

obrigatória.562

A “tradição inventada” vem como resposta às constantes mudanças no

nosso mundo moderno atual para tentar manter a estrutura da vida

social, mesmo parcialmente, em meio a essas mudanças.

Partindo do conceito de “tradição inventada” de Hobsbawm, Said

(1995) demostra como uma verdade que parece autêntica tem uma base

que a contradiz, sendo essa construção da verdade intencional ou não.

Para Said, as tradições inventadas são “extremamente variadas podem

ser lidas e entendidas em conjunto, visto pertencerem a campos

560 “truth is not encountered but constructed with consensus and respect for the liberty of

everyone, and the diverse communities that live together, without blending, in a free

society.” (VALGENTI, Roberto T. Introdução. In: VATTIMO, Gianni. A farewell to truth.

Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. xxxvi.) 561 “Writing history is a process by which the peremptoriness of reality is reduced and in

which reality becomes a set of shared images – a discourse.” (VATTIMO Gianni; ZABALA

Santiago. “Weak Thought” and the reduction of violence: a dialogue with Gianni Vattimo.

Common Knowledge. Trad. Yaakov Mascetti. Durham: Duke University Press, vol. 8,

Issue. 3, outono 2002, pp. 452 – 463. Disponível em:

<http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/common_knowledge/

v008/8.3vattimo.html> . Acesso em: maio/2012, p. 460.) 562 HOBSBAWM, Eric; RANGER Terence. (Orgs.). A Invenção das Tradições. Trad.

Celina Cardim Cavalcanti. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 10

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comparáveis da experiência humana”,563 que, segundo Hobsbawm, “tenta-

se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado”.564

Dessa forma, para Hobsbawm, a “invenção da tradição” é uma ideologia e

não uma técnica, e, portanto não deve ser confundida com as ações de

costumes ou de rotina. Ela representa uma reação a um contexto para

relacioná-lo com o passado, ou inventá-lo por meio da repetição.

Said (2000) também liga o conceito de “tradição inventada” com o

que ele chama de “arte da memória”, definindo a “tradição inventada” de

Hobsbawm da seguinte forma:

[U]m método para usar a memória coletiva seletivamente,

manipulando certas circunstâncias do passado nacional,

suprindo ou escolhendo outras de forma totalmente

funcional. Assim, a memória não é necessariamente

autêntica, mas serve para um propósito.565

Enquanto a memória foi sempre manipulada para servir a certo contexto

contemporâneo, a arte da memória moderna está direcionada a reordenar

e reimplantar para recuperar o passado. A tradição inventada, como

invenção em certo contexto, pode servir negativamente para a exclusão,

ou positivamente para a libertação.

Como qualquer começo, a tradição inventada exige a construção de

uma nova verdade porque, de acordo com Said (1985), o “início é

conscientemente intencional, uma atividade produtiva e, além de tudo,

563 SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo:

Companhia das Letras, 1995, p. 66. 564 HOBSBAWM, Eric. Introdução. In: HOBSBAWM, Eric; RANGER Terence. (Orgs.). A

Invenção das Tradições. Trad. Celina Cardim Cavalcanti. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

p. 9. 565 “[A] method for using collective memory selectively by manipulating certain bits of

the national past, suppressing others, elevating still others in an entirely functional way.

Thus memory is not necessarily authentic, but rather useful.” (SAID, Edward W.

Invention, Memory, and Place. Critical Inquiry, Vol. 26, no. 2 (Winter, 2000), pp.175–

195. Disponível em: <http://www.jstor.org/pss/1344120>. Acesso em: set./2011 , p.

179.)

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uma atividade cujas circunstâncias implicam uma sensação de perda”.566

Nesse sentido, a manipulação da memória tem seu papel na criação dessa

nova “tradição inventada”.

A procura de origens tem base teológica. Segundo Said (1985),

enquanto os começos são “atividades seculares ou pagãs, contínuas“,567

os começos modernos, segundo ele, incentivam também o

desenvolvimento não-linear. Quando a busca pelos começos se torna uma

busca pelas origens, a tradição inventada se torna uma forma de

pensamento fundamentalista que busca uma verdade única.

A nosso ver, o pensamento de Said, principalmente na sua obra

Orientalismo, serve como exemplo de funcionamento da tradição

inventada. Construir uma verdade sobre o outro, como no caso da

colonização ou da ocupação, serve para mantê-lo sob sua dominação.

Essa verdade criada sobre o outro não somente elimina toda sua

diversidade cultural, étnica e religiosa, mas também ignora toda

complexidade que faz parte da construção de sua identidade.

No caso dos conflitos, essa identidade dada ao outro não somente

prolonga os conflitos, mas também aumenta o ódio de cada uma das

partes. Said (2007a) cita o conflito Palestino como exemplo. Para ele, “[a]

situação da Palestina em si é remediável, já que são os seres humanos

que fazem a história, e não o contrário.”568 A história criada por cada

parte torna-se o centro do conflito, e cada parte acredita na sua versão da

verdade como única, autêntica e absoluta.

O nacionalismo é também outro exemplo da tradição inventada.

Após a Segunda Guerra Mundial, nasceu uma nova era em que novos

566 “[B]eginning is consciously intentional, productive activity, and that, moreover, it is

activity whose circumstances include a sense of loss.” (SAID, Edward W. Beginnings:

intention and method. New York: Columbia University Press, 1985. p. 372) 567 “[S]ecular, or gentile, continuing activities.” (Ibid., p. 373.) 568 SAID, Edward W. Cultura e Política. Trad. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo:

Boitempo Editorial, 2007. p. 66.

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países foram criados fora da Europa. Houve a necessidade de narrar a

história de cada um desses novos países, de forma que, muitas vezes, não

combinam com suas novas histórias. Nas palavras de Said (2004e):

[a]s agendas nacionalistas, no entanto, tendem a se

assemelhar, especialmente quando os diferentes lados de

uma disputa territorial buscam legitimidade em atividades

tão maleáveis quanto a reconstrução do passado, e a

invenção da tradição.569

Ao favorecer certas etnias, religiões ou raças, a invenção da tradição no

caso do nacionalismo, pode criar sérios conflitos.

Assim, a nosso ver, já que as verdades nascem dentro de

determinado contexto histórico, quando as tradições inventadas são vistas

como verdades absolutas que têm uma fonte “pura”, elas se tornam

verdades violentas que podem se chocar com outras verdades fortes. Por

outro lado, o conceito de tradições inventadas representa uma chance não

somente para entender o passado, mas também para não seguir um

pensamento fundamentalista que congela a origem das tradições como

verdades absolutas.

3.3. O Cosmopolitismo

A partir do conceito do fim da metafísica, que implica o fim da

verdade forte, discutimos nesta parte o cosmopolitismo como uma forma

de evitar a violência gerada pelo pensamento fundamentalista em

diferentes dimensões: na política, na teoria econômica, na globalização e

no nacionalismo. Iniciamos nossa análise com o pensamento de Appiah

(2007a), que procura resgatar o termo “cosmopolitismo” da sua origem

kantiana eurocêntrica, para ser uma proposta para um futuro mais justo e

menos violento.

569 SAID, Edward. Freud e os não Europeus. Trad. Arlene Clemesha. São Paulo:

Boitempo Editora, 2004. p. 78.

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A partir do pensamento de Benhabib (2002) e Nussbaum (2010),

discutimos a questão do nacionalismo e os desafios que sua verdade forte

enfrenta em termos do fim da verdade metafísica na pós-modernidade.

Nosso mundo globalizado e interligado exige uma nova forma de

nacionalismo, não como base de uma verdade forte e absoluta, mas como

verdade fraca e uma tradição inventada, que está aberta para as outras

verdades que não se limitam a um país. Os conceitos de “hospitalidade” e

“perdão” de Derrida (2004) podem servir como inspiração para esse

nacionalismo. Por outro lado, discutimos o que Appiah (2007b) chama de

“cosmopolitismo tóxico”, que utiliza o discurso de cosmopolitismo para

divulgar e aplicar seu pensamento fundamentalista.

3.3.1 Para resgatar o termo “cosmopolitismo”: a globalização

alternativa e a justiça global

No nosso mundo interconectado e interdependente, os direitos e a

segurança de cada Estado e povo não podem ser entendidos

separadamente uns dos outros. O termo “cosmopolitismo” em si não é

novo, e já teve diversos usos. Surgiu historicamente quando o filósofo

Diógenes de Sinope (412 A.C) disse: “Sou um cidadão do mundo”,570 ou

cosmopolita. No século III, o termo foi ligado à convicção cristã da

unidade da humanidade, com base nas palavras do apóstolo São Paulo

que afirmou: ”Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo

nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em

Cristo Jesus.”571

Na sua segunda fase, o termo foi usado no Iluminismo pelo filósofo

Kant, na sua proposta para uma “liga das nações”. Nessa linha, o termo

ecoava a ideia de que todos os povos na terra são de uma única família.

Apesar de não ser o primeiro filósofo a discutir a ordem cosmopolita ou

570 LAÉRCIO, Diógenes. Vida e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama

Kury. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. 1987. Livro VI, linha 63. 571 BÍBLIA, N.T. GÁLATAS. Bíblia sagrada. Português. Trad. João Ferreira de Almeida.

(Ed Rev.). Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Cap.3, vers. 28.

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utilizar o raciocínio prático moral, Kant é considerado o primeiro filósofo a

discutir a dimensão moral do cosmopolitismo.572

Segundo Appiah (2007a), o que marca essa segunda fase europeia

do cosmopolitismo é “o reconhecimento de que os seres humanos são

diferentes e de que podemos aprender com as diferenças de cada um”.573

Porém, o que foi deixado para trás, segundo ele, foi nossa

responsabilidade em relação aos outros seres humanos, o que não pode

ser justificada por nenhuma lealdade local. Isto porque, segundo Appiah

(2007a), o cosmopolitismo reflete dois pontos: o primeiro é nossa

obrigação com o Outro, e o segundo é o nosso interesse não somente na

vida humana, mas na particularidade de cada grupo entre cultura,

tradição ou crenças.

Já na visão de Kant (2010), o cosmopolitismo representa uma guia

para o desenvolvimento das capacidades que a raça humana possui para

transformar nosso mundo violento num mundo em que a dignidade

humana seja o pano de fundo da existência. A natureza deu para o

homem a razão e a liberdade da vontade, mas os homens não seguem

puramente seus instintos ou a razão. Portanto, o homem não foi destinado

a ser guiado pelo instinto, pois o destino dele é produzir tudo a partir dele

mesmo.574

Kant acreditava que as nações são renovadas para alcançar a

constituição perfeita. O resultado final do plano oculto da natureza é

estabelecer a constituição política perfeita como um estado que abrange

todas as capacidades da humanidade na sua última forma completamente

desenvolvida. Assim, o Iluminismo se desenvolve gradualmente depois de

572 Cf. BROWN, Garrett Wallace; Held, David (Eds.). The Cosmopolitanism Reader.

Malden, MA: Polity Press, 2010. p. 15. 573 “[T]he recognition the human beings are different and that we can learn from each

other’s differences.” (APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitanism: ethics in a world of

strangers. New York: W.W. Norton, 2007. p. 4.) 574 Cf. KANT, Immanuel. Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Purpose. In:

BROWN, Garrett Wallace; Held, David (Eds.). The Cosmopolitanism Reader. Malden,

MA: Polity Press, 2010. pp. 17; 18; 19.

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muitas revoluções e guerras que levam ao último objetivo da natureza.

Este objetivo final se realiza na existência cosmopolita universal que

procura alcançar uma reunião civil perfeita da humanidade.575

Para Brown (2010), o cosmopolitismo kantiano estabelecido na

filosofia moral coloca os seres humanos como os merecedores de respeito

e dignidade universal. Portanto, mesmo que Kant parecesse ambíguo e

até mesmo inconsistente na sua versão do cosmopolitismo, Brown

acredita que ainda podemos aproveitar o cosmopolitismo kantiano.576

Segundo Brown (2010), Kant não utilizava o termo “globalização”,

mas sua visão era a de um mundo interativo em que “as forças da

natureza foram organizadas de tal forma que, no final, criariam uma

condição cosmopolita.”577 Ele afirma que, para Kant, o comércio global e

os interesses mútuos podem também tornar os problemas de uma parte

do mundo sensíveis em todos os lugares.578

O resultado dessa “globalização”, na visão kantiana, será a paz

perpétua, porque o comércio não pode conviver lado a lado com a guerra:

O que é, muitas vezes, considerado dúbio a respeito do

ponto de vista de Kant sobre a globalização é que ele parece

argumentar que a natureza criou a dialética relacionada com

a interligação como um meio de forçar os seres humanos a

buscar a paz e a condição universal de justiça.579

A ideia da globalização, como proposta por Kant, não se limita a definir as

condições da experiência humana na procura de uma solução por meio do

575 Cf. KANT, Immanuel. Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Purpose. In:

BROWN, Garrett Wallace; Held, David (Eds.). The Cosmopolitanism Reader. Malden,

MA: Polity Press, 2010. pp. 23-25. 576 Cf. BROWN, Wallace. Kant´s Cosmopolitanism. In: BROWN, Garrett Wallace; Held,

David (Eds.). The Cosmopolitanism Reader. Malden, MA: Polity Press, 2010. p. 58. 577“ [T]he forces of nature were organized in such a way that it would eventually produce

a cosmopolitan condition.” (Ibid., p. 50.) 578 Cf. Ibid., p. 51. 579 “What is often considered dubious about Kant’s understanding of globalization is that

he seems to argue that nature has created the dialectics involved with

interconnectedness as a way to force humans to seek peace and universal condition of

justice.” (Ibid., p. 51)

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cosmopolitismo, mas também como o plano oculto da natureza para

alcançar a matriz de cosmopolitismo e desenvolver as capacidades da raça

humana.580

Já para Beck (2011), o cosmopolitismo atualmente está travado

entre dois pólos. Em primeiro lugar, existe a insistência dos cientistas e

dos ativistas políticos em trabalhar a partir do quadro do Estado-nação.

Beck critica essa noção que categoriza o mundo de acordo com a

dualidade “nacional” e “internacional”. Ademais ele não concorda com a

crítica da filosofia utópica e abstrata do cosmopolitismo que se desvia da

realidade social atual.

Segundo Beck, precisamos de uma forma alternativa para entender

o cosmopolitismo, visto que:

Cosmopolitização é um processo não linear e dialético, no

qual o universal e o particular, o similar e o diferente, o

global e o local têm de ser concebidos não como polaridades

culturais, mas como princípios interligados e mutuamente

interpretáveis.581

A cosmopolitização, na forma de mudança na vida dos seres humanos,

não deve ser entendida como se todos estivessem se tornando

cosmopolitas. O processo de cosmopolitização é um cosmopolitismo

passivo, oculto e inconsciente que ocorre tanto como efeito colateral do

comércio quanto das ameaças globais.

Beck (2003) procura diferenciar o cosmopolitismo da globalização,

diferenciando o globalismo da globalização. Para Beck, globalismo é

580 Cf. BROWN, Wallace. Kant´s Cosmopolitanism. In: BROWN, Garrett Wallace; Held,

David (Eds.). The Cosmopolitanism Reader. Malden, MA: Polity Press, 2010. p. 51. 581 “Cosmopolitanization is a non-linear, dialectic process in which the universal and

particular, the similar and the dissimilar, the global and the local are to be conceived, not

as cultural polarities but as interconnected and reciprocally interpreting principles.”

(BECK, Ulrich. Cosmopolitan Sociology: the outline of an argument. Ulrich Beck

Online. Disponível em: <http://www.ulrichbeck.net-

build.net/index.php?page=cosmopolitan>. Acesso em: dez./2011.)

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a ideologia do domínio do mercado mundial, a ideologia do

neoliberalismo. No caso, globalização é unidimensionalmente

igualada à globalização econômica sob o ditame do mercado

mundial.582

A partir disso, Beck (2003) procura formar sua ideia de um novo

cosmopolitismo diferentemente do globalismo:

[O] cosmopolitismo favorece o reconhecimento da

diversidade autêntica, já que o globalismo apoia a sua

negação. Portanto, devemos desenvolver uma compreensão

nova, crítica, autocrítica de cosmopolitismo. Esse conceito

vetusto precisa se livrar de sua origem no universalismo

imperial – de Kant, mas também de muitos outros – e se

abrir para o reconhecimento da diversidade, representá-la

energicamente.583

Neste sentido, o cosmopolitismo precisa deixar a ideia do amor à

humanidade e começar com o novo significado de local. Esta contradição

pode ser superada por meio da ética cosmopolita que transcende o local

para ser uma ética da “globalização”.584

A globalização não precisa ser pensada apenas em termos de

interdependência entre as diferentes unidades estatais-nacionais, mas

igualmente em termos de localização ou, segundo Beck (2003), de

glocalização. Isto porque a globalização não envolve somente a abolição

das fronteiras, mas também a criação de outras novas.585

Mesmo sendo um dos assuntos mais discutidos no mundo atual, o

conceito “globalização” não está bem definido. O teórico Sen (2007), não

aceita culpar a globalização pelos problemas de privação e da estrutura

social. Os problemas estão ligados a falhas de coordenação social, política

582 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes

Willms. Trad. Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: Ed. UNESP, 2003. p. 197. 583 Ibid., p. 189. 584 Para nós, essa ética de “globalização” ou cosmopolita é expressa como uma ética pós-

metafísica em termos de Vattimo, o que será discutida ainda neste capítulo. 585 Cf. BECK, op. cit., pp. 183-184.

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e econômica. Todavia, a crítica da globalização traz importantes questões

para a discussão pública.586

Segundo Sen (2007), a globalização é vista como um produto

europeu que começou no Renascimento, e depois passou pelo Iluminismo,

pela Revolução Industrial, espalhando-se no mundo inteiro. Essa versão

que vê a globalização como o presente do Ocidente para o mundo,

segundo Sen: “tem um fundo de verdade [...], mas também existem

muitos conceitos equivocados, que, atualmente, alimentam uma divisão

global artificial.”587 Tampouco podemos ver a globalização como fenômeno

recente ou que somente pode nos levar à calamidade.588

A globalização de ciência e da tecnologia como produtos de

imperialismo Ocidental também não faz sentido, pois “há questões ligadas

à globalização que, realmente, estão relacionadas com o imperialismo”.589

Mesmo assim, e apesar das histórias de colonização e humilhação que

continuam relevantes até hoje, a globalização não deve ser vista

essencialmente dentro desse quadro, mas como um processo mais amplo.

O uso do termo “antiglobalizalição”, segundo Sen (2007), “não é

uma boa descrição da origem do descontentamento associado a esse

termo”.590 Mesmo assim, a crítica feita em nome da antiglobalização pode

ser considerada “o movimento moral mais globalizado no mundo

atualmente”.591 A globalização tem seus méritos em diversas áreas, como

na medicina e na tecnologia e até mesmo na área econômica, o que pode

586 Cf. SEN, Amartya. Identity and Violence: The Illusion of Destiny. London: Penguin

Books, 2007. pp. 121; 124. 587 “[It] has a grain of truth in it, but there is much fantasy too, which, as it happens,

feeds an artificial global divide.” (Ibid., p. 125.) 588 Cf. Ibid., p. 125. 589 “[T]here are issues related to globalization that actually do connect with imperialism.”

(Ibid., p. 130.) 590 “[It] is not a good description of the nature of the discontent that goes under that

name.” (Ibid., p. 123.) 591 “[T]he most globalized moral movement in the world today.” (Ibid., p. 124.)

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219

ser testemunhado em diferentes partes do mundo e muitos dos

movimentos de antiglobalização não veem isso como um problema.592

Alguns movimentos de antiglobalização acreditam que o problema

central é que, com a globalização, “os ricos, no mundo, estão ficando mais

ricos e os pobres, mais pobres”.593 Em outras palavras, a desigualdade

não está somente grande, mas aumenta cada vez mais. Porém, para Sen,

esta não é a forma correta para entender o problema da globalização, pois

mesmo que isto possa acontecer em alguns lugares de mundo, não

podemos adotar essa generalização, até porque a globalização, em alguns

lugares menos privilegiados, teve um resultado decisivo em fazer os

pobres menos pobres.594

Segundo Sen (2007), há dois problemas centrais ligados à

possibilidade de se fazer parte dessa economia global e que podem

pertencer à crítica da globalização. Em primeiro lugar, “[a] exclusão, aqui,

é um problema tão importante quanto a inclusão desigual”.595 Isto requer

uma mudança tanto em âmbito nacional quanto internacional das políticas

econômicas, principalmente dos países mais ricos. Em segundo lugar,

mesmo quando os mais pobres estão conseguindo se incluir na economia

global, isso não significa que “conseguem se beneficiar de boa parte das

vantagens das inter-relações econômicas e de seu grande potencial”.596

Isso nos leva a perguntar se:

Eles podem, de forma factível, ter algo melhor – e mais

justo, com menos disparidades de oportunidades

econômicas, sociais e políticas. Em caso afirmativo,

592 Cf. SEN, Amartya. Identity and Violence: The Illusion of Destiny. London: Penguin

Books, 2007. pp. 131-32. 593 “[T]he rich in the world are getting richer, and the poor poorer.” (Ibid., p. 132.) 594 Cf. Ibid., pp. 132; 134. 595 “Exclusion is as important a problem here as unequal inclusion.” (Ibid., p. 133.) 596 “[T]he poor are getting a fair share of the benefits of economic interrelations and of

its vast potential.” (Ibid., p. 134)

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[perguntar-se] por meio de quais rearranjos internacionais e

locais isso seria possível.597

Sen afirma que essas são as questões centrais que devem ser examinadas

como crítica à globalização. E, para isso, precisamos sempre lembrar que

o mercado não pode atuar de forma independente porque seus atos terão

sempre consequências que ultrapassam seu próprio mecanismo.

A economia da globalização, segundo Sen (2007), não deve ser

somente uma forma de abrir o mercado, visto que as consequências dessa

abertura influenciam áreas como as políticas públicas de educação

alfabetização, de epidemiologia entre outras. O capitalismo global está

mais interessado no mercado do que no estabelecimento da democracia,

na melhoria da educação pública ou na garantia dos recursos sociais para

os menos privilegiados economicamente. Portanto, a globalização, como

afirma Sen, não deve se limitar à questão econômica de comércio livre, o

que exige uma reorganização institucional para uma distribuição mais

justa dos ganhos econômicos.598

Appiah (2007b), por sua vez, em vez de tentar consertar o conceito

de “globalização”, prefere resgatar o termo “cosmopolitismo”. Para ele,

“você poderia descrever a história da espécie humana como um processo

de globalização”.599 Ao mesmo tempo ele não utiliza o termo

“multiculturalismo”, que para ele é outro termo que apresenta um

problema por provocar o próprio problema de que ele pretende tratar.600

Appiah (2007a) não se preocupa em demonstrar a face “real” da

globalização, mas crítica as divisões entre o “Ocidente e o Resto, entre as

597 “[It] can feasibly get a better − and fairer – deal, with less disparities of economic,

social, and political opportunities, and if so, through what international and domestic

rearrangements this could be brought about.” (SEN, Amartya. Identity and Violence:

The Illusion of Destiny. London: Penguin Books, 2007. p. 136.) 598 Cf. Ibid., p. 139 599 “[Y]ou could describe the history of the human species as a process of globalization.”

(APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of Identity. New Jersey: Princeton University

Press, 2007, p. 216.) 600 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitanism: ethics in a world of strangers. New

York: W.W. Norton, 2007. p. xiii.

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culturas locais e modernas, entre a ética desumana do lucro e a ética

sangrenta de identidade, entre ‘nós’ e ‘eles’”.601 Ao mesmo tempo, ele

acredita que enquanto alguns valores devem ser universais, muitos outros

devem continuar sendo locais. A crítica que Appiah faz ao Iluminismo não

é por acreditar na natureza humana como única ou por acreditar no

universalismo da razão, mas por não perceber o que nós, todos os seres

humanos, temos em comum.

Precisamos diferenciar o conflito de valores e o conflito dos

interesses imperialistas, pois “um dos efeitos do colonialismo não foi só

dar a muitos dos nativos uma língua europeia, mas também ajudar a dar

forma a seus desígnios”.602 Muitos conflitos são baseados em interesses e

as duas partes adotam os mesmos valores, mas para servir à sua

narrativa. Portanto, o conflito pode ser não sobre os valores em si, mas

sobre o significado dos mesmos valores e o nível de sua importância, o

que acaba tornando os conflitos mais intensos.603

Appiah (2007b) utiliza o termo “cosmopolitismo” não na sua forma

kantiana clássica, mas como um “cosmopolitismo parcial”, um

cosmopolitismo que não procura destruir o nacionalismo nem tenta

separar o que pode ser considerado como lealdade “verdadeira” ou

“falsa”.604 Em outras palavras, Appiah sugere um cosmopolitismo que não

tem como base um pensamento fundamentalista.

O universalismo que Appiah defende é o “universalismo da biologia

humana”, um cosmopolitismo que vai além da natureza humana, porque

tanto o nascimento quanto a morte não se limitam à vida orgânica por

601 “West and the Rest; between locals and moderns; between bloodless ethic of profit

and bloody ethic of identity; between ‘us’ and ‘them’.” (APPIAH, Kwame Anthony.

Cosmopolitanism: ethics in a world of strangers. New York: W.W. Norton, 2007. p.

xxi.) 602 “[O]ne of the effects of colonialism was not only to give many of the natives a

European language, but also to help shape their purposes.” (Ibid., p. 80.) 603 Cf. Ibid., p. 81. 604 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of Identity. Princeton: Princeton University

Press, 2007. p. 222.

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222

serem ligadas a rede de relacionamentos humanos e seus valores,

sugerindo que a vida não depende somente dos fatos, mas também dos

valores.605

O cosmopolitismo defendido por Appiah parece estar,

concomitantemente, entre o universalismo e o antiuniversalismo. Isto

porque os cosmopolitas não têm aquelas certezas dos universalistas sobre

ter a verdade universal na sua forma integral. Porém, isto não quer dizer

que eles são céticos, mas que a verdade universal é algo tão vasto e difícil

para ser afirmado como a verdade objetiva ou única.

Esse cosmopolitismo, segundo Appiah (2007b), é diferente do

cosmopolitismo liberal que tolera as diferenças desde que elas não sejam

moralmente indiferentes, e desde que se encaixem nos padrões

universais. A crítica é feita à versão liberal do cosmopolitismo porque a

“justiça social não é um atributo de indivíduos”.606 Estamos sempre

ligados aos outros e, ainda que não seja com a mesma intensidade, a

nossa justiça é ligada à justiça dos outros.

Conforme afirma Appiah, o erro do liberalismo não está na sua

procura de igualdade para atingir a justiça social, mas no seu

entendimento do “igual” como “idêntico”. Isso ocorre tanto no contexto

pessoal quanto no político, devido à complexidade entre as normas

teóricas e as normas empíricas humanas (o bom senso) e que podem ser

rejeitadas quando não concordam com as normas teóricas.607

A “igualdade moral” apresenta duas preocupações: a primeira é

acreditar que a “justiça distribuída” pode se encaixar no que é particular

para nós. Esta é parte da definição do Mal e como ele é visto em cada

605 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of Identity. Princeton: Princeton University

Press, 2007. p. 252. 606 “[S]ocial justice is not an attribute of individuals.” (Ibid., p. 228.) 607 Cf. Ibid., pp. 228-229.

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sociedade. Em segundo lugar, a igualdade não vem da moralidade de

cada um, mas representa um ideal político e não de conduta pessoal.608

Portanto, tratar as pessoas com igualdade, no sentido de ter o

mesmo respeito, não significa tratá-los da mesma forma:

[A] doutrina política que atesta que o Estado deveria

mostrar igual atenção para com os cidadãos tem sido

confundida com um imperativo moral que expressa que as

pessoas deveriam ter o mesmo cuidado umas com as

outras.609

O outro nunca é visto como “pessoa”, mas como “povo” e pode fazer

parte de nossas famílias, amigos ou da nossa comunidade.

Os cosmopolitas precisam ir além das questões de quem possui a

verdade ou adotar uma forma de tolerância. O cosmopolitismo, segundo

Appiah (2007a), pode ser alcançado por meio do Pluralismo, que significa

que “existem muitos valores pelos quais vale a pena viver e que não se

pode viver em nome de todos eles”.610 A esperança é de que as pessoas e

as sociedades incorporem novos valores, desde que esses valores valham

a pena para nós mesmos e para que possamos viver junto com os outros.

Portanto, podemos chamar este cosmopolitismo de “falibilismo”, uma vez

que o nosso conhecimento nunca está completo ou perfeito.

A nosso ver, e apesar das diferentes formas de entender os termos

“cosmopolitismo” e “globalização” entre esses autores, há uma

preocupação sobre a atual situação desse processo mundial. E as

diferentes ligações dessas preocupações exigem soluções inovadoras, seja

como uma forma alternativa da globalização ou de cosmopolitismo, para

608 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of Identity. Princeton: Princeton University

Press, 2007. p. 230. 609 “[T]he political doctrine that the state should show equal concern toward citizens has

been mistaken for a moral imperative that persons should show equal concern to one

another.” (Ibid., p. 236.) 610 “[T]here are many values worth living by and that you cannot live by all of them.”

(APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitanism: ethics in a world of strangers. New York:

W.W. Norton, 2007. p. 144.)

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que todo mundo seja incluso nesse processo de uma forma justa. E isto,

para nós, exige o abandono das ideias com base em verdades fortes, a

favor de um cosmopolitismo de “falibilismo”, nos termos de Appiah

(2007a), ou de uma nova visão sobre a globalização.

A esse respeito, o teórico cultural Bhabha (2008) nos alerta sobre o

“cosmopolitismo global”, “que valoriza a prosperidade e o privilégio

oriundo dos modos de governança neoliberais e das forças da

concorrência do livre mercado”.611 Para Bhabha, esse tipo de

cosmopolitismo deposita sua fé no poder da tecnologia e comunicação

avançadas, o que celebra uma “cultura mundial” ou um “mercado

mundial” desde que a margem de lucro produzido nas metrópoles seja

agradável. Seu deslocamento é rápido de uma área tecnológica para a

outra com seu foco na prosperidade, e não nas desigualdades produzidas

por esse desenvolvimento parcial.612

Bhabha (2008) sugere que o cosmopolitismo precisa ser aberto para

todos, ressaltando que o direito de ser diferente

não implica a volta a uma identidade original (ou

essencialista) de um grupo ou uma cultura; nem considera a

igualdade uma neutralização das diferenças em nome da

universalidade dos direitos cuja aplicação pelos Estados é

frequentemente impedida por políticas discriminatórias.613

Um exemplo desse cosmopolitismo é o que Bhabha chama de

“cosmopolitismo pós-colonial numa escala global”, como no caso de

611 “[C]elebrate the prosperity and privilege that has resulted as a consequence of neo-

liberal modes of governance, and free-market forces of competition.” (BHABHA, Homi K.

Ethics and Aesthetics of Globalism: a postcolonial perspective. In: RIBEIRO, Antonio

Pinto (Ed.). The Urgency of Theory. Manchester: Carcanet Press Ltd, 2008. p. 8.) 612 Cf. Ibid., pp. 8; 9. 613 “[It] does not require the restoration of an original (or essentialist) cultural or group

identity; nor does it consider equality to consist in a neutralization of differences in the

name of the universality of rights in which implementation by states is often blocked by

discriminatory policies.” (BHABHA, Homi K. Ethics and Aesthetics of Globalism: a

postcolonial perspective. In: RIBEIRO, Antonio Pinto (Ed.). The Urgency of Theory.

Manchester: Carcanet Press Ltd, 2008. pp. 10; 11.)

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“metáfora indiana”, por ser inspirado pela experiência contemporânea da

Índia.

A Índia se tornou uma metáfora pela sua forma de viver e trabalhar

no mundo globalizado de hoje, devendo-se reconhecer dois processos:

Os processos de transferência – financeira, cultural, da

mídia, dos mercados –, bem como o processo de

transformação – o questionamento da soberania nacional, as

ambiguidades da lei e das convenções internacionais, o

hibridismo das culturas, as complexidades de governança

global.614

Esse cosmopolitismo não se baseia numa verdade forte, mas na

dúvida. Esse espaço de dúvida não é um estado de quem está sem rumo;

pelo contrário, é um espaço que nos permite a interpretação da verdade

como uma prática social de interlocução, de autoinvestigação, inteligência

crítica, e deliberação política ética.

O espaço da “dúvida global”, segundo Bhabha (2008), é crucial

porque, para alcançar este cosmopolitismo,

“[A] dúvida” é uma hermenêutica das verdades: é uma

prática social que consiste na autoinvestigação, na

inteligência crítica, na deliberação ética e política, e na

interlocução social. É o processo pelo qual nós testamos as

condições da verdade, bem como as consequências práticas

e pragmáticas de nossos atos como agentes no mundo.615

A dúvida global antecipa qualquer ação ou agência como um elemento

dialético e de equilíbrio entre os benefícios de transferência global e as

614 “[T]he processes of transfer – financial, cultural, the media, markets – as well as the

process of transformation – the challenge to national sovereignty, the ambiguities of

international law and conventions, the hybridization of cultures, the complexities of

global governance.” (BHABHA, Homi K. Ethics and Aesthetics of Globalism: a postcolonial

perspective. In: RIBEIRO, Antonio Pinto (Ed.). The Urgency of Theory. Manchester:

Carcanet Press Ltd, 2008. p. 15.) 615 “‘Doubt’ is a hermeneutic of truths: it is a social practice that consists in self-inquiry,

critical intelligence, ethical-political deliberation, and social interlocution. It is the process

through which we test the truth-conditions, and the practical, pragmatic consequences,

of our acts as agents in the world.” (Ibid., p. 15; 16.)

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consequências e o custo da transformação. A dúvida global nos ajuda a

questionar sempre o quanto essas mudanças são justas.

A dinâmica da globalização, segundo Bhabha (2008), provoca uma

ambivalência em diferentes níveis e grupos; entre aqueles que celebram a

globalização como a era de tecnologia da informática, os que veem a terra

como seu espaço de mercado global. Por o outro lado, os “realistas”

globais veem na globalização uma força perigosa que ameaça o mundo na

forma do choque de civilizações. E enquanto os liberais enfatizam os

princípios universais de liberdade, eles querem exportar uma democracia

forçada para o resto do mundo.616

O choque de 11 de Setembro teve um impacto profundo na nossa

forma de entender o que significa ser um sujeito, um cidadão na esfera

pública. Para Bhabha (2008), “[s]e a globalização é uma transformação do

mundo que conhecemos, é também uma fase de transição que

desestabiliza nosso modo de conhecer o mundo no qual vivemos”,617

assim sendo, é necessária uma revisão do limite entre a vida privada e

pública.

Não obstante, Bhabha critica a noção de que somos livres para

rejeitar nossas identidades ora instituídas em nós por meio da língua, da

nação ou da religião:

Ao contrário do futuro, não podemos escolher nosso passado

cultural ou biográfico, podemos esquecê-lo como um ato de

amnésia histórica, podemos reconstruí-lo para alinhá-lo com

nossos interesses atuais; ou podemos incorporar o passado

no presente para demonstrar a continuidade da tradição

cultural como parte da confluência de uma história

compartilhada. Em cada um desses casos, nós negociamos

616 Cf. BHABHA, Homi K. Ethics and Aesthetics of Globalism: a postcolonial perspective.

In: RIBEIRO, Antonio Pinto (Ed.). The Urgency of Theory. Manchester: Carcanet Press

Ltd, 2008. pp. 5; 6. 617 “If globalization is a transformation of the world as we know it, it is also a state of

transition that unsettles our ways of knowing the world we live in” (Ibid., p. 6.)

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com o passado para transformar nossas vidas, mas não

podemos simplesmente escolhê-lo ou deixá-lo de lado.618

Estamos sempre em diálogo com o passado. Como coloca Bhabha, “o

passado se aproxima de você, desejando renascer”.619 Somos nós que

decidimos entre abraçá-lo e obedecê-lo, ou conflitar com ele sabendo que

as coisas nunca serão do jeito que já foram antes.

A globalização tem que começar sempre em casa. Como afirma

Bhabha (2008), antes de falar de progresso global, precisamos examinar

como as nações se globalizam em primeiro lugar, e como elas tratam as

questões de diversidade cultural, redistribuição de renda, e direitos das

minorias. Caso contrário, tentar impor a globalização em todas as nações

em nome do progresso global pode resultar em soluções que têm a

característica do poder colonial: um poder que, por meio de sua

superioridade econômica, coloca os países mais pobres sob seu

domínio.620

A ideia de começar a globalização em casa coincide com o conceito

de “cosmopolitismo de baixo”, proposto por Kurasawa (2009). Kurasawa

distingue dois tipos de cosmopolitismo: o “cosmopolitismo de cima” e o

“cosmopolitismo de baixo”. O primeiro conceito, o “cosmopolitismo de

cima”, é aplicado sobre a população para institucionalizar o espírito

cosmopolitanista. O elitismo cultural é um exemplo desse tipo de

cosmopolitismo. As pessoas com maior poder econômico e mobilidade se

identificam como cidadãos do mundo, distanciando-se de um local ou uma

618 “[U]nlike the future, we cannot choose our cultural or biographical past; we can forget

it as an act of historical amnesia; we can reconstruct it to conform to our present

interests; or we can gather the past into the present in order to demonstrate the

continuity of cultural tradition as part of the confluence of a shared history. In each of

these cases we negotiate with the past to transform our lives; but we cannot simply

choose or unchoose the past.” (BHABHA, Homi K. Ethics and Aesthetics of Globalism: a

postcolonial perspective. In: RIBEIRO, Antonio Pinto (Ed.). The Urgency of Theory.

Manchester: Carcanet Press Ltd, 2008. p. 7.) 619 “The past reaches out to you, yearning to be reborn.” (Ibid., p. 12.) 620 Cf. Ibid., p. 8; 9.

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nacionalidade específica. Nessa mesma linha, o autor critica o

cosmopolitismo neoliberal que é

[m]uitas vezes expresso por líderes ocidentais políticos e

empresariais, que afirmam que o livre comércio e os

mercados não regulados são as principais vias pelas quais os

estados anteriormente "isolados" podem se tornar membros

do conjunto internacional constituído pelas nações liberais e

iluministas.621

A circulação dos investimentos e das mercadorias acaba criando, segundo

esta versão de cosmopolitismo, círculos de capitalismo global que levam

democratização e abertura aos outros países. O cosmopolitismo

neoimperialista, com sua devoção à “Pax Americana”, segundo Kurasawa,

é outro exemplo do cosmopolitismo de cima,622 na conjuntura

contemporânea.

Kurasawa (2009) afirma que essa modalidade de cosmopolitismo

acaba sendo uma nova forma de missão civilizadora que justifica invadir

outros países em nome da “democratização” daqueles povos sob regimes

não democráticos.623 Ser cosmopolitano se torna uma forma de obedecer

aos interesses geopolíticos e econômicos do país mais forte, neste caso,

os Estados Unidos da América.

A importância do projeto de um cosmopolitismo crítico, o que

Kurasawa (2009) chama de “cosmopolitismo de baixo” por ser construído

a partir de uma democracia participativa radical e na reciprocidade

igualitária, manifestando-se no ambiente econômico, político e cultural no

seu processo de transformação para a globalização alternativa:

621 “ Often voiced by Western political and corporate leaders, who declare that free trade

and unregulated markets are the preeminent vehicles through which formerly “isolated”

states can become members of the international concert of liberal, enlightened nations.”

(KURASAWA, Fuyuki. Global Justice as Ethico-Political Labor and the Enactment of Critical

Cosmopolitanism. Rethinking Marxism, Vol. 21, no. 1, 2009, p. 85-102. Disponível em:

<http://www.yorku.ca/kurasawa/Kurasawa%20Articles/RM%20Article.pdf>. Acesso em:

maio/ 2012, p. 97.) 622 Cf. Ibid., p. 97. 623 Cf. Ibid., p. 97.

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O trabalho cultural do cosmopolitismo crítico, por sua vez,

deve saber lidar com o ressurgimento e o choque de

fundamentalismos étnicos e raciais, bem como religiosos, na

política contemporânea nacional e mundial, visões estas de

mundo que enfatizam as semelhanças dentro das

comunidades e as divergências entre estas, a fim de

apresentá-las como inimigas incomparáveis e distintas

condenadas a se relacionarem.624

O dialogismo intercultural garante o direito de alcançar a igualdade

universal ao garantir os direitos da diferença individual e coletiva, o que

envolve não somente dialogar, mas aprender com as tradições não

ocidentais.

Kurasawa (2004) demonstra a importância do trabalho de construir

o cosmopolitismo de baixo na ação social global.625 Esta versão atualizada

de solidariedade global, segundo ele, não se baseia na homogeneização

global, fragmentação política, ou numa sociedade formalista, dado que

[o] cosmopolitismo não significa ser de lugar nenhum ou de

todos os lugares ao mesmo tempo, mas, ao contrário,

implica saber lidar com a existência simultânea de

identidades locais, nacionais e globais multifacetadas.626

Muitas associações civis que fazem parte do Movimento Alternativo de

Globalização, doravante AGM (sigla em inglês de Alternative Globalization

624 “Critical cosmopolitanism’s cultural labor, for its part, must face up to the resurgence

and clash of ethno-racial and religious fundamentalisms in contemporary domestic and

world politics, world-views that essentialize similarities within communities and

divergences between them in order to present them as incommensurable and discrete

enemies doomed to entertain relations with one another.” (KURASAWA, Fuyuki. Global

Justice as Ethico-Political Labor and the Enactment of Critical Cosmopolitanism.

Rethinking Marxism, Vol. 21, no. 1, 2009, p. 85-102. Disponível

em: <http://www.yorku.ca/kurasawa/Kurasawa%20Articles/RM%20Article.pdf>. Acesso

em: maio/ 2012, p. 99; 100.) 625 Cf. KURASAWA, Fuyuki. A Cosmopolitanism from Below: Alternative Globalization and

the Creation of a Solidarity without Bounds. European Journal of Sociology/Archives

européennes de sociologie, Vol. 45, no. 2, 2004, pp. 233-255. Disponível em

<http://www.yorku.ca/kurasawa/Kurasawa%20Articles/EJS%20Article.pdf>. Acesso em:

dez./2011, p. 234. 626 “[C]osmopolitanism does not signify being from nowhere or everywhere at once, but

rather embracing the simultaneous existence of multilayered local, national and global

identities.” (Ibid., p. 240.)

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Movement),627 estão baseadas na solidariedade para com os excluídos e

também na oposição contra as formas de opressão por eles enfrentadas.

Kurasawa não descarta a importância de um “cosmopolitismo de

cima” que procura alcançar a solidariedade sem fronteiras. Todavia, esse

tipo de cosmopolitismo terá suas limitações. A AGM é uma tentativa,

ainda que não seja a ideal, de uma forma alternativa de globalização

neoliberal. Isto ocorre por meio da ampliação da ideia original de

globalização para incluir todas as pessoas, ideais e formações.

O “cosmopolitismo de baixo” é um cosmopolitismo

sem limites – mas é, sobretudo, sem garantias. É construído

a partir do zero, sendo um trabalho em andamento que

precisa ser recriado e reinventado constantemente.628

Esse cosmopolitismo, não está construído a partir de normas abstratas,

essências naturalizadas ou acordos institucionais. Ele representa a

obrigação que todos os homens têm um para com o outro para viver num

mundo justo e pluralista, por meio dos processos de compartilhar, discutir

e fazer parte da multidão.

Conforme Kurasawa (2004), o cosmopolitismo precisa reconhecer a

diversidade global e o pluralismo, e não a assimilação cultural como um

projeto sócio-político futuro para se alcançar uma integração social

627 Kurasawa utiliza o termo Movimento Alternativo de Globalização em vez de “anti-

globalização” por não ser oposto ao termo “globalização” per se. (Cf. KURASAWA, Fuyuki.

A Cosmopolitanism from Below: Alternative Globalization and the Creation of a Solidarity

without Bounds. European Journal of Sociology/Archives européennes de

sociologie, Vol. 45, no. 2, 2004, pp. 233-255. Disponível em

<http://www.yorku.ca/kurasawa/Kurasawa%20Articles/EJS%20Article.pdf>. Acesso em:

dez./2011.) 628 “[It is] without bounds – but it is, just as significantly, without guarantees. It is built

from the ground up, and remains a work in progress continually in need of being

recreated and reimagined.” (Ibid., p. 252.)

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transnacional.629 A própria ideia da globalização alternativa cria uma força

e ligação fortalecida entre os indivíduos e os grupos.

Por fim, ser cosmopolita, nesse sentido, não significa ter tolerância

em relação ao Outro, mas participação em ações políticas que

asseveram a condição de igualdade entre os seres humanos,

ao se construir uma consciência planetária, conforme a qual

uma situação humana compartilhada, ainda que diversa,

marcada pelo hibridismo e miscigenação, pode se propagar

muito além das categorias absolutistas de familiaridade,

uniformidade e contiguidade.630

Kurasawa defende um cosmopolitismo em que a justiça global seja

uma ação para a emancipação normativa e sociopolítica, na qual os

direitos humanos deixam seu papel formal atual para se tornarem

elementos no combate ao sistema de dominação, no caminho rumo a uma

justiça global.631

Tanto o conceito de “globalização alternativa” quanto o

“cosmopolitismo de baixo”, para nós representam a criação de uma nova

consciência para evitar-se o pensamento fundamentalista relacionado à

política e à economia mundial, na forma de um processo de constante

transformação e reinvenção das verdades para o diálogo com os diversos

povos, interesses políticos e condições econômicas.

629 Cf. KURASAWA, Fuyuki. A Cosmopolitanism from Below: Alternative Globalization and

the Creation of a Solidarity without Bounds. European Journal of Sociology/Archives

européennes de sociologie, Vol. 45, no. 2, 2004, pp. 233-255. Disponível em

<http://www.yorku.ca/kurasawa/Kurasawa%20Articles/EJS%20Article.pdf>. Acesso em:

dez./2011, p. 239. 630 “[They] assert human beings’ equal status while constructing a planetary

consciousness according to which a shared yet diverse human condition marked by

hybridity and métissage can thrive above and beyond absolutist categories of familiarity,

sameness, and proximity.” ( KURASAWA, Fuyuki. Global Justice as Ethico-Political Labor

and the Enactment of Critical Cosmopolitanism. Rethinking Marxism, Vol. 21, no. 1,

2009, p. 85-102. Disponível em:

<http://www.yorku.ca/kurasawa/Kurasawa%20Articles/RM%20Article.pdf>. Acesso em:

maio/ 2012, p. 100.) 631 Cf. Ibid., p. 100.

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232

O cosmopolitismo de baixo, na forma de um projeto sócio-político

futuro, representa uma chance de evitar os conflitos gerados pelas

tendências econômicas ou políticas que seguem uma forma de

pensamento fundamentalista com base em uma verdade única e absoluta.

Como já vimos no segundo capítulo, tanto o pensamento político de

Huntington, que categoriza e divide as civilizações mundiais com objetivo

de manter a dominação ocidental, quanto o fundamentalismo de livre

mercado, provocam mais conflitos e enfatizam a injustiça global.

3.3.2. Além do nacionalismo: hospitalidade e perdão

A divisão nacional do Estado está passando por um desafio, na

tentativa de unir os diferentes países para formar uma aliança que

compartilhe certas identidades étnicas, religiosas ou econômicas, tanto

quanto para dividir os Estados já existentes em novos Estados menores.

Nos dois casos, o conceito de Estado-nação é abalado num mundo que

está cada vez mais interconectado. Esse dualismo nos leva a uma nova

forma de ver o cosmopolitismo, que ultrapassa os limites geográficos do

Estado, mas que não procura abolir ou redefinir sua função.

A globalização trouxe para o Estado-nação desafios bem maiores.

Benhabib (2002) afirma que a globalização inclui aspectos de cidadania

democrática, como os direitos humanos, as redes de solidariedades e

organizações não-govermentais que ultrapassam os limites das culturas e

das religiões, e que o surgimento da cidadania democrática pode ser

realizado tanto nos contextos nacionais quanto nos transnacionais.632 A

questão mais urgente, contudo, é se podemos preservar a agência

democrática com esse modelo de cidadania unificada.

Segundo Benhabib (2002), isto leva a uma crise de legitimidade

democrática para o Estado-nação, e o “‘nós’ em ‘nós, o Povo’, está cada

632 Cf. BENHABIB, Seyla. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global

Era. Princeton: Princeton University Press, 2002. p. 183.

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vez mais batido e amorfo”.633 Os movimentos com base identitária

desafiam as barreiras e deixam o “nós” fragmentado, ao questionar:

“Quem somos ‘nós’?” O conceito ocidental de cidadão, que se estendeu

além do Ocidente, é influenciado pelas mudanças do Estado-nação.634

O fator central dessas mudanças, segundo Benhabib (2002), é a

nova fase da economia mundial. Os meios de transporte e de

comunicação modernos facilitaram o deslocamento do crédito, bem como

o movimento e o encontro entre os povos ao redor de mundo, ajudando

os imigrantes do século XXI a não perder suas ligações com o país de

origem no sentido legal, econômico e político.635

Essa ligação com o país de origem ocorre também por meio das

claves econômicas, segundo Benhabib (2002), pelos serviços oferecidos

nos grandes centros urbanos, em que a cultura do país de origem acaba

sendo perene difundida e, às vezes, transformada a ponto de não ser mais

reconhecida.636 Enquanto a migração da periferia para o centro continua,

a maior migração da globalização ocorre do centro para a periferia pelas

corporações globais.637

Benhabib afirma que as alternativas do Estado-nação em

estabelecer uma república mundial, ou a expansão sem limites de

capitalismo, representam um problema:

Enfrentamos o verdadeiro risco de que a circulação mundial

de pessoas e mercadorias, bem como a de informações e

notícias, criará um fluxo permanente de indivíduos sem

comprometimento, indústrias sem responsabilidades,

633 “the ‘we’ of ‘we, the people,’ is increasingly frayed and amorphous.” (BENHABIB,

Seyla. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era. Princeton:

Princeton University Press, 2002. p. 180). 634 Cf. BENHABIB, Seyla. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global

Era. Princeton: Princeton University Press, 2002. p. 180. 635 Cf. Ibid., p. 181. 636 “[P]erpetuated, diffused, and sometimes transformed beyong recognition”. (Ibid., p.

182.) 637 Cf. Ibid., p. 182.

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notícias sem uma consciência pública, além da disseminação

de informações sem fronteiras e critérios.638

Porém, a cidadania democrática requer um compromisso, que, por sua

vez, demanda responsabilidade e um apego mais profundo.

A nosso ver, tanto no nacionalismo quanto no cosmopolitismo, a

preocupação em relação à responsabilidade está sempre em priorizar a

exigência abstrata de uma identidade categórica acima das lealdades já

estabelecidas. Os dois também foram acusados de desafiar os laços, as

solidariedades, as tradições e os costumes locais.

Para Nussbaum (2010), o cosmopolitismo é “um convite para ser

um exilado do conforto do patriotismo e de suas ideias lenientes e para

perceber nossos próprios estilos de vida do ponto de vista da justiça e do

bem”.639 Por isso, quando Diógenes, o Cínico, dizia que ele era um

cidadão do mundo, ele demonstrava aspiração e preocupação universal.

Portanto, para Nussbaum,

[t]ornar-se um cidadão do mundo é, muitas vezes, uma

atividade solitária. Assim como Diógenes coloca, é uma

espécie de exílio do conforto das verdades locais, do

aconchego do patriotismo e do desgastante drama do

orgulho de si mesmo.640

O cosmopolitismo não nos oferece este refúgio; somente a razão e o amor

à humanidade. Isto é, um cosmopolitismo que, em termos do conceito de

638 “We are facing the genuine risk that the worldwide movement of people and

commodities, news and information will create a permanent flow of individuals without

commitments, industries without liabilities, news without a public conscience, and the

dissemination of information without a sense of boundaries and discretion.” (BENHABIB,

Seyla. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era. Princeton:

Princeton University Press, 2002. p.182.) 639 “[A]n invitation to be an exile from the comfort of patriotism and its easy sentiments,

to see our own ways of life from the point of view of justice and the good.” (NUSSBAUM,

Martha C. Patriotism and Cosmopolitanism. In: BROWN, Garrett Wallace; Held, David

(Eds.). The Cosmopolitanism Reader. Malden, MA: Polity Press, 2010, p. 157.) 640 “Becoming a citizen of the world is often a lonely business. It is, as Diogenes said, a

kind of exile – from the comfort of local truths, from the warm, nestling feeling of

patriotism, from the absorbing drama of pride in oneself and one’s own.” (Ibid., p.161.)

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pensamento “fraco” de Vattimo (2002), não tem uma verdade forte ou

objetiva como base.

Appiah (2007b), por sua vez, afirma que não significa que

precisamos abandonar nossas identidades nacionais ou locais. Enquanto

Nussbaum acredita que o fato de nascermos em determinado lugar não

passa de um “acidente” que poderia ocorrer em qualquer outro lugar do

mundo, Appiah encontra nesse contexto histórico uma responsabilidade

nossa quanto ao lugar onde nascemos. Para Appiah, enquanto tal evento

é marcante na construção de nossa identidade nacional, ele não limita

nossa projeção moral.641

Logo, para Appiah (2007b), a importância do cosmopolitismo está

em que, como cidadãos do mundo, nossa responsabilidade para com o

lugar, onde quer que estejamos, seja no nosso lugar de cidadania original

ou não, é reafirmada.642 Por isso, precisamos começar a trabalhar a partir

do lugar e da comunidade onde estivermos, e a qualquer tempo.

Enquanto o liberalismo vê o patriotismo como um perigo para a

ideia de cosmopolitismo, por ser aquele uma deserção do universalismo

moral. Appiah (2007b) afirma que nossas obrigações precisam sempre

atingir o que é especial para nós e o que é universal ao mesmo tempo. E

este sentimento de parcialidade que nos liga aos outros não requer uma

anulação das nossas relações particulares com nossos amigos e familiares,

que não são transferíveis. 643

Derrida (2004) também questiona de onde nós recebemos essa

imagem de cosmopolitismo e questiona suas raízes lógicas. Derrida

pontua que:

641 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of Identity. Princeton: Princeton University

Press, 2007. p. 243. 642 Cf. Ibid., p. 241. 643 Cf. Ibid., p. 227.

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deveríamos, além do velho ideal cosmopolita greco-cristão (os

estóicos, São Paulo, Kant), assistir ao surgimento de uma

aliança universal ou de uma solidariedade que se estenda

além da internacionalidade dos estados-nações e, assim, além

da cidadania.644

O problema é que “o Estado é tanto autoprotetor como autodestrutivo, ao

mesmo tempo remédio e veneno”.645

Para Benhabib (2008), a leitura que Derrida faz do conceito da

hospitalidade em Kant liga a hospitalidade à ordem ética e política por um

lado, e à hostilidade, por outro. Essa ligação que Derrida faz com a

história, segundo Benhabib, é de grande importância. Isto porque, para

Derrida, a hospitalidade ultrapassa os limites do encontro com o outro

antropológico e cultural, para ser um encontro ético e fundamental.

Benhabib reconhece a importância de diferenciar entre: o moral e o ético,

a moralidade e a legalidade, e a moralidade e a funcionalidade, para

podermos ter uma postura crítica.646

Nós, como cidadãos do mundo, não sabemos como essa ideia será

vista futuramente, mas queremos ultrapassar os velhos conceitos da

hospitalidade como dever ou direito. Para Derrida (2006), “a hospitalidade

é a própria cultura e não somente uma ética dentre outras”.647 A

hospitalidade é a ética. A experiência da hospitalidade, segundo ele, torna

a ética mais coextensiva.

644 BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror: diálogo com Jürgen

Habermas e Jaques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

p. 133. 645 BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror: diálogo com Jürgen

Habermas e Jaques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

p. 133. 646 Cf. BENHABIB, Seyla et al.. Another Cosmopolitanism: Hospitality, Sovereignty,

and Democratic Iterations. New York: Oxford University Press, 2006. pp. 157-158. 647 “Hospitality is culture itself and not simply one ethic among others.” (DERRIDA,

Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness: Thinking in Action. Trad. Mark

Dooley; Micheal Hughes. New York: Routledge, 2006. pp. 16-17.)

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No sentido kantiano, segundo Derrida (2006), a hospitalidade, “seja

pública ou privada, é dependente da e controlada pela lei e polícia do

Estado”.648 Porém, para Derrida, os crimes, a violência e as perseguições

que devastam as sociedades exigem uma resposta urgente e justa que vá

além das leis atuais.

A hospitalidade, para Derrida (2004), não deve ser condicional; ou

seja, uma forma da hospitalidade “sob a condição que o outro obedeça às

nossas regras, nosso modo de vida, até mesmo nossa linguagem, nossa

cultura, nosso sistema político”.649 A hospitalidade condicional, segundo

ele, será uma tolerância.

O que Derrida (2004) procura é a hospitalidade pura e incondicional,

não a hospitalidade como resultado de um convite, porque:

a hospitalidade em si, abre-se ou está aberta previamente

para alguém que não é esperado nem convidado, para quem

quer que chegue como um visitante absolutamente

estrangeiro, como um recém-chegado, não-identificável e

imprevisível, em suma, totalmente outro.650

Essa hospitalidade, afirma Derrida, pura e incondicional é, “com certeza

praticamente impossível de se viver; não podemos de modo algum, e por

definição, organizá-la”.651

Portanto, a nosso ver, essa hospitalidade pode ser entendida como

um projeto semelhante ao conceito de democracia como “democracia por

vir”, que também será aberta para o futuro, para novas possibilidades

como um processo que está sempre em progresso, e não como finalidade.

648 “[W]hether public or private, is dependent on and controlled by the law and the state

police.” (DERRIDA, Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness: Thinking in

Action. Trad. Mark Dooley; Micheal Hughes. New York: Routledge, 2006. p. 22.) 649 BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror: diálogo com Jürgen

Habermas e Jaques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

p. 138. 650 Ibid., p. 138. 651 Ibid., p. 138.

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Como afirma Derrida (2006), precisamos de “uma nova ordem em

relação à Lei e à democracia para ser colocada à prova

(experimentação)”.652 Seguindo o conceito derridiano, o cosmopolitismo é

um processo de reflexão que exige de nós reagir às urgências de que ele

trata, mesmo que sua proposta não se limite às regras das leis. Essa

democracia ultrapassa o conceito kantiniano do cosmopolitismo como

cidadania mundial, ajustando seus limites à nossa própria época.

Os traumas da história, causados pelos massacres e pela violência

contra o outro, segundo Derrida (2006), exigem formas de perdão. O

conceito de perdão já existe nas tradições abrâmicas. Para Derrida,

porém, o perdão real é perdoar o imperdoável, ao contrário disso, a

própria ideia de perdão não teria significado. O perdão, segundo Derrida,

muitas vezes é confundido com outros conceitos como “desculpa”,

“arrependimento”, “anistia”, e “prescrição”, mas para ele o perdão tem

que ser sempre um princípio heterogêneo e irredutível.653

O perdão ultrapassa o conceito de Estado-nação por exigir um

retorno para a história pela memória:

A proliferação de cenas de arrependimento, ou de pedidos

de “perdão”, significa, sem dúvida, uma necessidade

universal de memória: é preciso voltar para o passado e

considerar esse ato de memória, de auto-acusação, de

“arrependimento”, de se apresentar perante um juiz

[comparution654] além da questão jurídica ou do Estado-

Nação.655

652 “[A] new order of law and democracy to come to be put to the test

(experimentation).” (DERRIDA, Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness:

Thinking in Action. Trad. Mark Dooley; Michael Hughes. New York: Routledge, 2006. p.

23.) 653 Cf. DERRIDA, Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness: Thinking in Action.

Trad. Mark Dooley; Michael Hughes. New York: Routledge, 2006. p. 27. 654 Comparution, palavra francesa usada para indicar o ato de uma pessoa se apresentar

perante um juiz em um tribunal. (apud DERRIDA, 2006, p. 60.) 655 “The proliferation of scenes of repentance, or of asking ‘forgiveness’, signifies, no

doubt, a universal urgency of memory: it is necessary to turn toward the past and it is

necessary to take this act of memory, of self-accusation, of ‘repentance’, of appearance

[comparution] at the same time beyond the juridical instance or the Nation-State.”

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Portanto, todos precisam do perdão. Para Derrida (2006): “[t]odos nós

somos herdeiros, de uma forma ou de outra, de pessoas ou eventos

marcados, de modo indelével, por crimes contra a humanidade.”656 Toda

a raça humana é herdeira dos crimes cometidos por ela e é contra ela ao

mesmo tempo, portanto, não podemos julgar ou arbitrar.

Derrida (2006) acredita na globalização do perdão como um

processo de confissão em progresso. Esse perdão, porém, não deve ter

uma finalidade na procura para se restabelecer certa normalidade. Nesse

caso, nem a própria ação, nem o próprio conceito de perdão, terá

sentido.657 O perdão, para Derrida, tem que ser sempre excepcional e

extraordinário, e, ao adquirir uma finalidade, torna-se uma estratégia

política ou uma “economia psicoterapêutica”.

Nas tradições religiosas abraâmicas, o perdão exige dois

componentes: o culpado e a vítima. Mas assim que o perdão envolve a

interferência de uma terceira parte, nesse caso é Deus, ela não pode ser

pura no estrito senso. O corpo anônimo do Estado também não pode

perdoar porque ele carece de poder para isso. Entretanto, a violência que

está no fundamento de todos os Estados não foi somente esquecida, mas

celebrada como o grande começo do Estado que cria amnésia. Para

Derrida (2006), esse poder soberano que acompanha o perdão não faz

dele um ato de perdão “puro”, isto é, um perdão sem poder.

A questão que fica sem resposta, para Derrida (2006), é se

perdoamos algo ou a alguém. Isto é, se nós perdoamos um crime ou uma

ofensa, por exemplo, ou perdoamos a pessoa pela ofensa cometida.

Mesmo assim, o perdão, como no caso da fé, tem que possuir uma

dimensão de “loucura”. Isto porque ela não segue uma lei política ou uma

(DERRIDA, Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness: Thinking in Action. Trad.

Mark Dooley; Michael Hughes. New York: Routledge, 2006. p. 28.) 656 “We are all heir, at least, to persons or events marked, in an essential, ineffaceable

fashion, by crimes against humanity.” (Ibid., p. 29.) 657 Cf. DERRIDA, Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness: Thinking in Action.

Trad. Mark Dooley; Michael Hughes. New York: Routledge, 2006. pp. 31-32.

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transição calculada, o que a transforma numa forma de redenção ou uma

terapia de reconciliação, o que faz dela uma das palavras mais

abusadas.658

Concluímos que a divisão nacional do Estado está passando por um

desafio. O fator central dos novos desafios lançados ao nacionalismo, sob

a forma de acentuadas mudanças, está ligado à nova fase da economia

mundial. A partir do conceito de cosmopolitismo de baixo e de

globalização alternativa, procuramos um nacionalismo na forma de um

encontro ético com o outro, não com base em uma verdade metafísica,

mas como projeto em andamento para um futuro melhor e mais justo.

Ultrapassar o conceito de nacionalismo não significa abolir esse

conceito em favor de um Estado ou qualquer forma de dominação global,

mas reconhecer nossa responsabilidade tanto no lugar onde que estamos,

quanto como cidadãos do mundo. Os desafios que a verdade forte do

nacionalismo enfrenta na pós-modernidade, e com o fim das

metanarrativas, não significa um convite para substituí-la por outras

verdades fortes, seja com base religiosa como no nacionalismo religioso,

ou de um pensamento político com o objetivo de dominação mundial.

Os conceitos de hospitalidade e perdão de Derrida são, a nosso ver,

formas que nos permitem ultrapassar o conceito de nacionalismo como

verdade forte, a favor de uma versão de nacionalismo tomada a partir de

verdades “fracas”, o que nos permite encontrar com o outro antropológico

e cultural além do nosso espaço físico de Estado-nação.

Enquanto os traumas da história causados pelos massacres e pela

violência contra o outro exigem, em termos de Derrida (2006), formas de

perdão sem finalidade, e uma forma de hospitalidade que parte da nossa

responsabilidade como cidadãos do mundo, essa responsabilidade, para

nós, parte de uma ética pós-metafísica, que se manifesta na globalização

658 Cf. DERRIDA, Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness: Thinking in Action.

Trad. Mark Dooley; Michael Hughes. New York: Routledge, 2006. pp. 38-39.

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alternativa e de cosmopolitismo de baixo, e que nos permite evitar novos

conflitos.

3.3.3. O cosmopolitismo tóxico

Aqueles que procuram unificar o mundo como uma grande nação,

com base em qualquer ideologia na forma utópica de uma hegemônica

global, são chamados por Appiah (2007a) de “contra-cosmopolitanistas”.

São aqueles que querem estabelecer uma comunidade universal que nega

as barreiras nacionais e culturais, seja com base religiosa, como é o caso

de alguns fundamentalistas religiosos, ou com base ideológica secular.

Segundo Appiah (2007b), a ideia de criar uma comunidade universal

já foi adotada pelo cosmopolitismo:

O cosmopolitismo já pode ter significado a proposta de se

criar um Estado mundial para governar uma comunidade

mundial, mas isso não é o que nós entendemos por

cosmopolitismo atualmente.659

Mesmo para os estóicos, segundo Appiah, o cosmopolitismo pode ser

entendido no contexto espiritual e não como confraternização política.

Os contra-cosmopolitanistas convidam os outros a juntarem-se a

eles para que todos sejam “irmãs e irmãos”. E se eles recusam essa

uniformidade, serão atacados de diferentes maneiras, até mesmo com o

uso da violência se for necessário.660 Isto, segundo Appiah, não se

restringe à religião. Alguns Marxistas, por exemplo, que procuravam

eliminar a religião, são também contra-cosmopolitanistas por acreditarem

numa verdade universal que deve valer para todos.

659 “Cosmopolitanism might have come to mean the proposal that we create a world-

state to govern a world community; but this is not what we nowadays mean by

cosmopolitanism.” (APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of Identity. Princeton:

Princeton University Press, 2007. p. 218.) 660 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitanism: ethics in a world of strangers. New

York: W.W. Norton, 2007. pp. 144-145.

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As lições aprendidas na história ensinaram que os conflitos religiosos

insistiam na sua versão da verdade como única e autêntica, resultando em

muitos massacres. Todavia, isso não se restringe às religiões, pois muitos

liberais do Iluminismo “chegaram à conclusão de que insistir em uma

visão de verdade universal só poderia levar o mundo de volta aos banhos

de sangue”.661 Segundo Appiah (2007a), essa atitude faz da crueldade e

dos assassinatos cometidos uma forma de limpeza moral em nome da

verdade universal.

Essas ideologias universalistas são diferentes tipos daquilo que

Appiah (2007b) chama de “cosmopolitismo tóxico”:

Uma ideologia pode ser totalmente supranacional e também

implacavelmente não liberal: o universalismo moral pode ter

uma postura homogeneizante. Especialmente em suas

variedades obstinadamente utópicas, os universalismos

podem ser, de fato, malignos.662

Esse tipo de cosmopolitismo deve ser combatido porque carrega uma

agenda de uniformidade que ele quer impor a todos e em qualquer

contexto. Esse universalismo maligno pode ser visto nos movimentos

reacionários e também nos movimentos sociais radicais.663

Um exemplo dos movimentos religiosos que adotam essa ideia são

os movimentos fundamentalistas islâmicos construídos por homens de

nível educacional superior, e que se dedicam à ideia universalista do

Umma. Conforme Appiah (2007b), “foi a esse ideal absoluto e austero,

aparentemente não abalado por lealdades menos significantes, que se

661 “[They] drew the conclusion that insisting on one vision of universal truth could only

lead the world back to the bloodbaths.” (APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitanism:

ethics in a world of strangers. New York: W.W. Norton, 2007. p. 141.) 662 “An ideology can be staunchly supranational and also staunchly illiberal: moral

universalism can carry a uniformitarian agenda. Especially in their ruthlessly utopian

varieties, universalisms can be malignant indeed.” (APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics

of Identity. Princeton: Princeton University Press, 2007. p. 220.) 663 Cf. Ibid., p.220.

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dedicaram”.664 Eles pensam no nível planetário e multiétnico, contudo não

aceitam as particularidades humanas. Appiah chama esses

fundamentalistas “neofundamentalistas”.665 São fundamentalistas

islâmicos que nascem e vivem no Ocidente, e procuram estabelecer a

umma, possuindo a sua própria versão de globalização com base religiosa.

Esses novos jovens fundamentalistas religiosos acreditam na

dignidade humana, na justiça universal, e procuram fazer do mundo um

lugar melhor do ponto de vista deles.666 Os neofundamentalistas rejeitam

as autoridades religiosas tradicionais e procuram ter suas próprias

interpretações das escrituras sagradas. Muitos deles nasceram fora do

mundo árabe e não falam sua língua, e, por isso se expressam em outras

línguas, principalmente a inglesa. Nesse sentido, eles não têm

conhecimento das escrituras sagradas na sua língua de origem.667

Esses neofundamentalistas que vivem no Ocidente, para Appiah

(2007a), e que são filhos de imigrantes vindos de diferentes países

muçulmanos, “podem falar da cultura muçulmana. Contudo, em grande

parte, rejeitam a cultura de seus ancestrais muçulmanos, à qual sua

religião esteve incorporada.”668 Eles também não sentem qualquer

necessidade de ter lealdade nacional dirigida ao lugar onde vivem.

664 “[I]t was to this pure and uncompromising ideal, seemingly undiluted by lesser

loyalties, that they devoted themselves.”(APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of

Identity. Princeton: Princeton University Press, 2007. p. 220.) 665 Originalmente o termo foi utilizado por Olivier Roy, que acreditava no surgimento de

uma nova geração dos islamistas no Ocidente mais fraca e democratizada. Isso

significava o surgimento de um Islã alternativo, mais individual e menos político. Para

Roy, tal Islã globalizado ou ocidentalizado em parte é uma experiência das minorias

muçulmanas as quais ele chamava de neofundamentalistas. Os acontecimentos, até hoje,

podem demostrar que suas expectativas não foram realizadas exatamente na forma que

ele imaginava. Veja: (ROY, Olivier. Globalized Islam: the search for a new ummah.

New York: Colombia University Press, 2004); (DEMANT, Peter. O mundo muçulmano.

São Paulo: Editora contexto, 2011, pp. 245–48.). 666 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitanism: ethics in a world of strangers. New

York: W.W. Norton, 2007. p. 140. 667 Cf. Ibid., p. 139. 668 “[They] may speak of Muslim culture. But they largely reject the culture within which

their religion was embedded in the places their Muslim ancestors came from.” (APPIAH,

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Obviamente, não todos os jovens neofundamentalistas são radicais

violentos que entendem a Jihad como guerra contra o Ocidente. Para

Appiah (2007a), muitos deles preferem a dawa (divulgação de islã no

mundo), como o caminho que traz as pessoas de volta à fé. O que

determina que o neofundamentalismo seja violento ou não é sua crença

na possiblidade de uma forma de “ética universal”, o que entra em conflito

com a versão do cosmopolitismo de Appiah.669

Essas ideologias uniformes, a nosso ver, que procuram o “bem”

para o outro e querem aplicar sua “ética universal” ao mundo para este

seja igual a eles, não se restringe ao fundamentalismo islâmico. No

Cristianismo isso ocorreu com os missionários vitorianos e também na

Missão Civilizadora (Mission civilisatrice), motivadas pela ideia de

“melhorar” a vida dos outros.

Appiah (2007b) se coloca contra essas tendências de

cosmopolitismo tóxico. Para o autor, o cosmopolitismo “não precisa

enaltecer, automaticamente, a diferença humana, mas não pode ser

indiferente ao desafio de interagir com esta”.670 Portanto, ele precisa se

distanciar tanto da tentação de classificar os outros quanto do

universalismo simples.

Por isso, Appiah não aceita uma divisão que separa totalmente o

cosmopolitismo “moral” que se manifesta por meio do moralismo universal

ou do capitalismo; e o cosmopolitismo “cultural”, que inclui os viajantes

no mundo que apreciam conversar com pessoas que eles veem como

Kwame Anthony. Cosmopolitanism: ethics in a world of strangers. New York: W.W.

Norton, 2007. pp. 139; 140.) 669 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitanism: ethics in a world of strangers. New

York: W.W. Norton, 2007. p. 140. 670 “[It] need not reflexively celebrate human difference; but it cannot be indifferent to

the challenge of engaging with it.” (APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of Identity.

Princeton: Princeton University Press, 2007. p. 222.)

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exóticas.671 Esses dois tipos de universalismo não representam o

cosmopolitismo que ele defende.

Ser cosmopolita, segundo Appiah (2007), significa tentar entender o

mundo antes de querer mudá-lo. Isto exige não somente a valorização da

vida humana, mas também a valorização das vidas que cada povo e

comunidade escolheu para si. Portanto, o cosmopolitismo deve conciliar

uma forma de universalismo e, ao mesmo tempo, manter algumas formas

de parcialidade.672 Em razão disso, Appiah se coloca contra um

cosmopolitismo tóxico que procura destruir o nacionalismo, definir as

identidades e as lealdades que devem ser aceitas ou não, ou querer criar

um universalismo moral a partir de qualquer base ideológica.673

A nosso ver, o cosmopolitismo tóxico é uma forma de pensamento

fundamentalista com sua visão monolítica sobre o mundo. Sua crença em

uma verdade única, seja baseada ou não em religião, é uma crença

violenta, mesmo quando se declara para o “bem” dos outros. Essas ideias

são utópicas e suas tentativas de dominar o mundo com base em uma

verdade única que carrega consigo um interesse de dominação sob a

forma de universalismo maligno.

3.4. Para a redução da violência: a ética e o diálogo.

Depois que falamos sobre algumas maneiras para evitar a violência

do pensamento fundamentalista e em diferentes contextos, analisamos

nesta última parte a questão da redução da violência à luz da ética pós-

metafísica, que não admite mais uma verdade objetiva e forte. Também

será discutido o papel do diálogo, estabelecido de um modo que não

procura encontrar um acordo sobre uma verdade única, e também a

questão da tolerância para evitar conflitos.

671 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of Identity. Princeton: Princeton University

Press, 2007. p. 222. 672 Cf. Ibid., p. 223. 673 Cf. Ibid., p. 222.

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246

3.4.1. A violência e a ética pós-metafísica.

Segundo Arendt (2011), para entender a violência precisamos

analisar sua natureza e suas raízes. Primeiramente, precisamos separar a

“violência” do “poder”:

Poder e violência são opostos; onde um domina

absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece

onde o poder está em risco, mas, deixada a seu próprio

curso, conduz à desaparição do poder.674

Mesmo assim, confundir o poder e a violência é comum. Porém, segundo

Arendt, qualquer diminuição do poder é um convite para a violência. E

quando quem está no poder se sente ameaçado, sente-se seduzido a

substituir o poder pela violência.675

Derrida (2006) define a violência como “aquilo que não permite ao

outro ser o que ele é, aquilo que não deixa lugar ao outro”.676 Eliminar o

espaço do outro é o extremo da violência.677 Por sua vez, Vattimo (2009)

afirma: “Estou convencido de que não há outra maneira de definir,

filosoficamente, a violência a não ser esta: a ideia de fundação diante do

qual o sujeito só pode se calar.”678 Assim, a definição de Vattimo não

segue os “lugares naturais” de Aristóteles, nos quais a violência é aquilo

que impede o Ser de realizar sua essência.

674 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p.

73. 675 Cf. Ibid., p. 108. 676 DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni. Da violência e da beleza: Diálogo entre Jaques

Derrida e Gianni Vattimo. Trad. Rossano Pecoraro. Revista Alceu (PUCRJ), Vol.7, n.13,

pp. 284–294, jul/dez. 2006. Disponível em:

<http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu_n13_DossieDerrida.pdf>

Acesso em: jun./2012, p. 293. 677 Ibid., p. 293. 678 “I am convinced that there is no other way of defining violence philosophically than

this: the idea of foundation before which one can only fall silent.” (VATTIMO, Gianni.

Philosophy as Ontology of Actuality. A biographical-theoretical interview with Luca

Savarino and Federico Vercellone. Iris. I, 2 October 2009, p. 330.

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247

Segundo Vattimo (2009), a violência é uma “afirmação de

autoridade: aqui quem manda sou eu.”679 Por isso, a violência com base

em uma verdade forte consegue alcançar seus objetivos, mas nunca

consegue substituir o poder. Quando a verdade adotada tem uma postura

violenta que quer silenciar o outro, ela deixa de representar o poder.

Ainda segundo Vattimo, o motivo mais importante que leva a

filosofia a abandonar o conceito de fundamento é o fato de que ela está

consciente da “violência implícita de cada certeza, de todos os princípios

que silenciam todo o questionamento”.680 Logo, a violência é o

silenciamento que interrompe as perguntas e a possibilidade de qualquer

diálogo:

[N]o fundo, a violência é cortar com o sabre aquilo que se

poderia desatar com mais paciência. O discurso violento é a

falta de discursos, de argumentação como aquilo que

permite a objeção.681

O caminho não violento passa sempre pelo diálogo e não pelo

silenciamento do outro na forma de uma paz forçada.

A nosso ver, o problema da violência em nossa época moderna

representa um paradoxo quando tentamos eliminar a violência com o uso

da violência. No caso da violência com base na verdade metafísica forte,

tentar eliminar essa violência por meio de outras verdades fortes somente

pode levar ao choque entre elas e gerar uma violência ainda maior.

679 “[An] afirmation of authority, which claims: I am in command here.” (Philosophy as

Ontology of Actuality. A biographical-theoretical interview with Luca Savarino and

Federico Vercellone. Iris. I, 2 October 2009, p. 331.) 680 “[T]he implicit violence of every finality, of every principle that would silence all

questioning.” (VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford

University Press: Stanford, 1999. p. 65.) 681 DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni. Da violência e da beleza: Diálogo entre Jaques

Derrida e Gianni Vattimo. Trad. Rossano Pecoraro. Revista Alceu (PUCRJ), Vol.7, n.13,

pp. 284–294, jul/dez. 2006. Disponível em:

<http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu_n13_DossieDerrida.pdf>

Acesso em: jun./2012, p. 290.

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248

Por isso, Žižek (2008) adverte para a necessidade de desistirmos da

tentação de reagir instantaneamente contra a violência. Segundo ele,

“violência e a reação contra a violência são parte de um círculo vicioso

terrível, sendo que cada uma gera as mesmas forças que tenta

combater”.682 Precisamos de paciência e de análise crítica para descobrir o

motivo que causa a violência em primeiro lugar, antes de combatê-la.

Para Žižek (2008), a “violência não está ligada diretamente a alguns

atos, mas está espalhada entre os atos e seus contextos, entre atividade e

inatividade”.683 Por isso, “às vezes, fazer nada é a coisa mais violenta”.684

A violência não ocorre somente como resultado de uma ação violenta,

mas também pela falta de ação.

Quando consideramos algo como um ato de violência, segundo

Žižek (2008), estamos comparando esse ato com o que consideramos

uma situação “normal” de não violência. Por isso, a linguagem como o

meio da não violência aumenta nossos desejos pela procura de um

absoluto que não pode ser alcançado, geralmente tomando-se uma parte

pelo todo. A realidade, dessa forma, não está na sua forma simples, mas

é uma experiência estendida através da linguagem. Portanto, a essência

da violência não está na sua forma notada.685

Vattimo concorda que a essência de violência não está sempre

ligada à metafísica, mas

[q]uando se pronuncia a palavra "verdade", uma sombra de

violência é também produzida. Nem todos os metafísicos são

682 “[V]iolence and counter-violence are caught up in a deadly vicious cycle, each

generating the very forces it tries to combat.” (ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York:

Picador, 2008. p. 80.) 683 “[V]iolence is not a direct property of some acts, but is distributed between acts and

their contexts, between activity and inactivity.” (Ibid. p. 213.) 684 “[s]ometimes doing nothing is the most violent thing to do.” (Ibid., p. 217.) 685 Cf. Ibid., pp. 64-70.

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violentos, mas eu diria que quase todos os responsáveis pela

violência são metafísicos.686

Assim, “é o caso em que os momentos de maior violência na história

sempre foram justificados por pretextos metafísicos bem elaborados”.687

Segundo Vattimo (2002), “nunca podemos esquecer o fato de que a

origem é violenta; caso contrário, estaríamos suprimindo nossa natureza

finita. Mas podemos secularizar nossa origem, ou absorvê-la

progressivamente.”688 Em outras palavras, essa secularização é um

processo de redução da violência de nossa origem.

De acordo com Vattimo (2009), a própria existência exige uma

verdade preestabelecida que o homem tem que aceitar e obedecer. Este é

um problema sério porque a noção da verdade, mesmo no caso de Deus,

torna-se uma força silenciadora de qualquer argumento.689

Para Vattimo (1999), temos de considerar a redução da violência

um processo contínuo, ao contrário de uma condição ideal

de legitimidade a ser percebida de uma vez por todas, por

meio da ligação com a eterna essência da humanidade, da

moralidade e da sociedade.690

686 “[W]hen the word ‘truth’ is uttered, a shadow of violence is cast as well. Not all

metaphysicians have been violent, but I would say that almost all large-scale

perpetrators of violence have been metaphysicians.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to

truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. 77.) 687 “[I]t is the case that the moments of greatest violence in history have always been

justified by well-structured metaphysical pretenses.” (VATTIMO Gianni; ZABALA

Santiago. “Weak Thought” and the reduction of violence: a dialogue with Gianni Vattimo.

Common Knowledge. Trad. Yaakov Mascetti. Durham: Duke University Press, vol. 8,

Issue. 3, outono 2002, pp. 452 – 463. Disponível em:

<http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/common_knowledge/

v008/8.3vattimo.html> . Acesso em: maio/2012, p. 455.) 688 “[W]e can never efface the fact that the origin is violent; to do so, we would have to

efface our finite nature. But we can secularize our origin, or consume it progressively.”

(Ibid., p. 460.) 689 Cf. VATTIMO, Gianni. Philosophy as Ontology of Actuality. A biographical-theoretical

interview with Luca Savarino and Federico Vercellone. Iris. I, 2 October 2009, p. 330. 690 “[A]n ideal condition of authenticity to be realized once and for all by corresponding to

the eternal essence of humanity, morality and society, but as an ongoing process.”

(VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press:

Stanford, 1999, p. 74.)

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Contudo, isso não significa negociar os direitos básicos assegurados pela

lei.

Segundo Vattimo (2004), “já foi possível acreditar em verdade e

moral únicas dentro de sociedades tradicionais fechadas, baseadas em

uma única fonte de autoridade e uma única tradição”.691 Porém, esse tipo

de pensamento não somente é perigoso; ele pode levar ao choque num

mundo de diversidade e interconexão.

Por isso, as verdades sobre a democracia, os direitos humanos ou as

justificações de guerra devem sempre considerar o paradigma cultural dos

outros. Sem isso, seremos aniquilados por uma espécie de

fundamentalismo, com a desculpa de nos defendermos (bem como

defender nossa democracia, nosso estilo de vida, nossos bens),

independentemente daquilo que nós, cidadãos, sabemos ou desejamos.692

Enquanto continuamos a acreditar na verdade em sua forma metafísica

como correspondência fiel dos fatos, os choques continuarão.

Por isso, para Vattimo (2011) a verdade no nosso mundo de

pluralismo enfrenta

o desafio de lidar com o fato de que o consenso sobre

questões individuais é, sobretudo, um problema de

interpretação coletiva, de construção de paradigmas

compartilhados ou, pelo menos, reconhecíveis de forma

explícita.693

Por conseguinte, a sociedade mais “verdadeira” é aquela que procura ser

mais livre, democrática e amigável. Mas sem a possibilidade de novas 691 “It may have been possible to believe in unique truth and morality in traditional closed

societies, founded on a single source of authority and a single tradition” (VATTIMO,

Gianni. Nihilism & Emancipation: Ethics, Politics, & Law. Trad. William McCuaig. New

York: Columbia University Press, 2004a. p. 58.) 692 “[O]ppressed by a fundamentalism of sorts, pretending to be defending us (our

democracy, our way of life, our goods) regardless of what we the citizens either know or

wish.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York:

Columbia University Press, 2011. p. xxxvi.) 693 “[T]he challenge of coming to grips with the fact that consensus on individual

questions is above all a problem of collective interpretation, of constructing paradigms

shared or, at any rate, explicitly recognized.” (Ibid., p. xxxv.)

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interpretações, não teremos uma chance de evitar os conflitos. Para

Vattimo (2007), tal possibilidade não se restringe ao Cristianismo, mas é

a responsabilidade de todas as grandes religiões, pois: “a religião pode ser

uma maneira de se compreender um ao outro, ao invés de exacerbar

nossas diferenças”.694 O conceito da verdade, no caso da religião, não é o

que mais importa. O que importa é a moral, a ética e a caridade.

Vattimo (1999) liga a herança Cristã à ontologia do enfraquecimento

e à ética da não violência:

É verdade que basear uma ética da não violência em uma

ontologia do enfraquecimento pode parecer, mais uma vez,

um retorno à metafísica, para a qual a moralidade condizia

com o reconhecimento e o respeito das essências, das leis

naturais e assim por diante.695

Porém, desde que o ato de “pensar” não representa mais uma estrutura

objetiva e somente uma “interpretação arriscada da sua herança”, este

risco se torna totalmente imaginário.

Apesar de a violência continuar sendo uma tentação como qualquer

outra perspectiva ética, ela perde sua legitimidade ao abandonar qualquer

fundamento último que possa justificá-la. Mesmo quando se coloca como

justificável, ela serve somente para manter o controle e a dominação, mas

sem a legitimidade ética.696

Um dos mais importantes agentes causadores da crise na ética é o

fim da validade universal da moralidade na sua forma padronizada, tanto

na vida pública quanto na privada. Quando os princípios são incondicionais

694 “[R]eligion can become a way of understanding one another instead of exacerbating

our differances.” (VATTIMO, Gianni. A Prayer for Silence: Dialogue with Gianni Vattimo. In: CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia

University Press, 2007. p. 107.) 695 “[I]t is true that to ‘ground’ an ethics of non-violence on an ontology of weakening

may seem yet again like a return to metaphysics, for which morality coincided with the

recognition of and respect for essences, natural laws and so on.” (VATTIMO, Gianni.

Belief. Trad. Luca DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p.

45.) 696 Cf. Ibid., p. 100.

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e universais, eles se apresentam como verdades absolutas, o que pode

levar à violência.697

A ética na sua forma metafísica, com seus princípios articulados

racionalmente e que deduzem certa ação, segundo Vattimo (2011),

deixam de descrever o problema em favor de estabelecer os princípios

morais para resolvê-lo:

Se a filosofia ainda pode falar racionalmente sobre a ética,

de forma que seja responsável pelos únicos referentes em

questão – a época, nossa herança histórica e nossa

procedência –, pode fazer isso apenas assumindo, como seu

ponto de partida explícito (não seu fundamento ou base), a

ausência de fundamento, condição esta na qual se encontra

atualmente.698

Com o fim de metafísica, não podemos mais procurar uma verdade

absoluta sobre a qual podemos construir nossa ética.

A ética do Outro (de “O” maiúsculo), segundo Vattimo (2003), vem

na forma da lei e sua essência é aquela de uma estrutura metafísica, o

que torna essa ética imperativa e direcionada à consciência individual do

outro. Isso ocorre porque o conceito da ética hoje não começa com a

transcendência, em termos individuais entre o bom e o mal, como

acontece na ética da maioria das religiões, mas no seu contexto local e

histórico.699 A esse respeito, Vattimo afirma:

697 Cf. VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York:

Columbia University Press, 2011. p. 90. 698 “If philosophy can still speak rationally of ethics, meaning in a way responsible to the

sole referents that matter – the epoch, our historical inheritance, provenance – it can do

so only by assuming as its explicit point of departure (not its foundation or ground) the

condition of ungroundedness in which it now finds itself thrown.” (VATTIMO, Gianni. A

farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011.

p. 92.) 699 Cf. VATTIMO, Gianni. Ethics without Transcendence? Common Knowledge.

Trad.Santiago Zebala. Durham: Duke University Press, Volume 9, Issue 3, Fall

2003,pp.399-405.Disponível em

<http://muse.jhu.edu/login?uri=/journals/common_knowledge/v009/9.3vattimo.html>.

Acesso em: nov./2011, p. 401.

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253

eu diria que, neste momento, estamos passando da ética do

Outro (com letra maiúscula) para a ética do outro (com letra

minúscula) ou dos outros (no plural), ou seja, estamos

presenciando o nascimento de uma ética pós-metafísica.700

Essa transformação não deve ser entendida como calamidade, mas como

vocação ou passagem que não representa uma ética “natural” com base

na natureza do ser humano para justificá-la como interpretação melhor

porque essa postura, que adota a lei natural, já incorpora uma base

violenta.

Por isso, ao declarar nossa ética da atualidade como pós-metafísica,

que desloca seu foco do Outro para outros, estaremos falando da ética de

negação e consenso. No nível político, segundo Vattimo (2003), isso

representa uma grande transformação, porque a orientação da ética atual

é direcionada talvez totalmente à politica. Essa transformação:

Levaria à reelaboração da lei com base no consenso ou no

respeito pela opinião de todos, de acordo com

procedimentos e regras democráticas previamente

acordadas.701

Precisamos ir além da metafísica, criando um conceito mais preciso para,

somente então, poder falar da ética.

Ao mesmo tempo, é importante diferenciar entre a ética pós-

metafísica e o relativismo simples. Segundo Vattimo (2011):

700 “I would say that we are now passing from the ethics of the Other (capital O) to the

ethics of the other (lowercase) or the others (plural). Put another way: we are witnessing

the birth of a postmetaphysical ethics.” (VATTIMO, Gianni. Ethics without

Transcendence? Common Knowledge. Trad.Santiago Zebala. Durham: Duke University

Press, Volume 9, Issue 3, Fall 2003,pp.399-405. Disponível em

<http://muse.jhu.edu/login?uri=/journals/common_knowledge/v009/9.3vattimo.html>.

Acesso em: nov./2011, p. 401.) 701 “[It] would lead to the reconstruction of laws on the basis of consensus, on the basis

of respect for the opinion of all, according to agreed procedures and democratic rules.”

(VATTIMO, Gianni. Ethics without Transcendence? Common Knowledge. Trad.Santiago

Zebala. Durham: Duke University Press, Volume 9, Issue 3, Fall 2003,pp.399-

405.Disponível em

<http://muse.jhu.edu/login?uri=/journals/common_knowledge/v009/9.3vattimo.html>.

Acesso em: nov./2011, p. 404.)

Page 255: Contrapontos no Pensamento Fundamentalista: para uma ... · Nara Hiroko Takaki pelo constante apoio. A meu amigo Wiliam Bruce Russell V e sua família, pela amizade e pelas ... Isso

254

A constatação de que a credibilidade dos primeiros princípios

não existe mais não implica que a suposição de nossa

condição histórica e do fato de pertencermos a uma

comunidade seja a única absoluta.702

Dessa forma, com a dissolução da metafísica pelo niilismo, somos

responsáveis por nossas escolhas éticas, o que exige de nós abrirmos

nossos horizontes. Portanto, precisamos estar sempre atentos para não

cairmos na metafísica relativista como reação ao fim da metafísica.

E o mais urgente, segundo Vattimo (2002), é “ir além do estado no

qual o consenso foi interrompido – ou mantido em um estado de pura

suspensão”.703 Sem a ilusão metafísica do certo e do errado, o maior

princípio será a redução da violência. A ideia do fundamento último da

verdade não somente produz o totalitarismo; ela em si é uma ideia

totalitária.

Por isso, tentar encontrar um código de ética que sirva para todos e

em qualquer tempo é uma ilusão, visto que, na pós-modernidade,

precisamos sempre de interpretação. Portanto, segundo Vattimo:

Iludir-se com o fato de que há uma base de conhecimento

própria do homem natural, acessível a qualquer pessoa com

senso comum já estabelecido, é um erro que já é

praticamente impossível de se cometer, mesmo que seja

feito de boa fé.704

702 “[T]he constatation that the credibility of first principles has evaporated does not

translate into the assumption of our historical condition and of our belonging to a

community as the only absolute.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad. William

McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. 93.) 703 “[W]e move beyond the state in which agreement is suspended – kept in a state of

pure suspension.” (VATTIMO Gianni; ZABALA Santiago. “Weak Thought” and the

reduction of violence: a dialogue with Gianni Vattimo. Common Knowledge. Trad.

Yaakov Mascetti. Durham: Duke University Press, vol. 8, Issue. 3, outono 2002, pp. 452

– 463. Disponível em:

<http://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/common_knowledge/

v008/8.3vattimo.html> . Acesso em: maio/2012, p. 455.) 704 “To delude oneself that there is a core of knowledge proper to natural man, accessible

to anyone with sound common sense, is an error that is by now almost impossible to

commit in good faith.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to truth. Trad. William McCuaig.

New York: Columbia University Press, 2011. p. 98.)

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255

Quando alguns aspectos da nossa herança cultural continuam, outros são

apagados. E decidir a validade ou não dessa herança com a qual nos

sentimos compromissados, é algo que exige uma interpretação

responsável.

Com a ética pós-metafísica, Vattimo (1999) não está propondo uma

teoria de tolerância, mas uma forma de redução da violência em todos os

aspectos, o que é revelado na forma de caridade: “a caridade é o preceito

da secularização, ou de forma mais abrangente, no jargão da ética, é a

redução da violência em todas suas formas.”705 Essa caridade não pode

funcionar de forma abstrata, sem qualquer contexto, da mesma forma que

o significado da revelação não pode ser entendido sem seu contexto

histórico.706

Concluímos que a definição de Vattimo (2009) da violência como o

ato de silenciamento do outro – e apesar de a violência não ter sempre a

metafísica como base – é essencial para entender a violência gerada pelo

pensamento fundamentalista. A violência, portanto, tem de ser sempre

entendida dentro de seus contextos e não de uma forma abstrata, como

verdade metafísica. Para falar de ética não podemos mais partir de uma

verdade única ou dada. Essa ética pós-metafísica, portanto, é válida

dentro de seus contextos sócio-históricos. Sua validez, por outro lado,

exige responsabilidade de todos, para que esteja sempre inserida num

processo de (re)construção de sentido, e para não se direcionar a uma

outra forma de verdade metafísica ou de relativismo simples.

3.4.2. Sobre o diálogo e a superação da tolerância liberal

Brown (2006) afirma que o retorno ao uso da tolerância no final do

século XX apresenta uma problemática central para a cidadania 705 “[C]harity is the norm of secularization, or more generally, in the language of ethics,

it is the reduction of violence in all its forms.” (VATTIMO, Gianni. Belief. Trad. Luca

DΊsanto; David Webb. Stanford University Press: Stanford, 1999. p. 88.) 706 Cf. Ibid., pp. 79-80.

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democrática liberal. A tolerância serviu como uma opção de integrar e

evitar os conflitos e, principalmente, como reação à onda dos imigrantes

provenientes do chamado Terceiro Mundo, e também dos conflitos étnicos

e religiosos. A tolerância foi introduzida como uma forma de convivência e

de manutenção da paz.707

Segundo Brown (2006), “[a]tualmente, a tolerância é promovida de

forma acrítica em vários locais e para uma série de finalidades”.708 Ela

aparece no discurso europeu, no discurso da América de Norte e até nas

Nações Unidas. Porém, a ideia de tolerância não atinge um consenso,

apesar de ser promovida mundialmente e para diferentes finalidades,

assumindo diferentes formas, entre “culturas, raças, etnias, sexualidades,

ideologias, escolhas relacionadas ao estilo de vida e à moda, posições

políticas, religiões e, até mesmo, regimes”.709

A nosso ver, a tolerância pode significar aguentar a dor ou o

sofrimento, permitir, ter paciência com as opiniões dos outros. De

qualquer modo, ela está sempre ligada a um tipo de sofrimento, e sua

existência exige neutralidade e respeito a quem está sendo tolerado. Ao

mesmo tempo, a tolerância é uma trégua que pode, a qualquer dia ou

momento, chegar a seu ponto máximo de tensão e acabar sendo rompida,

e as consequências disso vêm em variadas formas e proporções.

Segundo Brown (2006), a tolerância tornou-se a marca da

civilização ocidental moderna liberal – após o começo de sua história de

Cruzadas, escravidão e colonização, entre outras −, assim como aqueles

que são percebidos como adversários da democracia liberal ocidental são

apresentados como intolerantes e selvagens:

707 Cf. BROWN, Wendy. Regulating Aversion: Tolerance in the Age of Identity and

Empire. Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 2. 708 “Today, tolerance is uncritically promoted across a wide range of venues and for a

wide range of purposes.” (BROWN, Wendy. Regulating Aversion: Tolerance in the Age

of Identity and Empire. Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 2.) 709 “[C]ultures, races, ethnicities, sexualities, ideologies, lifestyle and fashion choices,

political positions, religions, and even regimes.” (Ibid., p. 3)

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257

A tolerância é rotineiramente divulgada pelos Estados

liberais democráticos de forma não doutrinária e, como um

elemento dos direitos humanos internacionais, é,

atualmente, também algo a que as pessoas ao redor do

mundo têm direito, independentemente do regime em que

vivem.710

Consequentemente, a tolerância se torna uma marca do Ocidente, junto

com a democracia liberal e a modernidade. Ela acaba sendo um discurso

de superioridade da civilização ocidental, em comparação com as outras

civilizações.711

Logo, as democracias liberais começaram a decidir o que e quem

pode ser tolerado ou não. Desse modo, evita-se que a tolerância seja

estendida aos “bárbaros”, de forma que a área que pode ser abrangida

pela tolerância torna-se difícil de ser definida. Como salienta Brown

(2006), “[s]e, atualmente, a tolerância é considerada sinônimo do

Ocidente, da democracia liberal, do Iluminismo e da modernidade, então,

a tolerância é o que ‘nos’ distingue ‘deles’”.712 A tolerância acaba se

tornando cultural e disponível apenas para algumas “culturas tolerantes”,

ao contrário de outras que não o são, transformando-a num discurso de

poder.

Para Žižek (2008), a tolerância liberal de respeitar o Outro é o

resultado obsessivo da perseguição em que o outro é tolerado enquanto

ele não seja percebido como um intruso. Assim,

[m]eu dever é ser tolerante com o Outro, na prática,

significa que eu não deveria me aproximar muito dele, ou

710 “Tolerance is routinely promulgated by liberal democratic states in nondoctrinal ways;

and as an element of international human rights doctrine, tolerance is now also figured

as something to which people around the globe are entitled, irrespective of the regime

under which they live.” (BROWN, Wendy. Regulating Aversion: Tolerance in the Age of

Identity and Empire. Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 37.) 711 Cf. Ibid., p. 37. 712 “If tolerance today is considered synonymous with the West, with liberal democracy,

with Enlightenment, and with modernity, then tolerance is what distinguishes ‘us’ from

‘them.’” (Ibid., p. 17.)

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258

invadir seu espaço. Em outras palavras, eu deveria respeitar

a intolerância dele com o fato de eu estar perto demais.713

O direito de não ser assediado e de manter a distância do Outro torna-se

o centro dos direitos humanos, o direito de não ser assediado na

sociedade capitalista tardia.

O problema ocorre quando a tolerância se torna um discurso de

poder, como no caso da tolerância liberal; ou seja, um discurso político de

tolerância que enfatiza a ideia de “respeitar” o outro na busca da sua “boa

essência”, que deve ser resgatada. Essa tolerância que procura “respeitar”

o outro com a esperança de resgatar sua “boa essência” perdida, acaba

por adotar uma verdade absoluta sobre o outro, verdade essa que

determina o que ele é ou não.

Para Žižek (2008), o círculo vicioso está entre nossa liberdade e o

respeito para com o outro. Assim, “a linguagem do respeito é a linguagem

da tolerância liberal: o respeito só significa respeito por aqueles com os

quais eu não concordo.”714 Respeitar o outro é uma forma de ter paciência

para não magoar o outro sem questionar sua postura.

No caso da religião, para Brown (2006), a relação entre a tolerância

e a liberdade liberal tende a privatizar a fé, mantendo-a, como no caso da

cultura, no espaço privado. Porém, “[a] tolerância não é equivalente à

igualdade e não promove uma efetiva igualdade entre as religiões ou seus

devotos”.715 A tolerância não passa a ser uma solução prática para sair de

uma situação indesejável.

713 “My duty is to be tolerant towards the Other effectively means that I should not get

too close to him, intrude on his space. In other words, I should respect his intolerance of

my over-proximity.” (ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008. p. 41.) 714 “[T]he language of respect is the language of liberal tolerance: respect only has

meaning as respect for those who with whom I do not agree.” (ŽIŽEK, Slavoj. Violence.

New York: Picador, 2008. p. 129.) 715 “Tolerance is not equivalent to equality and does not promote a substantive equality

among religions or their devotees.” (BROWN, Wendy. Regulating Aversion: Tolerance

in the Age of Identity and Empire. Princeton: Princeton University Press, 2006. pp. 35;

36.)

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259

Há também o discurso que justifica a tolerância inter-religiosa pela

existência de uma essência boa de cada religião, o que descarta os

contextos sócio-históricos. Segundo Žižek (2008), “[o] jogo de resgatar a

verdade interna da religião ou da ideologia e separar isso de sua

exploração política subsequente ou secundária é simplesmente falso. Isso

não é filosófico.”716 Nos moldes de Žižek, ao respeitar as crenças dos

outros como valores máximos, estamos tentando deixá-los na sua ilusão,

ou ter uma postura relativista de diferentes “regimes de verdade”.717

Dessa forma, a nosso ver, ao discordarmos do comportamento do

outro, a tolerância não se trata de aceitá-lo com base em uma essência

que todos nós compartilhamos ou com base em uma verdade escondida.

Esse tipo de crença é uma crença na verdade na sua forma forte e

absoluta, tanto sobre nós mesmos quanto sobre a verdade do Outro que

projetamos sobre ele. O que fica oculto é o jogo político de poder e de

dominação que aproveita o conceito da tolerância.

Por isso, para Vattimo (2004a) a ontologia de enfraquecimento do

Ser “dá razões filosóficas para se preferir uma sociedade liberal, tolerante

e democrática, a uma autoritária e totalitária”.718 Com isso, Vattimo

(2007) não está defendendo uma mensagem de tolerância na sua forma

liberal ou tradicional. Ele afirma:

Eu me recuso a admitir que o pensamento fraco, com tudo o

que isso significa, é apenas uma maneira falaciosa de pregar

a tolerância (como, de certa forma, é – afinal sou um

intérprete). É muito mais do que isso, trata-se de um

716 “The game of redeeming the inner truth of religion or ideology and separating this out

from its later or secondary political exploitation is simply false. It is non-philosophical.”

(ŽIŽEK, Slavoj. Violence. New York: Picador, 2008. p. 116.) 717 Cf. Ibid., p. 139. 718 “[It] supplies philosophical reasons for preferring a liberal, tolerant, and democratic

society rather than an authoritarian and totalitarian one.” (VATTIMO, Gianni. Nihilism &

Emancipation: Ethics, Politics, & Law. Trad. William McCuaig. New York: Columbia

University Press, 2004. p. 19.)

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260

projeto futuro que contribuirá para a eliminação gradativa

das barreiras.719

Com a tolerância, eliminar essas paredes tanto na sua forma física quanto

metafórica e que limitam nossa liberdade, não pode ser feita.

É importante lembrar, segundo Brown (2006), que, “assim como a

paciência, a tolerância é necessária quando enfrentamos algo que

preferiríamos que não tivesse existido”.720 Assim, a tolerância não trata

dos problemas que causam este incômodo, mas tenta mantê-los sob

vigilância para evitar a violência. Portanto, os conflitos podem surgir em

qualquer hora, assim que a tolerância chega a seus “limites”.

Dessa forma, quando a maioria de um país tolera as minorias, por

exemplo, a minoria acaba sendo colocada na posição do fraco,

enfatizando, ao mesmo tempo, o poder da maioria. Para Maalouf (2003),

a ideia de tolerância das minorias, seja com base religiosa ou étnica, não

é suficiente. Essas minorias não procuram ser toleradas pela maioria que

se sente superior, segura, e forte; pelo contrário, querem ser tratadas

como cidadãos que têm todo direito dentro do sistema democrático, sejam

quais forem suas afiliações religiosas ou étnicas.721

Por isso, segundo Maalouf (2003), precisamos de diálogo. Para ele,

o diálogo num clima tranquilo deve antecipar a democracia, uma vez que,

para que a democracia seja significativa, seu papel não deve ser somente

seguir a opinião da maioria:

719 “I refuse to admit that this (weak thought with everything it means) is only a specious

kind of preaching (as, in part, it is – I´m after all an interpreter) tolerance. It is much

more than that, as a future project that contributes to the progressive elimination of walls.” (VATTIMO, Gianni. Toward a Nonreligious Christianity. In: CAPUTO, John D;

VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia University Press, 2007.

p. 45.) 720 “Like patience, tolerance is necessitated by something one would prefer did not exist.”

(BROWN, Wendy. Regulating Aversion: Tolerance in the Age of Identity and Empire.

Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 25.) 721 Cf. MAALOUF, Amin. In the Name of Identity. Trad. Barbara Bray. New York:

Penguin Books, 2003, pp. 56-57.

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[...O] papel dos democratas, em toda a parte, não é mais

apoiar as preferências da maioria, mas se certificar de que

os direitos dos oprimidos são respeitados, se necessário, a

despeito da superioridade numérica. O que é sagrado para a

democracia não são os mecanismos, mas os valores.722

No caso da opressão contra as minorias étnicas e religiosas, por

exemplo, o voto livre pode até agravar a opressão deles, tornando o

sistema democrático uma verdade forte violenta.

O diálogo não deve ser uma maneira de tentar encontrar um acordo

sobre uma verdade − seja sobre Deus, o homem e o conceito de

humanismo, ou a moralidade − que seja aceita por todos. O próprio ato

de diálogo é uma afirmação de divergência entre diversas verdades. Para

Vattimo (2011),

o objetivo do diálogo inter-religioso (ou um diálogo sobre

valores, ética e o sentido da existência) é apenas o diálogo

em si. Não é um processo do qual inferimos valores, porque

ele nos permite perceber uma verdade com a qual nós

concordamos. Serve apenas para tomarmos consciência de

nós mesmos por meio do debate e da conversa, eliminando

a luta violenta.723

Por isso, para Vattimo, a noção de que o diálogo pode resolver os conflitos

é uma noção hipócrita.

A importância do diálogo inter-religioso, e que faz parte de diálogo

intercultural, é o fato de reconhecer a verdade do outro. Justamente

porque seria difícil imaginar viver num mundo em que cada um de nós

segue sua verdade religiosa forte e condena as verdades alheias. Isso

722 “[T]he role of democrats everywhere is no longer to support the preferences of the

majority but to see that the rights of the oppressed are respected, if necessary in the

face of numerical superiority. What is sacred in democracy is not mechanisms but

values.” (MAALOUF, Amin. In the Name of Identity: violence and the need to belong.

Trad. Barbara Bray. New York: Penguin Books, 2003. pp. 153-154.) 723 “[T]he goal of interreligious dialogue (or a dialogue on values, ethics, the meaning of

existence) is just the dialogue itself. It is not a process that lets us derive values because

it allows us to discover a truth on which we agree. All it does is allow us to realize

ourselves through discussion and conversation, excluding violent struggle.” (VATTIMO,

Gianni. A farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University

Press, 2011. p. 117.)

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porque, segundo Vattimo (2007), “estaremos condenados – ou, mais

precisamente, condenamos a nós mesmos na terra – quando entramos

em conflito uns com os outros, acreditando que cada um tem seu único e

verdadeiro deus”.724 Somente pelo diálogo podemos reduzir a violência

que pode surgir como resultado desses choques provenientes das

verdades fortes.

Os frequentes diálogos sobre as diferentes religiões e tradições,

segundo Vattimo, significam que:

Se não há uma verdade objetiva dada, de uma vez por

todas, a alguém, ou uma verdade em torno da qual todos

nós devemos nos unir (para o bem ou mal, voluntariamente

ou não), a verdade, então, ocorre no diálogo.725

O ensinamento de Cristo, por exemplo, não representa uma verdade

já estabelecida, pois suas mensagens não são verdades fortes e violentas,

e sua sabedoria se realiza pelo diálogo.

Para que o diálogo seja efetivo, porém, precisamos lembrar que o

nosso conhecimento sobre o outro e suas verdades nunca está perfeito ou

completo. Segundo Bohm (2004), “todo o conhecimento é limitado,

porque é uma abstração do todo”.726 Por isso não podemos defender o

conhecimento abstrato. Contudo, fazemos isso constantemente, pois

fomos criados para apreciar a coerência. Esses valores, ao longo da nossa

vida, sofrem transformações, tornando-se valores incoerentes. Isto pode

724 “[W]e will be damned – or more precisely, we damn ourselves on earth – when we

clash against one another, each believing that they have the one true god.” (VATTIMO, Gianni. Toward a Nonreligious Christianity. In: CAPUTO, John D; VATTIMO, Gianni. After

the Death of God. New York: Columbia University Press, 2007. p. 45.) 725 “[I]f there is no objective truth given to someone once and for all, a truth around

which we must all (for good or bad, willingly or unwillingly) gather, then truth happens in dialogue.” (VATTIMO, Gianni. Toward a Nonreligious Christianity. In: CAPUTO, John D;

VATTIMO, Gianni. After the Death of God. New York: Columbia University Press, 2007.

p. 44.) 726 “[A]ll knowledge is limited, because it is an abstraction from the whole.” (BOHM,

David. On Dialogue. UK, USA, Canada: Routledge, 2004. p. 89.)

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263

nos levar a tentar impor coerência naquilo que consideramos incoerente, o

que, por si só, é um ato de violência.727

O nosso desejo de dialogar com o Outro é uma chance de aprender

e tentar entender suas verdades e as nossas também. Mas, como pontua

Said (2007c),

[e]xiste, afinal, uma profunda diferença entre o desejo de

compreender por razões de coexistência e de alargamento

de horizontes, e o desejo de conhecimento por razões de

controle e dominação externa.728

Não pretendemos chegar a uma conclusão sobre o Outro ou sobre nós

mesmos, mas pretendemos aprender, cada vez mais, sobre o outro.

Por isso, o diálogo que procura uma verdade única e unificadora

acaba provocando uma luta de dominação e conflitos. Segundo Vattimo

(2011), “é uma ilusão perigosa, uma vez que está inteiramente

direcionada a manter o equilíbrio do poder em vigor, acreditar que o

conflito pode ser substituído pelo diálogo”.729 Por isso, é importante que o

diálogo dê voz para aqueles que não tinham voz antes. Sem isto, o

diálogo se torna uma forma de enfatizar as divisões ao tornar-se um

recurso simples para tentar resolver os conflitos.

A luta contra a verdade metafísica, absoluta e violenta é sem fim e

não pode ser vencida. Por conseguinte:

Qualquer uso do diálogo como uma abordagem humana para

solucionar os conflitos sociais também deve conter em si

uma teoria explícita do conflito que sempre coexiste com a

727 Cf. BOHM, David. On Dialogue. UK, USA, Canada: Routledge, 2004. p. 89. 728 SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Trad. Rosaura

Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 15. 729 “[I]t is an illusion, dangerous because entirely aimed at preserving the current

balance of power, to imagine replacing conflict with dialogue.” (VATTIMO, Gianni. A

farewell to truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011.

p. 118.)

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instauração ou o restabelecimento das condições

dialógicas.730

O diálogo não é um espaço para qualquer transformação com o objetivo

de modelar as verdades que estão em conflito, ou para encontrar uma

fórmula pacificadora passiva para resolver os conflitos.

Como propõe Appiah (2007), compartilhar a biologia da essência

humana não representa uma ética compartilhada. Para entrar num diálogo

genuíno com as pessoas, precisamos saber que não há fatos básicos

garantidos e não questionáveis, sejam morais ou não, sob os quais

podemos construir nosso debate:

Na vida real, os julgamentos sobre o certo e o errado estão

intimamente ligados com a crença metafísica e religiosa,

bem como com as crenças sobre a ordem natural. Estes são

assuntos sobre os quais é difícil entrar num acordo.731

Um diálogo verdadeiro acaba sendo bloqueado quando os interlocutores

de diferentes crenças discordantes enxergam a opinião dos outros

somente como hipóteses. O problema, segundo Appiah, é que o desacordo

ocorre não somente no nível dos princípios, mas também sobre o que tem

de ser feito.732

De acordo com Appiah (2007b), “a junção da diversidade com a

discordância é, com certeza, um erro comum”.733 Ao falar de discordância,

estaremos pressupondo a existência da opção da concordância. Há uma

ideia errada de como o diálogo tem que ser fundamentado: “temos de

achar pontos com os quais concordamos no âmbito dos princípios: isto se

730 “[A]ny evocation of dialogue as a human approach to the solution of social conflicts

must also contain an explicit theory of the conflict that always accompanies the

instauration or restoration of dialogic conditions.” (VATTIMO, Gianni. A farewell to

truth. Trad. William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. p. 119.) 731 “In real life, judgments about right and wrong are intimately tied up with

metaphysical and religious belief and with beliefs about the natural order. And these are

matters about which agreement may be difficult to achieve.” (APPIAH, Kwame Anthony.

The Ethics of Identity. Princeton: Princeton University Press, 2007. pp. 252-253.) 732 Cf. Ibid., p. 253. 733 “[T]he conflation of diversity and disagreement is, to be sure, a common error.”

(Ibid., p. 255.)

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refere à natureza humana; isto se refere àquilo que a natureza humana

dita.”734 Porém, segundo Appiah, o que nós aprendemos com o diálogo

intercultural é que há pontos de concordância locais e contingentes.

Do ponto de vista do cosmopolitismo, podemos aprender sobre as

diferenças para descobrir as semelhanças, mas “seria um erro pensar que

a harmonia entre os povos poderia, desse modo, ser alcançada”.735 O que

ocorre, segundo Appiah, é que as muitas semelhanças culturas, ao

contrário das diferenças, não são demonstradas porque a semelhança é o

resultado nulo.736

Partindo dessa posição, por sua vez, Appiah (2007b) prefere ver os

direitos humanos na forma de debate, de argumentação ou de

conversação. Assim sendo, “deveríamos buscar o diálogo e não a mera

conversação: temos de estar abertos à possibilidade de aprender com

nossos interlocutores.”737 Os direitos humanos precisam sempre ser

interpretados e contestados a fim de que sejam instrumentos úteis para

mais justiça e menos violência.

Conclusão do capítulo:

Depois que discutimos no capítulo anterior alguns exemplos de

confrontos gerados pelo pensamento fundamentalista, falamos neste

capítulo sobre algumas maneiras de se evitar a violência e os confrontos

entre diferentes formas de pensamento fundamentalista. Iniciamos o

capítulo com a interpretação que Vattimo (1999, 2011) faz do

734 “[W]e must find points of agreement at the level of principle: here is human nature;

here is what human nature dictates.” (APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of

Identity. Princeton: Princeton University Press, 2007. p. 253.) 735 “[I]t would be a mistake to think that harmony among peoples could thereby be

achieved.” (Ibid., p. 256.) 736 Cf. APPIAH, Kwame Anthony. The Ethics of Identity. Princeton: Princeton University

Press, 2007. p. 254. 737 “[I]t is conversation, not mere conversion, that we should seek: we must be open to

the prospect of gaining insight from our interlocutors.” (Ibid., p. 264.)

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cristianismo, com base de pensamento de Nietzsche e sua declaração de

“morte de Deus”.

Discutimos nos termos de Vattimo o processo de enfraquecimento

do Ser, o que nos conduz ao conceito do fim da metafísica. Falamos

também sobre o conceito de niilismo ou de secularização como uma

interpretação que não procura eliminar a religião, mas entende o

cristianismo com o fim da metafísica, em termos de amor, a amizade e a

caridade.

Como efeito do fim da verdade na sua forma metafísica, analisamos

o conceito de “tradição inventada” que se originou com Hobsbawm (2008)

e foi utilizado por Said (1985). Nessa parte falamos sobre a construção

das verdades dentro de certo contexto sócio-histórico. Por meio desse

conceito procuramos também entender o processo de construção das

verdades “fracas” como um processo de construção de sentido. A

importância desse conceito é demonstrar a ausência de uma origem

“pura” para ser resgatada, como ocorre no caso do pensamento

fundamentalista.

Em um terceiro momento do capítulo discutimos as diferentes

formas de cosmopolitismo. Procuramos resgatar o termo da sua origem

kantiana, para uma nova proposta na forma de cosmopolitismo de baixo,

ou de globalização alternativa. Nosso interesse foi procurar evitar os

confrontos gerados pelo pensamento fundamentalista que segue uma

verdade única e absoluta, seja no nacionalismo, na teoria econômica, na

política, ou na religião.

E por fim, discutimos a ética pós-metafísica para a redução da

violência. Ainda nessa parte discutimos a questão da tolerância,

analisamos também a importância do diálogo que ocorre com base nessa

ética, e do pensamento pós-metafísico para evitar os confrontos e a

violência de choque entre diferentes verdades fortes.

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Considerações finais:

Segundo Said (2007c):

[O] erro epistemológico do fundamentalismo é pensar que

os elementos ”fundamentais” são categorias a-históricas,

não sujeitas, e assim alheias, ao escrutínio crítico dos

verdadeiros fiéis, que supostamente as aceitam como uma

questão de fé.738

Essa verdade a-histórica, que existe além de qualquer contexto,

transforma a fé em uma verdade objetiva.

Nesta tese partimos do pensamento de Caplan (1987) para

levar o conceito de “fundamentalismo” além do âmbito da religião.

Procuramos entender o pensamento fundamentalista como a crença em

uma verdade forte, isto é uma verdade metafísica dada e absoluta.

A verdade metafísica, segundo Vattimo (2002, 2011), é uma

verdade que se coloca como a única e absoluta; portanto, uma verdade

violenta. Isto porque, na definição de Vattimo (2011), a violência é o ato

de silenciar o outro ao acreditar que somente uma verdade é perfeita e

deve ser seguida. E essa violência, resultado de um pensamento

fundamentalista, se manifesta em diferentes formas e níveis.

No primeiro capítulo, partimos do fundamentalismo religioso para

analisar outras formas de pensamento fundamentalista que existem

também fora de âmbito da religião. Para isso, buscamos as raízes desse

pensamento na modernidade e no Iluminismo, que nasceu no berço da

cultura europeia judaico-cristã. Com a modernidade, a verdade metafísica

na forma de Deus desviou-se no pensamento moderno para a verdade da

ciência.

738 SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Trad. Rosaura

Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 442.

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Analisamos o caso do fundamentalismo religioso politicamente ativo

com exemplos nas três religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo,

e o islamismo. Também discutimos a postura dos chamados “Novos

Ateus”, por meio do pensamento do cientista Dawkins (2006), como uma

expressão de pensamento fundamentalista. E por fim, analisamos o caso

do fundamentalismo de livre mercado, de acordo com o pensamento

crítico de Soros (2001), que faz a denúncia do pensamento

fundamentalismo na teoria econômica.

No segundo capítulo, discutimos exemplos em que o pensamento

fundamentalista reage de uma forma violenta contra as verdades que não

estão de acordo com a sua orientação. Nesse capítulo foi discutida a teoria

de Huntington, apresentada no livro O Choque de Civilizações, como

um exemplo de argumento político que adota uma forma de pensamento

fundamentalista.

Um segundo exemplo de confronto como base do pensamento

fundamentalista foi analisado através da ligação entre o pensamento da

Klein (2008) sobre a doutrina do choque, e o de Soros (2001) sobre o

fundamentalismo de livre mercado. Este caso de pensamento econômico

violento também adota uma verdade única que é considerada perfeita

para ser aplicada a todo mundo e em qualquer contexto, e mesmo com o

uso da violência de choque com o uso de força militar.

No terceiro exemplo foi discutido o nacionalismo religioso. Este caso

é especial por juntar duas verdades fortes: a da religião e a do

nacionalismo. Em meio aos desafios que o nacionalismo secular enfrenta

na época da globalização, e na época de modernidade líquida em termos

de Bauman (2001), o nacionalismo religioso se coloca como a solução

para o enfraquecimento do nacionalismo.

A nosso ver, essa junção é preocupante. Enquanto o nacionalismo

encontra na religião apoio na forma de uma verdade forte, ele coloca o

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conceito da democracia em risco. Por o outro lado, a religião que procura

um poder dentro do sistema político transforma a fé em uma questão

politica, uma verdade objetiva adotada pelo Estado.

No final desse capítulo, discutimos a questão do terrorismo, que

parte de uma verdade forte. Segundo Vattimo (2011), a violência não

precisa de uma verdade forte para ocorrer, tampouco o terrorismo;

porém, a violência se manifesta na sua forma mais grave quando parte de

uma verdade metafísica. Discutimos nessa parte a Guerra ao Terror

declarada pelos Estados Unidos depois dos ataques de 11 de setembro de

2001, o terrorismo suicida cometido pelos fundamentalistas religiosos, e

por fim, analisamos a ligação entre o terrorismo, o medo e a mídia.

Iniciamos o terceiro e último capítulo com a interpretação que

Vattimo (1999, 2011) faz do cristianismo, através do conceito de niilismo

ou de secularização. Isto não implica em eliminar a religião, mas

interpretá-la através de um processo de enfraquecimento do Ser na forma

de uma verdade forte, para entender o Ser na forma da ação que se

direciona aos valores amor, amizade e caridade.

Procuramos também algumas estratégias para evitar a violência e

os confrontos entre diferentes verdades fortes. Para isso seguimos

Vattimo (1999, 2011) e sua interpretação da declaração de Nietzsche

sobre a “morte de Deus”, que vem para derrubar a verdade metafísica.

Essa declaração marcou mais tarde o pensamento pós-moderno. Com a

ideia de que não há mais verdades, mas somente interpretações, e sem

as verdades metafísicas sólidas e fortes, o homem pós-moderno não sabe

mais tomar decisões, nem sabe para onde ir.

Vattimo (1999, 2011) interpreta a “morte de Deus” no sentido de

fim da verdade na sua forma metafísica, forte e violenta. Para ele toda

verdade é interpretada dentro de certo contexto sócio-histórico. Vattimo

chama este tipo de verdade de “fraca” – porém não no sentido de

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fragilidade, mas de ser uma verdade não violenta que pode conviver com

outras verdades.

É importante dizer que uma verdade interpretada não significa

acreditar em qualquer ideia banal como verdade e sem valor algum, mas

é uma interpretação responsável que ocorre por meio do diálogo e do

processo de construção de sentido de uma verdade, que passa pelo

espaço de interpretação no processo da construção de sentido.

Entendemos também a construção das novas verdades como

“verdades inventadas”, em termos de Hobsbawm (2008), e à luz do

pensamento de Said (1985). As verdades, portanto, não são encontradas,

mas inventadas através de um processo de interpretação. Este conceito

também nos oferece uma chance para entender o passado sem procurar

resgatar uma certa origem pura da verdade.

Discutimos também o cosmopolitismo como uma maneira de evitar

os confrontos gerados pelo pensamento fundamentalista que surge na

política, na teoria econômica, na globalização, e no nacionalismo. Nosso

entendimento de cosmopolitismo está alinhado com o pensamento de

Appiah (2007a, 2007b), por se basear nas nossas diferentes identidades e

verdades construídas. Este tipo de cosmopolitismo, a nosso ver, exige

uma nova visão sobre a globalização atual, sob a forma de “globalização

alternativa”.

Por fim, e com base no pensamento de Vattimo (1999, 2004a,

2011), discutimos a redução da violência por meio da ética pós-metafísica

e do diálogo. Esse conceito de diálogo não é o mesmo que faz parte do

ideário da tolerância liberal, adotado pela civilização ocidental dentro de

seu discurso de poder. Isto porque, segundo Vattimo (2011), o diálogo em

si não resolve os conflitos, mas nos ajuda a entender o perigo de nos

colocar um contra o outro, cada um com sua verdade forte. O diálogo

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representa uma chance para saber mais sobre o outro, um saber que

nunca está completo ou perfeito.

Nos perturbadores tempos de mudança, de fim das metanarrativas e

das verdades fortes, encerramos com esta reflexão tomada a partir das

palavras de Said (2007c), que disse:

[N]inguém acha fácil viver, sem reclamar e sem temer, com

a tese de que a realidade humana está sempre sendo feita e

desfeita, e de que qualquer coisa semelhante a uma

essência estável está constantemente sob ameaça.739

Tais medos não podem se tornar nosso motivo para abraçar as

verdades fortes como uma forma de nos escondermos atrás de uma falsa

segurança, que pode nos levar à violência.

739 SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Trad. Rosaura

Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.443.

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c) Audio

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d) Vídeo

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