contra a pena de morte

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Contra a Pena de Morte Noberto Bobbio 1. Se examinarmos o longo curso da história humana, mais que milenar, teremos de reconhecer – quer isso nos agrade ou não – que o debate sobre a abolição da pena de morte mal começou. Durante séculos, o problema de se era ou não lícito (ou justo) condenar um culpado à morte sequer foi colocado. Jamais se pôs em dúvida que, entre as penas a infligir a quem violou as leis da tribo, ou da cidade, ou do povo, ou do Estado, estivesse também a pena de morte, ou mesmo que a pena de morte fosse a rainha das penas, aquela que satisfazia ao mesmo tempo as necessidades de vingança, de justiça e de segurança do corpo coletivo diante de um dos seus membros que se havia corrompido. Para começar, tomemos um livro clássico, o primeiro grande livro sobre as leis e sobre a justiça de nossa civilização ocidental: as Leis, os Nómol, de Platão. No Livro IX, Platão dedica algumas páginas ao problema das leis penais. Reconhece que “a pena deve ter a finalidade de tornar melhor”; mas aduz que, “se se demonstrar que o delinquente é incurável, a morte será para ele o menor dos males.” Não cabe aqui mencionar todas as vezes em que se fala nesse livro sobre a pena de morte em relação a uma série muito ampla de delitos, desde os delitos contra as divindades e os cultos, até aqueles contra os genitores, contra o pai e a

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Texto de Noberto Bobbio contra a pena de morte

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Contra a Pena de Morte

Noberto Bobbio1. Se examinarmos o longo curso da histria humana, mais que milenar, teremos de reconhecer quer isso nos agradeou no que o debate sobre a abolio da pena de morte mal comeou. Durante sculos, o problema de se era ou no lcito(ou justo) condenar um culpado morte sequer foi colocado. Jamais se ps em dvida que, entre as penas a infligir a quemviolou as leis da tribo, ou da cidade, ou do povo, ou do Estado, estivesse tambm a pena de morte, ou mesmo que a pena demorte fosse a rainha das penas, aquela que satisfazia ao mesmo tempo as necessidades de vingana, de justia e desegurana do corpo coletivo diante de um dos seus membros que se havia corrompido. Para comear, tomemos um livroclssico, o primeiro grande livro sobre as leis e sobre a justia de nossa civilizao ocidental: as Leis, os Nmol, de Plato.No Livro IX, Plato dedica algumas pginas ao problema das leis penais. Reconhece que a pena deve ter a finalidade detornar melhor; mas aduz que, se se demonstrar que odelinquente incurvel, a morte ser para ele o menor dos males.No cabe aqui mencionar todas as vezes em que se fala nesse livro sobre a pena de morte em relao a uma srie muitoampla de delitos, desde os delitos contra as divindades e os cultos, at aqueles contra os genitores, contra o pai e a me, ou,em geral, contra os homicdios voluntrios. Falando precisamente de homicidas voluntrios, Plato diz em certo momentoque eles devem necessariamente pagar a penanatural, ou seja, a de padecer o que fizeram. Chamo a ateno para o adjetivo natural e para o princpio dopadecer o que se fez. Esse princpio, que nasce da doutrina da reciprocidade que dos pitagricos (mais antiga ainda,portanto, que a de Plato) e que ser formulada pelos juristas medievais e repetida durante sculos com a famosa expressosegundo a qual o malum passionis deve corresponder ao malum actionis atravessa toda a histria do direito penal e chegaat ns absolutamente inalterado. Como veremos mais adiante, uma das justificaes mais comuns para a pena de morte.Citei esse clebre texto da Antiguidade apenas para apresentar um testemunho o mais autorizado possvel de comoa pena de morte foi considerada no s perfeitamente legtima,mas at mesmo natural, desde as origens de nossacivilizao, bem como do fato de que aceit-la como pena jamais constituiu um problema. Poderia citar muitos outros textos. A imposio da pena de morte constitui to pouco um problema que at mesmo uma religio da no-violncia, do noliresistere malo, uma religio que, sobretudo nos primeiros sculos, levantava o problema da objeo de conscincia aoservio militar e obrigao de portar armas, uma religio que tem por inspirador divino um condenado morte, jamais seops substantivamente prtica da pena capital.2. preciso chegar ao Iluminismo, no corao do sculo XVIII, para encontrar pela primeira vez um srio e amplodebate sobre a licitude ou oportunidade da pena capital, o que no quer dizer que o problema no tivesse jamais sidolevantado antes. A importncia histrica que nunca ser suficientemente sublimada do famoso livro de Beccaria (1764)reside precisamente nisto: trata-se da primeira obra que enfrenta seriamente o problema e oferece alguns argumentosracionais para dar-lhe uma soluo que contrasta com uma tradio secular. preciso dizer, desde j, que o ponto de partida usado por Beccaria em sua argumentao a funo exclusivamenteintimidatria da pena. A finalidade [da pena] no senoimpedir o ru de causar novos danos aos seus concidados e demover os demais de fazerem o mesmo. Veremos em seguidaa importncia desse ponto de partida para o desenvolvimento do tema. Se esse o ponto de partida, trata-se de saber qual a fora intimidatria da pena de morte com relao a outras penas. E esse o tema que se pe ainda hoje e que foi vriasvezes posto pela prpria Amnesty International. A resposta de Beccaria deriva do Princpio introduzido no pargrafo intitulado Doura das penas. O princpio o seguinte: Um dos maiores freios contra os delitos no a crueldade das penas,mas a infalibilidade dessas, e, por conseguinte, a vigilncia dos magistrados, e a severidade de um juiz inexorvel, a qual,para ser til virtude, deve ser acompanhada de uma legislao doce. Suavidade das penas. No necessrio que as penassejam cruis para serem dissuasrias. Basta que sejam certas. O que constitui uma razo (alis, a razo principal) para nose cometer o delito no tanto a severidade da pena quanto a certeza de que se ser de algum modo punido. Subsidiariamente, Beccaria introduz tambm um segundo princpio, alm da certeza da pena: a intimidao nasce no da intensidade dapena, mas de sua extenso, como o caso, por exemplo, da priso perptua. A pena de morte muito intensa, ao passo quea priso perptua muito extensa. Portanto, a perda perptua total da prpria liberdade tem mais fora intimidatria do quea pena de morte.Ambos os argumentos de Beccaria so utilitaristas, no sentido de que contestam a utilidade da pena de morte nemtil nem necessria, como se expressa Beccaria ao iniciar sua argumentao. A esses argumentos, Beccaria aduz umoutro, que provocou a maior perplexidade (e que, de fato, foi hoje em grande parte abandonado). Trata-se do chamadoargumento contratualista, que deriva da teoria do contrato social ou da origem convencional da sociedade poltica. Esseargumento pode ser assim enunciado: se sociedade poltica deriva de um acordo dos indivduos que renunciam a viver emestado de natureza e criam leis para se proteger reciprocamente, inconcebvel que esses indivduos tenham posto disposio de seus semelhantes tambm o direito vida.Sabe-se que o livro de Beccaria teve estrepitoso sucesso. Basta pensar na acolhida que lhe deu Voltaire: grande parteda fama do livro de Beccaria se deve sobretudo ao fato de que foi acolhido favoravelmente por Voltaire. Beccaria era umilustre desconhecido, ao passo que na ptria das luzes, que era a Frana, Voltaire era Voltaire. Sabe-se tambm que, porinfluncia do debate sobre a pena de morte que teve lugar naqueles anos, foi emanada a primeira lei penal que aboliu a penade morte: a lei toscana de 1786, que no 51, depois de uma srie de consideraes (entre as quais emerge, mais uma vez,sobretudo a funo intimidatria da pena, mas sem negligenciar a sua funo tambm corretora a correo do ru,tambm ele filho da sociedade e do Estado), declara: abolir para sempre a pena de morte contra qualquer ru, seja primrioou contumaz, e ainda que confesso e convicto de qualquer delito declarado capital pelas leis at aqui promulgadas, todas asquais ficam revogadas e abolidas no que a isso se refere.Talvez ainda mais clamoroso tenha sido o eco que obteve na Rssia de Catarina II, em cuja clebre Instruo,proposta j em 1765, ou seja, imediatamente aps a publicao do livro de Beccaria, pode-se ler o seguinte: A experinciade todos os sculos prova que a pena de morte jamais tornou uma nao melhor. Segue-se uma frase que parece extrada dolivro de Beccaria: Portanto, se demonstro que, no estado ordinrio da sociedade, a morte de um cidado no nem til nemnecessria, terei feito vencer a causa da humanidade.3. Contudo, deve-se acrescentar que, apesar do sucesso literrio do livro junto ao pblico culto, no s a pena demorte no foi abolida nos pases civilizados (ou que se consideravam civilizados com relao poca e aos pases considerados brbaros, quando no mesmo selvagens), mas a causa da abolio tampouco estava destinada a predominar nafilosofia penal da poca. Poderamos fazer muitas citaes. Escolho trs delas, entre os mais ilustres pensadores da poca:Rousseau, no Contrato social (que saiu em 1762, dois anos antes do livro de Beccaria), o grande Kant e o ainda maiorHegel. No captulo do Contrato social intitulado Do direito de vida e de morteRousseau refutou antecipadamente o argumento contratualista. No verdade, disse ele, que o indivduo, ao se acordar comos outros para constituir o Estado, reserve-se um direito vida em qualquer caso: para no ser vtima de um assassinoque algum consente em morrer caso venha a ser assassino. Portanto, a atribuio ao Estado do direito prpria vida serveno para destru-la, mas para garanti-la contra o ataque dos outros.Poucos anos depois da publicao de Dos delitos e das penas, um outro ilustre escritor poltico, Filarigieri, emScienza della legislazione (1783), a maior obra italiana de filosofia poltica da segunda metade do sculo XVIII,caracterizou como sofisma o argumento contratualista de Beccaria, afirmando que verdade que, no estado de natureza, ohomem tem direito vida, sendo tambm verdade que no pode renunciar quele direito, mas pode perd-lo com seusdelitos. Se pode perd-lo no estado de natureza, no se v por que no possa perd-lo no estado civil, que institudoprecisamente com a finalidade no de criar um novo direito, mas de tornar seguro o exerccio do antigo direito, o doofendido de reagir com fora fora, de rechaar com a ofensa vida do outro a ofensa contra a prpria vida.Os dois maiores filsofos da poca, Kant e Hegel um antes, outro depois da Revoluo Francesa -, defendem umarigorosa teoria retributiva da pena e chegam concluso de que a pena de morte at mesmo um dever. Kant partindo daconcepo retributiva da pena, segundo a qual a funo da pena no prevenir os delitos, mas simplesmente fazer justia,ou seja, fazer com que haja uma perfeita correspondncia entre o crime e o castigo (trata-se da justia como igualdade,daquela espcie de igualdade que os antigos chamavam de igualdade corretiva) afirma que o dever da pena de mortecabe ao Estado e um imperativo categrico, no um imperativo hipottico, fundado na relao meio-fim. Cito diretamenteo texto, selecionando a frase mais significativa: Se ele matou, deve morrer. No h nenhum sucedneo, nenhumacomutao de pena que possa satisfazer a justia. No h nenhuma comparao possvel entre uma vida, ainda que penosa,e a morte; e, por conseguinte, nenhuma outra compensao entre o delito e a punio, salvo a morte juridicamente infligida ao criminoso,mas despojada de toda maldade que poderia, na pessoa de quem a padece, revoltar a humanidade.Hegel vai alm. Depois de ter refutado o argumento contratualista de Beccaria, negando que o Estado possa nascer deum contrato, afirma que odelinquenteno s deve ser punido com uma pena correspondente ao crime cometido, mas tem odireito de ser punido com a morte, j que somente a punio o resgata e somente atravs dela que ele reconhecido comoser racional (alis, ele honrado, diz Hegel). Num aderido, porm, ele tem a lealdade de reconhecer que a obra deBeccaria teve, pelo menos, o efeito de reduzir o nmero de condenaes morte.4. O infortnio quis que, enquanto os maiores filsofos da poca continuavam a defender a legitimidade da pena demorte, um dos maiores defensores de sua abolio tivesse sido, como se sabe, Robespierre, num famoso discurso Assembleia Constituinte de maio de 1791; ou seja, Robespierre, o mesmo que iria passar histria, na poca daRestaurao (a poca em que Hegel escreveu sua obra), como o maior responsvel pelo terror revolucionrio, peloassassinato indiscriminado (de que ele prprio foi vtima, quase que como para demonstrar a inexorabilidade da lei segundoa qual a revoluo devora os seus prprios filhos, a violncia gera violncia, etc.). Esse discurso de Robespierre deve serrecordado porque contm uma das condenaes mais convincentes, do ponto de vista da argumentao, da pena de morte.Ele refuta, em primeiro lugar, o argumento da intimidao, afirmando no ser verdade que a pena de morte seja maisintimidadora do que as demais penas; e aduzia o exemplo quase ritual, j utilizado por Montesquieu, do Japo: na poca,afirmava-se que, embora as penas aplicadas no Japo fossem atrozes, o Japo era um pas de criminosos. Depois, almdesse argumento, refuta tambm aquele, fundado na justia. Finalmente, aduz o argumento que Beccaria no recordara da irreversibilidade dos erros judicirios. Todo o discurso se inspira no principio de que a suavidade das penas (e aqui aderivao de Beccaria evidente) prova de civilizao, enquanto a crueldade delas caracteriza os povos brbaros (maisuma vez, o Japo). No nos afastaremos muito da verdade se dissermos que o mais clebre e inteligente continuador (quaserepetidor) de Beccaria foi desgraadamente Robespierre.5. Apesar da persistncia e da predominncia das teorias antiabolicionistas, no se pode dizer que o debate sobre apena de morte, levantado por Beccaria, tenha deixado de produzir efeitos. A contraposio entre abolicionistas eantiabolicionistas demasiadamente simplista e no representa exatamente a realidade. O debate sobre a pena de morte novisou somente sua abolio: num primeiro momento, dirigiu-se para a limitao dessa pena a alguns crimes graves,especificamente determinados; depois, para a eliminao dos suplcios (ou crueldades inteis) que, via de regra, aacompanhavam; e, num terceiro momento, para a supresso de sua execuo publica. Quando se deplora que a pena demorte ainda exista na maioria dos Estados, esquece-se que o grande passo frente realizado pelas legislaes de quasetodos os pases, nos dois ltimos sculos, constitui na diminuio dos crimes punveis com a pena de morte. Na Inglaterra,no incio do sculo XVIII, ainda eram mais de duzentos os casos, entre os quais at mesmo o de crimes hoje punidos compoucos anos de priso. Mesmo nos ordenamentos nos quais a pena de morte sobreviveu (e ainda sobrevive), ela aplicada,quase exclusivamente, no caso de homicdio premeditado. Ao lado da diminuio dos delitos capitais, inclui-se entre asmedidas atenuadoras, a supresso da obrigao de aplic-la nos casos previstos, que substituda pelo poder discricionriodo juiz ou dos jurados de aplic-la ou no. No que se refere crueldade da execuo, basta a leitura daquele fascinantelivro de Foucault que Vigiar e Punir, no qual se descrevem no captulo intitulado A ostentao dos suplcios algunsepisdios aterradores de execues capitais precedidas de longas e ferozes sevcias. Umautor ingls do sculo XVIII, citado por Foucault, escreve que a morte-suplcio a arte de conservar a vida no sofrimento,subdividindo-a em mil mortes e obtendo-se antes que cesse a existncia as mais refinadas agonias. O suplcio , por assimdizer, a multiplicao da pena de morte: como se a pena de morte no bastasse, o suplcio mata uma pessoa vrias vezes. Osuplcio responde a duas exigncias: deve ser infamante (seja pelas cicatrizes que deixa no corpo, seja pela ressonncia deque acompanhado) e clamoroso, ou seja, deve ser constatado por todos.Esse elemento nos remete ao tema da publicidade e, portanto, necessidade de que a execuo fosse pblica (publicidade que, deve-se observar, no desaparece com a supresso das execues pblicas, j que se estende ao desfile em meio multido dos deportados encadeados rumo aos trabalhos forados). Hoje, a maioria dos Estados que conservaram a penade morte a executam com a discrio e a reserva com que se executa um doloroso dever. Muitos Estados no abolicionistasbuscaram no apenas eliminar os suplcios, mas tornar a pena de morte o mais possvel indolor (ou menos cruel).Naturalmente, isso no quer dizer que o conseguiram: basta ler relatrios sobre as trs formas de execuo mais comuns aguilhotina francesa, o enforcamento ingls e a cadeira eltrica norte-americana para compreender que no inteiramenteverdade que tenha sido eliminado tambm o suplcio, j que a morte nem sempre to instantnea como se deixa crer, ou sebusca fazer crer, por parte dos que defendem a pena capital. De qualquer modo, a execuo no se realiza mais vista dopblico, ainda que o eco de uma execuo capital na imprensa e no se deve esquecer que, num regime de liberdade deimprensa, tem amplo espao e difuso a imprensa sensacionalista substitua a antiga presena do pblico na praa, diantedo patbulo. Sobre a vergonha da publicidade como argumento contra a pena de morte, gostaria de me limitar a recordar asinvectivas de Victor Hugo, que por toda a vida a combateu apaixonadamente, com toda a potncia do seu estilo eloqente(ainda que hoje nos possa parecer grandiloquente). Recentemente, foi publicado na Frana um livro que recolhe os escritosde Victor Hugo sobre a pena de morte: uma fonte de citaes. Da leitura dessas pginas, resulta que ele batalhou, dajuventude velhice, contra a pena de morte, em todas as ocasies, inclusive como politico, mas tambm atravs dosescritos, das poesias e dos romances. As invectivas quase sempre partem da viso ou da descrio de uma execuo. Em Os Miserveis, ele escreveu: 0 patbulo, quando est l, erguido para o cu, tem algo de alucinante. Algum pode serindiferente quanto pena de morte e no se pronunciar, no dizer nem sim nem no; mas isso s enquanto no viu umaguilhotina. Quando v uma, o abalo violento: ele obrigado a tomar partido a favor ou contra. Hugo recorda que,quando tinha dezesseis anos, viu uma ladra que um carrasco marcava com ferro em brasa: Ainda conservo no ouvido,quarenta anos depois, e sempre conservarei na alma, o espantoso grito da mulher. Era uma ladra; mas, a partir daquelemomento, tornou-se para mim uma mrtir.Chamei a ateno para essa evoluo no interior do instituto da pena de morte para mostrar que, embora essa penano tenha sido abolida, a polmica iluminista no deixou de ter efeitos. Gostaria ainda de acrescentar que, frequentemente,mesmo quando a pena de morte pronunciada por um tribunal, nem sempre executada: ou suspensa, e depois comutada,ou o condenado agraciado. Nos Estados Unidos, o caso de Gary Gilmore, que foi justiado em janeiro de 1977, no estadode Utah, provocou grande comoo porque, desde 1967 (h dez anos), ningum fora justiado. Em 1972, uma famosasentena da Suprema Corte estabeleceu que muitas das circunstncias em que se aplicava a pena capital eramanticonstitucionais, com base na VIII Emenda, que probe impor penas cruis e desproporcionais (unusual). Porm, em1976, uma outra deciso mudou a interpretao, afirmando que a pena de morte nem sempre viola a Constituio, com oque se abriu caminho para uma nova execuo, precisamente a de Gilmore. O fato de que uma condenao morte tenhasuscitado tantas discusses e reanimado as associaes abolicionistas mostra que, mesmo nospasesonde ainda existe apena capital, h uma opinio pblica vigilante e sensvel, que obstaculiza sua aplicao.6. Do que disse at aqui, resulta j bastante evidente que os argumentos pr e contra dependem quase sempre daconcepo que os debatedores tm da funo da pena. As concepes tradicionais so sobretudo duas: a retributiva, querepousa na regra da justia como igualdade (j a vimos em Kant e em Hegel) ou correspondncia entre iguais, segundo amxima de que justo que quem realizou uma m ao seja atingido pelo mesmo mal que causou a outros (a lei de talio,do olho-por-olho, de que exemplo conhecidssimo o inferno de Dante), e, portanto, de que justo (assim o quer a justia)que quem mata seja morto (no tem direito vida quem no a respeita, perde o direito vida quem a tirou de outro, etc.); ea preventiva, segundo a qual a funo da pena desencorajar, com a ameaa de um mal, as aes que um determinado ordenamento considera danosas. Com base nessa concepo da pena, bvio que a pena de morte s se justifica se se puderdemonstrar que sua fora de intimidao grande e superior de qualquer outra pena (incluindo a priso perptua). Asduas concepes da pena se contrapem tambm como concepo tica e concepo utilitarista; elas se fundem em duasteorias diversas da tica, a primeira numa tica dos princpios ou da justia, a segunda numa tica utilitarista (que predominou nos ltimos sculos e predomina at hoje no mundo anglo-saxnico). Pode-se dizer que, em geral, os adeptos da penade morte apelam para a primeira (como, por exemplo, Kant e Hegel), enquanto os adversrios se valem da segunda (como, por exemplo, Beccaria).Permitam-me expor um episdio histrico, frequentemente relembrado num debate como o nosso, que remonta nadamenos do que a 428 a.C., retirado das Histrias de Tucdides. Os atenienses tm de decidir sobre a sorte dos habitantes deMitilene, que se haviam rebelado. Falam dois oradores: Clon afirma que os rebeldes devem ser condenados morte porquelhes deve ser imposta a lei de talio e a punio que merecem; alm disso, ele aduz que os outros aliados sabero assim quequem se rebela punido com a morte; Didoto, ao contrrio, afirma que a pena de morte no serve para nada, j que impossvel(e d provas de grande ingenuidade quem assim pensa) que a natureza humana, quando se empenha com paixona realizao de qualquer projeto, possa ter um freio na fora das leis ou em qualquer outra ameaa, de modo que precisoevitar ter excessiva confiana em que a pena de morte seja uma garantia para impedir o mal. Continua sugerindo a observncia de um critrio de utilidade, segundo o qual em vez de matar os habitantes de Mitilene deve-se buscar transform-los em aliados.7. Na realidade, o debate complica-se um pouco mais porque as concepes da pena no so somente essas duas (embora essas duas sejam, de longe, as predominantes). Recordo, pelo menos, outras trs: a pena como expiao, como emendae como defesa social. Dessas, a primeira parece mais favorvel abolio do que conservao da pena de morte: paraexpiarpreciso continuar a viver. Mas pode-se tambm afirmar que verdadeira expiao a morte, a morte entendida como purificao da culpa, como cancelamento da mcula: o sangue se lava com sangue. A rigor, essa concepo da pena compatvel tanto com a tese da manuteno quanto com a da abolio da pena de morte.A segunda a da emenda a nica que exclui totalmente a pena de morte. Mesmo o mais perverso dos criminosospode se redimir: se ele for morto, ser-lhe- vedado o caminho do aperfeioamento moral, que no pode ser recusado aningum. Quando os iluministas disseram que a pena de morte deveria ser substituda pelos trabalhos forados, justificaramfrequentemente essa tese afirmando que o trabalho redime. No comentrio ao livro de Beccaria, Voltaire escreveu oseguinte, referindo-se poltica penal de Catarina II, favorvel abolio da pena de morte: Os delitos no semultiplicaram por causa dessa humanidade e quase sempre ocorreu que os culpados, enviados Sibria, l se tornarampessoas de bem; e, pouco aps, acrescenta: Se os homens forem obrigados a trabalhar, tornar-se-o pessoas honestas.(Caberia fazer um longo discurso sobre essa ideologia do trabalho, cuja extrema, macabra, demonaca consequncia serevelou nas palavras colocadas na entrada dos campos de concentrao nazistas Arbeit macht frei, ou seja, o trabalholiberta).A terceira concepo, a da defesa social, tambm ambgua: geralmente, os defensores da pena como defesa socialforam e so abolicionistas, mas o fazem por razes humanitrias (e tambm porque recusam o conceito de culpa que est nabase da concepo redistributiva, a qual s encontra sua prpria justificao se admitir a liberdade do querer). Todavia, adefesa social no exclui a pena de morte: poder-se-ia afirmar que o melhor modo para se defender dos criminosos elimin-los.8. Embora sejam muitas as teorias da pena, as duas predominantes so as que chamei de tica e de utilitarista. Deresto, trata-se de um contraste que vai alm do contraste entre dois modos diversos de conceber a pena, j que remete a umaoposio mais profunda entre duas ticas (ou morais), entre dois critrios diversos de julgamento do bem e do mal: ou combase em princpios bons, acolhidos como absolutamente vlidos, ou com base em bons resultados, entendendo-se por bonsresultados os que levam maior utilidade do maior nmero, como afirmavam os utilitaristas (Beccaria, Bentham, etc.).Uma coisa, com efeito, dizer que no se deve fazer o mal porque existe uma norma que o probe (por exemplo, os dezmandamentos); outra dizer que no se deve fazer o mal porque ele tem consequncias funestas para a convivnciahumana. Dois critrios diversos e que no coincidem, porque pode muito bem ocorrer que uma ao considerada m combase em princpios tenha consequncias utilitaristicamente boas, e vice-versa.A julgar pela disputa a favor ou contra a pena de morte, como vimos, dir-se-ia que os defensores da pena de morteseguem uma concepo tica da justia, enquanto os abolicionistas so seguidores de uma concepo utilitarista. Reduzidosa seus termos mais simples, os dois raciocnios opostos poderiam ser resumidos nestas duas afirmaes: para uns, a penade morte justa; para os outros, a pena de morte no til. Justa, para os primeiros, independentemente de sua utilidade.Desse ponto de vista, o raciocnio kantiano e irrepreensvel: considerar o condenado morte como um espantalhosignificaria reduzir a pessoa a meio, ou, como se diria hoje, instrumentaliz-la. No til, para os segundos,independentemente de qualquer considerao de justia. Em outras palavras: para os primeiros, a pena de morte poderia atno ser til, mas justa; para os segundos, poderia at ser justa, mas no til. Portanto, enquanto os que partem da teoriada retribuio veem a pena de morte como um mal necessrio (e talvez at como um bem, como vimos no uso de Hegel, jque reconstitui a ordem violada), os que partem da teoria intimidatria julgam a pena de morte como um mal no necessrioe, portanto, como algo que de modo algum pode ser considerado um bem.9. No h dvida de que, a partir de Beccaria, o argumento fundamental dos abolicionistas foi o da fora de intimidao. Mas a afirmao de que a pena de morte teria menos fora intimidatria do que a pena a trabalhos forados era,na poca, uma afirmao fundada em opinies pessoais, derivadas, por sua vez, de uma avaliao psicolgica do estado deesprito do criminoso, no sufragada por nenhuma comprovao factual. Desde que foi aplicado ao estudo da criminalidadeo mtodo da investigao positiva, foram feitas pesquisas empricas sobre o maior ou menor poder dissuasrio das penas,comparando-se os dados da criminalidade em perodos e em lugares com ou sem pena de morte. Essas investigaes,naturalmente, foram facilitadas nos Estados Unidos pelo fato de existirem estados em que vigora a pena de morte e outrosem que ela foi abolida. No Canad, um Moratorium Act de 1967, que suspendeu a pena de morte por cinco anos, permitiuestudar a incidncia dessa pena sobre a criminalidade, comparando-se o presente com o passado. Um exame cuidadosodesses estudos mostra que, na realidade, nenhuma dessas pesquisas forneceu resultados inteiramente convincentes. Bastapensar em todas as variveis concomitantes que tm de ser levadas em conta, alm da relao simples entre diminuio daspenas e aumento ou diminuio dos delitos. Por exemplo: a certeza da pena, problema j colocado por Beccaria (o quedissuade mais, a gravidade da pena ou a certeza de que ela ser aplicada?). Somente se a certeza permanecer estvel nosdois momentos que a comparao pode ser feita. o caso do terrorismo na Itlia: o que contribuiumais para a derrota do terrorismo, o agravamento das penas ou o melhoramento dos meios para descobrir os terroristas?Diante dos resultados at agora obtidos por essa anlise (nem sempre probatrios), tem-se buscado refgio naspesquisas de opinio: as opinies dos juzes, dos condenados morte, do pblico. Mas preciso comear dizendo: emmatria de bem e de mal, o princpio da maioria no vale; e Beccaria o sabia muito bem, tanto que escreveu o seguinte: Seme opusessem o exemplo de quase todos os sculos e de quase todas as naes que puniram alguns delitos com pena demorte, responderia que esse exemplo se anula em face da verdade, contra a qual no h prescrio, que a histria doshomens nos d aideiade um imenso arquiplago de erros, entre os quais sobrenadam, poucas e confusas, e a grandesintervalos de distncia, algumas verdades. Em segundo lugar, as pesquisas de opinio provam pouco, j que esto sujeitass mudanas de humor das pessoas, que reagem emotivamente diante dos fatos de que so espectadoras. E sabido que aatitude do pblico diante da pena de morte varia de acordo com a situao de menor ou maior tranquilidade social. Se notivessem ocorrido o terrorismo e o aumento da criminalidade nestes ltimos anos, provvel que o problema da pena demorte sequer tivesse sido levantado. A Itlia foi um dos primeiros Estados a abolir a pena de morte (em 1889, no cdigopenal Zanardelli): quando Croce escreveu a Storia dItalia, em 1928, afirmou que a abolio da pena de morte tornara-seum dado dos costumes, e que a simplesideiada restaurao da pena capital era incompatvel com o sentimento nacional.Apesar disso, poucos anos depois, o fascismo a restaurou sem grandes abalos na opinio pblica, com exceo do protestoestril de alguns antifascistas. Entre esses, recordo o livro de 1932 escrito por Paolo Rossi, que depois se tornou ministro daRepblica e tambm presidente da Corte Constitucional, La pena di morte e la sua critica, no qual o autor pronuncia umantida condenao da pena de morte contra o projeto de novo cdigo penal ento em elaborao, recorrendo principalmente ao argumento da emenda. Olado dbil do argumento que baseia a exigncia de abolir a pena de morte na sua menor fora de intimidao resideno fato de que, caso fosse possvel demonstrar de modo irrefutvel que a morte tem (pelo menos em determinadas situaes)um poder de dissuaso maior do que o de outras penas, ela deveria ser mantida ourestabelecida. No se pode ocultar agravidade da objeo. Por isso, penso que seria, no diria um erro, mas um grande limite fundar a tese da abolio apenasnum argumento utilitarista. verdade que existem outros argumentos secundrios, mas que, a meu ver, no so decisivos. H o argumento dairreversibilidade da pena de morte e, portanto, da irreparabilidade do erro judicirio. Mas os antiabolicionistas podemsempre retorquir que a pena capital, precisamente por sua gravidade e irremediabilidade, deve ser aplicada somente em casode certeza absoluta de culpa. Nesse caso, tratar-se-ia de introduzir uma nova limitao aplicao. Mas, se a pena demorte justa e dissuasria, no importa que seja pouco aplicada, mas sim que exista. H, alm disso, um argumentocontrrio de peso: o das recidivas. Num opsculo recente sobre a pena de morte (1980), o ltimo que tive oportunidade deler, publicado na popular coleo francesa Que sais-je?, o autor Marcel Normand defende ferrenhamente a pena demorte e insiste no argumento da recidiva: cita alguns casos (que reconheo impressionantes) de assassinos condenados morte e depois agraciados, os quais, quando retornaram liberdade, apesar dos muitos anos de priso, voltaram a cometerhomicdios. Surge a inquietadora questo: se a condenao morte tivesse sido executada, uma ou mais vidas humanasteriam sido poupadas. E a concluso: para poupar a vida de um delinquente, a sociedade sacrificou a vida de um inocente. Oleitmotiv do autor o seguinte:enquanto os abolicionistas se pem do ngulo do criminoso, os antiabolicionistas se situamno das vtimas. Quem tem mais razo?10. Ainda mais embaraosa a pergunta que me formulei h pouco, a respeito da tese utilitarista: o limite da tese estnuma pura e simples presuno, a de que a pena de morte no serve para fazer diminuir os crimes de sangue. Mas se seconseguisse demonstrar que ela previne tais crimes? Ento oabolicionista teria de recorrer a outra instncia de carter moral, a um princpio posto como absolutamente indiscutvel (umautntico postulado tico). E esse argumento s pode ser derivado do imperativo moral no matars, que deve seracolhido como um princpio de valor absoluto. Mas como? Poder-se-ia retrucar: o indivduo tem o direito de matar emlegtima defesa, enquanto a coletividade no o tem? Responde-se: a coletividade no tem esse direito porque a legtimadefesa nasce e se justifica somente como resposta imediata numa situao na qual seja impossvel agir de outro modo; aresposta da coletividade mediatizada atravs de um processo, por vezes at mesmo longo, no qual se conflitamargumentos pr e contra. Em outras palavras, a condenao morte depois de um processo no mais um homicdio emlegtima defesa, mas um homicdio legal, legalizado, perpetrado a sangue frio, premeditado. Um homicdio que requerexecutores, ou seja, pessoas autorizadas a matar. No por acaso que o executor da pena de morte, embora autorizado amatar, tenha sido sempre considerado como um personagem infame: leia-se o livro de Charles Duff, Manual do Carrasco,recentemente traduzido em italiano, no qual o carrasco apresentado de modo grotesco como o co, o amigo fiel da sociedade.Entre outras coisas, aduz-se para negar a eficcia intimidatria da pena de morte o caso de um carrasco que se torna, porsua vez, assassino, e que deve ser justiado. OEstado no pode colocar-se no mesmo plano do indivduo singular. O indivduo age por raiva, por paixo, porinteresse, em defesa prpria. O Estado responde de modo mediato, reflexivo, racional. Tambm ele tem o dever de se defender. Mas muito mais forte do que o indivduo singular e, por isso, no tem necessidade de tirar a vida desse indivduopara se defender. O Estado tem o privilgio e o benefcio do monoplio da fora. Deve sentir toda a responsabilidade desseprivilgio e desse beneficio. Compreendo muito bem que um raciocniodifcile abstrato, que pode ser tachado de moralismo ingnuo, de pregao intil. Mas busquemos dar uma razo para nossa repugnncia frente pena de morte. A razo uma s: o mandamento de no matar.No vejo outra. Fora dessa razo ltima, todos os demais argumentos valem pouco ou nada; podem ser contraditospor argumentos que tm, mais ou menos, a mesma fora persuasria. Dostoivski o disse magnificamente, quando ps naboca do Prncipe Michkin as seguintes palavras: Foi dito: No matars. E, ento, se algum matou, por que se tem demat-lo tambm? Matar quem matou um castigo incomparavelmente maior do que o prprio crime. O assassinato legal incomparavelmente mais horrendo do que o assassinato criminoso.De resto, precisamente porque a razo ltima da condenao da pena de morte to elevada e rdua, a grande maioriados Estados continua a pratic-la, e continuar a faz-lo, apesar das declaraes internacionais, dos apelos, das associaesabolicionistas, da nobilssima ao da Amnesty International. Apesar disso, acreditamos firmemente que o desaparecimentototal da pena de morte do teatro da histria estar destinada a representar um sinal indiscutvel do progresso civil. Esseconceito foi muito bem expresso por John Stuart Mill (um ator que amo): Toda a histria do progresso humano foi umasrie de transies por meio das quais costumes e instituies, umas aps outras, foram deixando de ser consideradasnecessrias existncia social e passaram para a categoria de injustias universalmente condenadas.Estou convencido de que esse ser tambm o destino da pena de morte. Se me perguntarem quando se cumprir essedestino, direi que no sei. Sei apenas que o seu cumprimento ser um sinal indiscutvel do progresso moral.*Extrado de A Era dos Direitos, publicado no Brasil pela editora Campus.