contos semi fantásticos

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Contos semi - Fantásticos Alian Moroz

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Page 1: Contos Semi fantásticos

Contos semi - Fantásticos

Alian Moroz

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Como lavar seu gato sem água e outras utilidades – Contos Semi - FantásticosAutor- Alian MorozEditora: Palco das LetrasRevisora: Elaine MorozCapa : Equipe Palco das LetrasISBN:Primeira Edição - 2012

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Page 5: Contos Semi fantásticos

Vovô Caneco.................................................03

Dindo e o gol fantasma................................14

Relógio...................Erro! Indicador não definido.

Cor..........................Erro! Indicador não definido.

Luz..........................Erro! Indicador não definido.

.Por pouco..............Erro! Indicador não definido.

Por pouco...............Erro! Indicador não definido.

Palavra viva...........Erro! Indicador não definido.

Palavra viva...........Erro! Indicador não definido.

Beleza vã................Erro! Indicador não definido.

Castidade...............Erro! Indicador não definido.

Folhas.....................Erro! Indicador não definido.

Pedra......................Erro! Indicador não definido.

Eterno.....................Erro! Indicador não definido.

Cativo.....................Erro! Indicador não definido.

Page 6: Contos Semi fantásticos

Pecado....................Erro! Indicador não definido.

Jamais.....................Erro! Indicador não definido.

Jamais.....................Erro! Indicador não definido.

Lua.............................Erro! Indicador não definido.

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Cantos - Alian Moroz

Dedico esses contos “verdadeiros” às minhas filhas Aline e Mônica sempre presentes em meu coração

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Cantos - Alian Moroz

Vovô Caneco

A garoa fina caia lentamente sobre a cidade. O tom acinzentado do céu criava uma nuance bucólica para aquela tarde. Gerson apura o passo ao notar o farol avermelhar, deixando escorrer uma lágrima acumulada sobre o visor. Era água da chuva, bem sabe, mas a associação a um olho vermelho, chorando, fora inevitável. Na portaria do hospital, a enfermeira de braços grandes já o conhecia.

– Bom dia, Gerson. Que chuvinha chata, não? O jovem sorri amarelo.– Como ele está? A enfermeira dá de costas, indo ao chamado do

interfone. Atende: – Não, senhora. O acompanhante paga separado.

Esse seu plano de saúde não cobre. De nada, senhora, até mais. Volta-se para Gerson e responde:

– Daquele jeito, você sabe, meu filho. O Doutor Francisco pode informar melhor, mas, dificilmente, ele vai se recuperar totalmente. A idade não ajuda.

– É... eu sei. Posso entrar? Ele está acordado? – Está sim, meu filho. Aquele velho é duro na queda.

Vai lá. Ele deixou o enfermeiro de plantão maluco! (risos)

Gerson sobe contando os degraus de dois em dois. O piso era gelado, com pequenos quadrados enegrecidos. Ajeita o capote sobre os ombros, antes de cumprimentar uma senhora, que descia as escadas.  Parecia feliz. Estava rindo de alguma anedota. Teria ela vindo do quarto de vovô Caneco?

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Cantos - Alian Moroz

Acondiciona os passos através do corredor circular até ficar a frente do quarto 32. Bate antes de entrar. Puxa o trinco devagar e coloca a cabeça antes do corpo.

– Vovô, está acordado? – pergunta sussurrando. O interior do quarto, com as cortinas fechadas, não

deixava entrar o rasgo cinza lá de fora. Ao lado de uma cama de metal branca, havia um

criado-mudo. Sobre ele, um pequeno jarro com água e uma rosa, deixada ali por Fernanda. A Bíblia, de capa escura, dividia espaço com a caixa de cartas de baralho. Um pequeno armário, contendo as parcas roupas, trazidas no dia do internamento e, uma cadeira de revestimento plástico, montava o cenário do número 32. Caneco abre os olhos ao escutar a voz do neto.

– Sinhô, é você? – pergunta o velho. – Sou eu sim, “Seu” Caneco – brinca Gerson. –

Consegui um tempo lá no jornal. Como está se sentindo? – Pode levantar a cabeceira da cama pra mim? – Claro, vovô! Aciona uma manivela na lateral do leito até o velho

lhe avisar a altura desejada. – Estou é com sede. Esses malditos não me deixam

tomar nem refrigerante! Você não me trouxe nada para beber? Cadê a Fernanda?

Gerson puxa a cadeira e senta-se perto da cama. – Ah! “Seu” Caneco! Você sabe muito bem que não

pode mais fazer jus ao seu apelido. O velho resmunga enquanto Gerson responde: – Fernanda está viajando... uma reportagem fora do

país. Mandou-lhe lembranças.

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Cantos - Alian Moroz

– Boa menina ela. Quero muitos bisnetos, hein? Essa coisa de família pequena é uma chatice, não é?

– É sim, vô! – responde Gerson. Da família Leon, restavam dois: avô e neto.

O velho Caneco ganhara o epíteto por um motivo justo: melhor cliente do Bar do Zequinha, desde os Anos Quarenta. Diziam que ele acabaria morrendo de cirrose se continuasse a beber tanto. Acertaram. Só erraram a idade. Morrer de cirrose aos noventa e cinco anos não era lá motivo para afirmar que somente a bebida lhe fizera mal. Sempre de bom humor e contador de “causos”, vovô Caneco era a alegria em forma de gente.

Os dois se olham, por um instante, em silêncio. Os lábios do velho tremelicam.

– O que o Doutor Francisco lhe falou? – pergunta ao neto.

Gerson pensa... – Que o senhor deveria me contar uma estória,

como nos velhos tempos. Caneco sorri. – Você já escutou todas as minhas estórias (risos). Gerson se aproxima mais da cabeceira. – Ah! Isso é verdade, mas tem uma em especial, de

quando o senhor atravessou a pé, toda a Serra do Mar; de Curitiba até Morretes, só para visitar a vovó. Você costumava contá-la para eu dormir, mas acabava me assustando tanto que vovó ralhava com o senhor.

Os olhos do velho viajam. Caminham até um passado distante, apinhado de boas lembranças.

– Me dá um pouco de água, por favor – pede ele.

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Cantos - Alian Moroz

Gerson alcança a jarra e derrama o líquido em um copo plástico. Caneco bebe fazendo uma careta. O neto sorri.

– Então, senta aí, novamente nessa cadeira, que eu vou te contar a maior e mais estranha caminhada feita por mim.

Gerson se ajeita, enquanto a voz do avô parece ganhar a força de trinta anos atrás.

–Pois foi bem assim... fazia já umas boas semanas que não via a dona Maristela. Você sabe, foi num baile promovido pelo Duque de Caxias, em homenagem ao Barão de Mauá, o Construtor de Ferrovias, que eu conheci a morena viscosa de olhos verdes. O baile durou cinco dias diretos, sem parar uma vez que fosse. A música se fez ouvir em toda Morretes. Nem o barulho do mar, brabo pela algazarra dos homens, atrapalhava os músicos. Todos grandes musicistas. Desconfio que até o tal do Carlos Gomes esteve por lá. Pois bem, dancei com a sua avó todas as noites. Foi amor daqueles de prender pela alma e não ter jeito de desatar mais. Ficamos noivos uns meses depois.... Fui à casa do pai dela pedir água pra beber. Não era sede, não era nada. O que eu queria mesmo era a mão da filha do italiano. É... seu bisavô era um carcamano, daqueles com cara de polenta e cheiro de salame. Pois bem, estava tudo muito certo. Só tinha um probleminha: eu morava em Curitiba e ela em Morretes. Eu, no alto da Serra, e ela no Litoral. Mais de cem quilômetros. Naqueles tempos, não tinha muita opção de estrada. As carroças, que desciam a Serra, não subiam mais. O jeito foi namorar a distância. A cada dois meses, eu pegava a litorina e, me borrando nas calças, via a locomotiva balançar sobre aqueles precipícios. Teve uma

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Cantos - Alian Moroz

vez que ela se equilibrou em duas rodas sobre os trilhos. O maquinista caiu pela janela. O trem foi sozinho, até Paranaguá, sem ninguém na direção da máquina fumarenta. Depois desse susto, em outra viagem, eu vi matarem o Barão de Cerro Azul, bem na minha frente, na entrada do túnel principal da Serra do Mar. Ele jurou que ia voltar pra se vingar dos bandidos.

- E ai, continue...

Bem, eu estava mal de dinheiro, os federalistas tomaram tudo. Não tinha como ir de carroça ou de trem. E, quando a saudade bateu, resolvi criar coragem e ir a pé mesmo, pelo meio da floresta. Descobri um caminho feito pelos Jesuítas, todo arranjado de pedras. Cortava a Serra bem no meio da mata. Cruz credo! Não gosto nem de lembrar o que eu passei. Primeiro, para chegar até a entrada da brenha, peguei uma carona com o Chico Terra, cavaleiro dos bons. Tinha um cavalo baio, chamado Notredame. É isso mesmo, Notredame. O lazarento do bicho era corcunda e só tinha três pernas. Mas, era veloz como só ele mesmo. Eu juro. Fiquei com umas sete costelas trincadas depois de andar naquele maldito animal.

O Chico me deixou bem na entrada da capoeira e perguntou se eu tinha certeza do que estava fazendo. Eu disse pra ele que era coisa de amor. Ele entendeu. Fiquei sabendo, mais tarde, que o Chico Terra havia morrido com um tiro disparado por ele mesmo. Disseram que, depois de ter vencido uma corrida contra o alazão do Coronel Leminski, soltou um tiro pra cima. A bala subiu... subiu... depois..., desceu certinho, no meio da testa do infeliz.

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Cantos - Alian Moroz

Comecei a caminhada, batendo com as mãos nos bolsos pra ver se não tinha esquecido nada. Tava tudo ali: fumo, água-de-cheiro pra Maristela e, um pedaço de mortadela, feita na Colônia de Barro Preto. Era pra comer durante a caminhada. Sabia lá... quanto tempo eu iria demorar a dita.

Pois, olha só, Sinhô. Não dava pra acreditar. A estrada estava lisinha, nem parecia ter quatrocentos anos. Dava pra seguir tranquilamente as pedras. Não tinha como se perder. A passarinhada cantando e, umas árvores mais lindas que as outras, cercavam o caminho. Era de ficar com o queixo caído.

De repente, comecei a sentir um cheiro de bicho. Bicho do mato fede que nem o diabo. Fiquei torcendo pra ser uma raposa ou um gambá. Cachorro selvagem também fede igual, mas não faz mal pra ninguém. Caminhei, não sei quanto tempo, sentindo aquele cheiro. Foi quando... escutei o rosnado da danada.

Nesse ponto, Gerson sempre perguntava: – E o que era vovô? O velho engrossa a voz novamente.

Pois estava bem ali, na minha frente, uma bruta onça pintada. Deve ter sentido o cheiro de mortadela no meu bolso. Ela olhava pra mim com uma cara de fome. Pensei logo... a besta não iria se satisfazer, somente com um pedaço de mortadela. Dei uns passos para trás, bem devagar, mas a vilã não desgrudou os olhos de mim. Rosnou com a cabeça rente ao chão, levantou a traseira e preparou o bote. Nessa hora, fechei os olhos. Não queria nem ver. Iria ser engolido com mortadela e tudo. Senti a bicha voar pra cima de mim, quando escutei um

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Cantos - Alian Moroz

zumbido cortar o ar. Parecia uma chicotada. Abri ligeiro os olhos e me espantei com a visão. Uma baita de uma caninana, aquelas cobras sem veneno, que só caça passarinho, pegou a danada da onça no ar, em pleno salto. Devia ter uns bons doze metros. O abraço na onça foi tão forte... mais tão forte, que escutei os ossos quebrando.

Desviei dos dois bichos e os deixei lá, resolvendo suas diferenças. Corri feito um cristão nos tempos de Nero. Mas, não há de ver que a cobra, depois de estrangular a onça, veio atrás de mim! O caminho de pedra estava úmido e eu acabei escorregando. Bati com o joelho no chão. Com o choque, a minha perna toda amorteceu. Não conseguia levantar. E a cobra chegando cada vez mais perto. Ai, peguei um pedaço de mortadela e joguei pra ela. A danada nem cheirou. Continuou avançando e farejando algo no ar. Quando eu já estava apavorado, me lembrei de uma estória contada pelo compadre Pé Vermelho, o Belarmino, lembra? Meti a mão no bolso e tirei um pedaço de fumo. Joguei pra desgraçada. Não é que ela meteu o fumo na boca e começou a mascar? Enrolou-se toda e nem deu mais bola pra mim.

Então, quando senti a perna melhorar, aproveitei pra sair em disparada... Nem olhei pra trás. Já tinha feito um bom pedaço do caminho, quando bateu aquela fome. Fiquei com raiva daquela cobra lazarenta. Desdenhou da minha mortadela e agora estava eu, lá, com fome. Olhei para uma árvore muito frondosa, perto da curva do Rio Pequeno, e vi umas frutinhas meio roxas. Não pensei duas vezes. Trepei num pé de sei-lá-o-que, e comi ali mesmo as frutinhas. Pois, lá de cima, na copa, eu vi uma

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Cantos - Alian Moroz

canoa, emborcada e logo pensei: Sabia que o Rio Pequeno desembocava no Nundiaquara, que corria pras bandas de Morretes. Desci com ligeireza da dita árvore e fui até a canoa. Melhor remar do que caminhar, já dizia o compadre Pé Vermelho. Estava chegando, perto dela, quando pisei num monte de bosta de capivara. Compadre Pé Vermelho dizia que isso dava um azar danado. E deu. Quando vi, estava cercado por um bando de índios, todos pelados, com penachos na cabeça. Fiquei branco que nem pão de turco. Como eu ia saber que a tal canoa era deles?

Era a vez de outra deixa de Gerson: – Caramba, vovô! E o que fez? O velho sorri com ternura para o neto.– Você quer mesmo escutar essa “bobagerada”? –

indaga ele.– Mas é claro! A não ser que seja tudo mentira.– Mentira não, menino. Juro pela alma de... de...do

compadre Pé Vermelho!– Bem... – continua o velho.

Primeiro, eles fizeram uma roda em torno de mim e pegaram-me a espetar com umas lanças feitas de vara. Depois, começaram a rir. Pra não perder a graça, ri também. Logo, desconfiei que estavam rindo de mim. Era a bosta de capivara, grudada mo meu sapato. Peguei meu lenço e me agachei pra limpar. E os danados dos índios, rindo ainda mais alto da minha cara.

Mesmo depois de limpo, o cheiro da bosta ainda era forte. Não sabia se iria ser morto por aqueles tapuios ou se iria reencontrar minha Maristela novamente. Nos dois casos, não podia ir pra terra dos pés juntos ou pra casa

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da minha morena, fedendo bosta. Tirei do bolso a água-de-cheiro e passei pelo sapato e também embaixo do sovaco. O índio que parecia ser o chefe fez uma cara de espanto e, logo se interessou pelo perfume. Mostrei pra ele o vidro. Acabamos negociando a água-de-cheiro pela canoa. Pra mim, que já estava pensando em virar defunto, foi um bom negócio. Embarquei na canoa feita de tronco e zarpei fora.

Cansado, me deitei no fundo da canoa e adormeci. Sabia que a correnteza iria me levar direto ao meu destino. O rio era dos bonzinhos, bem calmo. Já era escuro, quando percebi a canoa bater em alguma pedra  e ficar encalhada. Olhei assustado e vi uma ilhota, nem isso, um toco de terra, isso sim. Como já estava noite, resolvi descer em terra firme pra endurecer os miolos e me acomodar. Na manhã seguinte, continuaria minha jornada. Sinhô, meu neto. Nem te conto.

– Pois conte, vovô! – disse Gerson.

A tal ilha não era feita de terra não! Era um amontoado de caranguejos! Acordei todo beliscado, com aquela caranguejada em cima de mim. Rapaz do céu, que era aquilo? A ilhota se mexia inteira. Me aprumei e, chutando os bichos pra todos os lados, me joguei na água. Minha canoa, nessa altura, já devia estar me esperando lá em Morretes. Pra minha sorte, apareceu um tronco boiando perto de mim. Me agarrei e só fui largar quando estava embaixo da Ponte do Quinzinho, no centro da cidade. Foi um tremendo vexame. Eu estava todo molhado, com a cara inchada por causa dos caranguejos e fedendo bosta de capivara, com a língua toda roxa por causa das frutinhas. Só fui perder a cor, dois anos depois.

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Tive de ficar sem falar durante esse tempo todo. Antes, tive que contar pro pessoal o ocorrido.

Gerson cruza as pernas enquanto ri ao natural. –E eles acreditaram? A vovó acreditou? O velho tossiu com a mão na boca. –Acreditar? Eles acreditaram! O difícil foi explicar a

caninana. –Por quê? Caneco faz uma cara marota. –Não há de ver que a bendita me seguiu até

Curitiba? Queria mais fumo! Os dois riem juntos.

“Vovô Caneco era formidável” – pensa Gerson. Sentia orgulho de ser seu neto.

Nesse momento, o Doutor Francisco entra no quarto:

– Olha só a confraternização dos últimos sobreviventes da família Leon. Parece que o senhor Caneco está mais forte hoje.

– Sempre fui, doutor, sempre fui – responde o velho levantando o sobrolho.

– Então, Doutor Francisco, como estão os exames? – indaga Gerson.

– Bem... Tenho como principio profissional dizer sempre a verdade aos meus pacientes; seja ela boa ou ruim. Seu avô está com câncer no fígado. Uma cirurgia ou transplante na idade dele é quase impossível.

– Quanto tempo? – pergunta Caneco. – Se não tiver mais contato com o álcool, mais um

ano de vida, pelo menos. –Os velhos contam o tempo assim: um ano equivale

a uma década!. Cada vez em períodos menores. Deus

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era tão velho, mas tão velho quando fez a Terra, seis dias pra ele equivaleram a seis mil anos! E pra quem está fazendo hora extra mesmo, seis meses, um ano, está pra lá de bom. (risos)

Gerson, já caminhando pela rua do Farol, pensa no avô, nas atitudes positivas de encarar a vida. Lembra com carinho da avó Maristela. Sente saudades de Fernanda. Para no meio da rua. Uma dúvida lhe acomete de supetão: O que fazia aquela Bíblia em cima do criado-mudo? Vovô Caneco sempre foi ateu!

Enquanto isso, no hospital, Caneco vira a pequena garrafa e deixa o conhaque inundar sua garganta.

- Salmo 23 O Senhor é meu pastor e nada me faltará. – Eita Salmo correto! – comenta consigo mesmo o velho.

Gerson pensa: “Caneco conseguira arrancar sorrisos em meio à desgraça. Sempre fora assim e assim sempre seria”.

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Dindo e o gol fantasma

Nessas cidades do interior do Estado do Paraná encontramos os típicos torneios de futebol varzeano, onde o centro-avante joga descalço ou mesmo de sapatos de missa com a maior tranqüilidade e conforto com que o Ronaldinho(o gordo)jogava com suas chuteiras douradas. Geralmente os campos são de terra batida ou cobertos com aquele capim que mais tarde deixa o camarada com uma terrível coceira por todo o corpo. Quem nunca jogou num campo desses que atire a primeira pedra.

Pois bem, vamos ao que interessa. Foi na cidade de Palmiteiro, no norte paranaense, o jogo corria nervoso, decisão sempre è assim, e nos meios varzeanos, muito mais. Dindo, o avante daqueles de estilo trombador, forte, não estava levando vantagem sobre o Adirson(o nome era assim mesmo) ,um beque magrela e alto com orelhas de abano parecendo uma lebre.

Dindo escutou ao longo de todo o segundo tempo uma vaia da torcida caseira. Bola vai, bola vem e nada de gol. Foi quando uma cruzada na medida para o avante grandalhão e o mesmo com um deslocamento de tronco diferente conseguiu enganar o lépido zagueiro. Com um toque de cabeça mandou a gorducha de couro para os fundos da rede do gol adversário.

Foi uma festa geral e todos correram para abraçar o taurino Dindo. Levantaram-no nos ombros a fim de celebrar o herói em gloria. Qual não foi a surpresa total, amigo leitor, ao descobrirem que Dindo estava morto, vitima de um fulminante ataque do coração.

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O exame feito pelo legista atestou que o denso centro - avante estava morto antes de ir ao chão, ou seja, já estava com a alma no além quando cabeceou a bola definindo a vitória para o seu time.

Dindo ainda hoje faz parte da mitologia futebolística de Palmiteiro e todos invocam seu nome antes de uma decisão, transformando-lhe em uma espécie de santo dos gols espíritas. Isso realmente aconteceu, quem me contou foi um amigo meu.

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De Sonho e Pastel cada qual no seu Céu

A praça parecia um formigueiro. Apinhava gente em todas as direções. Uns corriam atrás do relógio, outros fugiam dele.O sol, sem piedade, fazia-se arder em pura demonstração de poder. Rinaldo esbarrava entre os apressados, tendo um caixote leve feito de madeira nas mãos. Caixote arranjado na feira, junto ao comerciante de maçãs argentinas.Era para a glorificação “daquele que tudo sabe” e, mesmo se fosse pesado o dito caixote, Rinaldo não reclamaria.Ao chegar perto da estátua de Tiradentes, revestida por uma pátina esverdeada e, coberta por fezes de pombos, Rinaldo pensa: “Tiradentes não perdera a dignidade...O olhar altivo, o manto sagrado, vestido igual a um Cristo, a corda no pescoço; era o emblema perfeito de herói para um país religioso”. Enfim larga o caixote no chão.Perto da escultura, no lado oeste, estavam as melhores pastelarias da praça, o que não desanimava o vendedor de espetinhos. Fazia o possível para vencer o odor de pastel com uma fumaceira sobre a carne de origem desconhecida. O festival de sabores “colesterólicos” embalava estômagos e bolsos vazios.– É carne de gato – dizia um – Nojento! Meu vizinho viu o camarada matando os bichinhos.Rinaldo aprontou o caixote enquanto retirava de dentro da mochila a Almeida Revisada; de capa negra, contrastando com as letras douradas.– Quanto é o espetinho? – pergunta uma mulher gorda, segurando pela mão, uma criança de seus seis anos.–Dois real!– Mãe, eu quero sonho!

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– Sonho não tem, piá! – responde ela.Rinaldo, embaçado pela fumaça dos espetinhos, sobe no caixote e começa a pregar com a Bíblia nas mãos.– E o sacerdote queimará isso sobre o altar; é o alimento da oferta queimada, com cheiro de fumaça. Toda a gordura pertencerá ao Senhor...Levítico 3:16O vendedor de espetinhos, um mulato grandalhão, olha para Rinaldo com olhos apertados.– Gorduroso é a porca da tua mãe! Isto aqui é carne limpa. Compro lá no açougue do meu primo Altevir!Rinaldo fica sem jeito. Era novo nesse assunto de pregar em praça pública. Aliás, fazia apenas um mês que se convertera à Igreja de Jesus Cristo Santo Salvador Jeová Aleluia. Era isso ou a mulher o tocaria de casa. Casamento falido pela bebida e salvo pela religião. Normal!– O senhor tem certeza que este espetinho tem pouca gordura? É pra criança! Olha lá! – reclama a mãe.– Eu já falei, minha senhora. Pego a carne lá no açougue do meu primo Altevir. Pode comer sem medo!

– Mãe, eu quero sonho! - insiste a criança, enquanto enfia o

dedo no nariz.– Ei, Pastor! Quer acabar com o meu negócio? Já não bastam essas pastelarias de merda? – reclama o mulato invocado.– Cuidado com o linguajar, meu senhor. Meu filho escutou!Um engraxate, postado a poucos metros da discussão, interfere:– Pode confiar, dona! Eu conheço bem o Altevir. A gente sempre “tomamos” umas juntos.– Eu não estava me referindo ao senhor. – tenta explicar Rinaldo ao mulato. – Quero dizer, estava sim, me referindo, também, ao senhor, mas nada contra o seu comércio.O mulato aperta mais os olhos.

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Cantos - Alian Moroz

– Escuta aqui! Não entendi nada que tu falou. Acho melhor ir chispando fora. Tá lotando o ponto!O candidato a Pastor estremece as pernas. O homem era grande. Todavia, ele, inspirado em Paulo, o apóstolo dos apóstolos, reage.– Mas os filhos de Dã lhe disseram: Não faças ouvir a tua voz entre nós, para que porventura homens violentos não se lancem sobre vós, e tu percas a tua vida, e a vida dos da tua casa. Juízes 18:25.O vendedor grandalhão contorna a churrasqueira de latão com os punhos cerrados.– Não conheço esse tal de Dã e, vou te quebrar as fuças se tu não te mandar daqui agora mesmo!Rinaldo fecha a Bíblia e os olhos. – Um milagre Senhor... Por favor, um milagre – sussurra pra si mesmo.De repente, um grito estrangulado. A criança engasgara com um pedaço de bacon do espetinho.Pula pra cá, pula pra lá e a mãe desesperada, berrando feito uma chocadeira enquanto o menino tentava respirar. Nisso, o mulato se volta, esquecendo Rinaldo. Tenta enfiar a mão dentro da goela da criança. O sururu estava formado.–Ai meu Deus! Salve meu filho!A mãozarrona do vendedor de espetinhos já havia entortado dois dentes da frente da pobre criança, sem, contudo, alcançar o belicoso pedaço de bacon.– Quando Faraó vos disser: Apresentai da vossa parte algum milagre; dirás a Arão: Toma a tua vara, e lança-a diante de Faraó, para que se torne em serpente. Êxodo 7:9 – exclama Rinaldo, lendo versículos a esmo.Em meio à confusão, um homem de capote preto, com um guarda-chuva a tira colo, se apossa de um palito, usado para fazer os espetinhos, e enfia na garganta do pequeno, que a essas

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Cantos - Alian Moroz

alturas preferia ficar sem ar a ter os dedos do mulato grandalhão dentro de sua boca. Com o palito, ele pesca o pedaço de bacon, trazendo-o para fora, aliviando os pulmões da criança já com a cara roxa.Uma pequena multidão, em volta, aplaude com entusiasmo. Era quase meio-dia.– Eu sabia! Bem que o Pastor avisou sobre o perigo disso acontecer. Devia ter comprado um pastel .– proclama a mãe.Todos olham para Rinaldo.– Ei! Péra lá! O piá se engasgou com o bacon. Não foi com a carne. Meu primo Altevir...– Pois fique o senhor sabendo que vou processá-lo!– Mãe, eu quero sonho.– Cala boca, piá! – disse a mãe, aplicando um cascudo na cabeça do pequeno.– Ei, dona! Fazemos os seguinte: Leva mais dois espetinhos e não precisa pagar. Já tô no preju mesmo...A mulher gorda, usando um desses colans coloridos, apegados às suas coxas estriadas, esboça um sorriso vencedor.– Aleluia Senhor! Esse Pastor é um santo! Ele previu o que iria acontecer!O mulato encara Rinaldo. Este nota a pequena multidão a lhe fitar com atenção, como que esperando alguma palavra sua.Toma coragem.– Deus é que tudo sabe! – expressa Rinaldo com firmeza.– Penso ser preciso perlustrar mais. – indaga o homem de capote preto.– Na verdade o vendedor não tornará a possuir o que vendeu, ainda que esteja por longo tempo entre os viventes; pois a visão, no tocante a toda a multidão deles, não voltará atrás; e ninguém prosperará na vida, pela sua iniqüidade Ezequiel 7:13.

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– Agora eu mato esse Pastor duma figa! – braveja o vendedor de espetinhos.A multidão fecha um círculo em volta de Rinaldo, impedindo que o grandalhão chegasse até ele.– Esse negócio de visão e, coisa e tal, é tudo balela. – disse um estudante de Matemática, comendo um pastel de palmito entre a aglomeração.– Um ateu! – grita uma senhora ao lado de um punk!A multidão toda se volta para o estudante.– Na verdade, eu sou um Adamista.– responde ele tranquilamente, lambendo a gordura dos dedos, depois de acabar com o pastel em duas abocanhadas.–Ah! Crê em Adão? – perscruta Rinaldo com um sorriso sonso.O punk ri.– Que bosta, hein Pastor? Ele está falando de Jerome Bosch! Pertence à época do Renascimento, mas é completamente surrealista. Criou a seita “adamita” para não ser preso na época da inquisição. Nasceu em Bosch, o que seria hoje a Holanda.Seu quadro mais famoso é o Jardim das Delícias.

– Meu Deus! Grita a senhora. É pior ainda! Ele é homossexual!O engraxate admite.– É verdade. Antes ateu do que bicha!– Eu não sou...– Mãe, eu quero sonho! – pede novamente o menino.– Não perturba piá. Não vê que o Pastor vai tirar o demônio daquele rapaz! Eu vi na televisão, o outro Pastor falar que todos os afeminados têm o diabo no corpo. O que o senhor acha, Pastor? – pergunta a obesa mulher, mordendo um dos espetinhos ganho do vendedor.Rinaldo não havia pensado sobre o assunto. Arqueia as sobrancelhas. Como responder?

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Cantos - Alian Moroz

O punk fizera amizade com um tocador de acordeão, que parara a fim de escutar a confusão toda.– Gosto mais de Oscar Kokocha. Sempre fui influenciado pelo expressionismo americano. – afirma o tocador de acordeão– Ah, eu já passei essa fase. Estou curtindo Kandinski e o abstracionismo gestual. – opina o punk– Olha o espetinho! Dois real apenas! – grita o mulato jogando gordura na brasa da churrasqueira para aumentar a fumaça.

Um mendigo, dormindo no chão, atrás da estátua, onde estavam dois pombos, um em cada ombro de Tiradentes, acorda esboçando uma careta.– Mas o que está acontecendo aqui? Será que um vagabundo não tem o direito de dormir sossegado?– Psiu! – Pede a mulher gorda. O Pastor vai tirar o demônio do corpo de um afeminado! Ele também vê o futuro!– Penso ser a afirmação, deveras perfunctória. – comenta o homem de capote pretoO estudante estende os braços e pede a palavra, salvando a pele de Rinaldo, pois todos esperavam a ação exorcista.– Como eu ia dizendo: As Análises Combinatórias, a Seqüência de Fibonacci, estudada a fundo por Anatole Lucas, demonstram, claramente, que tudo é matemática. Não existe a necessidade de um profeta para prever um acontecimento. Basta um bom matemático.– Eu sei – responde o mendigo. – Pastor, tire o capeta do corpo desse viadinho antes que fale mais besteira!– Concordo – comenta o engraxate. Quanto mais se aprende, mais se sabe. Quanto mais se sabe, mais se esquece. Quanto mais se esquece, menos se sabe. Então para que aprender?Rinaldo sente estar perdendo a atenção do povo. Folheia rapidamente a Bíblia em busca de alguma frase sapiente.

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– Toda sabedoria vem de Deus!– Não! Toda a sabedoria vem de AC2=AB2+BC2=1+1/4=5/4, onde temos a proporção 1/1,618... – A Proporção Áurea! – exclama o punk.– Mondrian a usou em Place de la concorde. – disse o tocador de acordeão.– Ela está presente! – confirma o estudante. A encontramos na Arte, na Arquitetura, na Natureza, enfim; em todo o Universo! Tudo é Matemática, como já afirmei!O mendigo se retesa.– Escuta aqui, viadinho. No interior de qualquer sistema lógico, por mais rigidamente estruturado que esteja, sempre se pode descobrir contradições.– Dois por um! Dois espetinhos por um! – Grita o vendedor mulato.– A Matemática só funciona porque a Física é conservativa – continua o mendigo, exalando cheiro de álcool.– Mas onde se achará a sabedoria? E onde está o lugar da inteligência? O homem não lhe conhece o valor; não se acha na terra dos viventes. Está aqui no Livro de Jó – retruca Rinaldo.O senhor tem troco para dez reais – pergunta a senhora que estava ao lado do punk.– É pra já, Dona. Saindo dois espetinhos no capricho.– É carne fresca? – indaga ela.–De primera, minha senhora. Compro com o meu primo Altevir.– É verdade – confirma o engraxate. Eu conheço muito bem o Altevir.–É um Livro incunábulo – comenta o homem de capote preto.Chegam duas adolescentes com os cabelos tingidos de vermelho perguntando o motivo da aglomeração.– É a televisão? Estão filmando uma novela?

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– Parece que um mendigo tentou assaltar um estudante – responde um varejista de CDs piratas.– Que horror! – comenta uma delas. – Sabia que levaram o tênis da Mariana semana passada? O assaltante chegou e simplesmente pediu.O chinês, dono da pastelaria mais próxima da aglomeração, vem reclamar.–Esse non poder ser! Atrapalhar negócio. Pastel non vender.O vendedor de espetinhos aproveita.– Olha o espetinho! Dois por um!O chinês se revolta.–Ser danado esse petinho! É tudo carne de gato! Non compram!– Ah! – exclama o mulato. – Melhor carne de gato do que pastel de cachorro!O engraxate despercebido confirma:–É verdade...eu conheço bem o Altevir.O estudante de Matemática recomeça seu discurso.– A seqüência de Lucas é um caso em especial, pois ela denota a intervalência entre complexos binomiais e a flexibilidade dos cálculos limitares de infinitos graus. Ela representa a probabilidade dos eventos causais.–Vá a merda com Lucas! Confio mais em Gauss. Todavia, os matemáticos são todos uns viados! – arremete o mendigo, respingando saliva em RinaldoA multidão aplaude! O chinês volta para a pastelaria e coloca uma placa de promoção. Pastel de carne por apenas 1 real!– O carpinteiro estende a régua sobre um pau, e com lápis esboça um deus; dá-lhe forma com o cepilho; torna a esboçá-lo com o compasso; finalmente dá-lhe forma à semelhança dum homem, segundo a beleza dum homem, para habitar numa casa Isaías 44:13.–comenta Rinaldo sem saber direito o porquê.

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– Já pegaram o ladrão? – Pergunta uma das meninas de cabelo tingido.– Não sei de nada – responde uma babá, segurando o carrinho de bebê. Falaram que estavam gravando uma novela. Vim ver.– A Física sem a Matemática é nula! – retruca o estudante ao mendigo.– Los Álamos que o diga! A Bomba H saiu da cabeça de um matemático, não de um físico. – ataca o mendigo.– Impertinências – responde o estudante de Matemática.– Já saiu o demônio, mãe?O mendigo levanta-se pra ficar na mesma altura do estudante de cabelos esparramados. “Por que todo estudante de Matemática tem cabelos esparramados ou é careca?” Pensa ele.– Uma laranja, mais uma laranja, são iguais a duas laranjas! Isso até um cão sarnento sabe. Por que vocês matemáticos não tentam dividir um cubo em dois cubos? Ou uma biquadrada em duas biquadradas? Ah!Não conseguem? Então repartam qualquer potência em duas de igual valor. Vocês são mesmo uns viadinhos.– São, verdadeiramente, inextricáveis tais imposições. – comenta o homem de capote preto.– O senhor é ator? – pergunta a babá para ele.O homem de capa preta cerra os dentes em um sorriso forçado.– Já estive a andar por ceca e meca e, por deveras, desenvolvi muitas atividades hirsutas, minha jovem. – estende a mão a ela – Gama Kury, ao seu dispor.A babá sorri, enquanto o bebê chora.– Pastor, o senhor não vai tirar o demônio do corpo desse pobre coitado? – indaga a mulher gorda.– É isso aí! – apóia o varejista de CDs piratas.Todos em coro começam a gritar:–Tira! Tira!

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Rinaldo folheia a Bíblia novamente. Nela sempre há uma resposta para tudo.– Que raios e trovões caiam sobre a cidade impura...Nesse momento, uma rajada de vento vem acompanhada por um trovão, e uma chuva forte de verão cai sobre a cidade. A multidão se dissipa.O homem de capote preto abre o guarda-chuva e o reparte com a babá, indo ambos em direção à Galeria Farias. O punk se despede do tocador de acordeão, ao que este pede ajuda.– Algum problema, velhinho? – pergunta o punk– Sou cego! Não notou? – reponde o tocador de acordeão.– Puxa! Se não me conta nem iria imaginar. Tocar acordeão só de ouvido deve ser chato, mas pintura de ouvido deve ser foda!O estudante de Matemática corre para a pastelaria do chinês. O preço do pastel era imperdível.O vendedor de espetinhos fica a olhar com tristeza para a sua mercadoria alagada. Olha para Rinaldo com firmeza.–Vum bora, Tutão! O Altevir tá esperando nóis prum churrasquinho, lá na casa da sogra dele. Pega tuas coisa e deixa esse Pastor maluco pra lá! – disse o engraxate.Em poucos minutos, Rinaldo estava só, com o seu caixote de maçâs e o mendigo ao qual lhe faz uma pergunta: –Você quer se converter e entregar seu coração a Deus? – Vai a merda e me deixa dormir... eu nasci há dez mil anos atrás...A mulher gorda tenta se proteger com uma sacola plástica que segurava na não direita.– Eita Pastor dos infernos! Pra tirar demônio do corpo é fraco, mas pra fazer previsão é porreta! – pega o menino pela mão e o arrasta para debaixo da marquise de um dos muitos edifícios ali fincados.– Mãe, quero um sonho.

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Amigos até a morte

Antunes e Ubaldo eram grandes amigos desde a infância láctea. Dona Marta, mãe de Antunes não tinha leite, então Ubaldo teve de emprestar a sua para amamentar também o amigo. Na pré-adolescência não desgrudavam um do outro, moravam perto e depois da morte do pai de Ubaldo em um acidente de carro as famílias ficaram mais unidas ainda. Cresceram como crescem todas as crianças, de uma forma normal, sem muitos altos ou baixos. A formatura do Ensino Médio onde Antunes perdera a virgindade com Terezinha,uma menina com a cara cheia de espinhas, era motivo de risos. Veio as aventuras no exército, onde ambos guardaram muitas lembranças e amigos. Já homens feitos, casaram no mesmo dia e igreja com mulheres até parecidas. Trabalhavam na mesma empresa com cargos e salários praticamente iguais. Antunes era mais comunicativo por isso ganhava um pouco melhor.Tudo perfeito dentro das regras de uma amizade. Contudo havia algo a incomodar Ubaldo.

Desde criança os amigos apostavam corrida no Parque dos Menonitas, mais ou menos um quilometro e meio em uma pista de terra. Ubaldo jamais vencera Antunes e agüentou o escárnio do amigo por toda a vida(eufemismo). Já estavam com 46 anos e Ubaldo agüentando as estripulias de Antunes.

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Amava o amigo como a um irmão, mas sonhava todas as noites em vencê-lo pelo menos uma vez nas corridas no parque de todos os sábados.

Naquela manhã sabática, Ubaldo sentia-se bem, sabia ser hoje finalmente a oportunidade. Antunes, já com um sorriso maroto nos lábios era só confiança.

Largaram e Antunes toma logo à frente com suas longas pernas de gazela.Ubaldo olhava com angustia o amigo à frente. Seu instinto lhe enganara, seria mais uma derrota vergonhosa.

A poucos metros da chegada combinada Antunes diminui o ritmo, cambaleia, leva a mão ao peito e cai. Ubaldo, logo atrás, pára a fim de verificar o que houve. Nota que o amigo está sofrendo um infarte. Olha para ele com comiseração e para a chegada com olhos brilhantes.

Desculpa-se com Antunes que o mira incrédulo e parte em disparada até a chegada. Ganhara, finalmente ganhara!Antunes é enterrado dois dias depois. Ubaldo, agora, dorme feliz.

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Como lavar seu gato sem água e outras utilidades

“Respeito, isso é produto em falta na juventude de hoje”. Tal pensamento acometeu Viriato, quando foi empurrado por três piás aparentando, mais ou menos, entre quinze e dezesseis anos. Aqueles bonés colocados com a aba para trás e os brincos escondidos sob os cabelos desarranjados, empoeiravam o senso de moda do pobre coitado. Viriato não era radical, muito pelo contrário, já vivera, e muito bem, seus anos de ouro. Contudo, nos últimos tempos, os jovens carregavam um semblante virtual nos olhos e um embaçamento mental, difícil demais para ele poder compreender.

Olha para o corredor do Shopping e ainda vê, ao longe, os guris correndo feito cabritos em direção ao grupo de amigos, todos vestindo roupas parecidas e não era minoria os de cabelos desalinhados. Os mesmos trejeitos. Querem ser diferentes, mas situam-se como peças análogas de uma corrente ou tribo. Todas iguais. Pintores de Nuremberg. Se segura à porta do elevador e ajeita a camisa. Uma mulher, empurrando um carrinho de bebê, lhe sorri ao sair.– O senhor está bem? Não se machucou? – pergunta ela.– Não, obrigado. Está tudo bem. Essa gurizada...O marido vem por trás atropelando a esposa e o carrinho, não deixando tempo para que ela ouvisse a resposta de Viriato. - “Todos têm pressa. É o mal do século.” Viriato penteia a barba com a mão e ajeita os cabelos. Amanha é quarta-feira. Dia sete, se não lhe falha a memória. É seu aniversário. Quarenta e oito anos. Aparenta ser mais velho. Também, com tais roupas, qualquer um pareceria ser vinte anos mais velho. Não lembra mais quando foi a última vez que

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comprou uma roupa nova para si. Helena sempre cuidava de tudo e, nesse tempo todo, sem ela, não aprendeu a se cuidar.

Uma saudade vem do umbigo e cresce no peito. Precisa de um café. A livraria no final do corredor do terceiro andar é perfeita. Seu esconderijo. Sem movimento e sem curiosos a fazer perguntas cretinas e crianças a lhe empurrar.

Estácio, o velho amigo e dono do espaço cultural, lhe confidenciou: “estava quebrado”. Não agüentaria manter a livraria e o café abertos o ano que vem. O lugar no shopping ficara muito caro, depois das reformas feitas no edifício. Uma ponta de lástima meneia os devaneios de Viriato. Não está com pena do amigo. Estácio é de família abastada, se quisesse, poderia muito bem manter o comércio. Ele sabe que o problema do amigo é outro. Depressão. “Vamos ficando velhos e os cupins, em derredor, comem a vontade de viver.”

Freqüentava o local há mais de vinte anos, desde os tempos em que vivia com Helena, mulher culta. Adorava passar horas na livraria e, depois, sorver um belo café dinamarquês. Ficavam, os dois, a discutir sobre vários assuntos, pertinentes ou não. Helena, uma companhia agradável.

Uma criança vomita perto da loja de brinquedos e Viriato desvia por um acesso oposto. A butique tem um enorme espelho na fachada da vitrine. Ele se olha sem querer. Momentos de vaidade há muito foram esquecidos. Nota que engordara. Pára em frente à lâmina refletiva e passa a mão pelo rosto. Definitivamente se achou acabado. A moça, dentro da loja, com uma daquelas calças que grudam na pele, acena para ele e sorri.Viriato devolve o cumprimento e se põe a andar novamente.

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Dentro da livraria, escolhe a mesa do fundo, enquanto faz um gesto para o atendente. Roberto reconhece de pronto o velho.– O de sempre, seu Viriato? – indaga com uma voz pastosa.– Por favor, Roberto. Onde está o jornal de hoje?– Está lá, perto da prateleira de Auto-ajuda. Um cliente pegou hoje cedo. Eu me esqueci de trazê-lo de volta.– Espero que o famigerado tenha comprado algo.– Que nada, seu Viriato. Não gastou um tostão e ainda roubou a página de esportes. Viriato resmunga, enquanto se levanta para ir à cata do periódico. “Eita mundo sem graça.”, suspira.Serpenteia, entre as repletas estantes de livros, vários títulos. Alguns, muito estranhos, com capas chamativas. Há quanto tempo não lê? Jornal conta? – pergunta-se em meio a um enleio assoado.“Como lavar seu gato sem água e outras utilidades” era o cabeçalho, em letras douradas, a lhe chamar a atenção.– Auto-ajuda? `Pois sim... Quem gastaria dinheiro comprando uma porcaria dessas? O jornal está derramado sobre uma pequena mesa, ao lado da estante. Agrupa as folhas e as ajeita de modo que se possa ler com um pouco de comodidade. Vira-se sobre os calcanhares, quando um raio de espanto lhe faz atiçar o tique nervoso no olho esquerdo. “Seria possível?” Estica a visão a fim de se certificar. A vista é fraca. Os óculos velhos. Não confia neles. Deposita o jornal sobre a mesa e procura esconderijo por detrás da estante de Auto-ajuda. Era improvável, mas não impossível de ser. Leva a mão à boca e morde a unha do dedo indicador. Ajeita os óculos novamente. Confirmado. “Por todas as cruzes do mundo.” Tinha certeza: É Helena.

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O cabelo cortado, pouco acima dos ombros, a deixara diferente. Sempre usara longo e solto. Os grandes olhos verdes estavam atrás de lentes orgânicas, enfeitadas por aros dourados. As pernas, mais grossas, não deixaram de ser atraentes. O caminhar e o sorriso blasé eram evidentes. Ele acompanha a imagem incorporada de sua saudade com os olhos. Helena se perde no corredor, à direita, fazendo Viriato estacar o sobrolho na face espantada.Ele se volta, coloca o jornal sob o braço e caminha trôpego, até a mesa onde esperava encontrar seu café. Olha Roberto atendendo outra mesa. Não vê Helena. Senta-se a sua mesa sem notar que a mesma estava ocupada.– Pois não? – indaga a voz feminina.Viriato estica o pescoço e, lentamente, levanta o olhar.–Oh! Perdão! Não vi a senhora.– Viriato? É você?Ele sente o rosto enrubescer.– Desculpe-me, vou procurar outra mesa.Helena o segura pelo braço.– Está tudo bem. Pode ficar aqui, se quiser. – disse ela.Ele arqueia as costas e pensa durante um segundo antes de voltar à posição anterior. Um sorriso nos olhos de Helena o fez retornar.– Que surpresa, você aqui. – indaga Viriato. – Como me reconheceu?Ela repousa os óculos sobre a mesa.– Confesso que pensei ter me enganado. Estava pronta para pagar um mico.– Então não me reconheceu... – comenta Viriato com um certo desapontamento.Ela nota. Conhece-o bem.– Reconheci sua voz.

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– Admira-me lembrar do som dela. Faz tanto tempo....– É verdade, mas sua voz é inconfundível.– Estou rouco.– Lembra das serenatas?Ele disfarça.– Coisas da juventude... bobagens de guri.Ela abandona o tema ao perceber a que isso levaria.– Como vai a vida? Por que não me procurou mais?Ele esfrega as mãos como um ritual irônico.– Você me largou, lembra?– Não foi assim, Viriato. Não faça dramas.– Você casou novamente, lembra? –insiste ele – Aliás, onde está seu marido, seus filhos?Roberto chega com o café.– Mais alguma coisa, seu Viriato?– Sim, um café dinamarquês.O jovem atendente se espanta.– É para a minha amiga. – explica Viriato antes de ser indagado com perguntas constrangedoras.– Sem o licor, por gentileza. – pede Helena.Ela ajeita a franja, caída sobre os olhos, enquanto o atendente se afasta.– Renato morreu. Faz dois meses.Viriato enfia a mão na longa barba. Cofia-a por alguns instantes, em silêncio.– Sinto muito. O que houve?– Câncer..., no estômago.– Sou um grosso mesmo. Desculpe-me. Agora lembrei porque você me trocou por ele.Helena mostra um sorriso. Os dentes brancos chamam a atenção de Viriato.

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– Não troquei você por ninguém. Isso não existe. Apenas não encontramos a mesma realidade.– Sei... sei.... – resmunga ele, sorvendo um gole de café quente. – Filhos?– Uma filha... Liza. Mora em Londres. E você?– Esqueceu? Não posso ter filhos.Helena disfarça.– Mas não fique triste. Ainda bem que não tivemos filhos na época. Eu seria um desastre como pai.– Sou obrigada a concordar com você. (risos)O café dinamarquês chega em uma bandeja de madeira, acompanhado por um copo de água com gás e duas balas de menta.– Casou?– Quem?Ela ri novamente.– Eu? Quem haveria de querer um traste como eu? Olhe para mim. Gordo e barbudo, além de rabugento.– Pois me parece muito bem.– Está mentindo só para me agradar. Não preciso disso. Não agora. Não tenho mais vaidade. Enterrei-a no dia em que você me deixou.Olhares se cruzam.– Você bem sabe que a mentirosa nunca fui eu. Estou curiosa. A vaidade sempre foi sua melhor “virtude”, como gostava de dizer.Ambos não desviam os olhares.– Sim, eu sei. Sempre fui um tolo.– Sempre foi um contador de estórias. Pena que suas estórias eram feitas para magoar...– Eu sei, Helena. Se soubesse como me arrependo...Ela desvia o assunto novamente:

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– O café está uma delícia. Não mudou nada.Viriato se arrefece.– Venho aqui, todos os dias, na esperança de lhe encontrar.– Não sabia – responde Helena meio sem graça.– Fiquei sem fôlego quando a vi entrar. Sinceramente, era um esperar não esperando, compreende?– Acho que sim. É como esta balinha de menta, que em vão tenta limpar nosso paladar do café. Podemos até aceitar que não estamos mais exalando o hálito da bebida, mas, ainda, ficamos por horas sentindo o gosto agradável e vicejante dele.– É como acreditar em Papai Noel. Acreditamos desacreditando. Você acredita em Papai Noel, Helena?– Não sei. Deveria?– Eu gostaria muito.

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Cantos - Alian Moroz

Augusto Melancia

Esmeralda vinha trazendo o licor de jaca numa bandeja prateada sob uma toalhinha de renda branca. Na saída para o alpendre, escorrega e quase deixa cair os dois copos de cristal e a jarra. O Coronel Militão Correia e Padre Inácio olham-na a tempo de vê-la resfolegar.– Toma jeito, negrinha! Se me deixa cair essa jarra, te ponho no tronco, iguar ao que o meu avô fez com teus parentes! – resmunga o coronel com sua voz arranhada.

Esmeralda abaixa a cabeça.– Descurpa, coronér. É que Bartira encerou hoje de manhã o chão. Tá liso que nem baba de quiabo. – responde com os beiços em forma de choro pronto.– Arre... – resmunga Militão.

Ela se aproxima e deixa a bandeja sobre a mesa de carvalho, logo a frente deles.– Obrigado, menina Esmeralda – agradece o padre apreciador de uma boa bebida.

Militão inclina o tronco para frente até alcançar a jarra. Despeja o líquido nos dois copos. Oferece um ao padre, sentado à sua direita, e volta a apoiar-se no encosto da cadeira de palha estilo gôndola.– Com essa raça não se pode dá confiança, padre. É tudo gente ruim de sangue. Vem de berço. Deus deve ter feito um pacto com o diabo pra colocá esses mardito no mundo.Padre Inácio esboça uma feição de pasmo.– Não fale assim, coronel. Somos todos filhos do mesmo Criador. A escravidão já terminou há muito tempo.

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O troncudo coronel bebe o licor num gole só, deixando escorrer alguns respingos pela barba já um tanto grisalha.– Na Bíblia tá escrito para não dar confiança e nem sortá os escravo! Tô certo ou não tô?O padre, de aparência franzina, jamais iria desconvir do poderoso Coronel Militão Correia, o maior plantador de café da região. Estava falido, era bem verdade, mas dentre os Coronéis municipais, era protegido do chamado Coronel de Estado, esse sim, o Manda-Chuva de todas aquelas partes, desde o rio Lindóia até perto de Guairá dos Buracos. O Coronel Francisco de Sá.– São outros tempos, coronel, outros homens, outras cabeças. Deus não é impiedoso.

Militão coça a barba, solta um arroto e resmunga:–Arre! Isso também já não tem importância. Só não gosto dessa gente e pronto. Pra mim, Deus anda mudando os tempo rápido demais. Não tô acostumado. Meu bisavô plantou por aqui desde 1831. Ele foi coronel de verdade. Da Guarda-Nacional. Não é que nem esses mequetrefes, iguar ao Coronel Maneco Reis. Aquele filho de uma biraia.

A longa testa de Padre Inácio começa a suar quando leva o copo à boca.Um corre-corre vindo lá de perto do estábulo faz Militão se levantar de sua cadeira. Era seu capanga, o Chutaguela, e mais alguns jagunços seus, que vinham a cavalo cercando uma carroça toda colorida com dizeres e figuras estranhas. A comitiva pára em frente ao alpendre, perto de onde se encontram Militão e Padre Inácio.– Que significa isso, Chutaguela? – pergunta ele.– Boas! Sinhô Coronér Militão! Pois antão, pegamo esses malandro robano milho lá perto da roça do Varar. Tentaram

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corrê, mais apanhamo os danado dentro desse treco aí. Parece que é uma carroça de palhaço ou coisa do diabo que o valha.Militão puxa as calças para cima e ajeita o cinto, já raspando os dedos na cartucheira onde descansa o trinta e oito.Padre Inácio fica de pé, ao lado do coronel e, juntos, veem sair do interior da misteriosa carruagem um homem jovem, todo de preto metido em uma capa roxa.– Deus é Pai – disse Inácio fazendo o sinal da cruz.– Arre! Mai que diabo...

Antes que Militão terminasse a frase, o homem desce da carroça, puxada por dois jumentos, com esmera agilidade.– Deixe-me, antes de tudo, me apresentar. Meu nome é Augusto Melancia. O Rei dos Mágicos!

Um negrinho com cara de assustado aparece por detrás da capa.– E este é meu assistente. Cuió da Lua.

O nome faz com que os jagunços riam. O próprio Militão quase perde a postura.– Quem lhe deu autorização pra invadir minhas terra e roubar minhas plantação, Cabra safado?

Augusto Melancia arrisca alguns passos à frente. Fazendo uma reverência, como nos tempos medievais, tenta explicar sua situação:– Queira nos perdoar, Coronel Maletão...– Meu nome é Militão, seu porqueira!

Melancia leva a mão à testa.– Oh! Sinto mais ainda, Coronel Militão. Estávamos nos dirigindo à cidade de Beira-Mato para uma apresentação, quando nos perdemos. Meu assistente, na angústia da fome, cometeu o crime de se apoderar de algumas espigas já caídas ao chão.

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– É mentira, coroner. As espigas inda tão verde. E não era só o negrinho que tava catano. O todo enfeitado aí tamém tava. – denuncia Chutaguela.– Sabe o que fazemo com os ladrãozinho por estas banda, “seo” Melancia?– Por favor, caríssimo coronel. Sua fama corre toda a região. Seria eu um tolo se aviltasse roubar-lhe algo. Meu assistente sofre de suas faculdades mentais, além de ser completamente surdo.O coronel o mira por alguns instantes. Desabotoa a cartucheira e retira a arma prateada.  O padre se alvoroça.– Lembre-se coronel. Até Cristo e seus discípulos foram confundidos com ladrões quando colhiam milho também.– Arre! Fica quieto, padre. Eu só quero conferir uma coisa.

Dizendo isso, aponta a arma para a dupla assustada. Dispara uma vez fazendo os cavalos dos jagunços darem pequenos saltos. Augusto se encolhe todo enquanto Cuió nem pisca.– Ele tá falando a verdade. O negrinho é bocó memo.

Guarda a arma no coldre novamente e ordena:– Levem esses estrupício até a ponte e mandem embora.

Augusto Melancia rapidamente se aproveita do segundo de hesitação dos comandados do coronel e joga a lábia para cima do mesmo.– Poderoso Coronel Militão Correia! Visto já estarmos perdidos mesmo, e tarde para levar minha arte para a bela cidade de Beira-Mato, posso lhe oferecer um espetáculo em troca tão somente de pouso e comida.Militão o mira de soslaio.– Que cê ta querendo, Cabra? Se exprica direito!Melancia pôde ver nos olhos da isca aquele brilho de curiosidade, natural a todos que pretendem ser

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enganados. Aproxima-se mais. Sobe os degraus do alpendre. Chutaguela roça os dedos na arma.e estica o beiço.

– Sou abençoado, por Deus, Pai nosso Senhor, com o poder da magia. Quase tudo me é capaz quando sou bendito por ele.– Não use o nome do Senhor em vão – adverte Inácio.

Melancia se volta para ele e, puxando a mão do padre, a beija com respeito.– Isso jamais passaria por minha cabeça, padre. Sou um filho respeitoso. Só quero mostrar minha arte, dada pelo próprio.

O coronel se arrima e com um sorriso jocoso desafia o mágico.– Me mostra arguma coisa. Antão posso pensá no caso.Melancia tem a feição maliciosa.– Posso me servir de um pouco desse licor? Faz tempo que não coloco nada na boca. Minha garganta seria capaz de cuspir pedras.

O coronel toma o copo da mão do padre e o passa para o mágico.– Toma aí, Cabra. Vamo vê se toma suco direto da mão de padre!Melancia escuta a risada alta de Militão e dos jagunços, enquanto sorve o líquido adocicado. Olha para a mão direita de Inácio.– Onde está seu santo anel, padre? – indaga MelanciaTodos desviam o olhar para o anelar do padre, que esboça uma feição assustada.– Meu anel! Perdi meu anel! – grita ele enquanto olha para o jovem com capa e atitude suspeita. Roubou meu anel, seu herege!

Militão arregala os olhos. Melancia sorri. Os jagunços resmungam.

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– Acho que deveria olhar em seus bolsos primeiro, antes de acusar um filho de Deus, padre. – responde o mágico.

Inácio apalpa a batina com as duas mãos, como estivesse coberto por carrapatos.Não encontra nada.– Devolva-me o anel! É um objeto abençoado pelo Bispo Vieira em pessoa! – choraminga Inácio

O Coronel começa a não gostar da brincadeira.– Não sei como fez isso, Cabra, mas devorve o anel pro padre senão ocê vai comer chumbo.– Não sou em quem deve fazer tal coisa, coronel. O senhor é quem o possui.– Arre! – resmunga Militão.– Procure em seu bolso esquerdo, no colete. – disse Melancia.O Coronel, contrariado, obedece. Com espanto acha o anel em seu bolso. Todos soltam um murmúrio de assombro.

Militão Correia não é homem de ser passado pra trás. Franziu a testa, riscou a barba com o polegar e espremeu os olhos pequenos.– Tu é bom memo, Cabra! – disse entre um sorriso mascado – Quero ver o que maisocê sabe fazê!

Joga o anel sobre a mesa, a que Inácio pega rapidamente e, desce do alpendre se aproximado da carroça enfeitada.– O que são essas caixa grande aí?

Melancia contorna a carroça e com os braços esticados aponta para as mesmas.– Estas caixas, coronel, fazem parte da maior mágica do planeta. Quer uma demonstração?

Humilhado, Padre Inácio resmunga:– Isso é coisa do Satanás, coronel. Mande embora esse Filho do Perverso.

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Militão, já deslumbrado pelas caixas vermelhas do tamanho certo para uma pessoa caber de pé, não ouve o conselho do religioso.– Claro! Vamo ver como isso funciona, “seo” Melancia.

O mágico, com estrema rapidez, dá um salto sobre a carroça, e do nada, um pano preto se levanta por detrás das caixas. Abre uma delas, com auxílio do Negrinho Cuió, o qual ninguém ainda notara a calça molhada de urina.

Depois de muitas palavras estranhas, Melancia adentra pela primeira caixa aberta.Cuió, fazendo poses de bobo da corte, fecha a mesma diante de todos. Minutos depois, envolto em uma fumaceira provocada por pólvora seca, Melancia aparece na segunda caixa, como que por milagre. Os jagunços seguram os cavalos assustados.Militão, solta uma risada infantil ao ver tal prodígio. Melancia ergue os braços em triunfo, observado pelo padre fazendo o sinal da cruz.

Já corria alta noite, Esmeralda recolhia os pratos e apetrechos do jantar farto, oferecido ao convidado especial. Ela observa o coronel sentado na poltrona, com as pernas cruzadas, fumando seu cachimbo preferido. Dá de costas. Não gostara do homem das caixas.– Pois muito bem, senhor Augusto Melancia. Tenho uma proposta para lhe fazê.– disse o coronel olhando firme para o mágico, em meio a uma baforada de cachimbo.– Sou todo ouvidos, coronel!Militão pigarreia.– Temos aqui em nossa região uma disputa política. Eu, mais aquele mequetrefe do Maneco Reis, tamos nuns enrosca botas pela indicação à prefeitura. O meu candidato é parvo, mas é aprovado pela igreja. Padre Inácio nunca me falhou. O pobrema

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é o candidato do coronerzinho de merda... É letrado e tudo o mais. Esse povo de cá se impressiona fácil.Melancia beberica o cálice com aguardente de barril.– Onde entro na história, caro coronel?– Quero que ocê faça a mágica de entrar numa caixa e sair noutra, na frente de todo esse povo cá da cidade.– Sem problema, coronel. – responde Melancia confiante. Pra quando quer o espetáculo?– Semana que vem. É dia de Santo Onofre, padroeiro da cidade. Vou dize presse povo que é coisa do santo. Quero só vê a cara dos parvo.

Melancia ri junto com o coronel. Teria onde dormir e comer pelo menos por uma semana.

Militão se levanta e caminha em direção à parede, onde encara o rosto do bisavô retratado em óleo sobre tela.–Vou lhe pagá mil cruzeiro pelo serviço. Depois o sinhô se escafede daqui.

O mágico quase se engasga com o líquido ardente. Pretendia praticar de graça. Por mil cruzeiros faria sumir até Deus.A manhã mostra um céu azulado. Cuió da Lua entra esbaforido pelo quarto onde estava dormindo Augusto Melancia.– Que foi homem de Deus? Parece que viu um fantasma?– Fantasma nóis vai é virar, padrinho! – responde entre rasgos de fôlego o negrinho.

Melancia esfrega os olhos e se põe sobre os cotovelos na cama.– De que você está falando moleque?– O padrinho sabe que tô sempre atento nas conversa. Escutei ontem sobre o acordo seu com o coroner marvado.

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– Então você já sabe que temos casa e comida por uma semana e mais 500 cruzeiros pra fazer aquele truque barato.– Eu escutei bem. São mir cruzeiro. – rebate o assistente afilhado.– Mil cruzeiros que você não vai ver nem a cor se não me contar o porquê de toda essa agitação.

Cuió engole seco e arregala os olhos extremamente brancos.– Padrinho, vai lá fora e veja onde eles colocaram as caixa.Melancia não esperava tamanho engano. Pensou que o coronel havia entendido ser apenas um truque– O que está acontecendo, coronel? – indaga ele ao ver uma das caixas sendo colocada dentro da capela.

Militão o recebe com um sorriso alongado.– Boas, senhor Melancia. Estamos preparando a festa! Esse povaréu vai ficar pra lá de bestiado com esse milagre de Santo Onofre.O mágico se aproxima da pequena capela com paredes azuis, desbotadas pelo sol. Lá dentro avista uma de suas caixas colocadas perto do altar, encimado por uma imagem do santo.– Onde está a outra caixa, coronel?– Mandei colocá lá na praça central da cidade.– Na praça central?– Isso mesmo, na praça central.– Acho que o coronel não entendeu bem a situação.– Arre! Qui história é essa? Craro que entendi Cê vai entrar nessa caixa que tá dentro da minha capela e vai saí lá na outra, qui tá na praça central da cidade. E vai confirmar que é Santo Onofre quem fez o milagre. Diz que apóia o meu candidato e tá tudo certo.

Melancia meneia a cabeça deixando pendê-la sobre o peito.– O acordo não foi exatamente esse coro...

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– Ocê não me venha de conversa, seu Cabra safado. Já espaiei a notícia pra toda região. Anté aquele mequetrefe do Maneco Reis tá curioso. Te esfolo todo o teu lombo antes de te cortá em pedaço e dá pros porco comê.

O suor escorre pela fronte do jovem mágico.

Realmente o coronel não havia entendido o “espírito da coisa”. Com um aceno no estilo militar se despede e volta a passos apurados para o quarto.– Cuió! – arremete ele – Estamos ferrados! O idiota do coronel pensa que é verdade o truque das caixas.– Só quero ver o padrinho fazer esse truque com as caixas a mais de 10 quilômetros uma da outra – risos.

Augusto solta a mão na cabeça do rapazote. Sabia que desta feita se metera em sérios apuros.

O coronel Maneco Reis, desconfiado de alguma coisa, manda um capanga seu ficar de olho bem aberto e vigiar o mágico durante toda a semana. Assim foi feito. Nos três primeiros dias, o cacundeiro repassou ao coronel que o mágico e seu ajudante estavam trabalhando de noite. Parecia estarem carregando sacos de terra de um lado para o outro.– Terra? – indaga o coronel curioso. – Será qui esses disgramado tão cavano um túnel por debaixo das caixa? Mais antão eles não são mágico...– É pra mais de légua, coroner! – comenta o jagunço. – Sei não...– De todo jeito fique atento.

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A Quinta-feira amanhece com um vento agradável. Cuió bate à porta do padrinho novamente. Entra rápido fechando-a por trás de si.– Padrinho. Tá confirmado. É bem isso mesmo.Melancia esboça aquele sorriso maroto.– Então vamos fazer do jeito que combinamos. É um plano perfeito.

Ao final de uma semana, um mundo de gente estava ante a capela da fazenda do Coronel Militão Correia. A igrejinha abarrotada com gente importante da região. Augusto Melancia aparece com capa e tudo. O povo abre passagem para o mágico. Ele se dirige até a imagem de Santo Onofre, postada na parede de fundo da capela, logo atrás do altar. Faz uma homenagem ao santo e beija os pés do mesmo. O povo solta “Urras”, comovido. 

Com uma encenação perfeita. Melancia abre os braços, saúda a todos e adentra pela caixa vermelha. Cuió da Lua tranca a mesma sob olhares auspícios. Padre Inácio faz uma reza. Cuió abre novamente a caixa e...

Todos estão em êxtase. Carroças, fordecos, cavalos e pangarés, tratores, enfim, tudo serve de condução até a praça central. O Coronel Maneco Reis desconfiado, havia chutado a caixa, tirando-a do lugar. Não havia túnel ou passagem alguma.Diante de todos ali, Augusto Melancia sumira. Passado algum tempo, aos poucos, vão chegando os que assistiram ao fantástico desaparecimento lá na fazenda, juntando-se a uma grande aglomeração no meio da praça. Todos esperavam por Melancia. Já era pra mais de Meio-dia e nada do mágico sair.

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– Chutaguela – chama Militão – Vai lá e veja se o miseráver tá dentro da caixa.

O Capanga obedece. Chega perto do objeto de madeira, maior que ele, e tenta empurrar. Alguma coisa se mexe no interior, resmungando.– Ocê tá aí drento, Fio de um Cão?

Escuta um sussurrar como resposta. Chutaguela retorna.– Pois óia, coroner. Tem argúem lá drento

Padre Inácio olha para Militão.– É melhor esperamos um pouco mais, não é coronel. Se ele está lá, deve ser por uma razão.Três horas depois ninguém mais agüenta a aflição. Com uma pancada bem dada com uma barra de ferro, Chutaguela arrebenta o cadeado que mantinha a abertura da caixa fechada. Esta se desmantela deixando sair o que estava em seu interior.

Num pequeno hotel, já passando uns bons quilômetros da cidade de Saquaruçu, os três esparramam pela cama as moedas de ouro. Ao lado está o que restou da imagem do santo.

Melancia abraça Cuió.– Eita moleque danado! Bem sabia que tinha o dom de escutar. Essas orelhas grandes não são apenas para enfeite.

Cuió aceita aquilo como um elogio.– Quando escuitei o Padre fofoqueiro falar sobre as moedas dentro do santo da capela fiquei alegre, mais continuei me fazendo de bocó. Padrinho a idéia de levá terra no jumento foi coisa de Malazarte. Os bobo pensano que nóis tava levano terra, mai na verdade a carga era o próprio jumento...eita povo bobo mermoMelancia não contem os risos

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– Adoraria ver a cara do coronel ao perceber que eu não estava na caixa da cidade mas sim um burro... parente dele...(risos)...Acho que ele não entendeu.– Eu não entendi .. – comenta baixinho , Esmeralda– Já sabemos Esmeralda.  O importante é que sua família está vingada e nós vamos gastar a fé do Coronel Militão que estava dentro do santo... – comenta entre risos Augusto Melancia.

Passados muitos anos, a fazenda do Coronel Militão Correia foi invadida pelos Sem-Terra. Estes levaram um baita susto quando viram na pequena capela uma cabeça de jumento, toda carcumida de traças, pendurada no lugar onde era pra estar um santo.

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Ato Conceitual

Laurindo entrou em desabalada carreira pela barbearia de Seu Feliciano. Na cadeira de couro vermelho, avistou, particularmente, o amigo Jorge Camargo, descendente do velho português, comerciante que dera nome ao Bairro do Cosme Velho.– Que é isso, Laurindo? – indaga Jorge, tendo uma toalha quente sobre o rosto – Qual o motivo de tamanha algazarra? Parece ter tomado água da Fonte da Rainha?– Dondinho... – responde Laurindo – Foi-se...– Como assim, “foi-se”?O amigo toma fôlego, enquanto engole as letras sem mastigar.– Foi-se, bateu com as botas, passou desta para melhor... ou pior...Jorge levanta-se num sobressalto, assustando Seu Feliciano que quase lhe decepa a orelha direita com a navalha.– Dondinho morreu? Como?– De morte morrida, oras... Conhece outra por acaso?– Não conheço outra e nem pretendo conhecer por tempo cedo. Eu perguntei o modus morti? – afere, indignado, Jorge.

Laurindo vê seu próprio reflexo no espelho. Está pálido e tísico, mas elegante em seu terno verde. – Afogado – responde logo em seguida. – Enfiou a cabeça dentro do Chafariz da Carioca e só tirou quando morreu. Seu Feliciano se intromete na conversa:– Ora, como pode o infeliz ter tirado a cabeça da água depois de morto, ó rapaz?

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Silêncio....Jorge põe a toalha de lado e, tomando seu panamá, sai da barbearia, seguido de perto por Laurindo.– Logo o Dondinho? Tanta gente má que merece morrer e vai acontecer uma tragédia dessas com uma alma tão nobre!– Será que ele tinha alma, Jorge?– Que pergunta Laurindo? É claro que sim!Jorge caminha em passos argumentados.– Onde está o corpo do falecido?– Lá no chafariz – responde anacronicamente, Laurindo.– Ninguém tirou o corpo do pobre coitado de dentro da água?– Acho que não, Jorge. Está lá, boiando calmamente. Nem parece estar morto. Jorge se arrefece.– Eita gente sem alma! Machadinho não iria aguentar ver uma cena dessas. Dondinho era o filho que ele não teve.– Sim – responde Laurindo. – Quando Dona Carolina morreu foi Dondinho quem acalentou a tristeza da casa.Dobram à direita, na esquina com a Santo Amaro.– Por que será que Dondinho cometeria um ato insano desses? Suicidar-se afogado justo naquele Chafariz imundo...– Saudades – arrisca Laurindo. – Ele não ficou um dia sequer sem visitar o túmulo de Machadinho.– Coisa mórbida – responde Jorge.– Não concordo. – arremete Laurindo cerrando os dentes. – É de nossa natureza cultuar a morte como uma bela deusa a nos abraçar. A morte é mãe.– Que é isso, Laurindo? Virou filósofo de alcova agora? Morte é morte. E a morte é feia. Deus me livre!

Laurindo se cala por alguns minutos. Começa a suar intensamente, mal acompanhando os passos ligeiros de Jorge.

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– Sabe dizer qual a idade de Dondinho? – indaga ao apressado amigo.– Hum... Deixa eu fazer as contas. Machadindo viajou em 1908... “Noves fora...” Acho que ele tinha perto de cem anos.– Um século é bastante tempo. Não sei se eu suportaria viver tantas estações. Talvez Dondinho tenha feito sua opção– Oras! Amigo Laurindo, ninguém escolhe morrer. Fomos criados para viver intensamente até o último suspiro. Não temos escolha alguma.– Dondinho fez a dele. Machadinho também. – sussurra Laurindo.– Aquele maldito ateu, filho de uma mula. – resmunga Jorge.– Sinto falta dele. Nem acredito que tenha morrid...digo, viajado.– Mas, morreu sim. Eu fui ao seu féretro. Você não.– Não tive coragem. Sabes que sou sensível. Não gosto de funerais.Laurindo ri.– Pretende fugir ao seu?– Ao meu o que?– Seu funeral. – responde Laurindo com ares de ironia.– Por que insiste em falar sobre coisas mórbidas, Laurindo? Que afeição estranha.– Somos carne. Nascemos e morremos. Numa hora somos vivos e belos, noutra, pedaço de carniça.Jorge ensaia uma careta.– Amigo, deverias padecer um tempo no Manicômio Central. Estás parecendo Machadinho, em seus últimos dias.– Por isso não o visitaste durante a enfermidade dele?– Machadinho não morreu. Não precisava de orações e choros a clamar pela sua alma. Só creio no que vejo.– Entendo agora sua ausência no funeral – comenta, Laurindo.

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Mais alguns instantes e estão em frente ao Chafariz da Carioca.

– Ei-lo. Como lhe disse, nem parece estar morto.Jorge levanta o sobrolho.– Que horror... Pobre Dondinho. Tire-o daí. – ordena Jorge.– Ah! De maneira alguma. Sozinho, não vou fazer isso. Fui chamar-te justamente para tal fim.– Sabes que não toco em carne morta!– Não me venha com essa!– Sou judeu. Não posso tocar em nada que seja imundo.– Panacéia sua. Você não é judeu. É descendente de portugueses.– Certamente. Portugueses judeus. Por favor, tire o Dondinho daí e vamos acabar logo com isso.

Contrariado, Laurindo se entrega às pleuras do amigo. Adentra pelo Chafariz, com a água batendo-lhe nas canelas. Agarra o corpo sem vida pelas pernas e joga-o por sobre o ombro. – Isso não está certo, Jorge. Deveria me ajudar.O amigo não escutou as palavras de Laurindo, pois já se encontrava a uma distância, considerada por ele, segura. O corpo foi levado para a velha casa do escritor, fechada há algum tempo. – Devemos seguir as instruções de nosso amigo Machadinho – disse Laurindo enquanto olhava para o corpo estendido sobre a mesa da sala. – Não sei não – resmunga Jorge. – Mas está aqui no Testamento dele. Queria o filho adotivo sepultado junto com ele e Dona Carolina – insiste Laurindo.– Devemos falar com o Padre Emiliano?

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– Para que? Machadinho não suportava Padres. Nem na hora de sua morte ele...– Já lhe disse, Laurindo. Joaquim Maria Machado de Assis não morreu. Ontem mesmo li uma crônica feita por ele. Não vi seu enterro, não visitei seu túmulo. Continuo lendo suas palavras. Como pode estar morto? Idéias não morrem...Ato Conceitual.Laurindo se cala, respeita a visão do amigo.– E Dondinho? – indaga ele.– Vamos enterrá-lo. Este é morto. Meus olhos não enganam. Meu nariz sente o cheiro podre da morte.

Foi um escândalo para toda a sociedade fluminense o funeral de Joaquim Maria Machado de Assis Júnior, o Dondinho.

Jorge nunca mais apareceu na barbearia de Seu Feliciano. Dizem que mudou para Engenho de Dentro. Laurindo ficou pelo Bairro, sem se importar com qualquer falatório, pois é feitio de qualquer comunidade.Morreu quatro anos depois do ocorrido, sem rever o amigo Jorge, que não foi ao velório.Dondinho, a contragosto dos clérigos e de alguns políticos, formas de vida consideradas em extinção por Joaquim Maria Sênior, foi sepultado junto ao que restava fisicamente de seu dono.Sim, Dondinho era um cão vira-latas, mas como contrariar o pedido de um imortal?

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Peremptório

Chegou a casa com um ímpeto de quem estava desistindo. Quase não abriu a porta da sala.Transpassou pela mesma, como se essa não existisse fisicamente. Olhou para o filho pequeno que brincava perto da mesa de jantar. Sentiu um impulso em beijá-lo, como um ritual de despedida, mas mudou de ideia quando percebeu não ter conquistado o olhar do Junior. A pasta de couro, que veio grudada em sua mão esquerda, foi jogada sobre o sofá. Tirou a gravata, o paletó e os lançou contra o espelho, onde refletia a sua imagem suada.

A esposa estava a um passo de terminar o jantar. O cachorro dormia no canto do corredor. Notou logo; a empregada faltara novamente. A cama estava desarrumada. Nélia não gostava de esticar lençóis.

A fumaça vinda da rua entrava pela janela semi-aberta do quarto. Sentiu vontade de fumar. Não podia. Ordens médicas. Num gesto nervoso, empurra o tapete do banheiro na tentativa de encontrar um culpado. A coluna dói. Velho problema. A idade começa a acusar a ancestralidade símia. Homus erectus... pois sim.Lembrou das promessas de juventude e dos erros da maturidade, sem remorsos, só mágoas.

Chico Buarque canta piratamente no aparelho de CD sem se importar se é ouvido ou não. Cds piratas sempre desfinam

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Abre a janela com dificuldade, a ferrugem na canaleta externa atrapalha. “Amanhã será preciso passar um pouco de óleo”. Inclina o corpo para frente e se precipita no vazio, isso lhe causa uma sensação de prazer.

Esquecera a chave na porta. Sempre fazia isso, Nélia reclamaria de maneira prosaica, era certo. Qual o sentido de tudo isso? Não importa, nunca importou.Em tempo, escuta a voz da esposa a lhe chamar para o jantar. Filé de frango. Carne suína é proibida.Olha para o céu estrelado, enquanto passa rápido pelas janelas em contagem decrescente. Como era mesmo a fórmula? Aceleração positiva e constante. A velocidade aumenta ou diminui? Besteira! Estava provando que a fórmula era correta, caindo cada vez mais rápido.Não imaginava ter tanto tempo para pensar, durante a fatal queda até ao chão. A calçada fora limpa pela manhã. Sabia disso, era quinta-feira, dia da limpeza do condomínio.Irônico, iria sujar a entrada do edifício com seu próprio sangue; ou seria; lavar a entrada do edifício com seu próprio sangue ? As entradas para o jogo de domingo ficaram na gaveta do escritório. Poderia tê-los ofertado ao Caetano, mas nem tivera tempo para lembrar disso e, além do mais, o Caetano era palmeirense.Um acesso de riso toma conta de seu fígado; imagina se arrepender agora, depois de ato decidido. Quantos já cometeram tal insanidade? Arrependeram-se entre o décimo e o oitavo andar? Como casamento mal casado, não há maneira de se arrepender.

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Lembra da primeira namorada... Está a menos de dois segundos da morte e vai justamente recordar a primeira namorada? “Não mereço mesmo viver, sou mesmo um decrépito fracassado”.Pensa em mais alguns adjetivos e advérbios boçantes, todavia, usara tão pouco a gramática e, agora, apesar do momento, não vai lembrar palavras peremptórias. “Espera um pouco ... peremptórias é bacana”.

Uma estrela cadente passa riscando a noite. Seria uma estrela cadente ou um cometa? Se fosse uma estrela, poderia fazer um último pedido, já que não escrevera uma mensagem suicida. Não tivera imaginação nem para isso. “Pateta”. Planeja um suicídio e não escreve uma carta contando os motivos que o levaram ao ato tresloucado e tudo o mais... blá blá blá...

Olha novamente, empertigado, para a pequena luz a riscar o céu. Observador privilegiado, e por um momento desconfia não ser uma estrela cadente, muito menos um cometa. É Einstein viajando à velocidade da luz. “Sim, o velho físico persegue seu reflexo no espelho”. Arremete a teoria. Se pudesse cair a uma velocidade análoga da luz e tivesse em uma das mãos um espelho, seria possível observar sua própria imagem? “Não? Talvez? Sim?”

O Éter universal, esse observador distinto, teria o poder de realizar tal evento, e refletir a imagem ou tudo seria relativo como previu o físico?

Tinha tempo para pensar no caso ainda? A vida era injusta mesmo, logo agora, passando pelo terceiro andar, começara a desenvolver uma pequena criatividade quântica. Se Einstein estiver correto e a relatividade for portadora de observantes,

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então, poderia dizer que: de um ponto de vista especial, a Terra estaria cometendo suicídio e vindo de encontro a ele, e não o inverso.

Ao passo de dois segundos mais tarde, bate com o corpo na copa de uma árvore de onde é arremessado para cima do toldo de uma barraca armada em frente ao edifício para o dia de São Genaro, e cai de pé, seguro sem nenhum arranhão. Passa a mas mãos pelo corpo como que procurando algo quebrado , mas estava tudo bem. Bate a sujeira da roupa e caminha em direção à portaria, assoviando uma canção de Bob Dylan–Boa noite, “seo” Rogério,– disse o porteiro.–Boa noite, – responde Rogério, ainda meio atordoado. – Você é religioso, Dantas? O porteiro larga a vassoura com a qual estava a varrer os degraus da entrada e sorri, com todos os seus quinze dentes. –Sou sim, “seo” Rogério, acredito muito em Deus! – E Einstein? –indaga Rogério. –Quem?Rogério não espera pela resposta e sobe empertigado os degraus limpos. –Ei! Segura o elevador aí! Vou subir! – grita ele.

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Investigação Especial

Por todo o Vaticano já se espalhara a notícia. Os validos seriam protegidos, doravante onde quer que fossem por incorruptíveis soldados suíços à paisana, metidos em seus ternos “cotalier”, facilmente identificáveis.

As visitas estavam sendo desmarcadas e os compromissos, desde os mais importantes aos mais triviais, transferidos para uma data mais segura.

A casa do pontífice, com seus cinco mil quartos, duzentas salas de espera, 22 pátios, cem gabinetes de leitura, trezentas casas de banho e dezenas de outras dependências estavam, de maneira efetiva, sendo vasculhada em seus detalhes mais antigos. Nada poderia ser deixado sem uma vistoria, nada era pequeno demais para não ser uma pista.

Dom Malina, um beneditino liberal, curador do museu principal do Vaticano e secretário particular do Papa, aguardava com ansiedade a chegada do chefe de Investigações Preferenciais da Polícia Especial de Roma.

Fechado em seu gabinete, consolado por uma leitura tomista do Século XVIII, arrisca seus pensamentos mais temerosos quanto à situação vigente.Como poderia alguém, em sua mais perfeita consciência moral e física, ameaçar de morte o maior Papa que a Igreja Católica já

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teve nos últimos 500 anos, pelo menos. Só não era comparado a Leão III, pois os enclaves pertencentes à igreja, espalhados pela cidade, deve-se ao inestimável religioso mor do tempo das descobertas. Maravilhoso deveria ser acompanhar os grandes navegantes partindo por mares antes nunca navegados, catequizando selvagens ignorantes em nome da fé. Que aventura! O som de uma voz fina, vinda por detrás da porta, lhe faz voltar de seus vagares – Dom Malina! O detetive Antonio Coletti está à sua espera no Salão Azul.Fecha o manuscrito. – Obrigado Servilho, peça que me aguarde mais um instante, por favor.Retira os óculos dourados e os coloca sobre a mesa de carvalho, enquanto levanta-se ajeitando a batina. Junto com seus temores, em passos lentos, ele vai ao encontro do policial. O Salão Azul era todo adornado por belas obras de arte. –Talvez um décimo de todo o acervo daquele palácio cabuloso – pensou Antonio enquanto esticava o pescoço a fim de observar melhor uma tela de Rafael.– Bela porcaria isto aqui. Como pensar na humildade pregada pelo Cristo, em meio a tanta pompa e riqueza? Lembra do avô anarquista e ri, não um riso qualquer, mas um sorriso maroto de canto de boca igual aos homens de sua família.– Desculpe pela demora, policial. – arremete Dom Malino com sua voz empostada.– Investigador Especial Antonio Coletti, ao seu dispor, Vossa Eminência.O religioso estende a mão com o pulso levemente dobrado em direção do policial. É de praxe beijar a mão de um padre, menos para Antonio. Ele agarra a mão estendida do religioso e faz o

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típico balanço vertical de cumprimento. Dom Malina pratica uma careta de desagravo levantando o sobrolho.– Digo-lhe, policial, a situação é crítica...– Investigador, –interrompe Antonio.– Como disse?– Investigador Especial. –confirma Antonio.Silêncio.– Certo, Investigador Especial... como eu estava dizendo, a situação é crítica –repete Malina engolindo as vogais.– O senhor me parece nervoso.– comenta Antonio.– Por favor, vamos até o meu gabinete, lá poderemos conversar com mais calma. – pede Dom Malina ao observar Servilho rondando o salão em busca de palavras soltas.– Certo, é melhor mesmo. Não me sinto muito à vontade sendo espiado por todas essas obras de arte, principalmente esse Rafael.

O Cardeal une as mãos na altura do peito, encobrindo o crucifixo de madeira bruna e caminha novamente, em passos peremptórios, na direção do corredor lateral, onde, ao final, localiza-se o seu gabinete. Com um movimento indelével, pede para o Investigador Especial segui-lo.–Não é um Rafael. É um Johannes Vermeer – disse ele com um vinco duro nos lábios–Ah – responde em resmungo, Antonio

O Relógio georgiano pendurado na parede indicava quinze horas e dez minutos. Estavam ali há pelo menos uma hora e meia e Dom Malina ainda não conseguira se fazer entender pelo policial.–Vossa Eminência está querendo me dizer que alguém ameaçou matar o Papa nesta Sexta-feira Santa?

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–Finalmente– rezinga Malina.–O que disse?–Oh! Nada, policial, digo, Investigador Especial, o senhor compreendeu perfeitamente a situação. Então, o que me diz?Antonio ri, mostrando os dentes alvos.– Impossível, meu caro Cardeal. Vossa Santidade está mais protegido que umbigo de freira!– Como?– Opa! Desculpe-me. Mas digo: é verdadeiramente improvável alguém planejar a morte de um Papa.– Já aconteceu antes. – comenta de modo seco Malina. – Que disse? – Que já aconteceu antes. João Paulo II. Lembra?Antonio puxa o ar pelo nariz enquanto leva a mão ao queixo. – Foi distinto. Aquilo eu chamo de acidente. –Acidente - indaga o religioso com um olhar escancarado. –Sim, o alvo era outra pessoa.Dom Malina leva as mãos à cabeça. – Ora! Isso é ridículo! O Papa foi alvejado duas vezes!

Antonio Coletti joga o corpo para trás, ajeitando-se melhor na poltrona de braços vitorianos, adquirindo uma posição de quem conhecia algo superior. – Como lhe disse, sou Investigador Especial e sei sobre o que estou dizendo. Os tiros eram destinados a outra pessoa. Aliás, fui um dos colaboradores na resolução do caso. Dom Malina se cala por um instante. Pensa consigo: a situação estava pior do que imaginava. Aquele elemento, enviado pela policia secreta romana era sim um idiota, não havia dúvidas quanto a isso. – Que fazer agora?Antonio interrompe a reflexão do Cardeal.–Posso confiar no senhor, Vossa Eminência?

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–Ah! Claro! Acho que sim. - responde Malina com um semblante branco.Antonio agora se aproxima do Cardeal colocando a mão sobre o ombro do mesmo em uma atitude mais intimista.Cruza as pernas. Malina o mira com desconfiança.– Quando da morte do primeiro João...– João Paulo I – indaga o Cardeal.– É... como eu disse, o primeiro João. Pois sim, quando da morte do primeiro João, nós, da Policia Especial, já desconfiávamos de alguma treta.– Treta?– Sim, Algo não cheirava bem. Acompanhe o meu raciocínio e não se intimide se eu estiver indo muito rápido. Interrompa-me.– Farei o possível para acompanhá-lo - responde o religioso.Antonio dá uns tapinhas nas costas de Malina.– Isso mesmo! Bem, veja só como a coisa toda se desenrolou. Antes de o primeiro João ser Papa, ele era um João Ninguém. Não estava cotado nem para ser o cestinha do Óbulo de São Pedro. O que acontece então? Ele é ameaçado de morte. Da noite para o dia...– Do dia para a noite. –interrompe Malina.– Que seja. Bem, de uma hora para outra ele se transforma no candidato mais provável à sucessão na eleição do conclave.O Cardeal se recosta em sua poltrona, segura os óculos pelos aros com força.– Aquilo teria alguma lógica? Por Deus Pai!– Mas João Paulo I acabou morrendo, detetive.– Investigador Especial. –retruca Antonio.– Certo, Investigador Especial. Como disse, ele acabou morrendo...– Nada! – interrompe num repente de entusiasmo o policial – Ele era alérgico a leite de Cabra!– Como? – disse Malina

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Antonio Coletti sorri.–Não é de comer... é de beber. Esqueceu da tradição, caro Cardeal? Na primeira semana, o novo Papa deve beber leite de cabra, vindo dos campos de Provençe, na França.Malina se arrepia. Era verdade sim. Tradição em homenagem a Carlos Magno, o salvador do cristianismo no século IX.– Pois então, meu caro Cardeal. A história foi bem essa, só que não acabou aí.– Não? – pergunta o já confuso Cardeal.– Não. Entra em cena um velho ator polonês, também Cardeal, alardeando sobre um possível envenenamento do primeiro João, o João Ninguém. – ele ri da própria anedota.– Foi o Karol...? – tremilica Malina.– Não lhe disse nada, meu caro Cardeal, não lhe disse nada.– pisca para o religioso.– Mas e a tentativa de assassinato sofrida pelo Papa João Paulo II?Antonio pigarreia antes de continuar.- Bem, a encenação toda deu certo e o segundo João tava com a bola toda. Tudo certinho até seu secretário particular descobrir o método de ficar famoso.– Mas o secretário particular de João Paulo II é o atual...– Silêncio! Chega de “mas” – interrompe Antonio, já íntimo do religioso.Descruza as pernas e se acomoda novamente na poltrona.– Prevendo para logo uma sucessão, o tal secretário tratou de arranjar uma ameaça de morte para ele próprio. Contratou então um atirador profissional para simular uma emboscada.–Estou pasmo, detetive.–Invest...–Oh! Desculpe-me. Já sei! Investigador Especial. – atravessa Malina.

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–Todavia, o nosso caro amigo cometeu um erro. Ele contratou um atirador islâmico.O Cardeal remete uma feição indagativa.–Islâmicos são bons com armas. Onde estaria o erro?–perscruta o religioso.O Investigador Especial sorri novamente aquele riso maroto.–Bem, era Sexta-feira Santa e, nesse dia, os islâmicos estão voltados para a Meca. O combinado era ele atirar de raspão no dito secretário candidato a Papa, perto da entrada oeste do Monumento Cesário.–E?–Bem, o tal atirador islâmico só poderia estar voltado para o leste, para Meca. Atirou para aquele lado gritando por Alá, e nem viu em quem acertou. Adivinha quem estava no caminho entre ele e a cidade santa?–Antonio ri.Malina levanta-se levando as mãos pela altura da cintura numa posição de prosternação. Tudo parecia muito irreal, mas com um fundo possível. Ele sabia muito bem do que eram capazes certos catecúmenos.–Não sei o que dizer Poli.... Investigador Especial.Antonio Coletti levanta-se aprumando o terno, batendo nas pernas como que para tirar alguma sujeira invisível.–Fique tranqüilo, caro Cardeal. Mandarei dar uma reforçada na segurança, mas creio ser tudo isso parte de alguma ascensão político - religiosa.–Mas de quem?– indaga Malina. – Do próprio Papa?Antonio dá de costas para o religioso enquanto sai resmungando.– Um posto maior que Papa... seria a Santidade não? ... Quem sabe. Lembra daquele autor... o tal de “Salmão Ruche”?Dom Malina escuta sem querer ouvir.

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– Então, eu li o livro dele “Versos Satânicos”, uma bela porcaria, mas vendeu que nem água no deserto. Eu pergunto ao senhor o porquê? – pavoneia Antonio.– Porque foi ameaçado de morte pelo Aiatolá.– responde Malina não acreditando no que dissera.

Em seguida vê o Investigador Especial sair pela porta, acompanhado por Servilho. Com um gesto de mão ele nem se dá ao trabalho de virar-se em direção ao Cardeal e despede-se sumindo pelo corredor, envolto em uma leve penumbra. O anfibológico religioso olha para o relógio e percebe que ficara mais tempo que o previsto conversando com aquele Investigador Especial e suas conspirações excêntricas. Imagina, forjar um atentado para conseguir notoriedade e poder. Só falta dizer que o cristianismo forjou a morte de Cristo para conseguir se impor como religião mundial...será? Um atentado há dois mil anos atrás começou tudo, isso ele não pode negar. A Razão é uma faísca difusa... Sente-se cansado e, preferindo não pensar mais sobre isso, pede para Servilho arrumar tudo para a Sexta-feira Santa e se recolhe aos seus aposentos. O silêncio e a escuridão imperam pelos corredores do Vaticano. Tudo é paz.

No sábado pela manhã, Antonio Coletti está de folga. Tivera no dia anterior um feriado conturbado. Senta à mesa para o desjejum ainda vestido com um roupão felpudo. Sorve um gole de café cremoso e sorri ao ler a manchete do jornal matutino. “Cardeal Malina sofre atentado na Praça de São Pedro. O povo reza por ele. Papa está indignado e culpa os ateus”.

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Golpe de sorte

Longe de casa há mais de um ano , Hebervaldo vê com uma tristeza verossímil o documento descansando sobre a mesa de tampo verde. Os pensamentos maldosos teimam em lhe assolar a membrana superior de seu cerebelo. Dona Matilde, a mãe evangélica, jamais lhe perdoaria se aventasse estar ele deixando tão pecaminosas intenções aforarem em sua moral. Mais um gole de café. Péssimo. Saudades daquele café verdadeiro feito com o pó derramado diretamente na chaleira. Caboclo. Martins não voltaria antes do meio dia, segundo ele mesmo atestou quando resmungou pela manhã lhe prevenindo para não tomar o leite guardado na pequena geladeira. Jamais faria isso. Tinha princípios. A fome o estava zombando e não seria um mísero copo de leite magro o alforje heróico a resolver seu problema. O documento ainda descansava sobre a mesa inerte aos pensamentos crespos de Hebervaldo. A cama range ao levantar de seu corpo parco. Dois passos em direção à janela. Mão no queixo. Gira sobre os calcanhares em uma clássica descrição de suspense. O documento. O sol ilumina Hebervaldo por detrás, vindo da arabesca janela marrom, fazendo sua sombra arrastar o dito papel até suas mãos. Quando termina o último degrau, Hebervaldo não pratica mais o rosto da mãe, lá no interior de Minas Gerais, a lhe importunar. Não entraria mais em conflito. Seria um segredo dele consigo. Nem Deus tomaria parte no negócio. O documento fora dirigido para seu colega de quarto,Martins “o sortudo”.

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O metrô não deixa os pensamentos o acompanharem, é silencioso tal qual o pequeno pedaço de papel enfiado em seu bolso. Um pequeno pedaço de papel atestando ao portador uma entrevista de emprego no maior escritório de Nova York. Gastara tudo o que tinha. As fálicas economias do pai o qual não conhecera direito. Morte prematura. Estava ali, depois de muito sofrimento e trabalho. Não iria retornar para a casa da mãe de mãos vazias. Não era como o pai. Sabe que não era como o pai. Humilde. O frio na barriga quando o elevador estaciona no andar desejado lhe faz rir por dentro. Nervoso. Mais alguns passos e está na ante-sala da recepção. Piso combinando. Retira do bolso o documento e apresenta para uma moça com sorriso na face. Obrigação.

Mais alguns momentos e já está sentado num pequeno recinto onde faria sua derradeira e mais importante investida. É tudo ou nada. Na cabeça de Hebervaldo uma cena começa a se formar. Martins perguntand onde estava o documento:“não vi...não sei do que está falando...entreguei para a moça da recepção”, responderia ele. O som de uma capainha doce lhe trás dos devaneios. Os olhos percorrem todo o espaço daquele cômodo aleatoriamente, sentindo o cheiro do ambiente. Acha graça. Uma frase curiosa por sobre um botão vermelho avisa para acioná-lo em caso de emergência. Riso solto. Sentiu vontade de fazê-lo, mas não naquele momento. Estava com sorte.

ACIONE EM CASO DE EMERGÊNCIA. Não agora. ACIONE EM

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Cantos - Alian Moroz

CASO DE EMERGÊNCIA. As letras

parecem crescer. ACIONE EM CASO DE EMERGÊNCIA. Dona Matilde chora.

ACIONE EM CASO DE EMERGÊNCIA. O pai humilde trabalhando

doente. ACIONE EM CASO DE EMERGÊNCIA. Martins lhe dando um lugar

para morar quando ninguém mais o fez.

ACIONE EM CASO DE EMERGÊNCIA. Trair a todos que confiaram

nele. ACIONE EM CASO DE EMERGÊNCIA.

Hebervaldo chacoalha a panela a fim de retirar a última batela de pipoca do dia. A praça em uma cidadezinha mineira já começava a ficar vazia. A fumaça saída do fogareiro puxa Hebervaldo para o dia em que pulara fora da maior oportunidade de sua vida. Aquele 11 de setembro não vai lhe sair nunca mais da memória...

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A Entrevista

As luvas escaparam ao contato do volante, ele tentou corrigir, contudo, o carro escorrega de traseira e, num instante longo, é assim que descreveria, alçou um vôo no vazio indo chocar-se contra uma árvore, a uns duzentos metros morro abaixo. Apesar do frio e da garoa fina, que insistia em cair no auge da Primavera, o automóvel incendiou rápido e explodiu de pronto, arremessando pedaços fumegantes de metal em todas as direções.

-Muitos lugares comuns. Já é hora de mostrar a cara ou parar de vez.(O Globo)

Figueira volta para casa, mais uma vez com os ombros derrotados. Acena para “Seo” Olavo, o dono da quitanda que servia de boteco também. Pensou em tomar um refrigerante, antes de encarar Matilde, porém, sabia de sua dívida no “caderninho”. Preferiu apenas cumprimentar o homem de bigodes estilo Fordeco e receber o sorriso amarelo do mesmo.

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Suado, adentra pela porta da frente da casa ainda em construção, num silêncio acusador. Matilde lhe ancora o olhar de sempre. Não pergunta, compreende. – Então? – Então o que? – responde Figueira jogando a pasta de documentos por sobre o sofá amassado. – Qual foi a desculpa desta vez? – insiste ela. – Crise no setor. Não estão contratando ninguém...Matilde arrasta as sandálias, feitas em borracha, no chão de cimento cru. – Crise...é sempre essa crise...O dono da fábrica não foi seu colega de escola? –Foi...o Germano... – Então? –Então o que, Matilde?Ela se volta irritada. – Então porque o desgraçado não te arrumou um emprego, porra! – Matilde, já lhe pedi para não falar assim. Não gosto de “palavrões”. – Vai se fuder, seu bosta! A casa é minha e eu falo como quiser dentro dela.Gingou a cintura numa volta de calcanhares e arrastou as sandálias em direção ao quarto. Figueira acompanhou com os olhos. Escutou o som da televisão, que acabara de ser ligada. Uma propaganda alertava sobre os perigos do fumo. – Essa sua fé ainda vai lhe trazer muitos problemas, Figueira. Se soubesse que seria assim ,teria casado com o Valmor. – grita Matilde lá do quarto. – O Valmor é um bêbado! –responde ele em um tom de voz seguro.

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– Tem razão, mas é macho e tem emprego! Se minha querida mãezinha, que Deus a tenha, imaginasse que sua filha continuaria a trabalhar de diarista, mesmo depois de casada, morreria novamente. – Sua mãe sempre foi diarista. Qual a vergonha.? – indaga Figueira..Ele escuta as sandálias se arrastarem nervosamente em sua direção. – Ela morreu pensando que eu tinha me casado com alguém importante. – Sou apenas um Técnico Eletricista. – Pois é! Foi isso que eu disse pra ela. Achou tão bonito o nome...Técnico... – Eletricista, Matilde, sou um simples eletricista... desempregado.Ela encosta o dedo indicador na ponta do nariz torto de Figueira. – Desempregado por que é um vagabundo. Não trabalha aos sábados. – Sou adventista do sétimo dia. Não posso quebrar os mandamentos.

Matilde não responde. Apesar dos problemas causados pela fé protestante-judaica do marido, ela ainda o respeita. É um bom pai. – Espero que isso não nos afunde, Figueira. Eu já estou cansada. Só o que eu ganho não está dando. Juninho precisa de livros novos na escola pra semana que vem. –Tenha fé, Matilde. Deus proverá. –Eu sei...mas se você recusar mais alguma oferta de emprego por causa dessa loucura de não trabalhar aos sábados, eu vou te deixar.

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Dizendo isso, voltou para o quarto onde o som da televisão anunciou a novela das oito. Figueira procura um copo limpo na prateleira. Encontra. Vai até a torneira e abre-a... Nada.A espera pela água é infrutífera. Mas ele continua a esperar.Matilde grita novamente: – Estamos sem água. A Companhia de Saneamento disse que água só amanhã.Figueira estava com sede. Caminhou o dia todo debaixo de um sol feito para escravos.Parou frente à torneira e teimou em deixar o copo sob a mesma. Tem fé. Deus proverá.

Matilde acorda cedo, se apronta. Tem de pegar o Metrô das seis. Não dá pela falta do marido na cama. Após sair do banheiro, onde se lavou com a água presa na pia, vai até à cozinha em busca do café requentado. Espanta-se ao ver Figueira, de pé, segurando o copo sob a torneira.Ficara ele ali a noite toda? Pensa em lhe chamar a atenção, mas uma sensação de pena lhe toma posse do estômago. Matilde não sentia com o coração. Era com o estômago. Ao se aproximar, leva um susto ao ver sair água da torneira. Primeiro foi uma espécie de tosse vindo do cano. Depois, uma água barrenta e finalmente cristalina. Figueira sorriu de canto e quando viu o copo cheio, levou-o à boca e se serviu em longos goles.

Os dias seguiram num calor intenso. Para muitos a virada de tempo era mesmo sinal da chegada do Apocalipse. Á saída da pequena igreja, feita de madeira pintada num azul claro, Figueira conversa com um dos “irmãos” de fé :

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– Está tudo certo, irmão Figueira. Já trabalho lá faz dez anos. Nunca peguei um turno de sábado. É gente respeitosa. Vai lá e apresente-se na portaria 23-B. – Nem sei como lhe agradecer, irmão Miguel. Eu tinha a certeza que tudo se ajeitaria. O irmão provou que Deus não deixa seu povo só. – Certo! – sorri , Miguel.– Mas vou lhe dar uma pequena dica, quase um conselho.Figueira, instintivamente, aproxima o ouvido do rosto de Miguel. – Sim, sou “todo ouvidos”, irmão.., – Na entrevista, não mencione que é adventista, certo? Deixe para resolver isso depois que conseguir a vaga. Figueira se afasta um pouco, está contrariado. – Mas isso é certo aos olhos de Deus? Omitir não é o mesmo que mentir? – Que é isso, irmão? – indaga Miguel – Não lhe pedi para mentir, mas deixar para o momento certo a revelação de sua fé. Cristo não fez o mesmo quando solicitou para seus discípulos não espalharem a notícia que ele era o Filho de Deus?Figueira acena positivamente com a cabeça. – Está certo, irmão. Creio que sou obrigado a concordar. – Certo. Boa sorte irmão. Tenha fé.Figueira, um mulato de corpo pequeno e cabelos curtos no estilo militar, sorri, mostrando os dentes brancos.

Matilde liga para a irmã e pede para ela pegar Juninho na creche. –Ana? Me faz esse favor. Estou presa aqui na casa de Dona Cláudia. Vai ter um jantar “granfa” e o Figueira vai a uma entrevista de emprego hoje.

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– Fique tranqüila Matilde. Juninho gosta de brincar com o Landindo. Eu pego ele sim. Se quiser pode deixar posar aqui em casa. O Armando não acha ruim –Tem certeza , Ana? –Claro. –Eu vou ficar aqui torcendo pelo Figueira. – Esse teu marido é um imprestável, minha irmã. Desculpa lhe falar isso.Silêncio. – O Figueira é bom, Ana. Só é teimoso demais. Mas hoje, se tudo der certo, ele vai conseguir algo. Ele tem uma ótima proposta de emprego. – É? – pergunta Ana – Onde é a entrevista? – Nem te conto, Ana. É na Rede...

– Globo? Aqui é o setor 23-B da Rede Globo? – indaga o mulato franzino ao porteiro de uniforme azul. –É o que mostra a placa, não é, cidadão? – responde o empregado em tom seco.

Perto dali, Rogério Feldman, o famoso Editor , aguarda com ansiedade a ligação para o seu celular. Jasper não poderia faltar de maneira alguma. Volta a ligar para o celular de seu Escritor mais produtivo. Caixa Postal novamente. – Algum problema, Rogério? – pergunta o Produtor do programa.. – Não...não, está tudo em ordem. Só estou checando a segurança. – responde aflito o Editor grandalhão. –Ah! Pode ficar tranqüilo quanto a isso, Rogério. A emissora está atenta. “Por onde andará Jasper?” Pergunta a si mesmo.

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– Cinco minutos – berra o Contínuo.

Rogério leva as mãos ao rosto farto e fica num silêncio sufocado. Fechara vários contratos com patrocinadores importantes para tal evento. O Programa de Entrevistas seria transmitido para todo o Planeta. Esperava-se uma audiência perto dos cem por cento. Era, afinal de contas, a primeira aparição em pública do famoso Escritor, envolto em mistérios. Recordista em vários países, seus livros vendiam em todas as classes sociais. Romances Históricos eram os mais aceitos. Nem mesmo Rogério conhecia pessoalmente o enigmático autor. Nenhuma foto, nenhuma gravação em voz, nada. O local de sua moradia era desconhecido também. O último livro, A Morte de Lulbar, trouxe uma enorme repercussão. Colocava o deus nórdico como um pedófilo amoroso e, defendia o homossexualismo. Ao mesmo tempo, foi o livro mais vendido e o mais polêmico da carreira literária de Jasper. Vários críticos colocaram o Escritor como um homossexual pedante. Chegara a hora dele mostrar as caras. Precisava se defender. Rogério lembra como foi difícil convencer Jasper a participar do Programa do Jô, ao vivo. A dialética usada por Rogério foi tácita. “É uma oportunidade para você explicar que não se pode confundir o Escritor com sua Obra, e ao mesmo tempo, os contratos firmados com a Emissora e os patrocinadores trarão vultuosas quantias com filas de zeros.” Fez questão de ser em Dólar. – Seu Filho da Puta, você não pode me dar o cano...Eu te acho nem que seja no Inferno e te mato como se mata um frango. – resmungou Rogério, voltando de seus devaneios.

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– Muito bem, cidadão, quer falar com quem?Figueira não entendia por que certas pessoas eram emburradas ao natural. Só queria um emprego. – Mandaram me apresentar no setor 23-B para uma entrevista. – Ok. Qual o seu nome? – indaga resmungando o esfalfado segurança. – Figueira... Jasper Figueira

Rogério vê um bolo de pessoas e seguranças avançando em torno do carro com motor elétrico, usado para transportar “Estrelas” dentro do espaço onde estavam os prédios, galpões e sets de gravação que formavam a maior Emissora do país. – Rogério, ele chegou! Jasper Figueria, em carne e osso. Mais osso que carne, é bem certo.O Editor olhou com curiosidade e alegria. – Puta que os Pariu, ainda bem que esse desgraçado veio. – disse ele quando disparou em direção ao aglomerado de pessoas a fim de retirar daquela confusão o seu custoso protegido. –Senhor, Jô, tudo pronto. Ele já está aqui. Em dois minutos podemos começar. – disse o Produtor pelo comunicador sem fio.

Os seguranças adentram o Estúdio número cinco, fazendo uma roda de proteção em torno do Escritor e de Rogério, este abraçado ao outro.Olha mais de perto para o misterioso Autor. Não acredita no que vê. –Porra , o cara é ateu, comunista, viado e... “preto”? Era só o que me faltava...

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– Disse algo, doutor? – indaga Figueira, ou melhor, Jasper Figueira...Técnico Eletricista desempregado. –Nada não, Jasper. É um prazer conhecê-lo pessoalmente. Confesso que enganou a todos vindo com uma roupa tão simples. – Ah, me desculpa, mas foi a única camisa que Matilde tinha passado.Rogério ri. – Você é um gênio, Jasper. – Sou Técnico... –Eu sei, Jasper, eu sei. Temos apenas trinta segundos para o início da entrevista. Você devia ter chego antes, para a maquiagem. – Eu só vim fazer uma entrevista, doutor.Rogério ri novamente com mais intensidade. Puxa Jasper para perto de si e resmunga em seu ouvido. – Por que não me disse que era negro? Eu teria preparado algo diferente.Jasper Figueira arregala os olhos. – Isso tem algum problema? – pergunta ele. –Claro que não. É ótimo. Vamos na onda do Obama. Agora por favor, fale o que quiser lá, mas não diga que você é... aquilo...entendeu?

O mulato muda a fisionomia, lembrando o conselho de irmão Miguel. – O senhor sabe que eu sou? – Se eu sei que você é? Não me faça rir, Jasper. Vai lá e por todos os deuses, não admita que é.O seu último livro fala sobre o assunto mas ninguém tem certeza que você é. Insisto , não falae nada. Isso seria muito ruim para os negócios.

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Empurra Jasper Figueira para debaixo dos holofotes causando dor ao olhos do homem franzino.Quando ele consegue abri-los novamente, se vê num anfiteatro repleto de pessoas o encarando, curiosas e aplaudindo. Um grupo musical começa a tocar num estilo que ele não apreciava.O Homem gordo e grisalho vem em sua direção. Não sabe onde vira aquele rosto rechonchudo. Mas lhe era familiar.

Matilde está trabalhando no jantar feito na casa de Dona Cláudia Guianna Y Costello. Os convidados estavam todos na sala, olhando curiosos entre murmúrios, a tela gigante da TV de Plasma. A diarista sente os pelos do braço eriçarem. A impressão de ouvir a voz de Figueira vindo de algum ponto da mansão lhe perturbou. Larga a porcelana que se lhe haviam ordenado lavar e vai até à sala principal. Quase engole a própria língua quando vê a imagem do marido na tela eletrônica pendurada na parede.

O entrevistador obeso, depois de abraçá-lo, pede para que se sente na poltrona estilo Voucher – Estou aqui com Jasper Figueira. Quero dizer ao Mundo, todo sintonizado neste momento, que é esta, a maior entrevista da minha carreira. Nunca se esperou tanto para saber de alguém as idéias que por ventura guiam tal inteligência de grandiosa figura pública. – Jasper, prefere em Português , Inglês ou Francês? – indaga Jô Soares sobre o idioma preferido do entrevistado célebre.

Figueira olha assustado para o homem ao seu lado e para todas aquelas pessoas e pensa consigo:“ Acho que Deus exagerou. Não precisava de tudo isso”

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–Não sou racista. – responde ele .A platéia cai em risos diante de tão inesperada réplica. Vinda de um negro,a anedota fazia sentido. – Sou bom em Matemática – conclui Figueira.Jô soares ri e aperta a mão ossuda do pequeno grande homem. – Tudo bem, Jasper , para facilitar, falaremos em Português. Acho que todos aqui têm vontade de saber o porquê do isolamento. Que mistério existe por detrás do isolamento?Figueira ajeita-se na poltrona. –É a carga. A energia pode matar. É preciso fazer um bom isolamento. O que nos mata , na verdade é a tensão, e não a potência.Todos ficam calados, degustando a resposta inteligível de Jasper Figueira. – O seu isolamento é devido à tensão? –Sim. Com fita isolante de boa qualidade.O gordo ri. O Mundo ri com Jasper. – Você disse que a potência não é fatal? – É... depende também do terra. Um bom terra também ajuda. – Você se refere à Terra? –persiste o entrevistador. – Sim. Toda a energia se dispersa através da Terra. –Da Pangea? Como em “Zeus no Bolso”, seu primeiro livro?Figueira fica sem jeito. –Eu chamo de fio terra, mas tem gente que chama de Calafa. – Calafa? A Deusa grega? Mas é claro . entendi. É maravilhosa a comparação. Pã e Calafa. Como não vi isso antes?A platéia aplaude entusiasticamente. Alguns se levantam em êxtase.O mulato se retrai.

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Na casa de Dona Cláudia, os comentários são diversos. Uns estão pasmos com a retórica do Autor, outros discordam. Matilde está desmaiada.

A entrevista avança sem que ninguém perceba a diferença entre as perguntas complexas e as respostas simples, sem desconfiar que Literatura e Eletricidade podem ter muitos pontos em comum. Eis que chega o ponto crucial da entrevista.Jô Soares pigarreia. Olha para o diretor do Programa. Seria necessário mesmo fazer tal pergunta? Não seria sensacionalismo? O diretor o reponde com um gesto de mão à altura do pescoço, imitando o corte de um árvore. – Bem...amigo Jasper, sou obrigado a fazer a pergunta que todos querem saber.Figueira , já mais à vontade , não vê problema algum, pois a cada resposta técnica sua era aplaudido. Estava convicto que conseguiria o emprego, apesar de ser a entrevista mais estranha que já fizera. –Se todos querem saber,,,pergunte...responderei com prazer.Murmúrios concorrentes pelo auditório flutuam sobre a platéia. A expectativa é dobrada a uma potencia infinitesimal.O entrevistador pigarreia novamente.

Matilde acorda. Os outros empregados estão preocupados com ela. –O que houve mulher? – indaga o Cozinheiro. –É ele... –Quem? – Ele... Jasper... –Desmaiou por causa do Jasper Figueira? –Sim...

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– Detesto auxiliares de cozinha cultas... – Meu marido... – desmaia novamente.No estúdio a atmosfera está carregada de curiosidade – Jasper Figueira, o Mundo quer saber... – Sim.. – Você...hum...quero dizer...Você é?O mulato arregala os olhos. Meneia a cabeça em direção ao Editor grandalhão alocado na primeira fila do auditório. Lembra-se do conselho de irmão Miguel. Está em conflito. Negaria Cristo tal qual a Pedro?Rogério começa a suar novamente. Aquele silêncio lhe trouxe palpitações. –Acho que cada um deve acreditar naquilo que é. – responde o mulato. –Então você é? –insiste Jô Soares.Figueira pensa na cara de Matilde a lhe resmungar:“Tinha que dizer né, senhor Figueira? Ah! Eu sou Adventista, não trabalho nos sábados.” –Não estou dizendo que sou. Estou querendo dizer que cada qual deve acreditar em si e no que é capaz de realizar, não importando contar para Mundo se é ou não. – Sei...mas isso não responde à pergunta.Figueira começa a tremer. Matilde está na sua mente lhe pedindo para negar. Ela vai lhe deixar. Irmão Miguel dizendo não ser pecado omitir. Cristo crucificado, gemendo em agonia lhe sussurra; “Por que me negastes Figueira? Por quê?” – Preciso mesmo responder a essa questão, senhor? –indaga ele ao obeso inquisidor. –Bem...acho que deve explicações ao seu público. Essa é a hora.Figueira levanta-se da poltrona. As câmeras o seguem. Suas mãos fazem agora gestos exagerados.

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– Eu só quero poder trabalhar! Sustentar minha família O que importa se sou ou não sou? Tenho algo dentro de mim, sim. Mas, eu penso que só a mim diz respeito. Todos deveriam poupar as opções de seus semelhantes. Queremos todos chegar a um mesmo destino. Não importa se somos amarelos ou roxos, se gostamos de chocolate ou de pimenta. Estamos aqui, neste Mundo para cumprir nossa missão. Se não for assim de que adianta seguir o Livro? – Você o escreveu. Esperamos justamente suas explicações. – arremete Jô Soares com as sobrancelhas levantadas. –Eu? Eu não escrevi os Livros. Foi Deus quem inspirou. A vontade é dele. Eu apenas sigo o que Deus determina.

Os murmúrios aumentam. – Se o problema é esse, que seja feita a Sua Vontade. – Eu sou sim! Podem me mandar embora agora, não vou esconder mais nada sobre mim. Sou e tenho muito orgulho de ser. – levanta o punho como se o fosse um Che Guevara puritano. – Quando eu abro a torneira eu tenho fé que dela saia água!A platéia incendeia. Muitos levantam, imitando Jasper Figueira. Gritam palavras de ordem. Declarações espontâneas começam a aparecer – Também sou! – grita o caboman – Não vou mais dissimular isso!

Na mansão de Dona Cláudia o Cozinheiro se declara. A Modelo famosa confessa amar e ter um caso com a produtora há mais de quatro anos.

Pelo Mundo, dispara-se uma comiseração horizontal e libertos correm pelas ruas... nus.

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Matilde pega Juninho na creche. Figueira só vai chegar depois das oito. É para compensar os turnos dos sábados que tinha livre.

Os destroços do automóvel do escritor Jasper Figueira foram encontrados três dias depois de toda aquela confusão. Entre eles foi encontrada, semi-queimada, uma foto do jogador português, Cristiano Ronaldo.

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Epílogo

A farsa ou a mentira exerce sobre a humanidade um fascínio de misteriosa força. Quem mente não é nosso consciente, mas sim, nosso subconsciente, que transmite códigos neurais invertidos para o nosso cônscio, no qual o cérebro aufere descargas elétricas que por sua vez descarrega hormônios de deleite e exultação para os nossos transmissores nervosos.

Não é à toa que as Artes Cênicas são tão apreciadas por nós.

Até aquela mentirinha “branca”, ingênua e por vezes necessária, nos causa prazer.

Quando eu falo de prazer, caro leitor, não pense que todos saem por aí a procura de uma vítima para lhe passar uma gratificante

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mentira, não, notem ser essa explicação científica para a mentira e nos revela ser nosso subconsciente o mentiroso,ou seja, mentimos sem pensar,nossa consciência não quer mentir ,e por muitas vezes fantasia sem se aperceber disto.

Os sonhos, à noite, servem de descarga para dura realidade do dia. Assim como a masturbação é um descarrego sexual. Os jogos, as competições, violentas ou não, são válvulas de escape para os nossos instintos animais reprimidos. Caro leitor, imagine se nosso consciente não pudesse parar de trabalhar um só instante, agüentando sozinho o peso e a função que lhe foi atribuído de cuidar de nossa moral , nossa ética, nossa vergonha, nossa brandura, etc...

Esses pesos no final de um dia ou digamos de alguns dias, seriam de um sofrimento enorme para o nosso pobre Ego. Logo entram as válvulas de escape, no qual jogamos fora tudo aquilo que nossa consciência não pôde brandir. A mentira é apenas mais uma dessas válvulas que aliviam nosso ser. Mentir é como sonhar acordado , não temos poder sobre nossos sonhos assim como não temos sobre a maioria de nossas mentiras.

Quem nunca mentiu é sem dúvida alguma ,um certo psicótico que deve procurar psicanalista em passo acelerado. Fica claro também,caro leitor, que idêntico aos outros instintos animais que possuímos, devemos, quando possível, controlar essa tendência à mentira,senão a vida em sociedade será impossível.

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Eu quero citar Kant quando esse relata serem os pecados necessários, pois sem eles o progresso não existiria. Se todos nós, humanos, fossemos ovelhinhas pastando em um maravilhoso campo com o sol brilhando todas as manhãs, que sentido, pergunta Kant, teria a vida? A roda foi inventada por preguiça de se andar

A sapiência da serpente é muito mais eficaz que a candura da pomba, dizia Bacon, porem devem-se determinar regras para que se possa criar uma sociedade, nem tanto à serpente, nem tanto à pomba, mas o caminho do meio, o homem.

Uma outra noção básica do pensamento crítico e científico, é de que as crenças podem estar erradas, por isso muitas vezes é confuso e irritante para cientistas e céticos que as crenças de tantas pessoas não mudem diante de evidências contraditórias.

Nos perguntamos como estas podem continuar acreditando em coisas que contradizem os fatos, ou seriam os fatos apenas ilusão?

Pense e minta se puder....

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Page 92: Contos Semi fantásticos

Cantos - Alian Moroz

Como lavar seu gato sem água e outras utilidades

Contos semi – fantásticos

Alian Moroz – 2012

Palco das Letras : [email protected]

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