contos folclÓricos brasileiros 7o ano - ensino ii o ... · chegando em casa, o preguiçoso...

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O peixinho encantado Era uma velha que tinha um filho tão preguiçoso que passava o dia deitado. Não sabia fazer coisa alguma e se a mãe não arranjasse o que comer morria de fome. A velha, perdendo a pa- ciência, pegou dum pau e deu umas pancadas no preguiçoso, obrigando-o a sair de casa e ga- nhar quanto fosse. Vá buscar nem que seja lenha para o fogo! O preguiçoso saiu se arrastando e gemendo, bem devagar até a mata. Sentou-se uns tempos sem ânimo para quebrar um galhinho de pau seco. Vindo a sede, lembrou-se que ali estava um poço muito fundo. Meteu a mão n’água e, com grande surpresa, trouxe um peixinho vivo, pulando ainda. O preguiçoso ia metê-lo no bolso quando o peixinho falou assim: Não me mates. Se me sacudires 1 dentro do poço darei tudo o que pedires dizendo: “Querendo Deus e meu peixinho...”. O preguiçoso, com preguiça de levar o peixe, sacudiu-o novamente dentro do poço. Esteve sentado, imaginando a trouxa de lenha que precisava fazer. Finalmente, para experimentar disse: Querendo Deus e o meu peixinho, apareça aqui um feixe bem grande de lenha. Apareceu um feixe que era um despotismo 2 grande. O preguiçoso nem tentou levantar uma ponta, tão pesado era. Tornou a falar: Querendo Deus e o meu peixinho, quero ir pra casa montado nesse feixe de lenha. Escanchou-se 3 no feixe e este saiu numa carreira doida. Toda gente que ia vendo aquela arrumação 4 caia na gargalhada e o preguiçoso ficava zangado com a mangação 5 . Por fim o fei- xe passou diante do palácio do rei onde a princesa e suas amigas estavam na varanda, toman- do fresco 6 . Quando viram aquela marmota 7 , deram uma risada que não acabava mais. O pre- guiçoso, vendo a risada da princesa disse: Querendo Deus e o meu peixinho, a princesa terá um filho meu! Chegando em casa, o preguiçoso entregou o feixe de lenha, deitou-se e daí em diante viveu muito bem com a velha, pedindo tudo ao peixinho. A princesa adoeceu e os médicos, depois de muito exame e remédio, descobriram que ela es- tava esperando criança. O rei quase fica doido. Veio um menino muito bonito e ninguém sabia quem era o pai. O rei botou aviso para que todos os homens se reunissem numa praça. Foram todos, até o preguiçoso. A princesa veio com o filhinho, com o rei e a corte. Iam todos passan- CONTOS FOLCLÓRICOS BRASILEIROS 7 O ANO - ENSINO FUNDAMENTAL II 01 Técnicas de Redação Prof. Abrahão

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Page 1: CONTOS FOLCLÓRICOS BRASILEIROS 7O ANO - ENSINO II O ... · Chegando em casa, o preguiçoso entregou o feixe de lenha, deitou-se e daí em diante viveu muito bem com a velha, pedindo

O peixinho encantado

Era uma velha que tinha um filho tão preguiçoso que passava o dia deitado. Não sabia fazer coisa alguma e se a mãe não arranjasse o que comer morria de fome. A velha, perdendo a pa-ciência, pegou dum pau e deu umas pancadas no preguiçoso, obrigando-o a sair de casa e ga-

nhar quanto fosse.

– Vá buscar nem que seja lenha para o fogo!

O preguiçoso saiu se arrastando e gemendo, bem devagar até a mata. Sentou-se uns tempos sem ânimo para quebrar um galhinho de pau seco. Vindo a sede, lembrou-se que ali estava um poço muito fundo. Meteu a mão n’água e, com grande surpresa, trouxe um peixinho vivo,

pulando ainda. O preguiçoso ia metê-lo no bolso quando o peixinho falou assim:

– Não me mates. Se me sacudires1 dentro do poço darei tudo o que pedires dizendo:

“Querendo Deus e meu peixinho...”.

O preguiçoso, com preguiça de levar o peixe, sacudiu-o novamente dentro do poço. Esteve sentado, imaginando a trouxa de lenha que precisava fazer. Finalmente, para experimentar

disse:

– Querendo Deus e o meu peixinho, apareça aqui um feixe bem grande de lenha. Apareceu um feixe que era um despotismo2 grande. O preguiçoso nem tentou levantar uma ponta, tão

pesado era. Tornou a falar:

– Querendo Deus e o meu peixinho, quero ir pra casa montado nesse feixe de lenha.

Escanchou-se3 no feixe e este saiu numa carreira doida. Toda gente que ia vendo aquela arrumação4 caia na gargalhada e o preguiçoso ficava zangado com a mangação5. Por fim o fei-xe passou diante do palácio do rei onde a princesa e suas amigas estavam na varanda, toman-do fresco6. Quando viram aquela marmota7, deram uma risada que não acabava mais. O pre-

guiçoso, vendo a risada da princesa disse:

– Querendo Deus e o meu peixinho, a princesa terá um filho meu!

Chegando em casa, o preguiçoso entregou o feixe de lenha, deitou-se e daí em diante viveu

muito bem com a velha, pedindo tudo ao peixinho.

A princesa adoeceu e os médicos, depois de muito exame e remédio, descobriram que ela es-tava esperando criança. O rei quase fica doido. Veio um menino muito bonito e ninguém sabia quem era o pai. O rei botou aviso para que todos os homens se reunissem numa praça. Foram todos, até o preguiçoso. A princesa veio com o filhinho, com o rei e a corte. Iam todos passan-

CONTOS FOLCLÓRICOS BRASILEIROS

7O ANO - ENSINO FUNDAMENTAL II

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Page 2: CONTOS FOLCLÓRICOS BRASILEIROS 7O ANO - ENSINO II O ... · Chegando em casa, o preguiçoso entregou o feixe de lenha, deitou-se e daí em diante viveu muito bem com a velha, pedindo

do pelo meio do povo. Quando o menino viu o preguiçoso, estirou as mãozinhas e agarrou ne-

le, gritando:

– Papai!

O rei mandou prendê-lo incontinenti8, assim como a filha, e meteu-os, com o neto, num gran-

de caixão, sacudindo tudo no mar. O caixão saiu boiando, barra9 a fora...

O preguiçoso, deitado no caixão, nem como coisa, muito satisfeito brincando com o filho. De-

pois que a dome chegou e que comeram do bom e do melhor, o rapaz disse:

– Querendo Deus e o meu peixinho, esse caixão dê numa praia perto do palácio do rei.

O caixão correu em cima d’água como um peixe. Deu numa praia e parou. Saíram de dentro e

o preguiçoso disse:

– Querendo Deus e o meu peixinho, apareça aqui um palácio muito mais bonito e preparado

do que o do rei.

Imediatamente um palácio formoso apareceu. O preguiçoso, a princesa e o menino foram vi-

ver como ricos, tendo criados, carruagens e todos os preparos10.

O rei, muito triste e arrependido pelo que fizera, passava parte da noite sem sono, passeando. Numa dessas noites avistou de longe um clarão e mandou saber o que era. Disseram que era um palácio mais bonito que o palácio real, todo iluminado. O rei, pela manhã, saiu para ver. Encontrou o palácio e não se cansava de admirar. Foi se chegando para perto e avistou um moço bem parecido11 e delicado que o convidou para entrar e almoçar. Vai, o rei aceita, não

reconhecendo o preguiçoso.

No fim do almoço, o preguiçoso, com as artes do peixinho, fez aparecer no bolso do rei uma colher de ouro da mesa. Acabando de comer, o moço deu pela falta de uma colher de ouro e desconfiou do rei. Este se defendeu, já alterado. O moço mandou revistar e foi achada da co-

lher no bolso do rei, que ficou acabrunhado12 pela vergonha.

– Como é que eu sou ladrão sem saber?

– Da mesma forma que sua filha foi mãe sem querer! – respondeu o moço, dando-se a conhe-

cer.

Chamaram a princesa e o menino para o rei abençoar. Fizeram as pazes e foi a vida mais feliz

deste mundo.

Contado por Benvenuta de Araújo em Natal, Rio Grande do Norte.

_________________

Glossário –

1. sacudir – jogar para fora ou para longe; arremessar.

2. despotismo – pop. grande número, grande quantidade de coisas ou pessoas.

3. Escanchar-se – afastar (as pernas) uma da outra, para montar a cavalo ou sentar-se sobre algo à maneira de quem monta

4. arrumação – pop. arranjo , agrupamento de um número finito de objetos em uma dada ordem

5. mangação – pop. deboche, gozação, zombaria.

6. fresco – aragem, brisa amena, aprazível.

7. marmota – reg. pessoa deselegante, desengonçada; espantalho.

8. incontinenti – sem demora, sem intervalo, no mesmo instante, imediatamente.

9. barra – entrada de um porto, entre duas porções avançadas de terra firme; entrada de baía.

10. preparos – peças que formam o arreamento do animal de montaria, de tração ou de carga

11. bem parecido – de boa aparência; bonito, formoso, elegante.

12. acabrunhado – envergonhado, humilhado.

“O peixinho encantado". In__ CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil para jovens.

São Paulo: Global Editora. 2006, pp. 35-36.

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