contos e causos do zé mirinha

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Contos e Causos do Zé Mirinha foi inspirado na vida de menino do Mestre Zé Mira e apresenta momentos marcantes de sua trajetória no mundo rural valeparaibano. José Mira foi um dos últimos representantes do tropeirismo no Vale do Paraíba e sua atuação como agente cultural, tocador de viola e mestre de folia de reis tornou-o símbolo de nossa cultura popular. Com prosa poética e delicada, Contos e Causos do Zé Mirinha nos remete a um imaginário genuinamente brasileiro encantando adultos e crianças com todas as cores e sabores das histórias bem contadas.

TRANSCRIPT

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    Certa vez Seu Zequinha chamou Z Mirinha e, meio preocupado, disse: Fio, os passarinho to acabanu com o nosso arroz, chama os minino pra ca eles e num dexa iscap nenhum.

    Os meninos da roa adoravam caar passarinhos. Para eles isso era uma brincadeira. Eles se reuniam, fabricavam seus prprios estilingues, armavam arapucas e usavam at redes para captur-los.

    Z Mirinha tambm participava da brincadeira, mas quando ele pegava um passarinho sentia d, disfarava e dava um jeitinho de solt-lo novamente. S que desta vez era diferente. Os passarinhos estavam atacando o arrozal do seu Zequinha e precisavam ser eliminados. Ainda assim, ele no queria mat-los e passou a noite inteira pensando em uma soluo.

    De manh chamou os meninos e explicou que seu pai queria que eles sassem caa dos passarinhos que estavam destruindo o arrozal. Os meninos adoraram a ideia, mas Z Mirinha logo avisou:

    Acuntece que eu num quero mat os passarinho.

    Pur qu?

    que eu fico pensanu numa coisa que a v Caa disse. Ela disse que passarinho um bichinho semead e que a gente no deve mat eles, pra mor de proteg a mata.

    Todos estranharam:

    Como assim?

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    que os passarinho replanta as rvori que os homi tira da floresta. Se a gente sai por a matando tudo quanto passarinho, um dia nois vamo fic sem floresta e o mundo vai vir um deserto.

    Explica mi essa histria Z Mirinha, que nis num t intendenu nada.

    que os passarinho gosta de com sementi de rvori. Depois eles avua um po-quinho e logo logo descome ela. Junto com a bostinha deles sai a sementi de novo, que cai no cho, vira outra rvori e desse jeito a mata nunca acaba, purque se um dia a mata acab o mundo vira um deserto e se o mundo vir um deserto, vai s o fim do mundo.

    As crianas, como Z Mirinha, morriam de medo do fim do mundo e ime-diatamente concordaram com ele. Ento pensaram numa soluo.

    Em vez de matar os passarinhos como ordenara Seu Zequinha, eles resolve-ram fazer um espantalho para espant-los. Cada um trouxe de casa uma pea de roupa velha, camisas, calas e alguns botes pra fazer os olhos. Encheram as rou-pas com palha de milho, costuraram as extremidades, pintaram o nariz e a boca, espetaram o boneco num pedao de bambu e o fincaram no meio do arrozal. No incio o plano deu certo. Os bobinhos viam aquele boneco esquisito de braos abertos, sentiam medo e fugiam. Mas rapidinho perdiam o medo e voltavam, e ento os meninos tiveram outra ideia. Como os passarinhos vinham em hora certa eles combinaram de cada um pegar uma panela e um pedao de pau para fazerem o maior barulho quando eles chegassem. Deu certo. Como eles detes-

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    tam baru-lho, fugiam apavorados quando ou-viam o panela-o dos meninos.

    Para completar o plano e garantir que o arro-zal estaria a salvo, eles resolveram colo-car alguns coxos com quirera ao lado dele para atrair as aves. Elas comiam a quirera e ento desistiam de atacar o arrozal. O plano foi perfeito. Eles fizeram isso at que o arroz crescesse um pouco mais e deixas-se de atrair os passarinhos, porque eles s gostam do arroz novinho. Seu Zequinha ficou muito satisfeito com o resultado do

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    trabalho dos meni-

    nos e eles se sentiram orgulhosos

    por terem feito a coisa certa.

    Z Mirinha tambm adorava ficar perto das pes-soas mais velhas para ouvir suas histrias. De-pois, quando ele se reunia com os meninos ele as recontava, e seus amigos adoravam ouvi-lo.

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    Era s tardezinhas que eles se reuniam numa pedra que havia ao lado da casa da famlia Mira para brincar e ouvir as histrias do Z Mirinha. Uma das preferidas da garotada era a da coruja e da guia.

    Ele contava que a coruja e a guia estavam procurando um lugar seguro para terem seus filhotes. Encontraram-se e comearam a conversar sobre a ex-perincia da maternidade que ambas experimentariam em breve. Tornaram-se comadres e fizeram um trato: daquele dia em diante uma no comeria mais os filhotes da outra:

    Est bem, disse a guia, mas como vou reconhecer seus filhotes, dona Co-ruja?

    Isso fcil, respondeu a Coruja. Os meus filhotes so os mais lindos desse mundo, no h como confundi-los. E os seus, dona guia? Como so?

    Eles tambm so lindos, a senhora vai logo perceber quando encontr-los.

    Despediram-se e um ms depois, j com seus filhotes no ninho, saram em busca de alimentos.

    Quando a Coruja se deparou com um ninho cheio de bichinhos pelados e horrivelmente feios, pensou:

    Bem se v que estes no so os filhos da minha comadre guia, so muito feios, vou lev-los para os meus filhotes.

    Mas chegando ao seu ninho, ela no encontrou nenhum filhote. que a

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    guia tambm havia passado por ali e vendo aqueles bichinhos horrorosos, devorou-os com a certeza de que no eram filhos da sua comadre Coruja.

    Z Mirinha contava e recontava a histria a seu modo e as crianas sempre ouviam como se fosse pela primeira vez. Foi assim, praticando muito, que ele se transformou no seu Z Mira, um grande contador de causos.

    Um dia, Z Mirinha ganhou um violo do seu amigo Pedro e aprendeu as pri-meiras notas musicais. Mas o violo era muito grande e os seus bracinhos quase no conseguiam segur-lo. Mesmo assim ele se esforava para aprender.

    Vendo a dificuldade do filho e lembrando-se das palavras da v Caa no dia em que ele nasceu, dona Bertina resolveu: foi at seu quarto, pegou um por-quinho de cermica no qual ela guardava suas economias e jogou - o com toda fora no cho. As moedas se espalharam pelo quarto e ela chamou Z Mirinha para cat-las.

    Ele quis saber por que ela tinha feito aquilo, mas ela disse que era uma sur-presa. Dois dias depois apareceu o seu Chico com um embrulho e o entregou dona Bertina.

    Naquela noite ela fez um bolo de fub, cozinhou canjica e chamou os vizinhos para comemorar. Era o aniversrio do Z Mirinha. Quando estavam todos em volta do fogo lenha proseando e saboreando a canjica, D. Bertina apareceu com o misterioso pacote e o entregou ao menino, que encabulado, o abriu. Era um cavaquinho bem do seu tamanho e ele quase chorou de alegria.

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    Imediatamente comeou a pontilhar seu novo instrumento, que a partir daquele dia tornou-se seu grande e inseparvel amigo.

    Foi com esse cavaquinho que Z Mirinha comeou a acompanhar as Folias de Reis. Na poca do Natal as pessoas se reuniam formando as Folias e durante todo o ms de dezembro iam de casa em casa cantando e tocando suas violas, violes, cavaquinhos e outros instrumentos em homenagem ao menino Jesus. Quanta alegria ele sentia no meio da Folia, tocando seu cavaquinho e cantando a histria dos Reis Magos e do Santo Menininho.

    Foi assim que ele se tornou um folio e mais tarde formou sua prpria Folia de Reis, a Folia do mestre Z Mira.

    Muito cedo Z Mirinha comeou a conduzir tropas. Um dia, um antigo tropeiro da regio viu-se de repente sem ajudante e pediu Dona Bertina que deixasse seu filho acompanh-lo at a cidade. Dona Bertina relutou um pouco por consider-lo muito pequeno para sair sem a companhia dos pais, mas acabou cedendo, tantas eram as garantias que seu compadre lhe dava de que cuidaria bem do menino. Z Mirinha acompanhou-o em algumas viagens e, muito esperto, procurou aprender tudo sobre conduo de tropas. Pouco tempo depois l estava ele indo sozinho para a cidade conduzindo dois burri-nhos cheios de mercadorias .

    Z Mirinha tinha se tornado um tropeiro de verdade. Levava as coisas da roa para a cidade e voltava com as coisas da cidade para a roa.

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    As encomendas eram muitas: novelo de l preta para dona Zefina, meio metro de pano xadrez para

    madrinha Benedita, licor de cacau para o seu Chiquito, leo de

    fgado de bacalhau para dona Rosinha, acar cristal para dona Ge-ralda (sinal de que ela receberia visitas). Tudo ele guardava na cabe-a, porque no sabia es-crever. E na maioria das vezes dava tudo certo. Mas nem sempre. Certa vez, um burrinho que conduzia dois lates cheios de leite tropeou num buraco e os lates

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    se soltaram, esparramando todo o leite pelo cho. Z Mirinha ficou muito cha-teado e teve um baita trabalho para tirar a pata do burrinho do buraco. Para recolocar os lates de volta no lombo do animal precisou subir num banquinho que, por sorte, estava na carga do outro burrinho. Depois de tudo resolvido ele ficou pensando no que diria ao dono do leite. Se contasse a verdade ficaria de castigo, ou at apanharia, porque naquela poca as crianas apanhavam por qualquer motivo. Como ele no teve culpa do que tinha acontecido, resolveu inventar uma mentirinha. Disse a todo mundo que uma cobra atravessara o seu caminho e que o burrinho, de to assustado, acabou derrubando o leite no cho. Quem poderia culpar a natureza? Ufa! Todos acreditaram na sua histria e Z Mirinha conseguiu escapar de uma surra.

    Em uma dessas viagens, talvez a mais importante de sua vida, Z Mirinha co-nheceu uma linda menina.Ele ia para cidade com uma enorme lista de encomendas na cabea quan-

    do viu vindo em sua direo, na mesma estrada, uma menina que trazia junto de si um menino pequenino. Ela usava um vestido de chita e um chapu de palha para proteger-se do sol.

    Z Mirinha diminuiu o ritmo do cavalgar do burrinho para no fazer poeira menina e quando seus caminhos se cruzaram na estrada olharam-se rapida-mente. Os olhos dela eram to azuis! Z Mirinha nunca tinha visto olhos to lindos. Enrubescidos, ambos baixaram o olhar e alguns passos adiante viraram

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    a cabea para trs, e quando perceberam que haviam feito a mesma coisa vol-taram-se novamente para frente e aceleraram os passos. Ele sentiu seu corao bater forte mesmo depois de muito tempo da menina ter passado. O que estaria acontecendo?

    Quando chegou venda em que faria as compras das encomendas, a pri-meira coisa que fez foi perguntar se algum conhecia a tal menina e qual seria o seu nome. Logo lhe disseram que ela era a Nair, filha da dona Aurora, que tinha outras filhas, todas lindas.

    Z Mirinha logo pensou:

    Nenhuma h de s to linda como ela. cum ela que eu v cas.

    Ele comprou as encomendas e na hora da entrega foi uma atrapalhao total. Dona Zica havia pedido um metro de pano xadrez, ele levou listrado, seu Geraldo que havia pedido um vidro de leo de fgado de bacalhau recebeu um quilo de sardinha, dona Maricota no soube o que fazer com o carretel de linha azul marinho que ele trouxe, pois ela precisava de um vermelho. Quanta confuso!

    O que aconteceu, Z Mirinha? O sr cozinh seus miolo?

    Estavam preocupados, pois ele nunca errava nas encomendas. Ele pediu desculpas, prometeu desfazer os enganos no dia seguinte e concordou que a culpa de tudo poderia ter sido mesmo do sol.

    Mas, c entre ns, o sol estava inocente nessa histria. Ele no teve culpa

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    nenhuma. Miolos cozidos? Que nada! Z Mirinha estava apaixonado.

    E o tempo foi passando, Z Mirinha foi crescendo, crescendo, ficou adulto, ca-sou-se com a menina dos olhos azuis, mudou-se para a cidade de Jambeiro e depois para So Jos dos Campos. Teve muitos filhos e fez com que todos eles estudassem, cumprindo a promessa que fizera quando levou uma surra da me por ter ido falar com o prefeito. Naquele dia ele disse baixinho ao burrinho de brinquedo:

    Fio meu h de istud, mesmo que eu precise daqui me mud.

    E assim aconteceu. Uns fizeram faculdade, outros no, mas todos apren-deram a ler e a escrever.

    Z Mirinha viveu at os oitenta e trs anos. Como no teve escola para es-tudar como tanto queria, elegeu para si uma professora particular.

    Muito esperta e charmosa, ela esperava o menino na porta de sua casa logo de manh quando ele saa para trabalhar e lhe dava as primeiras lies do dia. Todos os dias.

    Sem livros nem cadernos, a professora ia lhe soprando as lies ao ouvido. Ele prestava muita ateno a tudo o que a professora lhe mostrava: as plantas, os animais, as pessoas mais velhas, as crianas, o sol, a lua, as estrelas, as nuvens, os rios, os pssaros, as minhocas, o coc das vacas, tudo era motivo de lio.

    Por ter sido um aluno muito aplicado, depois de tanto aprender, um dia sua professora lhe concedeu um diploma com os seguintes dizeres:

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    O menino crescido passou ento a vida toda ensinando s pessoas o que a dona Vida lhe ensinara e foi assim que ele comeou a ser chamado de Mestre Z Mira.

    J idoso, Mestre Z Mira passou muito tempo visitando escolas e compar-tilhando com as crianas o que havia aprendido durante sua vida. Conversava, tocava viola e dava seus conselhos. E um deles era este:

    Ocis criana, tm duas me, uma em casa e otra na iscola. A me da iscola, que a professora, tem que s amada e respeitada como a me de casa. Uma d pra ocis agasalho e alimento, a otra, conhecimento, e nis no vive sem esses elemento.

    FIM

    Concedo ao meu aluno Z Mirinha o diploma de Mestre por seu excelente desempenho na minha escola.

    Assinado,Professora dona Vida

  • ITAMARA MOURA escritora, autora do livro de contos L em cima do piano tem um copo de veneno e leva a vida dedicada s delcias da arte de ler e escrever. Fundadora do Ncleo de estudos literrios Catar Feijo, coordena projetos de incentivo leitura e ministra ofici-nas de escrita criativa em So Jos Campos SP, cidade onde nasceu e vive at hoje. Em Contos e Causos do Z Mirinha ela aproveita para contar mais uma deliciosa histria, desta vez inspirada na vida de menino do Mes-tre Z Mira.

    JOO FRANCISCO PAES artista plstico e m-sico. Natural de Guaratinguet SP, vive em Curitiba h mais de sete anos e passa os dias criando bonecos, ce-nrios, animaes, vdeo clipes e msicas. A pedido da autora, usou suas cores e traos para ilustrar os Contos e Causos do Z Mirinha e est na torcida para que mui-tas outras aventuras sejam compartilhadas.

  • A VIAGEM

    Numa dessas manhs de outubrona cidade de Cristina nascia um tal Jos Mira filho de um outro Z Mira e de dona Albertina.

    Viveu l sua meninice,fez traquinagem e tolice mas cumpriu a sua sina. Quando fez-se homem do saber sentiu a fome e foi-se embora de Cristina. Pegou as trilhas do caminho como faziam os tropeiros, soltou seu gado nas trilhas, carregou bem os cargueiros e depois de uns trinta dias foi que chegou em Jambeiro.

    E numa dessas tardes gostosas,enquanto o sol se punha na janela l do stio,seu pai de pensar, roa as unhas. Num casebre simplesinho sua mulher o esperava seus irmos pequeninos ali no terreiro brincavam. Eis que na curva do caminho surge a primeira rs cujo nome era Barrosa.

    As crianas davam viva s criaes que naquelas terras chegavam.Ento chega Jos Mira que do seu cavalo apeava, sua mulher o abraa fortemente e incessantemente o beijava.

    Enquanto o gado soltona invernada pastava, sua tropa no piquete l no stio descansava. E os amigos e parentesJos Mira rodeavam.

    Ele contava com proeza tudo que com ele naquela viagem se passara. E depois de tudo contado tudo estava sossegado.

    Jos Mira plantou ali sua bandeira, como todo migrante faz e naquele momento esqueceu que seu corao ficou plantado no cho da grande Minas Gerais.

    Luiz Carlos de Mira, filho mais velho de Z Mira

  • Fontes: Frazzle, Amatic SC, Optima, Yanone Kaffeesatz, Dream OrphansPapel: Couch 150gImpresso: ComunicareTiragem: 4.000 exemplaresCuritiba, abril de 2014

  • Contos e Causos do Z Mirinha foi inspirado na vida de menino do Mestre Z Mira e apresenta momentos marcantes de sua trajetria no mundo rural valeparaibano. Jos Mira foi um dos ltimos representantes do tropeirismo no Vale do Paraba e sua atuao como agente cultural, tocador de viola e mestre de folia de reis tornou-o smbolo de nossa cultura popular. Com prosa potica e delicada, Contos e Causos do Z Mirinha nos remete a um imaginrio genuinamente brasileiro encantando adultos e crianas com todas as cores e sabores das histrias bem contadas.