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5 TRADUÇÃO, PREFÁCIO E NOTAS DE Jo sé Man uel Lo pes

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bierce

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    TRADUO, PREFCIO E NOTAS DE Jo s Man uel Lo pes

  • 6

    NDICE

    Prefcio

    Uma Ocorrncia na Ponte do Rio do Mocho

    Um Cavaleiro no Cu

    Uma Aventura em Brownsville

    Vigiar Um Morto

    Um Contexto Apropriado

    Os Olhos da Pantera

    Numa Noite de Vero

    Diagnstico de Uma Morte

    O Mestre de Moxon

    Ocorrncias Nocturnas na Ravina do Morto

    Do Outro Lado da Parede

    O Dedo Mdio do P Direito

    O Relgio de John Bartine

    Algumas Casas Assombradas

    A Ilha dos Pinheiros

    Uma Tarefa Infrutfera

    Uma Trepadeira sobre Uma Casa

    Em Casa do Velho Eckert

    A Casa dos Fantasmas

    Os Outros Hspedes

    A Coisa em Nolan

    9

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    81

    86

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    119

    130

    138

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    Desaparecimentos Misteriosos

    A Dificuldade em Atravessar Um Campo

    Uma Corrida Que nunca Chegou a Acabar

    O Caminho de Charles Ashmore

    Levante-se a Cincia

    Uma Campa sem Fundo

    Cadveres

    O da Avozinha Magone

    Algum com o Sono Leve

    O Mistrio de Charles Farquharson

    Morto e Desaparecido

    Uma Noite Fria

    Uma Criatura de Hbitos Regulares

    O meu Assassnio Favorito

    leo de Co

    Homem ao Mar

    O Vivo Turmore

    Vises da Noite

    Notas acerca das Publicaes Originais

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    172

    181

    192

    202

    207

    218

    225

    232

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    Nascido no Ohio em 1842, Ambrose Bierce, vulgarmente apo-dado de Bitter Bierce, o Amargo Bierce, dado o seu sarcas-mo e o seu humor negro, alistou-se no Exrcito Unionista em 1862, como primeiro-tenente, durante a Guerra Civil Americana, para mais tarde se mudar para So Francisco onde exerceu uma carreira de jornalismo. Bierce sobretudo conhecido pelo seu Dicionrio do Diabo [Th e Devils Dictionary] (1911) e pelos seus contos, dos quais aqui editamos uma alargada seleco. Em 1913, j com se-tenta e um anos, Bierce decide fazer uma viagem pelos locais onde lutara durante a Guerra Civil. Assim, visita o Texas e a Luisiana, atravessando, em Dezembro desse mesmo ano, a fronteira em El Passo, para se juntar s tropas mexicanas de Pancho Villa. Aps uma breve estadia no Mxico, Bierce desaparece misteriosamen-te, nunca tendo sido descoberta o seu corpo. H quem sugira que ele ter sido executado por um peloto militar, tal como h quem especule acerca de um misterioso suicdio.

    A sua carreira literria, no entanto, surpreende-nos pelo que revela de inovador a nvel do conto. Deste modo, o primeiro que aqui apresentamos (talvez o mais famoso e mais citado de toda a sua obra), centrado nas experincias do autor durante a Guerra Civil, Uma Ocorrncia na Ponte do Rio do Mocho mostra-nos uma estrutura narrativa bastante sofi sticada que s iremos co-nhecer quando das primeiras obras fi ccionais do Modernismo. Muitos dos contos deste autor lidam com o absurdo, com a ironia e com o fantstico. Este, porm, no se manifesta como nos con-tos gtico-barrocos de Lovecraft , surge mais ligado a certas tradi-es orais e tradicionais (como no caso das histrias selecciona-das do livro Can Such Th ings Be?,1893; se bem como nas histrias

    PREFCIO

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    que fazem parte das seces Algumas Casas Assombradas e Desa-parecimentos Misteriosos), ora evoca o absurdo que, mais tarde, ir caracterizar os contos de Lord Dunsany. curioso notar que num conto como Vises da Noite, uma obra onde se misturam a fi co e o ensaio, se lem j passagens que nos evocam os textos surrealistas dos anos 20 e 30 do sculo xx.

    Sem dvida, ao sabotar certas tradies burguesas e os bons costumes puritanos com afi rmaes que tentam minar a eterna hipocrisia da moralidade americana, Bierce revela-se como um precursor de muitas tendncias literrias que lhe iro suceder at ao advento do Ps-Modernismo.

    Jos Manuel LopesVAU-BIDOS, 2010

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    UMA OCORRNCIA NA PONTE DO RIO DO MOCHO

    I

    Um homem estava de p numa ponte de caminho-de-ferro do Alabama, olhando para as guas que corriam cerca de dez me-tros mais abaixo. Tinha as mos atrs das costas e os pulsos atados. Em volta do pescoo tinha uma corda com um n corredio. Esta estava presa a uma grossa travessa de madeira por cima da sua ca-bea, e a folga da mesma descia-lhe at aos joelhos. Algumas tbuas soltas, colocadas sobre as chulipas que suportavam a parte metlica da linha, serviam-lhe de apoio, a ele e aos seus carrascos: dois solda-dos rasos do Exrcito Federal, comandados por um sargento que, na sua vida civil, poderia ter sido delegado ou xerife. No muito lon-ge dessa plataforma improvisada, via-se um homem armado com o uniforme do seu posto. Tratava-se de um capito. Uma sentinela, em cada extremo dessa ponte, segurava a espingarda na posio de sentido, ou seja verticalmente, em frente do ombro esquerdo, com a mo apoiada no co e o brao atravessado horizontalmente sobre o peito. Consistia esta uma posio forada e sem qualquer natu-ralidade, que reforava uma postura erecta do corpo. Pareceria que no seria da conta desses dois homens saber o que se estava a passar a meio da ponte. Bloqueavam apenas as duas extremidades de uma estreita passagem para pees que a atravessava.

    Para l de uma das sentinelas, no se via ningum. O cami-nho-de-ferro, durante uns cem metros, seguia em linha recta por uma fl oresta. Mais adiante, aps uma curva, deixava de se ver. Sem dvida, haveria um posto avanado mais frente. A outra margem do rio era terreno aberto, uma suave elevao com uma paliada de troncos de rvores verticais, com buracos e aberturas para as espingardas e um nico intervalo, pelo qual se projectava a boca de um canho de bronze que dominava a ponte.

  • 12

    A meio caminho, na encosta entre esta e o forte, alinha-vam-se os espectadores, formando uma companhia de infantaria, na posio de descansar, com as culatras das espingardas no cho, os canos ligeiramente inclinados para trs, contra o ombro direito, e as mos cruzadas sobre a cartucheira. direita desse alinhamento via-se um tenente, com a ponta da espada apoiada no solo e a mo direita a descansar sobre a esquerda. excepo desse grupo de quatro a meio da ponte, mais nenhum homem se mexia. Toda a companhia estava voltada para a ponte, olhando fi xa e apaticamente para a mesma, sem se mexer. As sentinelas, voltadas para as margens desse rpido curso de gua, poderiam ter sido esttuas embelezando a ponte. O capito estava a de p, em silncio, a observar o trabalho dos seus subordinados, mas sem fazer qualquer gesto. A morte uma dignitria que, ao ser anunciada, deve ser recebida com visveis manifestaes de res-peito, mesmo por parte daqueles mais familiarizados com ela. No cdigo da etiqueta militar, a imobilidade e o silncio so interpre-tados como formas de respeito.

    O homem que estava a braos com o seu prprio enforcamen-to teria, aparentemente, uns trinta e cinco anos. Seria talvez um civil, a julgar pela roupa que trazia vestida e que era a de um senhor de uma plantao. Tinha feies que inspiravam simpatia: um na-riz direito, uma boca fi rme, uma testa ampla, a partir da qual o seu cabelo escuro se encontrava penteado para a nuca, caindo-lhe por detrs das orelhas at gola da sobrecasaca cintada. Tinha bigode e pra em bico, porm, no usava suas. Os olhos eram grandes e cinzento-escuros, e tinham uma expresso afvel que talvez nunca pudssemos esperar de uma pessoa com a corda no pescoo. Era bvio que no se trataria de um simples assassino. O cdigo militar liberal prev o enforcamento de quase todo o tipo de pessoas, e os cavalheiros no so excludos.

    Acabados estes preparativos, os dois soldados rasos desvia-ram-se e cada um afastou a grossa tbua em que estivera de p. O sargento voltou-se para o capito, fez-lhe continncia, e imedia-tamente se colocou por detrs desse ofi cial que, por sua vez, deu um passo ao lado. Todos estes movimentos acabaram por deixar o

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    homem condenado e o sargento, ambos de p, sobre as pontas da mesma trave de madeira, apoiada sobre trs vigas transversais da ponte. A ponta onde se encontrava esse civil quase tocava numa quarta. Essa tbua mantivera-se no seu lugar devido ao peso do capito e encontrava-se agora segura pelo sargento. A um sinal do primeiro, este ltimo desviar-se-ia, a tbua fi caria inclinada e o condenado acabaria por cair entre duas vigas. Esse arranjo afi gurava-se-lhe como algo simples e objectivo. O seu rosto no fora coberto nem os olhos vendados. Reparou por momentos nesse apoio precrio para deixar que o seu olhar se perdesse em seguida no redemoinhar da gua do rio, que corria como louca por baixo dos ps dele. Um pedao de madeira deriva chamou-lhe a ateno e os olhos seguiram-no ao longo da corrente. Quo se movia to devagar! Quo era indolente esse rio!

    Fechou ento as plpebras para melhor poder focar os seus derradeiros pensamentos na mulher e nos fi lhos. A gua, tingida de ouro pelo Sol nascente, a nvoa ainda agarrada s margens do rio um pouco mais abaixo, o forte, os soldados, esse pedao de ma-deira deriva, tudo isso acabara por distra-lo. E agora apercebia-se de uma nova perturbao. Ressoando atravs dos seus pensamen-tos acerca dos entes queridos, ouviu um som que no era capaz de ignorar nem de perceber. Tratava-se de uma percusso seca, ntida, metlica, semelhante martelada de um ferreiro numa bigorna, pois assim lhe soava. Pensou ento no que poderia ser, se estaria muito distante ou mesmo ali ao p, pois esse som parecia chegar-lhe de acordo com ambas as formas. Essa recorrncia parecia-lhe ago-ra regular, como sinos que tocassem a fi nados. Esperou por cada toque com impacincia e, ainda que no soubesse porqu, com uma certa apreenso. Os intervalos de silncio tornavam-se-lhe progressivamente mais longos e toda a espera insuportvel. Com a sua grande e caracterstica infrequncia, esses sons iam aumen-tando em fora e nitidez. Doam-lhe no ouvido como o golpe de uma navalha, e ele receou ter de comear a gritar. O que ele ouvia, afi nal, era to-s o tiquetaque do relgio de bolso.

    Deixou de fechar os olhos e viu de novo a gua por baixo dele. Se pudesse ao menos libertar as mos pensou, poderia

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    retirar do pescoo esta corda e atirar-me ao rio. Na gua, teria a oportunidade de evitar as balas mergulhando um pouco mais fundo e, ao nadar com toda a minha fora, alcanar uma margem, embrenhar-me nos bosques e fugir at casa Graas a Deus que a minha casa ainda fi ca para l das linhas deles

    A minha mulher e os pequenos ainda se encontram bem lon-ge do posto avanado do invasor.

    Enquanto estes pensamentos, que aqui tm que ser regis-tados atravs de palavras, perpassaram atravs da mente desse condenado (em vez de serem produzidos pelo mesmo), o capi-to acenou afi rmativamente para o sargento e este deu um passo ao lado.

    II

    Peyton Farquhar era um plantador abastado, de uma velha e respeitvel famlia do Alabama. Sendo dono de vrios escravos e, tal como outros na sua situao, sendo tambm um poltico, era, como seria de se esperar, um secessionista genuno, inteira-mente dedicado causa sulista. Circunstncias de uma nature-za premente, que no merecero aqui ser relatadas, tinham-no impedido de se alistar no herico exrcito que lutara nas desas-trosas campanhas a que a queda de Corinth iria pr termo, e ele fi cava sempre muito irritado com essa inglria restrio, no anseio de dar azo s suas energias, poder ter uma vida de solda-do e uma oportunidade para se distinguir. Essa oportunidade, segundo lhe parecia, iria chegar, como iria chegar a todos em tempo de guerra. Entretanto, foi fazendo o que podia. Nenhum trabalho era demasiado insignifi cante para ele, sempre que se tratava de ajudar o Sul; nem nenhuma aventura sufi cientemente perigosa logo que se coadunasse com o carcter de um civil que levava as tarefas militares muito a peito, e que, de boa-f e sem excessivas limitaes, concordava, pelo menos em parte, com o adgio francamente revoltante de que tudo deveria ser permiti-do na guerra e no amor.

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    Num fi m de tarde, em que Farquhar e a mulher estavam sen-tados num banco rstico perto da entrada da sua propriedade, um soldado com uma farda cinzenta veio a cavalo at ao por-to para pedir um copo de gua. A Sr. Farquhar sentiu-se con-tente por poder servi-lo com as suas mos muito brancas. Ora, enquanto ela tinha ido buscar a gua, o marido aproximara-se desse cavaleiro empoeirado, perguntando-lhe com insistncia e interesse por notcias da frente militar.

    Os ianques esto a reparar as linhas de caminho-de-ferro informou o soldado e esto a preparar-se para um novo avano. J chegaram ponte do Rio do Mocho, j a repararam e construram uma paliada ao longo da margem norte. O coman-dante decretou uma ordem que est afi xada por todo o lado, de-clarando que qualquer civil que seja apanhado a sabotar o cami-nho-de-ferro, as pontes, os tneis ou os comboios, ser enforcado sumariamente. Eu prprio vi essa ordem.

    E qual a distncia at ponte do Rio do Mocho? per-guntou Farquhar.

    Cerca de cinquenta quilmetros. E no existem tropas deste lado do rio? Apenas um piquete estacionado junto linha, a menos de

    um quilmetro, e uma nica sentinela estrada da ponte. Suponha que um homem, um civil que no se importasse

    de se candidatar forca, conseguia passar sem ser visto por esse piquete e talvez dominar a sentinela observou Farquhar, com um sorriso. As coisas que ele poderia fazer

    O soldado refl ectiu. Eu estive l h coisa de um ms confessou. Observei

    que as cheias do Inverno passado tinham acumulado uma quan-tidade de troncos e de ramos de rvores contra o pilar de madeira do lado de c da ponte. Ora, a madeira est agora toda muito seca e arderia que nem estopa.

    A senhora aproximava-se agora com o copo de gua que o soldado se apressou a beber. Este agradeceu-lhe com uma certa cerimnia, fez uma vnia ao marido e seguiu caminho. Uma hora mais tarde, j a noite tinha cado, esse homem tornou a passar

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    pela plantao, rumo ao Norte, ou seja, na direco de onde viera. Tratava-se de um batedor do Exrcito Federal.

    III

    Quando Peyton Farquhar caiu atravs do travejamento da ponte, perdeu a conscincia e encontrava-se j quase como morto. Foi acordado desse estado (muitos anos mais tarde, se-gundo lhe pareceu) pela dor causada por uma presso forte na garganta, a que se somava uma sensao de asfi xia. Essa dor agu-da e pungente percorria-o desde o pescoo at mais nfi ma fi bra do corpo e dos membros. Esse latejar doloroso parecia repercu-tir-se ao longo de linhas e ramifi caes bem defi nidas. Era como um desencadear de riachos de fogo pulsante que lhe elevavam a temperatura a um ponto insuportvel. Na sua mente, no esta-va consciente de nada seno de um sentido de enfartamento, de congesto. Estas sensaes no eram acompanhadas de racioc-nios. A parte intelectual do seu ser j no existia. Farquhar retinha to-s o poder de sentir, e isso era excruciante. Estava consciente de um certo movimento. Mergulhado numa nuvem luminosa da qual era apenas um corao incendiado, sem substncia material, continuava pendurado e a oscilar, descrevendo curvas incrveis, como um vasto pndulo. Ento, num repente terrvel, a luz que o envolvia pareceu elevar-se, acompanhada pelo som de uma que-da na gua. Sentia um troar ameaador nos ouvidos e tudo sua volta se tornara gelado e escuro. S ento conseguiu reaver o pen-samento. Sabia que a corda se tinha partido e que ele cara ao rio. Mas no se dava conta de qualquer estrangulamento adicional. O lao apertado em volta do pescoo ainda o estava a sufocar, porm, evitava que a gua lhe inundasse os pulmes. Morrer en-forcado no fundo de um rio!... A ideia afi gurava-se-lhe ridcula. Abriu os olhos nessa escurido e reparou num charco de luz por cima dele, contudo, demasiado longnquo, inacessvel Ainda se estaria a afundar, pois essa luz tornava-se cada vez mais fraca at ele mal poder vislumbr-la. S depois da mesma ter comeado a

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    aumentar e a adquirir um brilho mais intenso que reparou que j estava a subir para a superfcie. Apercebeu-se disso com uma certa relutncia, pois sentia um profundo bem-estar. Ser enfor-cado e depois afogar-me mas no era assim to mau pensou. No entanto, no quero ser morto a tiro, no mereceria uma coisa dessas

    No tinha conscincia de se estar a esforar, mas uma dor aguda nos pulsos fez com ele se apercebesse de que estava a tentar libertar as mos. Dava a essa luta a mesma ateno com que um basbaque poderia ter observado um malabarista, sem se impor-tar muito com o resultado. Que esplndido esforo! Que fora magnfi ca e sobre-humana! Ah, tratava-se de algo digno de ser visto! Bravo! A corda desprendeu-se, os seus braos abriram-se enquanto ele ia subindo, as mos tornavam-se-lhe agora vaga-mente visveis contra a luz cada vez mais intensa. Olhou para elas com um renovado interesse, logo que uma e depois outra se agarraram ao lao em redor do pescoo. Foram elas que o desa-pertaram e o arremessaram violentamente para longe, fazendo com que esse mesmo lao ondulasse como uma cobra-dgua. Voltem a p-lo no lugar, voltem-me a p-lo!, pensou ele gritar para as suas mos, visto o desapertar desse pedao de corda ter dado lugar dor mais terrvel que at ento o assaltara. O pescoo doa-lhe horrivelmente, sentia o crebro arder, e o corao que at esse momento batera muito fraco, deu um salto, como se lhe fosse saltar pela boca. Todo o seu corpo foi atormentado e percorrido por uma contoro insuportvel! Todavia, as suas mos desobe-dientes ignoravam essa ordem. Espadanavam vigorosamente nas guas, com rpidas braadas por baixo do corpo, forando-o a permanecer superfcie. Sentiu a cabea emergir e os olhos cegos pela luz do Sol. O peito expandia-se-lhe convulsivamente e, com uma suprema agonia, que at a no sentira, os seus pulmes no tardaram a engolir uma funda golfada de ar, que ele se apressou a expelir com um grito.

    Estava agora em plena posse dos seus sentidos fsicos. Estes estavam de facto aguados, presos de uma ateno sobrenatural. Algo na terrvel perturbao do seu sistema orgnico os tinha de

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    tal modo aperfeioado e agudizado que estes acabavam por regis-tar detalhes nunca antes percepcionados. Sentia a levssima on-dulao contra o rosto e ouvia os sons distintos que esta fazia ao atingi-lo. Olhou para a fl oresta na margem do rio, viu cada rvore em particular, as folhas e os veios em cada uma delas, at mes-mo os insectos que a se pousavam: os gafanhotos, os moscardos de metlicos tons brilhantes, as aranhas cinzentas que estendiam as teias de galho em galho. Deu-se conta das cores prismticas das gotas de orvalho sobre mirades de folhas de erva. O zumbir dos mosquitos que danavam sobre os remoinhos da corrente, o bater das asas das libelinhas, os movimentos das patas das ara-nhas-de-gua, como remos que impulsionassem um barco, tudo isso ia criando uma msica audvel. Um peixe dardejou-lhe sob os olhos e ele conseguiu ouvir a velocidade do seu corpo cortan-do a gua.

    Viera superfcie com o rosto na direco da corrente. Num preciso instante, o mundo visvel pareceu girar muito lentamente, com se ele fosse o ponto central. Ento viu a ponte, o forte, os sol-dados em cima dessa mesma ponte, o capito, o sargento, os dois soldados rasos, os que o tinham executado. Todos se desenhavam em silhueta contra o cu azul, a gritar, a gesticular e a apontar para ele. O capito empunhara a pistola mas no tinha disparado; os outros no estavam armados. Os movimentos deles eram gro-tescos e horrveis e as suas formas gigantescas.

    De sbito, ouviu uma distinta detonao e algo que atingiu a gua precisamente a alguns centmetros da sua cabea, salpican-do-lhe o rosto de pulverizados esguichos. Ouviu um segundo tiro e viu uma das sentinelas com um rifl e ao ombro, com uma ligei-ra nuvem de fumo azul a elevar-se do cano. O homem na gua observou os olhos do homem na ponte, fi xos nos seus, atravs da mira dessa arma. Pde dar-se conta de que esses olhos eram cinzentos e lembrou-se de ter lido que esses eram os mais perspi-cazes e que todos os atiradores famosos os tinham dessa cor. No entanto, esse indivduo tinha falhado o alvo.

    Uma contracorrente apanhara Farquhar fazendo-o dar meia-volta. Ele estava de novo a olhar para a fl oresta na margem

  • 19

    oposta ao forte. O som de uma voz alta e clara, numa cantilena montona, soou ento por detrs dele e repercutiu-se atravs da gua com um som que obliterou e dominou todos os outros, at mesmo os das tnues ondas contra os seus ouvidos. Embora no fosse soldado, frequentara sufi cientes acampamentos militares para conhecer o tremendo signifi cado desse aspirado modo de cantar, deliberadamente arrastado. O tenente, que se encontrava na margem, tomava parte nessas tarefas matinais. Que frieza e impiedade, com que entoao calma e constante advertia e impu-nha calma aos seus homens com que intervalos cuidadosamente planeados soavam essas palavras cruis:

    Ateno, companhia!... Ombro, arma!... Preparar!... Apon-tar!... Fogo!

    Farquhar mergulhou, mergulhou o mais fundo que podia. A gua rugia nos seus ouvidos como a voz do Nigara, contudo, ouviu o estrondo surdo da descarga e, subindo uma vez mais superfcie, reparou nos brilhantes pedaos de metal, estranha-mente lisos, que oscilavam lentamente para o fundo. Alguns deles tocaram-lhe no rosto e nas mos, para em seguida se comearem a afundar. Um deles alojara-se-lhe entre o colarinho e o pescoo. Estava excessivamente quente e ele retirou-o.

    Ao vir superfcie para tomar flego, reparou que estivera mer-gulhado durante muito tempo, pois encontrava-se mais abaixo na corrente, j em vias de se salvar. Os soldados quase j tinham termi-nado de recarregar. As varetas de metal das espingardas brilharam simultaneamente luz do Sol, ao serem retiradas dos canos, deram uma volta no ar e voltaram a ser embainhadas. As duas sentinelas dispararam novamente, mas uma aps a outra e sem efi ccia.

    O homem perseguido viu tudo isso por cima do ombro. Es-tava agora a nadar vigorosamente a favor da corrente. O crebro era-lhe to enrgico quanto os braos e as pernas, e conseguia pensar com a rapidez de um relmpago.

    O ofi cial no voltar a repetir esse seu erro de mando pensou. fcil evitar uma descarga quando se trata de um nico tiro. Talvez j tivesse dado o comando para disparar vontade. Deus me ajude pois no poderei evit-los a todos!

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    Um enorme estrondo, a dois metros dele, foi seguido por um som alto e apressado que ia diminuindo e que pareceu regressar ao forte e morrer numa exploso que abalou todo o rio at s suas partes mais profundas! Um alto jacto de gua levantou-se, en-curvando-se e abatendo-se sobre ele, cegando-o e sufocando-o! O canho decidira entrar em aco. Quando conseguiu sacudir e desviar a cabea da confuso causada por esse tumulto na gua, ouviu o tiro defl agrado zumbir pelo ar, diante de si, e um instante depois, partir e esmagar os ramos da fl oresta mais ao longe.

    No iro fazer isto novamente pensou, da prxima vez iro usar uma carga de metralha. Tenho de manter os olhos nesse canho, o fumo avisar-me- O estrondo chega mais tarde, de-pois do projctil um bom canho.

    De sbito, sentiu que estava no meio de um remoinho, ro-dopiando como um pio. A gua, as margens, a fl oresta, a pon-te agora muito ntida, o forte, os homens, tudo se fundia numa mancha esbatida e baa. Os objectos estavam apenas representa-dos atravs das suas cores, atravs de riscos coloridos circulares e horizontais. Era tudo o que ele conseguia ver. Fora apanhado num sorvedouro e continuava a girar com tal velocidade e sem-pre volta, que acabara por fi car tonto e agoniado. No demorou muito at ser atirado contra o cascalho, na base da margem es-querda do rio (a margem sul) e por detrs de uma salincia que o ocultava dos seus inimigos. A paragem sbita do seu movimento e o raspar de uma das suas mos pela areia grossa acabaram por traz-lo fi nalmente vida, e ele chorou de prazer. Enterrou os de-dos na areia, atirou-a para cima dele s mos-cheias e abenoou-a em voz alta. Parecia-lhe feita de diamantes, rubis, esmeraldas; no se conseguia lembrar de nada mais bonito a que ela se no pudessem assemelhar. As rvores junto margem eram gigantes-cas plantas de jardim. Deu-se conta de uma ordem especfi ca no seu arranjo e respirou a fragrncia das suas fl ores. Uma estranha luz rsea brilhava atravs dos intervalos entre os troncos e o ven-to inventava nos seus ramos a msica de harpas elicas. Ele no desejava prosseguir na sua fuga. Estava contente por permanecer nesse local encantado at que o voltassem a capturar.

  • 21

    Um assobio e um matraquear de metralha por entre os ra-mos, muito acima da sua cabea, acordaram-no desse sonho. O homem que disparava o canho, j frustrado, disparara ao acaso, em jeito de despedida. Ps-se ento de p, apressou-se a subir a margem ngreme e mergulhou na fl oresta.

    Viajou durante todo o dia, orientando-se pela trajectria do Sol. A fl oresta parecia-lhe interminvel e em nenhum lugar des-cobrira ele uma clareira, nem sequer um caminho de lenhador. No tinha tido antes conhecimento de que vivia numa regio to selvagem, e havia algo de intrigante e misterioso nessa revelao.

    Ao cair da noite, sentia-se exausto, esfomeado e com os ps doridos. S o pensar na mulher e nos fi lhos o impelia a continuar. Por fi m, encontrou uma estrada que o conduziria no que ele sabia ser a direco certa. Era to recta e larga como uma rua citadina, todavia, parecia-lhe que ningum passara por ela. Nenhuns cam-pos cultivados eram visveis nas suas margens nem se avistavam habitaes. Nem mesmo o ladrar de um co sugeria a uma pre-sena humana. Os corpos negros das rvores formavam uma linha ininterrupta de ambos os lados, terminando num ponto no horizonte, como um diagrama numa aula de perspectiva. Por cima dele, ao olhar atravs dessa abertura no bosque, bri-lhavam enormes estrelas douradas que ele no reconhecia e que se agrupavam em estranhas constelaes. Tinha a certeza de que se encontravam dispostas de acordo com uma certa ordem, o que pressupunha um significado secreto e maligno. O bosque, de ambos os lados, enchia-se de curiosos rudos, entre os quais (uma, duas e mais vezes) ele ouvia certos sussurros numa lngua desconhecida.

    Sentia uma dor no pescoo e, ao levantar a mo para o apal-par, reparou que este se encontrava tremendamente inchado. Sa-bia que deveria ter um trao negro no stio onde a corda o aper-tara. Sentia os olhos congestionados e j no os conseguia fechar. Tinha a lngua inchada de sede, e aliava-lhe a febre estendo-a atravs dos dentes e expondo-a ao ar frio. Com que suavidade a relva formara um tapete macio atravs dessa avenida deserta, at ele no sentir mais o caminho por baixo dos ps!

  • 22

    Decerto, apesar do seu sofrimento, teria adormecido en-quanto caminhava, pois agora deparava-se com um outro cen-rio, ou talvez acabasse de se restabelecer de um delrio. Estava agora diante do porto da sua casa. Tudo a se encontra tal como ele o deixara, brilhante e cheio de beleza lua do sol da manh. Talvez tivesse caminhado durante toda a noite. Ao abrir o porto e ao percorrer o caminho branco e largo, repara num fl utuar de vestes femininas. A sua mulher, com um ar doce e descansado, desce da varanda e vem ao seu encontro. Fica ento espera dele, ao fundo dos degraus, com um sorriso de inefvel alegria, numa atitude graciosa e digna sem paralelo. Ah, como ela bonita!... Ele d ento um salto em frente, com os braos estendidos. Ao sentir que a est a abraar, sente um golpe formidvel na nuca. Uma luz branca cega-o e incendeia tudo sua volta, com um som semelhante ao troar de um canho. Depois, tudo escurido e silncio.

    Peyton Farquhar estava morto. O seu corpo, com o pescoo partido, oscilava suavemente de um lado para o outro por baixo das traves da ponte do Rio do Mocho.

  • 23

    UM CAVALEIRO NO CU

    I

    Numa ensolarada tarde de Outono, do ano 1861, um sol-dado estava estendido numa pequena mata de loureiros na margem de uma estrada na Virgnia Oeste. Estava de bruos, com os ps equilibrados nas pontas e a cabea pousada no antebrao esquerdo. A sua mo direita, estendida, parecia ter largado a es-pingarda. Se no fosse a disposio especfi ca dos membros e um pequeno movimento rtmico da cartucheira, na parte de trs do cinturo, poder-se-ia pensar que estava morto. Dormia no seu posto. Mas, se o detectassem, no demoraria muito at que o aba-tessem, sendo a morte a penalidade justa e legal para o seu crime.

    A mata de loureiros em que esse criminoso estava escondido fi cava a um canto da estrada que, depois de ascender para sul muito abruptamente at esse ponto, voltava bruscamente para oeste, correndo junto ao topo por cerca de cem metros. Depois voltava a virar para sul, ziguezagueando atravs da fl oresta. Na salincia desse segundo canto havia um enorme rochedo plano que sobressaa, em direco a norte, sobre um vale profundo do qual a estrada comeava a subir. Esse rochedo coroava uma alta ravina, uma pedra que dele casse tombaria uns bons trinta me-tros at acertar na copa dos pinheiros. O ngulo em que o solda-do se encontrava situava-se numa outra salincia dessa mesma ravina. Se ele estivesse desperto, teria observado uma vista, no apenas desse brao curto de estrada e do rochedo saliente, mas do inteiro perfi l da falsia um pouco mais abaixo. Talvez fi casse com tonturas ao avistar tudo isso.

    Essa regio estava coberta de bosques, excepto no fundo do vale, a norte, onde havia um prado natural, atravs do qual cor-ria um ribeiro que a custo se avistaria desde a orla do vale. Esse

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    terreno aberto parecia pouco maior do que um ptio, mas na ver-dade, tinha uma superfcie de vrios acres. O verde desse prado era mais vivo do que o da fl oresta que o rodeava. Um pouco mais longe, erguia-se uma linha de gigantescas falsias semelhantes quelas sobre as quais nos devemos encontrar de p, observando essa indomada paisagem, atravs da qual a estrada tinha de al-gum modo conseguido subir at ao topo. De facto, a confi gurao desse vale era tal que, desde o presente ponto de vista, parecia inteiramente confi nado, e poder-se-ia pensar de que modo a es-trada que levava para fora dele encontrara maneira de a penetrar, e de onde vinham e para onde iam as guas desse ribeiro que di-vidia o prado mais do que trinta metros mais abaixo.

    Contudo, no haveria uma regio difcil e inacessvel que os homens no transformassem num teatro de guerra. Escondidos na fl oresta, ao fundo dessa ratoeira militar, na qual cerca de cinquenta homens, que dominavam as sadas, poderiam fazer com que todo um exrcito morresse de fome, havia cinco regimentos da Infan-taria Federal. Tinham marchado durante todo o dia e noite ante-riores, e agora estavam a descansar. Ao anoitecer, far-se-iam mais uma vez estrada, ascenderiam at ao lugar onde essa sentinela pouco recomendvel estava agora a dormir e, ao descerem a outra encosta, lanar-se-iam sobre o acampamento inimigo por volta da meia-noite. Punham muita esperana nessa surpresa, pois a estrada conduzia parte de trs desse mesmo acampamento. Se falhassem, a posio deles tornar-se-ia imensamente perigosa, e decerto iriam ser malsucedidos, caso algum acidente ou alguma vigia notifi casse o inimigo acerca desse movimento.

    II

    A sentinela que adormecera nessa pequena mata de lourei-ros era um jovem da Virgnia chamado Carter Druse. Era fi lho nico de pais abastados e conhecera muitas facilidades, a cul-tura e uma vida to afl uente quanto a riqueza e o gosto poderiam proporcionar na regio montanhosa da Virgnia Oeste. A sua casa

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    no distava muitos quilmetros do lugar em que ele estava agora estendido. Numa manh, levantara-se da mesa aps o pequeno-al-moo e dissera, em voz baixa mas com um tom grave:

    Pai, chegou um regimento unionista a Graft on. Vou alis-tar-me nele.

    O pai ergueu a sua cabea leonina, olhou por momentos muito calado para o fi lho e disse-lhe:

    Pois vai ento, meu caro senhor e, no importa o que venha a acontecer, faz sempre o que achares ser o teu dever. A Virgnia, que ests agora a atraioar, ter de se desembaraar sem ti. Se ambos estivermos vivos no fi nal da guerra, voltaremos a falar acerca deste assunto. A tua me, tal como o mdico j te informou, encontra-se num estado bastante crtico, quando mui-to s ir estar poucas semanas mais entre ns, mas esse tempo precioso, seria bom no a enervares.

    Ento, Carter Druse, aps ter feito uma reverente vnia ao pai, que lhe retribuiu a saudao com uma certa cortesia ofi cial com que pretendia disfarar um corao destroado, abandonou a casa da sua infncia para se tornar soldado. Pela conscincia e pela coragem, por actos de ousadia e devoo, em breve se tor-nou popular entre camaradas e ofi ciais, e fora com base nessas qualidades e no conhecimento que ele tinha dessa regio que fora seleccionado para a sua perigosa misso nesse posto bastante afastado. Todavia, a fadiga fora mais forte do que a sua determi-nao e ele adormecera. Mas quem poder dizer que anjo bom ou mau o veio despertar, num sonho, desse seu traioeiro desleixo? Sem um movimento, sem um som nesse profundo silncio e na calma desse fi m de tarde, algum mensageiro invisvel do destino lhe tocara com o dedo nos olhos da conscincia e lhe murmurara ao ouvido essa misteriosa palavra de despertar que nunca lbios humanos tinham pronunciado nem de que memria alguma se lembrava. Lentamente, levantou a testa do brao e olhou por en-tre a camufl agem dos ramos de loureiro, fechando instintivamen-te a mo em torno da coronha da sua espingarda.

    A sua primeira sensao foi de um verdadeiro encanto arts-tico. Num colossal pedestal junto escarpa, imvel na extremi-

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    dade do rochedo superior e nitidamente desenhada contra o cu, via-se uma esttua equestre de impressionante dignidade.

    A fi gura do homem enquadrava-se na fi gura do cavalo, mui-to direita e militar, mas com o repouso de um deus grego escul-pido no mrmore que limita a sugesto de actividade. A sua far-da cinzenta parecia condizer com esse fundo areo, o metal do equipamento e do arns era atenuado e disfarado pela sombra. A pele do animal no revelava pontos de luz. Uma carabina de ca-nos drasticamente serrados estava estendida na parte dianteira da sela, mantida nesse lugar pela mo direita que a sustinha pelo ga-tilho. A mo esquerda, segurando as rdeas, tornava-se invisvel. Em silhueta contra o cu, o perfi l do cavalo estava recortado com a perfeio de um camafeu, parecia olhar, atravs das camadas de ar, em direco s escarpas mais adiante. O rosto do cavaleiro, um pouco voltado, revelava apenas os contornos de uma tmpora e um pedao de barba. Ele estava a olhar para baixo, para o fundo do vale. Ampliado pela sua elevao contra o cu e pela sensao de testemunho do perigo de um inimigo to prximo, o grupo parecia adquirir dimenses hericas e quase colossais.

    Por instantes, Druse teve uma estranha sensao: a de que dormira at ao fi m da guerra e que estava agora a olhar para uma bela obra de arte, erigida naquele ponto elevado para comemorar os feitos de um passado herico no qual ele acabara por ter uma inglria participao. Essa impresso foi afastada por um subtil movimento do grupo: o cavalo, sem mover os casacos, desvia-ra um pouco o corpo do abismo, o homem permanecia imvel como antes. Plenamente acordado e muito consciente da sua si-tuao, Druse levou face a coronha da espingarda, avanou cui-dadosamente o cano da arma por entre os arbustos, inclinou-se um pouco mais e, olhando pela mira, apontou para o peito do cavaleiro. Um simples puxar de gatilho e tudo se teria resolvido para Carter Druse, mas, nesse momento, o cavaleiro voltou a ca-bea, olhando na direco desse inimigo escondido. Era como se ele lhe tivesse olhado de frente para o rosto, o tivesse fi tado nos olhos, observado at o seu corao bondoso.

    Mas ser assim to terrvel matar um inimigo na guerra (um

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    inimigo que descobriu, ainda que por acaso, um segredo vital nossa segurana e dos nossos camaradas), um inimigo mais pe-rigoso pelo seu conhecimento do que todo o seu exrcito pelos seus nmeros? Carter Druse fi cou plido. As pernas e os braos comearam a tremer-lhe, sentiu-se tonto e via agora o grupo es-cultrico diante dele como fi guras negras, erguendo-se e caindo, girando irregularmente em arcos de crculo contra um cu in-cendiado. A mo descaiu-lhe da arma e a sua cabea comeou a baixar lentamente at ele voltar a descansar o rosto nas folhas em que estivera deitado. Esse cavalheiro corajoso e valente soldado estava quase a desmaiar devido intensidade da emoo.

    No entanto, isso no demorou muito tempo. No momento se-guinte, o seu rosto j se erguera do solo, as mos retomaram a sua posi-o na espingarda, o dedo indicador procurou o gatilho. A sua mente, o corao e os olhos estavam agora limpos, e tinha a conscincia e a razo bem claras. No existiria esperana para que pudesse capturar esse inimigo; e espant-lo seria o mesmo que o enviar a correr at ao seu campo com essas notcias fatais. O dever do soldado era bvio: o homem teria de ser alvejado por emboscada, sem aviso, sem um mo-mento para qualquer preparao espiritual, sem uma orao que fosse, antes que o abatessem. Mas no (havia ainda a esperana de que ele nada tivesse descoberto), que talvez estivesse apenas a admirar essa sublime paisagem. Se o deixassem, talvez ele lhe voltasse as costas e se dirigisse a cavalo at ao local donde viera. De facto, seria fcil avaliar, no momento em que ele se fosse embora, se de facto estaria ao cor-rente dessa presena. Poderia at ser que a sua ateno fi xa o tivesse distrado. Druse voltou a cabea e olhou para baixo, atravs das cama-das de ar, como se estivesse a tentar vislumbrar a profundeza de um mar transparente. Viu ento, deslizando pelo prado verde, uma linha sinuosa de homens e cavalos. Um comandante pouco precavido estava a permitir aos soldados da sua escolta dar gua aos cavalos em campo aberto, vista de uma dezena de pontos elevados!

    Druse desviou os olhos do vale para os fi xar novamente nes-se grupo, formado pelo homem e pelo cavalo, desenhado contra o cu, e uma vez mais, f-lo atravs da mira da sua espingarda. Mas, dessa vez, o seu alvo era o cavalo. Na sua memria, como se

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    se tratasse de uma lei divina, soaram-lhe as palavras do pai quan-do ele partiu: No importa o que venha a acontecer, faz sempre o que achares ser o teu dever. Agora, j se sentia calmo. Tinha os dentes fi rmes mas no rigidamente fechados e os nervos to tranquilos como os de um beb adormecido. Nenhum tremor lhe afectava um nico msculo do corpo. A sua respirao, at ter fi cado suspensa no acto de apontar a espingarda, era lenta e regu-lar. O dever tinha-se imposto. O esprito dissera ao corpo Tem calma, mantm-te imvel. Foi quando fi nalmente disparou.

    III

    Um oficial do Exrcito Federal que, com um esprito de aven-tura ou numa busca de conhecimento, deixara o bivaque es-condido no vale, e que com passadas desastradas abrira caminho at margem mais baixa de um pequeno espao aberto, perto do precipcio, considerava o que poderia vir a ganhar caso prosseguis-se com as suas exploraes. A uma distncia de meio quilmetro diante dele, mas, aparentemente, distncia de uma pedrada, a gigantesca superfcie do rochedo elevava-se de uma franja de pi-nheiros at uma altura to elevada que ele se sentiu tonto ao olhar para onde os seus contornos desenhavam uma linha distinta e es-carpada contra o cu. O perfi l desta apresentava-se bem desenhado e vertical, contra um profundo cu azul at um ponto mais abaixo e at colinas distantes que no deixavam de ser menos azuis, e da at copa das rvores na sua base. Erguendo os olhos para a eston-teante altitude do seu topo, o ofi cial viu algo que muito o surpreen-deu: um homem a cavalo desfi lando pelo ar pelo vale fora!

    O cavaleiro estava sentado muito direito, de um modo mi-litar, bem instalado na sela, com uma mo forte nas rdeas para controlar a sua montada num salto to impetuoso. Na sua cabe-a descoberta via-se-lhe o cabelo comprido que se espetava para cima, com a ondulao de uma pluma. As suas mos estavam es-condidas na crina levantada do cavalo. O corpo do animal estava to equilibrado como se cada casco encontrasse solo resistente

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    sob os seus passos. O movimento era o de uma extrema galopada, mas, medida que o ofi cial o observava, tudo fi cou imvel. As patas do animal lanavam-se agora para a frente como num um salto. Porm, tratava-se de um voo!

    Cheio de espanto e terror por essa apario de um cavaleiro no cu, quase a acreditar ser o escriba eleito para algum novo apocalipse, o ofi cial fi cou dominado pela intensidade das suas emoes. Sentiu as pernas quebrarem-se-lhe e caiu. Quase ao mesmo tempo ouviu um estrondo, vindo do alto de uma rvore, um som que morreu sem eco, e tudo fi cou ento em silncio.

    O ofi cial levantou-se. A sensao familiar de uma canela es-folada restituiu-lhe as faculdades embotadas. Retomando o seu autocontrolo, comeou a correr rpida e obliquamente da falsia para um ponto distante do seu sop. Era a que ele esperava en-contrar esse homem, o que acabou por no ser possvel. No ins-tante fugidio da sua viso, a sua imaginao fora de tal modo do-minada pela graa aparente, facilidade e intencionalidade dessa maravilhosa actuao, que no lhe ocorrera que a linha de mar-cha da cavalaria area sempre para baixo, e que poderia afi nal encontrar o objecto da sua busca no fundo da ravina. Meia hora depois, regressou ao acampamento.

    Esse ofi cial era um homem atilado que sabia que no se po-deria pr a contar, a quem quer que fosse, essa incrvel verdade. Assim, no disse nada do que vira. Porm, quando o comandante lhe perguntou se durante as suas observaes ele viera a saber algo de til para a expedio, ele respondeu:

    Sim, meu comandante, no existe estrada que conduza a este vale vinda do sul.

    Este, que estava mais bem informado, sorriu.

    IV

    Aps ter disparado o tiro, o soldado Carter Druse voltou a carregar a espingarda, retomando a sua posio de vigilncia. Mal tinham passado dez minutos quando um sargento do Exr-

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    cito Federal caminhou de gatas at ele. Druse no voltou a cabea para o observar, mas fi cou a sem se mexer nem dar sinal de ter dado por isso.

    Foste tu quem disparou? murmurou-lhe o sargento. Sim. Contra qu? Contra um cavalo. Estava ali perto desse rochedo, mesmo

    beirinha. Mas, como est a ver, j l no est. Voou por cima da falsia.

    O rosto do homem estava branco, mas no mostrava qual-quer sinal de emoo. Depois de responder, desviou os olhos do sargento e no lhe disse mais nada. O seu superior, porm, no percebeu.

    V l bem, Druse disse ele, aps um momento de siln-cio , melhor no estares com esses mistrios acerca do assun-to. Vamos l ver, estava algum montado no cavalo?

    Sim, meu sargento. E?... Era o meu pai.O sargento levantou-se e acabou por se afastar. Meu Deus!... foi tudo o que conseguiu dizer

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    UMA AVENTURA EM BROWNSVILLE

    Esta histria foi escrita em colaborao com Menina Ina Lillian Peterson, a quem se dever o crdito da

    qualquer mrito que aqui se possa encontrar.

    Eu ensinava numa pequena escola rural perto de Brownsville, que, tal como todos os que tiveram a sorte de a viver to bem sabem, a capital de uma grande extenso de terreno onde se podem contemplar as melhores paisagens da Califrnia. Essa ci-dade , at certo ponto, frequentada no Vero por uma classe de pessoas que o jornal local tem por hbito designar como gente em busca de prazer, mas que, de acordo com uma classifi cao mais apropriada, se deveria designar como gente doente e com problemas. A cidade de Brownsville poderia ser descrita, com um maior rigor, como sendo uma estncia estival para ltimas hipteses. No lhe faltam casas de hspedes, na menos perniciosa das quais eu desempenhava todos os dias (dado que almoava na escola) o humilde ritual de cimentar uma aliana entre corpo e alma. Desde essa hospedaria (como o jornal local gostava de lhe chamar, quando no se lhe referia como um caravanarai) at escola, a distncia pela estrada de terra batida era de cerca de trs quilmetros, porm, havia um atalho, que muito poucos usavam e que a conduzia, atravessando um grupo de colinas no muito altas e densamente arborizadas, que reduzia consi-deravelmente essa distncia. Era por esse atalho que eu estava a regressar numa noite, mais tarde do que o habitual. Era o ltimo dia do semestre e eu fi cara no meu local de trabalho quase at ao anoitecer, preparando as contas para serem mostradas aos delegados escolares. Dois deles, refl ectira eu, seriam capazes de as ler, e o terceiro (uma instncia do domnio da mente sobre a matria) tornar-se-ia irrelevante dado o seu tradicional antago-nismo em relao ao mestre-escola.

    Ainda no percorrera mais de um quarto do caminho quan-

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    do, descobrindo um certo interesse no comportamento de uma famlia de lagartos, que parecia a viver cheia de uma alegria de rpteis (visto ser imune s desgraas que caracterizavam a vida de Brownsville House), me sentei sobre uma rvore tombada, a ob-serv-los. Ao encostar-me, com lassido, contra um velho tronco nodoso, o crepsculo adensou-se mais nesses bosques sombrios e um vago quarto crescente, ainda muito fi no, comeou a derramar uma sombra visvel sobre tudo e a tingir as folhas das rvores de uma luz terna mas fantasmagrica.

    Ouvi ento um som de vozes: a de uma mulher, com um tom zangado e impetuoso, elevando-se contra uma outra, masculina, bem colocada e musical. Tentei esforar os olhos para poder ver atravs dessa penumbra que invadira o bosque, esperando con-seguir vislumbrar esses intrusos na minha solido. Contudo, no consegui avistar ningum. Por alguns metros em cada direco, tinha uma perspectiva desse atalho, sem interrupes e saben-do que, no raio de um quilmetro no existiria outro caminho, pensei que as pessoas que ouvira se deveriam estar a aproximar, vindas de uma das margens do bosque. Nada mais se escutava para alm das vozes, que eram agora de tal modo distintas que eu conseguia ouvir cada palavra. A do homem parecia revelar uma certa zanga, por de mais confi rmada dado o assunto da conversa.

    No vos irei ameaar mais. Vocs no tm qualquer poder, como muito bem sabem. Deixem as coisas fi car como esto, caso contrrio ambas se ho-de arrepender.

    Mas que quer o senhor dizer com isso? esta era a voz da mulher, que tinha o tom cultivado de uma senhora. Decerto no nos iria assassinar

    No houve resposta. Pelo menos alguma que eu tivesse ou-vido. Durante esse momento de silncio, tentei vislumbrar os in-terlocutores, pois tinha quase a certeza de que se trataria de um assunto muito grave, no qual os habituais escrpulos nunca iriam contar. Parecia-me que essa mulher estava em perigo; de qual-quer modo, o homem no negara a ideia de a assassinar. Ora, quando um indivduo est a desempenhar o papel de um poten-cial assassino, no tem direito a escolher a sua audincia.

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    Algum tempo depois, vi-os vagamente ao luar por entre as rvores. O homem, alto e magro, parecia-me estar vestido de pre-to; a mulher usava, tanto quando eu me poderia dar conta, um vestido de um tecido cinzento. bvio que ambos ainda ignora-vam a minha presena na sombra, embora, por algum motivo, ao retomar essa mesma conversa, falassem j em voz mais baixa, e eu no os conseguia ouvir. Ao olhar, vi que a mulher parecia ter cado de joelhos e erguido os braos, como que numa splica, a exemplo do que se faz tantas vezes em palco, e nunca, tanto quan-to sabia, em outros locais, se bem que no tenha inteiramente a certeza de que ela tivesse feito isso. O homem fi xou nela os olhos, estes pareciam brilhar sinistramente ao luar, com uma expres-so que me deixou apreensivo, caso ele os fosse voltar para mim. No sei que impulso me moveu, mas apressei-me logo a sair des-sa rea no escuro. Nesse momento, ambas as fi guras desaparece-ram. Tentei em vo descobri-las, atravs dos espaos por entre as rvores e para alm de uma quantidade de arbustos. O vento nocturno ciciava nas rvores. Os lagartos j se haviam retirado, os rpteis tm hbitos exemplares. Uma pequena Lua estava j a desaparecer, por detrs de uma colina negra a oeste.

    Fui para casa, com a mente um pouco perturbada, j duvi-dando se teria visto ou ouvido mais alguma coisa, para alm dos lagartos. Tudo me parecia bastante estranho e misterioso. Era como se, entre os vrios fenmenos, objectivos e subjectivos, que poderiam ter constitudo esse incidente, tivesse existido um ele-mento de incerteza que tivesse tingido tudo isso com o seu ca-rcter dbio, que tivesse fermentado toda essa massa enchendo-a de irrealidade. Havia a algo, de facto, que em nada me agradava.

    Na manh seguinte, mesa do pequeno-almoo, reparei num rosto novo. minha frente, sentava-se uma mulher ainda jovem, para a qual me limitei apenas a olhar no momento em que me sentei. Ao falar, com a alta e poderosa personagem feminina que parecia condescender em servir-nos, essa rapariga em bre-ve me chamou a ateno devido natureza da sua voz, que era como, mas no bem como, a que ainda murmurava frases na mi-nha memria da aventura do prvio comeo de noite. Momentos

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    depois, uma outra rapariga, poucos anos mais velha, entrou na sala e sentou-se esquerda da primeira, desejando-lhe um sim-ptico Bom dia. A sua voz sobressaltou-me. Era sem dvida a mesma de que a voz da primeira rapariga me lembrara.. A esta-va a senhora desse incidente na fl oresta, materialmente sentada diante de mim, viva e de boa sade no seu vestido.

    Tornava-se por demais evidente de que se tratavam de duas irms. Com uma nebulosa forma de apreenso que eu pudesse ser reconhecido como o heri mudo e inglrio que, na minha conscincia comeava a adquirir o carcter de os ter estado a a espreitar, apenas tomei, antes de abandonar a mesa, uma apres-sada chvena de caf morno, que me fora trazida pela presciente empregada, como que para me salvar dessa situao. Ao sair de casa para o campo exterior, ouvi a voz forte e bem colocada de um homem a cantar uma ria do Rigoletto. Terei de dizer que esta era cantada de um modo extremamente requintado, se bem que houvesse algo nessa interpretao que me desagradasse, ainda que eu no conseguisse explicar como nem porqu, de modo que no demorei a afastar-me.

    Ao regressar ao fi m desse dia, vi a mais nova das duas senho-ras de p no alpendre e, perto dela, o homem alto vestido de preto, o homem que eu j esperava ver. Durante todo o dia, o desejo de poder vir a saber qualquer coisa acerca dessas pessoas intensifi ca-ra-se na minha mente, e estava agora resolvido a saber tudo o que conseguisse acerca das mesmas, de uma forma que no parecesse demasiado rude nem pudesse tingir a minha honra.

    O homem estava a falar casual e afavelmente para a sua com-panheira, mas, ao ouvir o som dos meus passos no cascalho, in-terrompeu logo o que estava a dizer e, ao voltar-se, olhou-me in-tensamente no rosto. Ele era, segundo me pareceu, um homem de meia-idade, moreno e invulgarmente bem-parecido. O seu modo de vestir era impecvel, o seu porte grcil e fl uido, e o olhar que me dirigiu no tinha quaisquer marcas de impacincia ou in-delicadeza. No obstante, afectou-me com uma emoo distinta que, submetida a uma anlise subsequente, segundo me recor-do ainda, parecia ter um misto de dio e de receio recuso-me

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    a chamar-lhe medo. Um segundo depois, o homem e a mulher tinham desaparecido. Pareciam recorrer a um truque de magia para o fazerem. No entanto, ao entrar em casa, vi-os ao passar diante da porta aberta da sala de estar. Tinham meramente sado e a entrado atravs de uma porta envidraada que existia ao mes-mo nvel do alpendre.

    Quando cuidadosamente interrogada acerca desses novos hspedes, a minha senhoria no se mostrou rogada. Reafi rma-dos novamente com alguma reverncia s normas gramaticais, os factos eram os seguintes: as duas raparigas eram Pauline e Eva Maynard, de So Francisco; a mais velha era a Pauline. O homem chamava-se Richard Benning e era o tutor de ambas, pois fora o amigo mais ntimo do pai delas e este j tinha falecido. O Sr. Ben-ning trouxera-as at Brownsville na esperana de que o clima das montanhas pudesse benefi ciar Eva, que se julgava estar beira de contrair uma tuberculose.

    Sobre esses breves e simples anais, a senhoria teceu imensos elogios e fl oreados capazes de atestarem, sem sombra de dvi-da, a habilidade do Sr. Benning para pagar pelo melhor que essa casa lhes teria para oferecer. Que ele tinha um bom corao era evidente para ela, dado o modo como se mostrava dedicado a essas duas pupilas de grande beleza, e a sua comovente solicitude, sempre que se tratava de assegurar o conforto de ambas. Julguei que tais provas seriam insufi cientes e no tardei a encontrar o veredicto escocs: No foi provado.

    Decerto, o Sr. Benning revelava uma grande dedicao pe-las suas pupilas. Nos meus passeios pelo campo, encontrava-os frequentemente (por vezes, na companhia de outras pessoas que tinham alugado quartos na hospedaria), explorando as ravinas, a pescar, praticando tiro ao alvo; e outras, tentando expulsar a monotonia da vida no campo. E embora os tivesse observado, tanto quanto as normas da boa educao o permitem, nada vi que pudesse justifi car de modo algum as estranhas palavras que eu ouvira por acaso no bosque. J me tornara um conhecido dessas jovens senhoras e podia mesmo, sem qualquer hesitao, trocar olhares e at cumprimentos com o seu protector.

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    Passou-se um ms, e eu quase j no me interessava por esse assunto, quando, uma noite, toda a nossa pequena comunidade fi cou muito excitada devido ao acontecimento que acabou por me recordar vivamente o j referido episdio na fl oresta.

    Tratava-se da morte da rapariga mais velha, Pauline.As irms ocupavam o mesmo quarto no segundo andar da

    casa. Ao acordar numa manh cinzenta, Eva deu-se conta de que Pauline estava morta ao seu lado. Mais tarde, quando a pobre ra-pariga j se encontrava a chorar junto ao corpo, entre uma mul-tido de pessoas muito impressionadas, se bem que no muito contristadas, o Sr. Benning entrou no quarto e pareceu prestes a segurar-lhe na mo. A rapariga mais nova desviou-se ento da falecida, para se dirigir lentamente at porta.

    Foi o senhor! disse ela. O senhor foi o responsvel por isto! No h dvida! No tenho dvida!...

    Ela est a delirar disse ele, em voz baixa. Seguiu-a, pas-so a passo, enquanto ela se retirava, com os olhos fi xos nos dela e com um olhar persistente no qual nada havia de ternura ou de compaixo. Ela parou. A mo que levantara, como que para o acusar, cara-lhe ao lado do corpo; as suas pupilas dilatadas con-traram-se visivelmente; as plpebras cerraram-se lentamente so-bre as mesmas, velando assim a sua beleza estranha e indomada; e ela fi cou sem se mexer e tornou-se quase to plida quanto a rapariga morta que estava estendida no muito longe. O homem segurou-lhe na mo e ps-lhe levemente o brao nos ombros, como que para a apoiar. De sbito, ela irrompeu numa fria de lgrimas, pressionando o seu corpo contra o dele, do modo como uma criana se agarraria me. Ele sorriu, com uma expresso que muito me desagradou (quem sabe se qualquer sorriso por parte dele no teria provocado o mesmo efeito), e conduziu-a lentamente para fora do quarto.

    Houve um inqurito, seguido do resultado do costume: a do-ente, segundo parecia, morrera devido a uma doena de cora-o. Isto era antes de se terem inventado os ataques de corao, se bem que tivesse sido talvez um destes que tivesse vitimado a pobre Pauline. O seu corpo foi embalsamado e levado para So

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    Francisco por algum a chamado especifi camente para essa ta-refa, e sem que Eva ou Benning o tivessem acompanhado. Certas ms-lnguas da hospedaria acharam tudo isso muito estranho e alguns dos mais atrevidos foram mesmo ao ponto de pensarem que, de facto, era mesmo muito estranho. Contudo, a boa da se-nhoria tentou pr termo a tais consideraes, justifi cando tal atitude com a sade fraca de Eva. No consta que nenhuma das duas pessoas, aparentemente mais afectadas, tivesse dado alguma explicao.

    Numa noite, cerca de uma semana aps essa morte, sa para a varanda da hospedaria para ir buscar um livro que a tinha dei-xado. Sob as trepadeiras, saindo para o luar desde o local em que se encontrava, vi Richard Benning. J estava espera que ele apa-recesse ao ouvir momentos antes a voz baixa e doce de Eva May-nard, que estou a ver neste momento de p, diante dele, com uma mo pousada no seu ombro e os olhos, tanto quanto me poderia aperceber, fi xos nos dele. Richard pegou na mo dela e inclinou a cabea com uma elegncia e uma dignidade singulares. A atitu-de de ambos fazia lembrar a de dois amantes e, enquanto eu me ocultava na espessa sombra para os observar, senti-me ainda mais envergonhado do que na memorvel noite no bosque. Estava pres-tes a retirar-me quando a rapariga falou, e o contraste entre a sua atitude e as suas palavras era to surpreendente que acabei por a fi car, talvez porque me tivesse esquecido de me ir embora.

    O senhor ir apoderar-se da minha vida disse ela , tal como da de Pauline. Conheo as suas intenes to bem quanto o seu poder, e no lhe peo nada, apenas que acabe o seu trabalho sem demoras desnecessrias e me deixe fi car em paz.

    Ele no respondeu. Apenas se limitou a largar a mo que se-gurava, a retirar a outra do seu ombro e, depois de lhe ter voltado as costas, a descer os degraus que conduziam ao jardim, para de-pois desaparecer entre os arbustos. Contudo, um momento de-pois, aparentemente a uma grande distncia, ouviu-se a sua voz clara e bem colocada entoar um cntico brbaro que, medida que o ia escutando, comeava a trazer, at a um sentido de esp-rito interior, a conscincia de um povo estranho e distante, de-

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    tentor de poderes proibidos. Esse cntico quase me hipnotizou, porm, logo que chegou ao fi m, retomei os meus raciocnios e apercebi-me prontamente do que me pareceu ser uma oportu-nidade. Sa da minha sombra e aproximei-me do local onde se encontrava a rapariga. Ela voltou-se e olhou para mim, com uma expresso que me fez lembrar a de um lebre acossada. Quem sabe se a minha intruso no a teria assustado

    Menina Maynard disse eu , peo-lhe encarecidamen-te que me diga quem esse homem com quem estava a falar e qual a natureza dos seus poderes sobre si. Talvez esteja a ser in-delicado, mas esta no uma questo que merea ser rodeada de muitas delicadezas. Quando uma senhora est em perigo, qual-quer cavalheiro tem o direito de agir.

    Ela ouviu-me sem qualquer sinal de emoo, quase, diria mes-mo, sem grande interesse, e, assim que eu terminei, fechou os seus enormes olhos azuis como se estivesse extremamente cansada.

    O senhor nada poder fazer observou ela.Eu peguei-lhe no brao, tentando aban-la suavemente, como

    se estivesse a despertar uma pessoa prestes a cair num sono perigoso. Ter de sair da situao em que se encontra disse-lhe

    eu. Algo tem de ser feito e ter de me dar a permisso para agir. Ouvia-a dizer que esse homem tinha matado a sua irm e acredito no que disse que planeia mat-la, o que tambm me parece provvel.

    Ela limitou-se a olhar-me nos olhos. No me querer contar tudo? acrescentei. Mas no h nada que possamos fazer, absolutamente nada,

    e, mesmo que eu pudesse fazer qualquer coisa, no o faria. No tem afi nal qualquer importncia. S iremos estar aqui mais dois dias, depois vamo-nos embora, oh, para to longe! Se observou alguma coisa, peo-lhe que se mantenha calado.

    Mas isto uma loucura, menina Maynard comentei de um modo mais brusco, a fi m de a arrancar apatia com que ela tinha vindo a reagir. J o acusou de homicdio. Caso no me explique porque o fez, no terei outro remdio seno contactar as autoridades.

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    Esta minha sugesto f-la reagir, mas de um modo que em nada me agradou. Levantou a cabea, com um ar muito orgulho-so, e disse-me:

    No se meta onde no chamado, caro senhor. Estas questes no lhe dizem respeito.

    Mas dizem respeito a qualquer pessoa neste pas neste mundo respondi, com igual frieza. Se no sente qualquer amor pela sua irm, eu, pelo menos, preocupo-me consigo.

    Oua retorquiu ela, debruando-se na minha direco. claro que sentia amor por ela, s Deus sabe!... Mas, mais

    do que isso mais do que possa ser credvel, eu amo-o a ele. O que o senhor escutou um segredo, e peo para no usar com a inten-o de o poder prejudicar seriamente. Estarei pronta a negar tudo. Ser a sua palavra contra a minha, no tenha dvidas. E tem assim tanta certeza de que as suas autoridades iro acreditar em si?

    Ela sorria agora como um anjo e, Deus me ajude!, eu estava completamente apaixonado por ela! Ser que ela, atravs dos v-rios mtodos de adivinhao, conhecidos por todas as mulheres, se teria apercebido dos meus sentimentos? De facto, os modos e a postura tinham-se-lhe alterado completamente.

    Vamos l disse ela, de um modo quase impositivo , prometa-me que no voltar a ser indelicado. Ela deu-me en-to o brao, de um modo bastante amigvel. Vamos, irei pas-sear consigo por algum tempo Ele no ir saber pois no voltar aqui durante toda a noite.

    Para l e para c, nessa varanda, caminhmos sob o luar. Ela, segundo parecia, esquecendo-se do seu luto recente, arru-lhando como uma pomba e falando, femininamente, de todos os pequenos nadas de Brownsville. Eu mantinha-me silencio-so, sentindo a conscincia um pouco estranha e achando-me j envolvido nessa intriga. Tratava-se para mim de uma revelao que essa criatura encantadora e a quem ningum poderia apon-tar um defeito, pudesse to bvia e desprendidamente enganar o homem por quem, h apenas um momento, ela dizia sentir e revelar o amor supremo que consegue encontrar ternura e afei-o, mesmo na morte.

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    Na realidade, pensei eu, com uma minha falta de experin-cia, aqui est uma coisa verdadeiramente nova por baixo da Lua.

    E a Lua deveria ter sorrido.Antes de nos despedirmos, eu arrancara-lhe a promessa de ir

    dar um passeio comigo na tarde seguinte (antes de se ir embora para sempre) at ao Moinho Velho, uma respeitvel antiguidade de Brownsville, erigido em 1860.

    Se ele no se encontrar por perto acrescentou ela, com uma certa gravidade, medida que eu desprendia a mo que Eva me estendera ao despedir-se, e a qual, que os bons santos me per-doem, eu tentei em vo voltar a agarrar, logo que ela o disse. Que deliciosa (como o sbio francs to bem notou) achamos a infi -delidade de uma mulher, quando somos o seu objecto e no as suas vtimas. Quanto distribuio dos seus benefcios, o Anjo do Sono, ignorou-me por completo nessa noite.

    Jantava-se bastante cedo Brownsville House e, depois des-sa refeio no dia seguinte, a menina Maynard, que no apare-cera mesa, veio ter comigo varanda, envergando um vesti-do de passeio e sem dizer palavra. Ele, segundo me pareceu no estaria por a. Comemos a subir devagar a estrada que conduzia ao Moinho Velho. Aparentemente, ela no era muito forte e, por vezes, dava-me o brao, desprendendo-se dele para o voltar a cercar de um modo assaz caprichoso, segundo pen-sei. A sua disposio (ou antes, as suas seguidas disposies) era to mutvel como a luz do cu num mar de ondas ligei-ras. Ela brincava, como se nunca tivesse ouvido falar de coisas como a morte, e ria-se ao mais nfimo pretexto, para, logo a seguir, comear a cantar uns quantos compassos de uma grave melodia, com uma tal ternura na expresso que eu sentia-me obrigado a desviar os olhos com medo de que ela pudesse ver o resultado do seu sucesso nas artes, se tal fosse o caso, e no na impiedade, como eu nesse momento me inclinei a pensar. Ela dizia as coisas mais inusitadas do modo menos convencional, contornando por vezes os abismos sem fundo do pensamento, onde eu mal me atreveria a pr o p. Em suma, ela era fascinante de mil e uma maneiras e, a cada passo, eu ia executando actos de

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    loucura cada vez mais insensatos e mais emocionais, indiscries espirituais cada vez mais ousadas, incorrendo mesmo no risco de ser detido pelo polcia da conscincia, por infraces contra a minha prpria paz.

    Ao chegar ao moinho, ela no parecia querer parar, mas embrenhou-se por um caminho que conduzia a um riacho atravs de um campo de restolho. Ao atravessarmos uma pon-te rstica, continumos por esse mesmo caminho que come-ava a subir, conduzindo a um dos locais mais pitorescos da regio, ao Ninho da guia, como lhe chamavam. Tratava-se do cimo de uma escarpa que se elevava a uma altura de vrias dezenas de metros por cima da floresta, junto sua base. Des-de esse ponto elevado, tnhamos uma vista aberta de um outro vale e das colinas diante de ns, que brilhavam com os ltimos raios do sol poente.

    Enquanto amos vendo luz a subir para planos cada vez mais elevados, fugindo das alastrantes manchas de sombra que en-chiam o vale, ouvimos passos e, no instante seguinte, vimos sur-gir Richard Benning.

    Vi-vos desde a estrada disse ele, com um ar descontra-do. De modo que decidi vir at aqui.

    Reagindo como um parvo, recusei-me a agarr-lo pela gar-ganta e atir-lo para cima das copas das rvores l muito em bai-xo, tendo, em vez disso, murmurado algo mais de acordo com as normas da educao. O facto de ele ter aparecido provocara na rapariga uma reaco imediata e inegvel. O rosto dela fi cou do-minado pela glria da transfi gurao do amor. A luz vermelha do crepsculo no fora mais bvia, nos seus olhos, do que o brilho do amor que ento a substitura.

    Sinto-me to feliz por ter vindo disse ela, dando-lhe ambas as mos. E, Deus me ajude!, ela estava mesmo a dizer a verdade.

    Sentando-se no cho, ele comeou a dissertar animadamente acerca das fl ores selvagens da regio, algumas das quais ele trou-xera consigo. No meio de uma frase empolada, ele parou subita-mente de falar e e fi xou os olhos em Eva, que se encostara contra

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    o cepo de uma rvore, arrancando folhas de erva, distraidamente. Ela ergueu os olhos para ele, muito sobressaltada, como se se ti-vesse dado conta do seu olhar. Ento, levantou-se, atirou fora a folhas de erva e comeou lentamente a desviar-se dele. Richard tambm se levantou, continuando a olhar para ela. Ainda tinha nas mos o ramo de fl ores. A rapariga voltou-se, como se pre-tendesse dizer qualquer coisa, mas nada disse. Recordo-me ago-ra com clareza de algo de que eu estava ento apenas semicons-ciente: o contraste horrvel entre o sorriso nos lbios de Eva e a expresso aterrorizada nos seus olhos, logo que ela fi tou o olhar dele, fi xo e impositivo. No sei nada do que aconteceu, nem por que motivo no me apercebera disso mais cedo. Sei to-s que, com um sorriso de anjo nos lbios e essa expresso de terror nos seus belos olhos azuis, Eva Maynard se atirou da escarpa para se estatelar sobre as copas dos pinheiros mais abaixo!

    No conseguirei dizer quanto tempo teria demorado a regres-sar a essa casa, mas Richard Benning j l se encontrava, ajoelhado ao lado dessa coisa horrvel que fora em tempos uma mulher.

    Est morta Est mesmo morta disse ele, com frie-za. Vou at cidade em busca de ajuda. Se no se importa, faa-me o favor de fi car aqui.

    Ergueu-se e comeou a afastar-se, mas, de sbito, parou e voltou-se para mim.

    Observou, decerto, meu amigo, que se tratou de um acto de acordo com a vontade dela observou ele. No me pude levantar a tempo para o prevenir, e o senhor, no conhecendo o seu estado mental no poderia ter suspeitado de que ela pudes-se fazer uma coisa dessas.

    Os seus modos enlouqueciam-me. Contudo, no deixa de ser o seu assassino disse eu ,

    como se as suas mos malditas lhe tivessem cortado a garganta.Ele encolheu os ombros, sem me responder, e, voltando-se,

    foi-se embora. Momentos depois, ouvi, atravs das sombras profun-das do bosque por onde ele desaparecera, uma forte e bem colocada voz de bartono cantando La donna mobile do Rigoletto.

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    VIGIAR UM MORTO

    I

    Numa sala do andar de cima de uma casa desabitada, numa parte de So Francisco conhecida por North Beach, estava estendido o cadver de um homem sob um lenol. Eram quase nove da noite e essa sala estava apenas iluminada por uma vela. Embora o tempo estivesse quente, as duas janelas, contrariamen-te ao costume de rodear os mortos de ar fresco, estavam fechadas e as cortinas corridas. A moblia dessa sala consistia apenas em trs peas: uma cadeira de braos, uma pequena estante de leitu-ra com um castial onde a vela fora posta, e uma longa mesa de cozinha onde se encontrava o corpo do homem. Tudo isto, jun-tamente com o cadver, parecia ter sido trazido para a recente-mente, pois qualquer observador, caso houvesse algum, poderia ter reparado que todos esses objectos no tinham p, enquanto o resto da sala estava coberto por uma espessa altura do mesmo, vendo-se inclusive teias de aranha aos cantos dessa diviso.

    Sob o lenol, poder-se-iam traar os contornos desse corpo, inclusivamente as feies, revelando estas uma distinta defi nio pouco natural que parece caracterizar o rosto dos mortos, mas que apenas comum entre aqueles que foram consumidos pela doena. Dado o silncio da sala, teramos decerto inferido que esta no se situava na fachada da casa que dava para a rua. De fac-to, apenas se poderia avistar dela uma superfcie rochosa, dado que as traseiras do edifcio se situavam junto encosta abrupta de uma colina.

    Enquanto os sinos da igreja da vizinhana tocavam as nove (com uma indolncia que parecia indicar uma total indiferen-a perante a fuga do tempo, que quase nos poderamos ter per-guntado por que motivo ainda se dariam ao trabalho de soar), a

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    nica porta da sala abriu-se e um homem entrou, avanando em direco ao cadver. Ao faz-lo, a porta fechou-se, aparentemente por si mesma; ouviu-se um som perro, como o de uma chave que rodasse com difi culdade, e o estalo de um trinco, como se este se tivesse desprendido da fechadura. Seguiu-se-lhe um som de passos que se perdiam no corredor exterior. O homem, segundo parecia, era um prisioneiro. Avanando para a mesa, demorou alguns momentos a olhar para o corpo e, em seguida, com um li-geiro encolher de ombros, aproximou-se de uma das janelas para levantar a cortina. A escurido l fora era completa, as vidraas estavam cobertas de p, todavia, ao limp-lo, ele pde ver que a janela se encontrava protegida por um gradeamento em ferro, a poucos centmetros do vidro, e bem cravado na alvenaria ex-terior. Examinou a outra janela. Era igual. Ele no manifestou grande curiosidade em relao a esse facto, nem mesmo as tentou abrir. Se era prisioneiro seria sem dvida um indivduo bastante dcil. Aps ter acabado de examinar muito bem essa sala, sen-tou-se na cadeira de braos, retirou um livro do bolso, colocou a estante com a vela a seu lado e comeou a ler.

    O homem era novo (no teria mais do que trinta anos), mo-reno, de faces bem escanhoadas e cabelo castanho. Tinha um rosto estreito, um nariz alto e uma ampla testa que revelava uma fi rmeza de queixo e de maxilar que dizem ser caracterstica das pessoas resolutas. Os olhos eram cinzentos e fi rmes, no se movendo a no ser com uma fi nalidade especfi ca. Estavam agora, na maior parte do tempo, fi xos no livro. Contudo, ele desviava-os por vezes, para os dirigir para o corpo que se en-contrava em cima da mesa. Aparentemente, tal no se devia a um sombrio fascnio que o mesmo, sob tais circunstncias pu-desse exercer, mesmo sob a pessoa mais corajosa; nem rebe-lio consciente contra a infl uncia contrria que pudesse domi-nar algum mais tmido. Olhava antes para esse cadver como se durante a leitura algo lhe tivesse chamado a ateno para o que o rodeava. Efectivamente, este observador junto ao morto ia mostrando toda a sua autoconfi ana com inteligncia e compos-tura, algo que lhe assentava muito bem.

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    Aps ter lido durante talvez meia hora, pareceu ter chegado ao fi m de um captulo e apressou-se a pr o livro de lado. Depois levantou-se e, pegando na estante de leitura, levou-a at um dos cantos da sala que fi cava junto a uma das janelas, retirou a vela que a se encontrava e voltou a sentar-se, tal como fi zera pela pri-meira vez, diante do fogo apagado de sala.

    Um instante mais tarde, aproximou-se do cadver que estava em cima da mesa, levantou o lenol e destapou a cabea, expondo uma massa de cabelo escuro e um fi no leno que lhe ocultava o rosto, sob o qual as feies do falecido se mostravam ainda mais bem defi nidas do que antes. Protegendo os olhos, ao colocar a sua mo livre entre estas e a vela, fi cou a a olhar para o seu imvel companheiro, com um olhar srio e tranquilo. Satisfeito com esse exame, voltou a tapar o rosto do morto com o lenol e, voltando a sentar-se na cadeira, retirou alguns fsforos do castial, meteu-os no bolso lateral do seu casaco desabotoado e sentou-se. Em se-guida, retirou a vela do castial e olhou para ela muito compe-netradamente, como se pretendesse calcular quanto tempo esta poderia ainda durar. A mesma no teria mais do que quatro cen-tmetros, o que signifi cava que, dentro de uma hora, ele se encon-traria na mais completa escurido. Voltou ento a coloc-la no seu lugar e apagou-a.

    II

    Na residncia de um mdico na Kearny Street, trs homens estavam sentados em volta de uma mesa, a beber ponche e a fumar. De facto, j era tarde, quase meia-noite, e essa bebida nunca lhes faltara. O mais grave dos trs, o Dr. Helberson, era o anfi trio, e estavam todos sentados nos seus aposentos. Este tinha cerca de trinta anos, os outros eram ainda mais novos. Todos eles eram mdicos.

    O temor supersticioso com que os vivos vem os mortos disse o Dr. Helberson hereditrio e incurvel. Mas no te-remos de nos sentir envergonhados por causa disso, mais do que

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    do facto de podermos ter herdado, por exemplo, uma incapacida-de para a matemtica ou um tendncia para mentir.

    Os outros riram-se. Mas ser que um homem no deveria ter vergonha de

    mentir? perguntou o mais jovem dos trs, que era, efectiva-mente, ainda um aluno de Medicina e no propriamente um m-dico.

    Mas meu caro Harper, repare que eu nada disse acerca disso. A tendncia para a mentira uma coisa, enquanto mentir algo totalmente distinto.

    Mas ser que voc acredita disse o terceiro indivduo que essa impresso supersticiosa, esse medo dos mortos, apesar de nada ter que ver com a razo, algo de universal? Eu prprio no tenho conscincia disso.

    Ah, mas apesar de tudo encontra-se j no seu sistema Necessita apenas das condies apropriadas, a que Shakespe-are chamava a poca confederada, para se manifestar de um modo to extremamente desagradvel que lhe poder abrir os olhos. claro que os mdicos e os soldados so menos sujeitos a esse medo infundado do que as outras pessoas.

    Mdicos e soldados Porque no lhes acrescenta voc os car-rascos? Creio que deveramos considerar toda a classe de assassinos

    No, meu caro Mancher, os jris nunca permitiro que os carrascos possam adquirir uma familiaridade com a morte a fi m de a mesma nunca os afectar.

    O jovem Harper, que j fora buscar mais um charuto ao apa-rador, voltou a sentar-se.

    Que poderia voc considerar como condies, sob as quais qualquer homem ou mulher se tornassem insuportavel-mente conscientes das suas fraquezas em relao a esse assunto? perguntou ele, com toda a sua verbosidade.

    Pois bem Eu diria que, se um homem fi casse fechado durante toda a noite com um cadver sozinho numa sala s escuras numa casa desabitada sem lenis nem cobertores com que tapar a cabea e conseguisse ultrapassar tudo isso sem enlouquecer, talvez ele se pudesse gabar de no ter nascido do

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    ventre de uma mulher, nem sequer, como MacDuff , de ser o re-sultado de uma cesariana.

    Pensei que nunca mais fosse parar de enumerar certas condies observou Harper , mas eu conheo um homem, que no mdico nem soldado, que poderia aceitar essa experi-ncia por qualquer quantia que pudesse estar disposto a apostar.

    Quem ele? Chama-se Jarette e apenas um forasteiro. Vem da minha

    cidade, Nova Iorque. Eu no tenho dinheiro para poder entrar nes-sa aposta, mas ele no ter quaisquer problemas a esse respeito.

    E como sabe, afi nal, todas essas coisas? Mais depressa gastaria ele o dinheiro numa aposta do que

    em comida. Quanto ao medo, atrevo-me a afi rmar que ele pensa tratar-se, quando muito, de um problema cutneo ou, ento, de uma heresia.

    E qual o aspecto dele? Helberson estava, sem dvida, a tornar-se cada vez mais interessado.

    aqui como o do Mancher Olhem que at poderia ser seu irmo gmeo

    Aceito o desafi o disse logo Helberson. Agradeo-lhe imenso esse elogio, no duvide acres-

    centou Mancher entre dentes e j com um ar ensonado. Ser que no poderei apostar tambm?

    No contra mim esclareceu Helberson , no estou interessado no seu dinheiro.

    Ento, muito bem acrescentou logo Helberson. Nes-se caso, farei de cadver.

    Os outros riram.O resultado desta louca conversa foi algo que j vimos.

    III

    Ao apagar esse parco coto de vela, o objectivo do Sr. Jaret-te era conserv-lo para uma possvel eventualidade. Talvez tivesse pensado tambm, ou quase, que a escurido no iria ser

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    pior numa altura ou noutra, mas, caso a situao se tornasse in-suportvel, seria melhor ter um modo para lhe escapar ou para aliviar a situao. De qualquer modo, seria recomendvel ter uma pequena reserva de iluminao, quanto mais no fosse para que ele pudesse ver as horas.

    Logo que apagou a vela e a colocou no cho ao seu lado, sen-tou-se confortavelmente na cadeira de braos, recostou-se me-lhor e fechou os olhos, na esperana ou na expectativa de ador-mecer. Mas acabou por fi car muito desapontado. Nunca na sua vida sentira uma semelhante falta de sono e, ao fi m de alguns minutos, acabou por renunciar a essa ideia. Todavia, que poderia ele fazer? No poderia comear a passear-se nessa absoluta escu-rido sem se sujeitar a ir contra objectos que o pudessem ferir, sem se arriscar, de igual modo, a dar um encontro na mesa, per-turbando dessa maneira violenta o sono dos mortos. Todos ns reconhecemos o direito de jazer em paz, resguardados de tudo o que possa ser desagradvel ou violento. Jarette foi quase bem-su-cedido quando pretendeu acreditar que consideraes dessa na-tureza o impediriam de se arriscar a uma coliso, o que acabou por o confi nar a essa cadeira.

    Ora, enquanto pensava sobre estas coisas, julgou ouvir um som vago vindo do lado da mesa. Que tipo de som era algo que ele mal conseguiria explicar. No voltou a cabea. Por que moti-vo o deveria fazer no meio dessa escurido? Mas ouviu. Por que motivo no o ouviria ele? E, ao escutar tudo isso, sentiu-se presa de uma tontura e agarrou com mais fora os braos da cadei-ra. Sentia um estranho zunido nos ouvidos, como se a cabea estivesse prestes a explodir. Perguntou-se ento qual o motivo, ou se tudo isso no seria, afi nal sinal de medo. Foi ento que, com uma expirao profunda, sentiu o peito afundar-se e, com o grande flego com que tentou encher os seus pulmes can-sados, essa vertigem abandonou-o, altura em que se deu con-ta de que, ao tentar escutar to desesperadamente, quase tinha sustido a respirao ao ponto de quase sufocar. Esta revelao humilhou-o. Levantou-se, desviou a cadeira com o p e foi at ao centro da sala. Mas no vamos muito longe quando caminhamos

  • 49

    s escuras. De modo que ele tentou tactear as paredes at se ter aproximado de uma esquina e, seguindo a outra parede, seguiu-a para l das duas janelas, para a, ao atingir o outro canto da sala, acabar por esbarrar contra a estante de leitura que ele acabou por atirar ao cho. O rudo que esta fez sobressaltou-o, o que o fez fi car muito abespinhado.

    Como diabo me terei esquecido do lugar onde estou? murmurou para si mesmo, tentando atravs da terceira parede encontrar o caminho at ao fogo da sala. Terei de pr ordem a tudo isto considerou, apalpando o cho em busca da vela.

    Depois de a ter apanhado, acendeu-a e voltou de sbito os olhos para mesa, onde, como seria natural, nada tinha mudado. A estante de leitura ainda estava espalhada pelo cho. Ele esque-cera-se de a pr como deveria ser. Olhou ento atravs de toda a sala, fazendo recuar as sombras mais opacas com a vela que tinha na mo e, atravessando a sala at a porta, inspeccionou se esta se abria, rodando a maaneta com toda a fora. Esta no se mexeu, o que acabou por lhe trazer uma certa satisfao. De fac-to, acabou por agarr-la mais fi rmemente por um outro fecho em que ele ainda no tinha reparado. Ao voltar a sentar-se na cadeira, olhou para o relgio. Eram nove e meia. Com uma expresso de surpresa, levou o relgio ao ouvido. Afi nal no tinha parado. A vela estava agora visivelmente mais curta e ele voltou a apag-la, colocando-a no cho ao seu lado, como fi zera antes.

    O Sr. Jarette no estava nada vontade. Estava claramente desapontado com tudo o que o rodeava e com ele mesmo pela mesma razo. Que terei eu a recear?, pensou. Isto uma coi-sa absolutamente ridcula e de mau gosto. No irei reagir assim como um parvo. Mas a coragem no nos chega sempre que di-zemos Serei corajoso, nem quando esta se torna mais apropria-da a determinada situao. Quanto mais Jarette se autodenegria, mais pensava que poderia ser criticado; de facto, quanto maior era o nmero de variaes que ele executava sobre o mero tema do jazer pacfi co dos mortos, mais ia crescendo a discordncia das suas emoes.

    Mas que se passa?! exclamou ele, na angstia do que

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    ia sentindo. Que se passa comigo que no tenho qualquer superstio acerca destas coisas?! comigo, que at nem acre-dito na imortalidade comigo que at sei, e nunca com tanta clareza como no instante presente, que a vida aps a morte no passa de um sonho e de um desejo Estarei eu condenado a perder a minha aposta, a honra e o respeito que tenho por mim, talvez mesmo as minhas faculdades mentais, s porque certos antepassados primitivos, que viviam em grutas ou cavernas, conceberam a inusitada noo de que os mortos caminham noite? Que

    Sem qualquer sombra de erro, o Sr. Jarette ouviu por detrs dele um som abafado de passos discretos, regulares, deliberados e cada vez mais prximos!

    IV

    Mesmo antes do nascer do dia, na manh seguinte, o Dr. Hel-berson e o seu amigo, o jovem Harper, estavam a percorrer calmamente as ruas de North Beach no coup do mdico.

    Ser que ainda mantm a confi ana de um jovem na co-ragem e na teimosia do seu amigo? perguntou o homem mais velho. Acredita ento que perdi a minha aposta?

    Sei bem que a perdeu afi rmou o outro, com uma nfase sem convico.

    Ora, juro pela minha alma, espero bem queFora dito com convico, quase com uma certa solenidade.

    Por momentos, houve um breve silncio. Harper continuou o mdico, olhando muito srio por

    entre essa luz intermitente que penetrava na carruagem, medi-da que iam passando junto aos candeeiros de rua , no me sinto nada bem com esta questo. Se o seu amigo no me tivesse irri-tado, dado o modo desprezvel com que encarou a minha dvida acerca do tempo que a conseguiria permanecer, (algo apenas de fsico afi nal), e dada a sua arrogante falta de civismo, segundo a qual o cadver teria de ser o de um mdico, nem sequer teria

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    acreditado nele. Se qualquer coisa acontecer, estaremos arruina-dos, como temo que o deveramos estar.

    Mas que poder acontecer? Mesmo se a questo tomar um aspecto mais srio, do qual nada terei a temer, o Mancher ter to-s de ressuscitar e explicar tudo o que se passou. Enquanto, com um espcime legtimo, da sala de dissecao, ou com um dos seus pacientes mais recentes, tudo se poderia ter passado de um modo bem diferente

    O Dr. Mancher tinha seguido risca o que prometera, fazen-do a vez de cadver.

    O Dr. Helberson fi cou calado durante muito tempo, enquan-to a carruagem, a passo de caracol, ia seguindo pela mesma rua que j percorrera duas ou trs vezes. Foi ento que comentou:

    Bem, esperemos que Mancher, caso tenha sentido neces-sidade de regressar do mundo dos mortos, tenha sido tambm sufi cientemente discreto acerca do assunto. Um erro, neste caso, poder tornar as coisas bem piores, em vez de as melhorar

    Sim disse Harper. Jarette poderia mat-lo. Mas repa-re, caro doutor observou, logo que a carruagem passou junto a um candeeiro a gs , fi nalmente, so quase quatro da manh

    Um momento mais tarde, abandonaram o veculo e esta-vam a caminhar rapidamente para essa casa desabitada, que per-tencia ao mdico, na qual tinham emparedado o Sr. Jarette, de acordo com os termos dessa louca aposta. Ao aproximarem-se, viram um homem correr.

    Podem dizer-me gritou, abrandando onde poderei encontrar um mdico?

    Que se passa? perguntou Helberson, sem se compro-meter.

    V o senhor ver disse o homem, retomando a sua corrida.

    Eles no se demoraram a faz-lo. Chegaram casa e viram que havia pessoas que a entravam pressa, muito excitadas. Em algumas casas prximas e do outro lado da rua, as janelas esta-vam abertas e via-se gente janela. Todos faziam perguntas sem se importarem com o que os outros perguntavam. Umas quantas

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    janelas estavam iluminadas e tinham as cortinas corridas, pois as pessoas deveriam estar a vestir-se e a prepararem-se para descer. Precisamente no lado aposto da porta dessa casa que procura-vam, um candeeiro de rua derramava uma fraca luz amarelada sobre esse cenrio, como se lhe estivesse a dizer que poderia re-velar muito mais coisas, se lhe apetecesse. Harper parou porta e ps uma mo em cima do brao do companheiro.

    Cabe-nos resolver esta situao, caro doutor disse ele, muito agitado, o que contrastava estranhamente com essas pala-vras, ditas de um modo demasiado casual. Creio que as coisas se acabaram por voltar contra ns. Creio que no deveramos en-trar, mas antes fi ngir que nada sabemos do que se passa.

    Mas eu sou mdico disse calmamente o Dr. Helberson. Talvez precisem dos meus servios

    Subiram os degraus at porta e estavam quase a entrar. Esta estava aberta e o candeeiro de rua, no lado aposto, ilumi-nava o corredor que para a mesma conduzia. Este estava cheio de homens. Alguns tinham subido as escadas ao fundo e, como lhes negassem o acesso ao andar de cima, estavam espera de uma oportunidade de a poderem entrar. Todos falavam e ne-nhum deles escutava. De sbito, houve uma grande agitao no patamar de cima: um homem tinha sado a correr de uma por-ta e tentava libertar-se daqueles que o tentavam deter. Depressa desceu, esbarrando contra esses basbaques amedrontados, em-purrando-os, quase os entalando de um lado, contra a parede; ou obrigando-os, do outro lado, a apoiarem-se muito ao corri-mo, agarrando-os pela garganta, agredindo-os selvaticamente, atirando-os pelas escadas abaixo e pisando os que tinham cado. Tinha as roupas numa desordem e no levava chapu. Os olhos, inquietos e loucos, albergavam algo mais ameaador do que a sua aparente fora sobre-humana. O rosto, muito bem escanho-ado, estava completamente plido e o cabelo tinha-se-lhe em-branquecido de sbito.

    Quando a multido ao fundo das escadas, tendo mais espa-o, se desviou para o deixar passar, Harper dirigiu-se a ele:

    Jarette! Jarette! exclamou.

  • 53

    O Dr. Helberson agarrou Harper pelo colarinho e desviou-o. O homem olhou para esses rostos sem parecer t-los visto e saiu a correr pela porta, descendo os degraus e fugindo pela rua fora. Um polcia corpulento, que no tinha tido muito sucesso ao se-gui-lo pelas escadas, saiu atrs dele momentos depois, iniciando uma perseguio, com todas as cabeas janela (agora tambm as das mulheres e as das crianas) a gritarem para tentarem aju-dar o agente.

    Agora que as escadas comeavam a fi car mais desocupadas, pois grande parte da multido tinha vindo para a rua, a fi m de observar a fuga e a perseguio, o Dr. Helberson subiu at ao pa-tamar, seguido de Harper. Junto a uma porta do andar de cima, um agente da polcia negou-lhe acesso.

    Somos mdicos disse um deles e foram logo admitidos. A sala estava cheia de homens, envoltos em penumbra, que se pareciam reunir em torno da mesa. Os recm-chegados tenta-ram abrir caminho e olharam por cima dos outros que estavam na primeira fi la. Em cima da mesa, com as pernas cobertas por um lenol, estava o corpo de um indivduo, brilhantemente ilu-minado pela luz de uma lanterna segurada por um polcia que se encontrava aos seus ps. Os outros, excepo dos que se en-contravam junto da cabea, e o prprio polcia estavam envoltos em escurido. O rosto do cadver tinha um tom amarelado, re-pulsivo, horrvel! Os olhos estavam em parte abertos e revirados e a boca estava aberta. Traos de espuma sujavam-lhe os lbios, o queixo e as faces. Um homem alto, decerto o mdico, inclinou-se sobre o corpo com uma mo posta no peito. Em seguida, ps dois dedos na boca aberta do cadver.

    Este homem faleceu h cerca de seis horas disse ele. Trata-se de um caso para o mdico-legista.

    Retirou um carto-de-visita do bolso, deu-o ao polcia e di-rigiu-se porta.

    Que