conto agualusa estranhoes-bizarrocos

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O caçador de borboletas Vladimir recebeu muitas prendas no Natal, entre livros, discos, legos, jogos de computador, mas gostou sobretudo do equipamento para caçar borboletas. O equipamento incluía uma rede, um frasco de vidro, algodão, éter, uma caixa de madeira com o fundo de cortiça, e alfinetes coloridos. O pai explicou-lhe que a caixa servia para guardar as borboletas. Matam-se as borboletas com o éter, espetam-se na cortiça, de asas estacadas, e dessa forma, mesmo mortas, elas duram muito tempo. É assim que fazem os colecionadores. Aquilo deixou-o entusiasmado. Ele gostava de insetos mas não sabia que era possível colecioná-los, como quem coleciona selos, conchas ou postais, talvez até trocar exemplares repetidos com os amigos. Nessa mesma tarde saiu para caçar borboletas. Foi para o matagal junto ao rio, atrás de casa, um lugar onde se juntavam insetos de todo o tipo. Já tinha apanhado cinco borboletas que guardara dentro do frasco de vidro, quando ouviu alguém cantar com uma voz de algodão doce – uma voz tão doce e tão macia que ele julgou que sonhava. Espreitou e viu uma linda borboleta, linda como um arco-íris, mas ainda mais colorida e luminosa. Sentiu o que deve sentir em momentos assim todo o caçador: sentiu que o ar lhe faltava, sentiu que as mãos lhe tremiam, sentiu uma espécie de alegria muito grande. Lançou a rede e viu a borboleta soltar-se num voo curto e depois debater-se, já presa, nas malhas de nylon. Passou a para o frasco e ficou um longo momento a olhar para ela. — Agora és minha – disse-lhe. — Toda a tua beleza me pertence. A borboleta agitou as asas muito levemente e ele ouviu a mesma voz que há instantes o encantara: — Isso não é possível – era a borboleta que falava. — Sabes como surgiram as borboletas? Foi há muito, muito tempo, na Índia. Vivia ali um homem sábio e bom, chamado Buda… Vladimir esfregou os olhos: — Meu Deus! Estou a sonhar? A borboleta riu-se: — Isso não tem importância. Ouve a minha história. Buda, o tal homem sábio e bom, achou que faltava alegria ao ar. Então colheu uma mão cheia de flores e lançou-as ao vento e disse: “Voem!” E foi assim que surgiram as primeiras borboletas. A beleza das borboletas é para ser vista no ar, entendes? É uma beleza para ser voada. — Não! – disse Vladimir abanando a cabeça. — Eu sou um caçador de borboletas. As borboletas nascem, voam e morrem e se não forem colecionadores como eu, desaparecem para sempre. A borboleta riu-se de novo (um riso calmo, como um regato correndo, não era um riso de troça): — Estás enganado. Há certas coisas que não se podem guardar. Por exemplo, não podes guardar a luz do luar, ou a brisa perfumada de um pomar de macieiras. Não podes guardar as estrelas dentro de uma caixa. No entanto podes colecionar estrelas. Escolhe uma quando a noite chegar. Será tua. Mas deixa-a guardada na noite. É ali o lugar dela. Vladimir começava a achar que ela tinha razão. — Se eu te libertar agora – perguntou – tu serás minha? A borboleta fechou e abriu as asas iluminando o frasco com uma luz de todas as cores. — Já sou tua – disse – e tu já és meu. Sabes? Eu coleciono caçadores de borboletas. Vladimir regressou a casa alegre como um pássaro. O pai quis saber se ele tinha feito uma boa caçada. O menino mostrou-lhe com orgulho o frasco vazio: — Muito boa – disse. — Estás a ver? Deixei fugir a borboleta mais bela do mundo. José Eduardo Agualusa Era uma vez Revista Pais e Filhos, s/d

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  • O caador de borboletas

    Vladimir recebeu muitas prendas no Natal, entre livros, discos, legos, jogos de computador, mas

    gostou sobretudo do equipamento para caar borboletas. O equipamento inclua uma rede, um frasco de vidro, algodo, ter, uma caixa de madeira com o fundo de cortia, e alfinetes coloridos. O pai explicou-lhe que a caixa servia para guardar as borboletas. Matam-se as borboletas com o ter, espetam-se na cortia, de asas estacadas, e dessa forma, mesmo mortas, elas duram muito tempo. assim que fazem os colecionadores.

    Aquilo deixou-o entusiasmado. Ele gostava de insetos mas no sabia que era possvel colecion-los, como quem coleciona selos, conchas ou postais, talvez at trocar exemplares repetidos com os amigos.

    Nessa mesma tarde saiu para caar borboletas. Foi para o matagal junto ao rio, atrs de casa, um lugar onde se juntavam insetos de todo o tipo. J tinha apanhado cinco borboletas que guardara dentro do frasco de vidro, quando ouviu algum cantar com uma voz de algodo doce uma voz to doce e to macia que ele julgou que sonhava. Espreitou e viu uma linda borboleta, linda como um arco-ris, mas ainda mais colorida e luminosa. Sentiu o que deve sentir em momentos assim todo o caador: sentiu que o ar lhe faltava, sentiu que as mos lhe tremiam, sentiu uma espcie de alegria muito grande. Lanou a rede e viu a borboleta soltar-se num voo curto e depois debater-se, j presa, nas malhas de nylon. Passou a para o frasco e ficou um longo momento a olhar para ela.

    Agora s minha disse-lhe. Toda a tua beleza me pertence. A borboleta agitou as asas muito levemente e ele ouviu a mesma voz que h instantes o encantara: Isso no possvel era a borboleta que falava. Sabes como surgiram as borboletas? Foi h

    muito, muito tempo, na ndia. Vivia ali um homem sbio e bom, chamado Buda Vladimir esfregou os olhos: Meu Deus! Estou a sonhar? A borboleta riu-se: Isso no tem importncia. Ouve a minha histria. Buda, o tal homem sbio e bom, achou que

    faltava alegria ao ar. Ento colheu uma mo cheia de flores e lanou-as ao vento e disse: Voem! E foi assim que surgiram as primeiras borboletas. A beleza das borboletas para ser vista no ar, entendes? uma beleza para ser voada.

    No! disse Vladimir abanando a cabea. Eu sou um caador de borboletas. As borboletas nascem, voam e morrem e se no forem colecionadores como eu, desaparecem para sempre.

    A borboleta riu-se de novo (um riso calmo, como um regato correndo, no era um riso de troa): Ests enganado. H certas coisas que no se podem guardar. Por exemplo, no podes guardar a

    luz do luar, ou a brisa perfumada de um pomar de macieiras. No podes guardar as estrelas dentro de uma caixa. No entanto podes colecionar estrelas. Escolhe uma quando a noite chegar. Ser tua. Mas deixa-a guardada na noite. ali o lugar dela.

    Vladimir comeava a achar que ela tinha razo. Se eu te libertar agora perguntou tu sers minha? A borboleta fechou e abriu as asas iluminando o frasco com uma luz de todas as cores. J sou tua disse e tu j s meu. Sabes? Eu coleciono caadores de borboletas. Vladimir regressou a casa alegre como um pssaro. O pai quis saber se ele tinha feito uma boa

    caada. O menino mostrou-lhe com orgulho o frasco vazio: Muito boa disse. Ests a ver? Deixei fugir a borboleta mais bela do mundo.

    Jos Eduardo Agualusa Era uma vez Revista Pais e Filhos, s/d

  • Sbios Como Camelos

    H muitos anos viveu na Prsia um gro-vizir - nome dado naquela poca aos chefes dos governos -, que gostava imenso de ler. Sempre que tinha de viajar ele levava consigo quatrocentos camelos, carregados de livros, e treinados para caminhar em ordem alfabtica. O primeiro camelo chamava- se Aba, o segundo Baal, e assim por diante, at ao ltimo, que atendia pelo nome de Zuz. Era uma verdadeira biblioteca sobre patas. Quando lhe apetecia ler um livro, o gro-vizir mandava parar a caravana e ia de camelo em camelo, no descansando antes de encontrar o ttulo certo.

    Um dia a caravana perdeu-se no deserto. Os quatrocentos camelos caminhavam em fila, uns atrs dos outros, como um carreirinho de formigas. frente da cfila, que como se chama uma fila de camelos, seguiam o gro-vizir e os seus ministros. Subitamente o cu escureceu, e um vento spero comeou a soprar de leste, cada vez mais forte. As dunas moviam-se como se estivessem vivas. O vento, carregado de areia, magoava a pele. O gro-vizir mandou que os camelos se juntassem todos, formando um crculo. Mas era demasiado tarde. O uivo do vento abafava as ordens. A areia entrava pela roupa, enfiava-se pelos cabelos, e as pessoas tinham de tapar os olhos para no ficarem cegas. Aquilo durou a tarde inteira. Veio a noite e quando o Sol nasceu o gro- -vizir olhou em redor e no foi capaz de descobrir um nico dos quatrocentos camelos. Pensou, com horror, que talvez eles tivessem ficado enterrados na areia. No conseguiu imaginar como seria a vida, dali para a frente, sem um s livro para ler. Regressou muito triste ao seu palcio. Quem lhe contaria histrias?

    Os camelos, porm, no tinham morrido. Presos uns aos outros por cordas, e conduzidos por um jovem pastor, haviam sido arrastados pela tempestade de areia at uma regio remota do deserto. Durante muito tempo caminharam sem rumo, aos crculos, tentando encontrar uma referncia qualquer, um sinal, que os voltasse a colocar no caminho certo. Por toda a parte era s areia, areia, e o ar seco e quente. noite as estrelas quase se podiam tocar com os dedos.

    Ao fim de quinze dias, vendo que os camelos iam morrer de fome, o jovem pastor deu-lhes alguns livros a comer. Comeram primeiro os livros transportados por Aba, ou seja, todos os ttulos comeados pela letra A. No dia seguinte comeram os livros de Baal. Trezentos e noventa e oito dias depois, quando tinham terminado de comer os livros de Zuz, viram avanar ao seu encontro um grupo de homens. Eram as tropas do gro-vizir.

    Conduzido presena do gro-vizir o jovem guardador de camelos, explicou-lhe, chorando, o que tinha acontecido. Mas este no se comoveu:

    - Eras tu o responsvel pelos livros - disse -, assim por cada livro destrudo passar um dia na priso. O guardador de camelos fez contas de cabea, rapidamente, e percebeu que seriam muitos dias.

    Cada camelo carregava quatrocentos livros, ento quatrocentos camelos transportavam cento e sessenta mil! Cento e sessenta mil dias so quatrocentos e quarenta e quatro anos. Muito antes disso morreria de velhice na cadeia.

    Dois soldados amarraram-lhe os braos atrs das costas. J se preparavam para o levar preso, quando Aba, o camelo, se adiantou uns passos e pediu licena para falar:

    - No faas isso, meu senhor - disse Aba dirigindo-se ao gro-vizir. - Esse homem salvou-nos a vida. O gro-vizir olhou para ele espantado: - Meu Deus! O camelo fala?! - Falo sim, meu senhor - confirmou Aba, divertido com o incrdulo silncio dos homens. - Os livros

    deram-nos a ns, camelos, a cincia da fala. Explicou que, tendo comido os livros, os camelos haviam adquirido no apenas a capacidade de

    falar, mas tambm o conhecimento que estava em cada livro. Lentamente enumerou de A a Z os ttulos que ele, Aba, sabia de cor. Cada camelo conhecia de memria quatrocentos ttulos.

    - Liberta esse homem - disse Aba -, e sempre que assim o desejares ns viremos at ao vosso palcio para contar histrias.

  • O gro-vizir concordou. Assim, a partir daquele dia, todas as tardes, um camelo subia at ao seu quarto para lhe contar uma histria. Na Prsia, naquela poca, era habitual dizer-se de algum que mostrasse grande inteligncia:

    - Aquele homem sbio como um camelo. Isto foi h muito tempo. Mas h quem diga que, quando esto sozinhos, os camelos ainda conversam

    entre si. Pode ser.

    Jos Eduardo Agualusa, Estranhes & Bizarrocos [estrias para adormecer anjos], Publicaes Dom Quixote Ficha: http://www.educacao.te.pt/jovem/index.jsp?p=115&idArtigo=198

    O peixinho que descobriu o mar

    Cristbal nasceu num aqurio. O mundo dele resumia-se a um pouco de gua entre quatro paredes de vidro. Isso, alguma areia. Algas, pedras de diversos tamanhos, a miniatura em madeira de uma caravela naufragada. Ah! E trinta e sete outros peixinhos, quase todos irmos de Cristbal, ou primos, tios, parentes prximos. Havia ainda uma velha tartaruga, chamada Alice, que j vivia no aqurio quando os avs de Cristbal nasceram. Os peixes acreditavam que Alice vivia no aqurio desde a criao do Universo e ela deixava que eles acreditassem naquilo.

    s vezes os peixes mais velhos contavam histrias que tinham escutado aos seus avs. Diziam que, para alm das paredes do aqurio, longe dali, havia gua, tanta gua que um peixe podia passar a vida inteira a nadar, sempre em linha recta, sem nunca bater de encontro a um vidro. A essa gua imensa, onde tinham nascido os primeiros peixes, chamava-se Mar.

    Os peixes falavam do Mar como quem fala de um sonho. Cristbal tantas vezes escutou aquela histria

    que um dia decidiu perguntar a Alice. A tartaruga era velhssima, devia saber, tinha de saber. Encontrou-a a tomar sol em cima de uma pedra. Cristbal prendeu a respirao, ergueu a cabea acima da gua, e fez-lhe a pergunta. Alice torceu a boca numa careta de troa:

    - Disparate: o Mar no existe! No existe nada para alm daquelas quatro paredes de vidro. O universo inteiro somos ns.

    Cristbal foi-se embora pensativo. Sempre que ouvia falar no mar o aqurio parecia-lhe mais pequeno. No achava possvel que os peixes, seus avs, tendo vivido sempre dentro de um aqurio, tivessem conseguido inventar uma coisa to grande como o Mar. Ele tinha de saber a verdade. Ele queria saltar as paredes de vidro e ir procura do Mar. Os outros peixinhos no compreendiam a angstia de Cristbal:

    - No ests bem aqui? perguntavam-lhe -, no tens tido tudo o que precisas? Cristbal olhava para eles, aflito, incapaz de explicar aquela vontade de partir que sentia crescer, todos

    os dias, dentro do seu corao e o empurrava contra as paredes do aqurio, tentando espreitar, para alm delas, um outro mundo. O que via, porm, eram os seus prprios olhos reflectidos no vidro gelado.

  • Uma manh, muito cedo, ainda todos os peixes dormiam, Cristbal encheu-se de coragem, tomou balano, e saltou. Percebeu imediatamente que o mundo no terminava no aqurio. Percebeu tambm, assustadssimo, que o resto do mundo era um lugar to seco quanto a pedra onde Alice costumava descansar. Percebeu isso tarde demais.

    Estava estendido num cho de madeira e no conseguia respirar. Foi ento que viu o gato. Ele no sabia o que era um gato. Nunca tinha visto nenhum. O gato, no entanto, sabia o que era um peixe. Os peixes, na opinio do gato, eram comida. Cristbal viu o gato e gritou:

    - Ajuda-me! Vou morrer!... - Pois vais disse o gato, que alis, no era um gato, era uma gata, e por sinal lindssima -, eu vou-te

    comer. Cristbal conseguia ver o aqurio e do lado de l do vidro os outros peixes. Mas eles no o podiam

    ver. - No me comas pediu -, eu quero ver o Mar. A gata olhou para ele, admirada: - O Mar? Pois tu nunca viste o Mar? Cristbal, com dificuldade, porque fora de gua no conseguia respirar, contou-lhe a sua histria.

    Vernica era assim que se chamava a gata -, ficou com pena dele. Agarrou-o com a boca, cuidadosamente, para no o magoar, e colocou-o numa tigela com gua.

    - Vou-te ajudar disse-lhe -, porque nunca conheci ningum to corajoso como tu. Nessa tarde a gatinha saiu pelos telhados procura de Nicolau, o albatroz, um pssaro enorme, bico

    largo e fundo, capaz de transportar l dentro uma enorme quantidade de peixes. Nicolau, velho amigo, recebeu-a com alegria. Vernica contou-lhe a histria de Cristbal e pediu-lhe para levar o peixinho at ao mar. O albatroz achou a ideia um pouco estranha: afinal ele tirava os peixes do mar para os comer. Mas quando Vernica o apresentou a Cristbal depressa se convenceu. Colocou ento o peixinho dentro do bico, com uma larga poro de gua, para que ele no sentisse dificuldades em respirar, e levantou voo.

    Voavam h quase uma hora quando Nicolau abriu o bico e disse a Cristbal para espreitar. Cristbal ergueu a cabea e o que viu deixou-o mudo de espanto. O Mar brilhava imenso sua frente. Era muita gua. Havia muitssimo mais gua ali do que dentro do seu aqurio, muito, muito mais, muito mais do que ele se tinha alguma vez atrevido a imaginar. Nicolau abriu as grandes asas e comeou a descer em direco ao imenso azul, l em baixo, ao salgado rumor das ondas. Gritou:

    - Adeus, amigo. Boa sorte! Sacudiu o bico e soltou Cristbal! O peixinho olhou para cima, antes de mergulhar nas guas livres do

    Mar, e ainda o viu agitando as asas, adeus, adeus, e desaparecer entre as nuvens altas. Longe dali, Vernica, a gata, pensava em Cristbal. A partir daquela data ela nunca mais foi capaz de

    comer peixe. Coitada, hoje, s come vegetais.

    Fichas: http://prazerdeler.drealentejo.pt/exercitar2.htm

  • A menina que queria ser ma Quando perguntaram a Joaninha o que que ela queria ser quando fosse grande (h sempre um dia

    em que um adulto nos faz essa pergunta), ela no hesitou: - Quando for grande quero ser ma! Disse aquilo com tanta convico que a me se assustou: - Ma? A maior parte das crianas quer ser: a) astronauta b) mdica/o c) corredor de automveis d) futebolista

    e) cantor/a f) presidente. H algumas respostas mais originais: Quero ser solteiro, confessou o filho de uma amiga minha. Conheo uma menininha que foi ainda mais ambiciosa:

    - Quando for grande quero ser feliz. Mas ma? Joaninha, meu amor, ma porqu? A pequena encolheu os ombros: so to lindas. Passaram-se os anos e a me pensou que ela se tinha esquecido daquilo. Mas no. No dia em que

    entrou para a escola a professora fez a todos os meninos a mesma pergunta: - Ora ento vamos l a saber o que que vocs querem ser quando forem grandes Astronauta. Piloto de Frmula1. Cantora. Futebolista. Barbie (h muitas meninas que querem ser

    Barbie). Mdica. Modelo. Actriz. E tu Joaninha? - Eu quero ser ma! Risos. Os outros meninos comearam a fazer troa dela: - Ma raineta! Ma raineta!... - Se a Joaninha pode ser uma ma, senhora professora, eu quero ser um avio Ela nem fazia caso. Quando crescesse havia de ser uma ma, sim, uma ma verde, luminosa, to

    perfumada como uma manh de primavera. Poucas vezes, porm, conseguimos cumprir os nossos sonhos. Joaninha transformou-se numa mulher

    bonita, estudou, e fez-se professora. Era uma boa professora. S quem conseguisse olhar para dentro dela poderia saber que, bem l no fundo do seu corao, Joaninha sentia ainda aquela grande vontade de se tornar ma.

    O tempo passou o tempo, alis, est sempre a passar, nes que nem sempre damos pela sua passagem. O tempo passou, portanto, e Joaninha envelheceu. No casara, no tinha filhos, envelheceu sozinha. Foi numa tarde de Outono. As rvores tinham perdido todas as folhas. O sol, cansado, com aquela cor macia que tem o mel, desaparecia no horizonte. Joaninha estava a dormir, sentada numa cadeira de baloio, na varanda da sua casa, quando apareceu um anjo e a levou. Ela no percebeu logo onde estava. Foi preciso que Deus lhe tocasse nos ombros com a ponta dos dedos:

    - Acorda minha filha disse-lhe Deus -, j chegaste. Joaninha abriu os olhos e viu o que j antes via com os olhos fechados: os anjos passeando num

    grande jardim, os peixes flutuando no ar, juntamente com os pssaros, e aquele velho de barbas brancas, ao seu lado, sorrindo como s Deus sabe sorrir.

    - Meu Deus perguntou-lhe porque no me deixaste ser ma? - Ser ma difcil, Joaninha disse-lhe Deus. preciso crescer muito para se ser uma boa ma.

    Tu cresceste. Agora, sim, sers ma. Alguns anos depois um menino descobriu no pomar da casa dos seus avs uma ma de um brilho

    intenso. Cheirou-a: cheirava a manhs lavadas, cheirava a primavera, era um cheiro que se colava aos dedos. O menino comeu a ma e sentiu-se feliz. Naquela tarde disse av:

    - Sabes, acho que quando for grande quero ser ma!

  • O Pas dos Contrrios Quero que conheam este gato. Chama-se Felini e, acreditem, no se parece com nenhum outro. Falo-

    vos de um gato, digamos assim, muito ambicioso. Felini era ainda adolescente, mal se viam os bigodes, quando se apaixonou. Coisa sria. Muito sria. Deixou de comer, deixou de lamber o plo, e passou a andar pelos telhados como um vagabundo sujo, magro, desgrenhado -, gemendo tristemente o seu amor. A me ficou preocupada:

    - Meu filho perguntou-lhe -, quem essa gata? Gata? Felini olhou-a desesperado. No, no era uma gata. Era uma vaca! Graciosa, a vaca, pastava os

    seus dias, isto , passava os seus dias, no terreiro em frente aldeia, com as outras vacas. A me de Felini riu-se, pasmada, e foi contar s amigas: o seu filho o pobrezinho! -, estava apaixonado por uma vaca. A novidade espalhou-se pela vizinhana. Os gatos grandes davam-lhe palmadas nas costas: tens mais boca que barriga, diziam. Os colegas troavam dele. O pior, porm, no era isso. O pior, para Felini, aquilo que realmente o incomodava, era a indiferena de Graciosa.

    Felini sentava-se noite em frente do estbulo onde dormia Graciosa e compunha canes para a lua, canes tristssimas, que falavam dos olhos mansos do seu amor, e do seu plo macio, e do seu caminhar pelo pasto hmido ao amanhecer. Graciosa nem olhava para ele. A me de Felini, cada vez mais preocupada com tamanha persistncia, foi procur-lo:

    - Meu filho explicou-lhe -, como queres que uma vaca se interesse por ti? As vacas gostam de animais grandes, como elas, de bois. Os gatos gostam de gatas.

    Era esse o problema? Ento decidiu Felini -, ento seria um boi. A partir desse dia comeou a pastar, como as vacas, e com tal apetite que cresceu, e cresceu, e cresceu, at alcanar o tamanho de um boi. S nessa altura voltou a procurar Graciosa. A vaquinha, porm, olhou-o com susto:

    - Meu Deus, um gato boi! O grito dela atraiu os outros animais. Todos o olhavam com horror. Os gatos j no o aceitavam ele

    deixara de ser gato. As vacas fugiam ao v-lo. Felini, tristssimo, decidiu ento partir para outro pas. O mundo era imenso. Em algum lado encontraria quem o aceitasse sem estranheza. Andou durante muitos dias. Atravessou desertos. Perdeu-se no labirinto de florestas interminveis. Escalou montanhas geladas, respirou o ar perigoso dos pntanos, viu o sol levantar-se sobre paisagens de assombro. Ao fim de muitos meses encontrou um rio cujas guas corriam pela montanha acima, e no a descer, em direo ao mar, como estamos acostumados a ver. Perguntou a um pssaro em que lugar estava.

    - Se cruzares o rio disse-lhe o pssaro -, entras no Pas dos Contrrios. Ali tudo se passa ao contrrio: os ponteiros dos relgios giram para a esquerda, os animais nascem velhos e morrem bebs e toda a gente fala do fim para o princpio. um tanto complicado, mas depois habituas-te.

    Disse isto e despediu-se. Mal chegou ao outro lado do rio voltou-se e comeou a voar de costas. Felini encolheu os ombros. Se um pssaro podia viver num pas assim ele tambm podia. Atravessou o rio a nado. Estava a descansar na areia quando um elefante, to pequeno quanto uma formiga, se aproximou dele:

    - Chamas te que como disse -, ol! - Chamo-me Felini respondeu Felini. E tu? Nunca tinha visto um elefante to pequeno. O elefante

    olhou para ele admirado: - Estrangeiro um como falas mas Contrrios dos Pas do habitante um pareces disse. - Direito falas no porque? Felini abanou a cabea. Que diabo de lngua era aquela? Depois compreendeu e comeou a rir. O

    elefante estava a falar ao contrrio: Porque no falas direito? tinha dito. - Pareces um habitante do pas dos contrrios mas falas como um estrangeiro. O gato contou-lhe as

    suas aventuras, at cruzar o rio, esforando-se por se fazer entender na estranha lngua do pas. Disse-lhe que tinha decidido conhecer o mundo porque na terra onde nascera o olhavam como se fosse um monstro.

    - Tu como so todos aqui tranquilizou-o o elefante no aqui.

  • Nesse mesmo dia Felini encontrou vrios gatos iguais a ele. Em pouco tempo fez novas amizades e decorridas algumas semanas j se sentia to vontade naquele lugar como na sua prpria aldeia. Podia ter sido inteiramente feliz, mas teve pouca sorte, coitado, voltou a apaixonar-se por uma vaca!

    Uma vaquinha to pequena que no lhe chegava aos calcanhares.

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