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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes (FAFICLA) Departamento de Linguagens do Corpo Bacharelado em Comunicação das Artes do Corpo Habilitações: teatro e dança Rodrigo dos Santos Monteiro CONTAMINAÇÕES ENTRE A CRÍTICA E A CURADORIA: EM BUSCA DE AÇÕES NOS TERRITÓRIOS DAS ARTES DO CORPO São Paulo 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes (FAFICLA)

Departamento de Linguagens do Corpo Bacharelado em Comunicação das Artes do Corpo

Habilitações: teatro e dança

Rodrigo dos Santos Monteiro

CONTAMINAÇÕES ENTRE A CRÍTICA E A CURADORIA: EM BUSCA DE AÇÕES NOS TERRITÓRIOS DAS ARTES

DO CORPO

São Paulo 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes (FAFICLA)

Departamento de Linguagens do Corpo Bacharelado em Comunicação das Artes do Corpo

Habilitações: teatro e dança

CONTAMINAÇÕES ENTRE A CRÍTICA E A CURADORIA: EM BUSCA DE AÇÕES NOS TERRITÓRIOS DAS ARTES

DO CORPO

Rodrigo dos Santos Monteiro

Trabalho apresentado como exigência parcial para obtenção do título de bacharel em Comunicação das Artes do Corpo, sob a orientação da Profa. Dra. Christine Greiner.

São Paulo 2010

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, Christine Greiner, que, com seu entusiasmo e

conhecimento, me contaminou e me apoiou desde o primeiro ano do curso.

Aos professores Gaby Imparato, Lúcio Agra e Cassino Quilici, que, durante o

desenvolvimento desta monografia, contribuíram com sugestões enriquecedoras.

Aos colegas monografandos: Vivi, Ana, Bruna, Jade, Gizele e Diego. Também a

todos os colegas da turma de 2007.

Às professoras Helenas Katz, Vera Sala e Rosa Hercóles, que em muitos momentos

contribuíram para que algumas ignições fossem acionadas.

À minha mãe, Cristina, que apoiou e continua a apoiar minhas decisões.

Aos Bolinhos de Arroz: Terere, Raquel, Claudiano, Vanessa, Rô, Ricardo, Carol e

Cristiano Redicopa, meus amigos-companheiros, com os quais cresci e amadureci minhas

ideias.

À Marina, Priscila e Elis, minhas queridas que tanto me escutam e me dão

conselhos preciosos.

Ao Gabriel, por todas as nossas conversas de ponto de ônibus e pela rica amizade.

Ao Cosme, por várias vezes me acompanhar aos teatros e se dispor a me ouvir.

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RESUMO As ações desempenhadas por críticos e curadores sempre foram fundamentais no cenário da arte, representando um papel importante para a visibilidade e a circulação de trabalhos artísticos. A proposta desta monografia é refletir sobre as relações que existem entre a crítica, a curadoria e a produção, especificamente, nas chamadas artes do corpo. Entendemos que estas relações estão cada vez mais próximas umas das outras, contribuindo para a (des) territorialização de idéias, antes segmentadas em funções distintas. Por este motivo, proponho o termo “curadoria crítica”, no intuito de estudar as curadorias que refletem e deslocam os modelos já estabelecidos no mercado para re-potencializar a ação transformadora da arte, por ora muitas vezes neutralizada pelas novas regras do mercado. A metodologia foi basicamente teórica, partindo de uma pesquisa bibliográfica. Todavia, o acompanhamento de eventos relativos às artes do corpo, também foram fundamentais para desenvolver algumas pistas sobre o tema abordado. O quadro teórico deste trabalho inclui discussões promovidas por Anne Cauquelin (2005), Boaventura de Sousa Santos (2007), Milton Santos (1996 e 2001), Giancarlo Martins (2006), Christine Greiner (2006, 2008 e 2010) e Helena Katz (2008 e 2010). Esperamos contribuir com uma reflexão sobre a curadoria crítica, a fim de testar possíveis ações nos territórios das artes do corpo.

Palavras chave: artes do corpo, curadoria crítica, produção cultural, território.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO 07

CAPÍTULO 1: A EVOLUÇÃO DOS INTERMEDIÁRIOS 11

1.1 Um breve histórico dos intermediários da arte 13

1.2 Por uma prática pós-abissal 18

CAPÍTULO 2: AS AÇÕES CRÍTICAS-CURATORIAIS TERRITORIAIS 28

2.1 (Des)territorializando ideias 32

2.2 Colocando a mão na massa e percebendo a multidão 39

CAPÍTULO 3: O CURADOR CRÍTICO, UM PESQUISADOR DO CORPO 52

3.1 Outros territórios: os das artes do corpo 52

3.2 Algumas considerações sobre o estatuto do corpo hoje e seu impacto na crítica-

curatorial 55

3.3 Colocar o corpo e o território em crise 57

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 66

BIBLIOGRAFIA 68

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INTRODUÇÃO

Atualmente, vem se discutindo, cada vez mais, os papéis de críticos e de curadores.

As Bienais de Arte, que acontecem pelo mundo, propiciaram que o papel do curador fosse,

gradativamente, acentuado. A função de crítico, por sua vez, nos últimos anos, vem

sofrendo, também, transformações. Devido ao aumento das redes de comunicação, aquele

que somente escrevia em jornais precisou se adaptar às transformações vigentes. Cursos

universitários, como o da PUC-SP (“Arte: história, crítica e curadoria”) mostram que há

uma tendência e uma preocupação, para colocar no mercado profissionais pensantes e cada

vez mais especializados.

O presente trabalho tem como proposta refletir sobre algumas relações que existem

entre a crítica, a curadoria e a produção das artes do corpo. A intenção é buscar entender

como se dão os processos dos intermediários das artes naquilo que chamamos de regime de

comunicação (ver Capítulo 1). Uma vez que esse tema implicaria em uma discussão

bastante densa, o recorte proposto sugere uma reflexão, baseada em estudos indisciplinares

(GREINER, 2008:11). Pensamentos da sociologia, da geografia, da comunicação e da

filosofia política mesclam-se com o intuito de pensar a curadoria, a crítica e a produção de

trabalhos de artes do corpo.

O desejo de propor uma reflexão como etapa final de um curso de graduação é,

justamente, para permitir que novas portas se abram para essa questão. Não há interesse,

aqui, em mostrar soluções ou propor novas ações nas áreas da crítica e da curadoria. Porém,

há a pretensão de contribuir com uma reflexão, a fim de testar possíveis deslocamentos nos

modos de avaliar tais áreas. Isso, talvez seja um passo inicial para que a discussão continue

em ocasiões futuras. Assim, ao invés de fechar ou concluir o assunto, estima-se finalizar

com um novo início.

A inquietação recorrente que me fez falar sobre esse tema não tem um ponto inicial

claramente identificável. Talvez seja decorrente dos textos oferecidos em aulas, tanto os

que li quanto os que escrevi. Talvez seja, também, um pouco da minha trajetória de idas ao

teatro, de apresentações feitas como artista ou como organizador. Pode ser também fruto de

conversas paralelas que não têm nada a ver com o campo artístico. Enfim, achar uma

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origem de tudo isso não é o mais importante; todavia, foram todos esses – e muitos outros –

fatores que, de algum modo, fizeram com que eu chegasse neste momento com essas

questões, com esses anseios.

Nos últimos dez anos estive envolvido com o teatro e a dança, seja praticando ou

assistindo e alguns pontos começaram a me incomodar. É claro que o contato que tive nos

anos da faculdade com algumas informações contribuiu para que eu pudesse amadurecer e

habilitar o olhar para ver o teatro e a dança de um outro jeito. Assim, experiências de

criações e apresentações com um grupo de teatro que fiz anteriormente em alguns lugares

específicos, começaram a criar um certo incômodo. Também começou a ser desconfortável

ver produções que eram sempre feitas pelos mesmos artistas e apresentadas para o mesmo

público. Não tenho a intenção de desmerecer trabalhos artísticos de grandes nomes da

dança ou do teatro, nem o público que os acompanha. O que me inquieta é que tanto um

certo público como uma certa produção são tidas como invisíveis. Assim, nem a produção

tem a possibilidade de respirar novos ares, nem o público “invisível” pode experimentar

novos trabalhos. Novamente: não dá para propor soluções para essa questão sem o risco de

cair em determinismos que tentem fechar o problema. Proponho contribuir com uma

reflexão que coloque em discussão duas profissões bastante importantes na área das artes

quando o assunto é (in)visibilidade. Refiro-me aos críticos e curadores que têm um papel

significativo para desestabilizar, ou estagnar a produção e a conseqüente circulação de

trabalhos artísticos. Creio que nem podemos separar tanto esses papéis; a menos que

tomemos a função do crítico somente como aquele que escreve em jornais. Se ampliarmos

o entendimento do critico para aquele que contribui com um deslocamento de pensamento

– e claro, da ação – podemos enxergar a curadoria como uma atividade com

potencialidades para essa crítica desestabilizadora. A proposta deste trabalho não se

resume, portanto, aos críticos que atuam na imprensa. A curadoria também ter um papel

crítico, em si mesma, no próprio modo de fazer. Por este motivo, neste trabalho, usaremos o

termo “curador crítico”, a fim de identificar a contaminação e borrar um pouco essas

categorias.

Quanto, a direção da discussão da curadoria crítica para as artes do corpo justifica-

se por focar o corpo como lugar da criação, da reflexão e da ação. O teatro e a dança,

especificamente neste trabalho, são vistos como áreas em que a discussão, através da

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criação artística, realiza-se no corpo. Considero que reflexões propostas com trabalhos

nesta área são particularmente propícias para se pensar uma curadoria crítica.

Assim como uma série de processos de nossa sociedade contemporânea acontece

em rede; na arte, as contaminações, criações e seus agentes também podem ser

considerados processos e pontos nodais enredados. Consideremos, deste modo, que as

mudanças ocasionadas em um desses pontos possa implicar em uma transformação de toda

a rede. Podemos dizer, com isso, que há responsabilidades das curadorias e também da

crítica feita em jornais ou outros meios perante as produções. Além, é claro, das formações

de opinião. Curadorias e críticas agem, muitas vezes, como referências para novas

produções ou para a continuidade de outras já existentes. Por este motivo, uma curadoria

crítica, ou seja, uma curadoria que reflete e desloca os modelos aos quais trabalhos

artísticos (e outras curadorias) muitas vezes se submetem e contribuem para re-

potencializar a ação transformadora da arte.

“O que se costuma chamar “realidade” é uma montagem. Mas a montagem em

que vivemos será a única possível? A partir do mesmo material (o cotidiano),

pode-se criar diferentes versões da realidade. Assim, a arte contemporânea

apresenta-se como uma mesa de montagem alternativa que perturba, reorganiza

ou insere as formas sociais em enredos originais. O artista desprograma para

reprogramar, sugerindo que existem outros usos possíveis das técnicas e

ferramentas à nossa disposição” (BOURRIAUD, 2009b: 83-84)

A elaboração deste trabalho foi desenvolvida a partir de uma pesquisa basicamente

bibliográfica. Todavia, o acompanhamento de apresentações de teatro e dança também foi

fundamental para desenvolver algumas opiniões sobre o tema abordado.

O primeiro capítulo mostra a transição do regime de consumo, no qual Anne

Cauquelin (2005) insere a arte moderna, para o regime da comunicação. Falamos

brevemente sobre a história dos “intermediários na arte” e sugerimos o reconhecimento de

suas ações como pós-abissais.

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O segundo capítulo desenvolve a ideia de curadoria crítica como uma função que

pensa e age sob a lógica da (des)territorialização, primeiramente a partir de uma reflexão

sobre o espaço e as ideias que, quando nele circulam, o reformulam; e, em um segundo

momento, a partir dos estudos da “multidão”, de onde emergem trabalhos artísticos com

potenciais críticos.

Por fim, no terceiro capítulo, refletiremos sobre os territórios das artes do corpo,

alguns estatutos do corpo hoje e suas possíveis transformações a partir de ações crítico-

curatoriais.

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CAPÍTULO 1: A EVOLUÇÃO DOS INTERMEDIÁRIOS

Visualizando o complexo desenvolvimento histórico da arte, é a partir da Revolução

Industrial que as obras de arte ganham status de produtos. Na arte moderna, instaura-se o

que a teórica da arte Anne Cauquelin chama de “regime do consumo” (2005). Os

aprimoramentos técnicos advindos da revolução propiciaram que um grande número de

mercadorias fossem reproduzidas em massa, dentre elas, as obras de arte. Neste contexto,

as pessoas, a partir do aumento da produção, estavam em um cenário onde o consumo era o

motor da economia.

Por mais distante que isso possa ser, ainda há a presença de entendimentos

relacionados à arte com o regime de consumo. Segundo Cauquelin, os situacionistas1, na

década de 60 do século XX, já contestavam esta postura. A “sociedade do espetáculo”,

como conceituou um dos representantes do situacionismo, Guy Debord (1931-1994), era

uma sociedade regida pelo consumo. Em uma sociedade na qual o consumo está presente

durante grande parte do tempo, inclusive nos momentos de lazer, uma espécie de máquina

dá continuidade ao movimento desse sistema. Esta máquina precisa de algumas peças

fundamentais. Na arte, especificamente no mercado da arte, as engrenagens que

desempenham esse papel são representadas por aqueles cuja função é a de intermediar.

Cauquelin acentua que, historicamente, o regime de consumo começou a nascer a partir dos

anos 1850 (CAUQUELIN, 2005: 30). Daí em diante, já no século XX, outros

desdobramentos vieram, como alguns entendimentos que acentuaram mais e mais a ideia da

arte como mero consumo.

1 Situacionismo é um movimento europeu de crítica social, cultural e política que reúne poetas, arquitetos, cineastas, artistas plásticos e outros profissionais. Seu início data de julho de 1957, com a fundação da Internacional Situacionista, em Cosio d'Aroscia, Itália. O grupo se define como uma "vanguarda artística e política", apoiada em teorias críticas à sociedade de consumo e à cultura mercantilizada. A ideia de "situacionismo", segundo eles, se relaciona à crença de que os indivíduos devem construir as situações de sua vida no cotidiano, cada um explorando seu potencial de modo a romper com a alienação reinante e obter prazer próprio. Fonte: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3654 (acesso em 30/05/2010).

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“O valor do progresso (progresso científico e técnico, mas também progressão

na escala social), do trabalho que dá acesso à propriedade, o aumento da

importância da educação – garantidora de ‘situações’ futuras – e das boas

maneiras (de que fazem parte também o bom gosto e a cultura), tudo concorre

para desenhar um modelo que segue estreitamente o esquema tripartite bem

conhecido: produção-distribuição-consumo. Esse esquema diz respeito não

somente aos bens materiais de matérias-primas, ou industriais (grandes e

pequenos), mas também os educadores, os intelectuais (científicos ou literários),

os artistas. Distribuidores; os comerciantes, negociantes, marchands.

Consumidores: todo o mundo”. (ibid. : 31)

Ou seja, o consumo passa a ser a engrenagem principal para que toda a “máquina”

continue a funcionar. Todos consomem, não apenas objetos concretos, mas também

produtos simbólicos. Em um mercado onde essas “engrenagens” estão mais presentes, há,

também, hierarquias que anunciam quem é mais ou menos fundamental neste processo.

Ao mesmo tempo em que todos consomem, todos também produzem. Os

consumidores, neste caso, são os produtores de demanda, esta por sua vez é aproveitada

pelos intermediários. São estes que têm o papel de estimular a compra e aumentar o

consumo. O surgimento destas funções foi proporcionalmente conseqüente ao crescimento

populacional; uma quantidade maior de pessoas deveria consumir para que a “máquina”

não parasse de funcionar. Os intermediários passaram a ser “mediadores” especializados a

cada um dos diferentes nichos que iam se formando. Operários e mães de família eram

vistos de um modo especial na hora de fazer a propaganda do produto. Isso não é algo tão

distante dos dias de hoje, em que vemos as propagandas cada vez mais direcionadas a

públicos específicos, não deixando de fora do alvo de venda nenhum grupo.

Assim, a função do intermediário torna-se, nesse regime, cada vez mais

predominante. É ele quem vai criar as “necessidades” para que as mercadorias produzidas

possam escoar. “Essas ‘necessidades’ vão encontrar um campo particularmente propício à

renovação: o domínio da cultura, os bens simbólicos” (ibid. : 33). As ações do

intermediário, deste modo, têm uma significativa importância na reformulação dos critérios

que definem os modelos daquilo que é bom, tudo em função das “necessidades” ditadas.

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É nesse esquema de consumo que grande parte dos intermediários da arte têm

desenvolvido suas ações nos últimos anos. E é nos primórdios deste esquema que nascem

não somente as figuras de críticos e produtores, mas também um entendimento de produção

e de consumo que ainda se faz presente nos regimes da arte atual.

1.1 Um breve histórico dos intermediários da arte

Na segunda metade do século XIX, os grandes salões de arte de Paris sofreram

profundas alterações. Umas das causas dessas mudanças é fruto do crescimento da

burguesia que, com maiores captações de recursos, podiam comprar mais as obras de arte

que eram produzidas. Outro fator importante a ser mencionado é que, mais precisamente no

ano de 1848, uma reivindicação de pintores fez com que os salões começassem a expor um

número maior de obras. “Como resultado, o salão é declarado ‘livre’ em 1848, e 5.180 telas

são apresentadas, em vez de 2.536 exibidas em 1847” (ibid. : 34).

Todavia, romper com a academia naquela época não significava desapegar dos

valores por ela ditados. O que se almejava era descentralizar a influência que os salões

tinham para com a venda dos trabalhos artísticos. A busca pelo liberalismo econômico, ou

seja, a liberdade de produção e de consumo, já era um traço que surgia entre os agentes da

arte, desde artistas até os críticos que começavam a aparecer. Estes últimos, naquele

contexto, estavam apenas substituindo o papel que era feito pela academia. Aquilo que era

aceitável ou não deixou de ser ditado por uma instituição e passou a ser visto por outras

pessoas – os críticos marchands. Eram eles que davam legitimidade às obras e, com isso,

contribuíam para seu reconhecimento e um valor no mercado.

Para além da legitimação daqueles que, em outro momento, seriam reconhecidos

pela academia, os críticos também tinham a função de dar visibilidade a outros artistas:

aqueles que seriam desmerecidos pelos grandes salões artísticos. Porém, o reconhecimento

aqui não estava relacionado a dar voz a um trabalho artístico devido a um interesse na obra

em si; o que acontecia era que, devido à alta produção, tornava-se necessário que alguém

influente propiciasse o seu escoamento.

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“De escritor, de jornalista, até mesmo de novelista já em atividade e exercendo

alguma influência sobre seus leitores, o crítico se torna um profissional da

mediação junto de um público muito maior: o dos aficionados da arte, ou dos

simples curiosos. Ele ‘fabrica’ a opinião e contribui para a construção de uma

imagem da arte, do artista, da obra ‘em geral’ – e de determinado artista ou

grupo de artistas ao qual se ligará especialmente” (ibid. : 37-38)

Neste cenário, nichos começaram a ser criados. A aproximação entre artistas e

marchands, críticos e artistas, acentuou a abertura do mercado. O encontro com um artista e

suas obras foi fundamental para que críticos apostassem em sua reputação. Assim, o papel

do crítico era o de colocar um artista em uma posição visível, seja integrando-o a um grupo

específico ou mesmo singularizando-o das demais produções. Ao escrever sobre um artista,

um crítico estava abrindo as portas para que este fosse reconhecido. Por mais que os

comentários feitos por eles fossem negativos, ainda sim o artista seria conhecido. Escrever

sobre um artista significava, para o crítico, fortalecer a sua própria visibilidade. Assim

como o “seu” artista deveria estar no circuito, seus escritos em jornais também precisavam

ser reconhecidos.

Em 1882, um acontecimento fortaleceu a influência dos críticos: o desligamento do

Estado da organização do Salão anual e a constituição da Sociedade dos Artistas Franceses

(ibid. : 39). Essa transição, contudo, não mudou a relação que os críticos tinham para com

as obras: os juízos de valor eram ainda muito próximos dos executados no momento

anterior. O crítico apenas substituiu o júri dos salões.

Dois fatores são característicos dos críticos na França daquela época: o julgamento

das obras em função de um caráter mais ideológico; e a necessidade de entender

plasticamente os trabalhos desenvolvidos, a fim de informar, esteticamente, sobre as

novidades que iam surgindo. Os críticos, com isso, viam-se na necessidade de inovar,

classificando os artistas na categoria de estilos, e não mais de temas, que era o modo de

intitulação dos clássicos.

A partir de 1890, quando o poder da crítica passou, quase por completo, a substituir

o reconhecimento oficial da academia, o papel do crítico transbordou os limites da mera

intermediação, com a finalidade de comercializar obras, para um outro lugar. A crítica de

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arte passa a ser, então, um modo de decifrar e teorizar as novas formas de arte. Agora, a

corrida dos artistas seguia também no caminho da inovação e da autonomia da forma. Com

estas tendências, cresceu a ambição para uma produção que visasse o futuro. É neste

momento que as ideias vanguardistas tomaram força. Baseados em uma vontade de

progresso, “os críticos que teorizavam esses movimentos realizavam um combate

ideológico cujo tom é freqüentemente o do manifesto” (ibid. : 45). Os artistas da vanguarda

consideravam-se como precursores de uma arte que deveria ser alcançada. Os críticos, deste

modo, eram fundamentais para lançar as vanguardas, nomeando e reconhecendo-as.

Há, no cenário da “influência do crítico”, algumas mudanças na vida daqueles que

estão nas pontas desta cadeia: os artistas e os consumidores. O artista, devido a enorme

concorrência, torna-se marginalizado. Necessitava fazer parte de um grupo porque, com um

maior número de pessoas, as possibilidades de suas obras serem vendidas aumentava. A

vanguarda defendida pelos críticos passou a ser buscada pelos artistas e, conseqüentemente,

uma espécie de modelo foi construído. Ou seja, as interferências dos intermediários

passaram a definir aquilo que os artistas estavam produzindo.Tudo isso para poderem

continuar criando com uma legitimidade dentro do mercado.

Na outra ponta da cadeia (onde está o consumidor) o intermediário-mediador, neste

caso, o crítico, passa a isolar a figura do produtor. Os colecionadores eram personagens

importantes dentro deste sistema, uma vez que garantiam tanto a circulação das obras,

como a própria promoção dos marchands e dos críticos. Também havia aqueles que

compravam porque faziam parte de um grupo de artistas (artistas que compravam de

artistas, muitas vezes amigos próximos) como forma de alcançar um patamar próximo ao

dos colecionadores. Além destes haviam os consumidores curiosos, que acompanham a

produção por mero interesse próprio. Todavia, o aumento do número de intermediários, ao

invés de propiciar um aumento do fluxo de público, desencorajou as pessoas de irem às

exposições (ibid. : 51). Isso tudo ajudou para que, com a negação das tendências ditadas

pelos intermediários, uma boa parte do público recusasse as ideias por eles defendidas, ou

seja, a das vanguardas.

Por mais que, com a arte moderna, o número de marchands, críticos, colecionadores

e intermediários tenha aumentado, isto não significa que na arte contemporânea o regime

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linear da progressão do consumo tenha se caracterizado. Ou seja, não basta falar sobre o

aumento do consumo para analisar os processos de trocas econômicas da arte

contemporânea.

Segundo Anne Cauquelin, o regime que caracteriza a arte contemporânea, que se

faz necessário para nos debruçarmos sobre ela, é o da comunicação (ibid. : 56). Também a

arte, assim como outras áreas, sofreu mudanças com as transformações decorrentes nas

tecnologias. Isso contribui para que, com novas descobertas e o desenvolvimento de

técnicas, as mudanças nas formas de comunicação sacudissem o mundo da arte (ibid. : 57).

Assim, podemos analisar a arte contemporânea a partir de um entendimento de rede:

“Em termos de comunicação, a rede é um sistema de ligações multipolar no qual

pode ser conectado um número não definido de entradas, cada ponto da rede

geral podendo servir de partida para outras microrredes. Isso é o mesmo que

dizer que o conjunto é extensível. Neste conjunto, pouco importa a maneira pela

qual se efetua a entrada. Os diversos canais tecnológicos encontram-se ligados

entre si: telefonia, audiovisual ou informática e inteligência artificial. Entrar em

uma rede significa ter acesso a todos os pontos do conjunto, a conexão operando

à maneira das sinapses no sistema neuronal”. (ibid. : 59)

Deste modo, podemos compreender e estar na arte contemporânea de uma forma

que não haja um centro que emita a informação, mas que, nela, as conexões estejam em

constante movimento. Isso passa a ser um ponto fundamental para compreender e

questionar as funções dos intermediários das artes hoje.

Em um esquema de rede, os produtores, ou seja, aqueles que contribuem para que as

conexões sejam feitas, são, dentro dela, agentes ativos. Os atores mais ou menos ativos em

uma rede de comunicação são aqueles que fazem ligações mais ou menos diretas com

outros atores desta rede, que por sua vez, fazem com outros. Esses atores têm uma posição

privilegiada quando conseguem, no menor tempo, informações do conjunto da rede. As

informações são transmitidas por telefonemas, envio de fax ou e-mails. Aqueles que

primeiro obtêm informações são os que dão a cotação de preço e, conseqüentemente, o

“valor estético” de uma obra (ibid. : 67).

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Na rede, uma característica muito importante de se ressaltar é o tratamento dado à

obra e ao artista. Este último é muitas vezes tratado como um objeto. O artista é colocado

entre parênteses. Não importa, deste modo, quem ele é, o que faz e como faz. Se uma

galeria líder, por exemplo, o escolher para expor, esta escolha torna-se indiscutível. “Se a

galeria em questão faz parte da rede, o produto que ela vai lançar só pode ser bom. Não é

preciso ir até lá olhar de perto” (ibid. : 68).

Estar em rede não significa não haver hierarquias entre pontos mais e menos fortes

dela. O fato de, na rede, as conexões estarem sempre em movimento, dá possibilidade de

apenas esperar pelas ligações ou de agir para fazer com que dois pontos mais afastados se

comuniquem. Contudo, justamente por ser uma rede, o poder das decisões pode ser

deslocado. “Os profissionais da rede são de fato os produtores – da rede e das obras –,

tendo em vista o valor que será atribuído ao produto desde o momento em que começa a

circular como signo” (ibid. : 69).

As formas de divulgação que antes cabiam ao crítico, atualmente, são divididas

entre outros profissionais, como assessores de imprensa e publicitários. Em alguns casos o

que pode acontecer é que o crítico, além de analisar as obras, também exerce outras

funções, como, por exemplo, escrever para catálogos de exposição. No entanto, escrever

para um catálogo não necessariamente implica em fazer uma crítica, pelo menos aquela em

que a proposta é analisar e levantar questionamentos.

“Assim, pode-se afirmar que, dentro de um sistema de comunicação onde triunfa

a rede, sobrevêm efeitos ‘paradoxais’: o profissionalismo, evidenciado por todas

as análises críticas, corresponde bem a uma especialização; a produção de arte

voltada aos grandes marchands e grandes colecionadores – especialistas em

informação e em apresentação –, mas, ao mesmo tempo, nessa esfera de

profissionalismo, os papéis não são individuais: um conservador de museu que

exibe arte contemporânea pode também escrever (prefácio de catálogos), pode

garantir o papel de curador de exposição, pode ainda ser o gestor – trocar ou

comprar obras e fazer subir as cotações, como qualquer bom especulador, de

forma a se posicionar no mercado internacional. O crítico, por sua vez, pode

muito bem não escrever, mas servir de introdutor de obras escolhidas por ele a

galerias ou colecionadores de sua rede. Pode também ser curador de exposição

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ou desempenhar o papel de expert em um museu de arte contemporânea” (ibid. :

72)

Cabe refletir, com isso tudo, qual é, afinal, a posição do artista e de suas obras em

um esquema de rede. É óbvio que, sem eles, não haveria a necessidade da rede. Todavia,

sem a rede, nem o artista nem a obra teriam existência visível. Assim, as contaminações

tratadas aqui entre a crítica e a curadoria têm como uma de suas funções potencializar a

visibilidade da existência de alguns artistas, a fim de contribuir para o aumento das

conexões da rede da arte. Ou, talvez, de construir, junto com os artistas, formas de atuação

que modifiquem o próprio entendimento desta rede.

1.2 Por uma prática pós-abissal

Mesmo vivendo no século XXI, onde uma série de evoluções no saber já foram

desenvolvidas, ainda temos uma grande dificuldade em colocá-los em diálogo: no senso

comum aceita-se apenas parte daquilo que é tido como saber, sendo este, muitas vezes,

voltado para o que é comprovado cientificamente. Nestes termos, fica difícil que

entendimentos de mundo distintos possam vir a entrar em um acordo de modo que ambos,

nas suas diferenças e particularidades, possam conviver conjuntamente, ou mesmo trocar

entre si. Aquilo que é mais comum é a sobreposição daquele que tem mais “influência”

sobre aquele que é mais desconhecido. Percebemos, deste modo, uma evidente colonização

nas formas de saber.

Aquilo que está invisível encontra-se neste estado por uma série de motivos. Dentre

eles, a falta de políticas culturais que proporcionem meios para que trabalhos artísticos

sejam desenvolvidos; que invistam na pesquisa de grupos ou artistas independentes e não

apenas angariem resultados para serem mostrados na forma de espetáculos. Outra

característica que resulta na invisibilidade relaciona-se com aqueles que estão no sistema de

comunicação das artes e, ao invés de promoverem um aumento da rede de artistas que dela

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fazem parte, estancam os fluxos no momento em que fecham os olhos para trabalhos que

não estão no “centro das discussões”.

A partir disso, segundo os estudos do sociólogo português Boaventura de Sousa

Santos, vivemos em uma época em que pensamos e agimos de um modo ainda abissal.

Fazemos barreiras na construção do conhecimento, a ponto de ignorarmos uma série de

outros conhecimentos que são discriminados, contribuindo, assim, com desigualdades,

tanto cognitivas, quanto econômicas e sociais.

“O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num

sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam

as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais

que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste

lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro

lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo

produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer

forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como

inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo

que a própria concepção aceite de inclusão considerada como sendo o Outro. A

característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-

presença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em

que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas

inexistência, invisibilidade e ausência não dialéctica” (SOUSA SANTOS,

2007a: 01)

Partimos do princípio de que uma curadoria crítica pode ser aquela que tem um

entendimento pós-abissal de suas ações. Ir para o “outro lado da linha”, com a possibilidade

de migrar entre os visíveis e os invisíveis, os existentes e os inexistentes. Admitindo que a

arte é uma área do saber, uma vez que traz proposições de realidades, visões e reflexões

sobre os modos de (con)viver, uma expansão, cada vez maior, das conexões possíveis entre

trabalhos artísticos, permitiria que mais pensamentos convivessem. Um aumento destas

possibilidades acarretaria não em acordos passíveis – pelo contrário, o embate entre as

diferenças apenas contribui para que não fiquemos reféns de algumas verdades.

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Segundo Boaventura de Sousa Santos, dividimos as formas de pensamento por uma

linha, onde aquilo que é invisível está “do outro lado”. Podemos considerar, com tal

proposição, que o “outro lado da linha” pode ser bem maior do que “este lado”. Propõe que

deixemos, nos mais variados âmbitos possíveis, de pensar de forma abissal, testando um

pensamento pós-abissal. Tal proposta implicaria em uma reformulação das estruturas de

toda a sociedade, uma vez que o pensamento pós-abissal

“Parte do reconhecimento de que a exclusão social no seu sentido mais amplo

toma diferentes formas conforme é determinada por uma linha abissal ou não-

abissal, e que, enquanto a exclusão abissalmente definida persistir, não será

possível qualquer alternativa pós-capitalista progressista” (ibid. : 23)

Para que haja uma transformação do modo abissal de pensar, para o modo pós-

abissal, a condição primeira é de reconhecer a persistência da forma abissal:

“Sem este reconhecimento, o pensamento crítico permanecerá um pensamento

derivativo que continuará a reproduzir as linhas abissais, por mais anti-abissal

que se autoproclame. Pelo contrário, o pensamento pós-abissal é um pensamento

não-derivativo, envolve uma ruptura radical com as formas ocidentais modernas

de pensamento e acção. No nosso tempo, pensar em termos não-derivativos

significa pensar a partir da perspectiva do outro lado da linha, precisamente por

o outro lado da linha ser o domínio do impensável na modernidade ocidental.”

(ibid: 23, 24)

Trabalhar a partir de um entendimento pós-abissal que ande conjuntamente com as

ações da curadoria crítica implica em mudanças nas próprias bases destas funções. Para tal,

é fundamental que haja uma espécie de afirmação do pensamento abissal para buscar uma

reflexão-ação pós-abissal. Ou seja, se pelo menos admitirmos que há uma postura de

exclusão de algumas coisas antes mesmo de conhecê-las, ajuda para que nos ponhamos em

um outro lugar: o da consciência das exclusões.

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As diversas formas com que vemos e estamos no mundo, obviamente, ainda são

limitadas em relação às inúmeras outras possibilidades propiciadas pelas diversidades que

nele há. A aceitação e a compreensão de que há um “outro lado da linha” é fundamental

para que haja o que Sousa Santos chama de “ecologia dos saberes” e a possível superação

para um pensamento pós-abissal. Sousa Santos utiliza-se de termos geográficos para o

pensamento pós-abissal, confrontando-o com a monocultura da ciência moderna:

“O pensamento pós-abissal pode ser sumariado como um aprender com o Sul

usando uma epistemologia do Sul. Confronta a monocultura da ciência moderna

com uma ecologia dos saberes. É uma ecologia, porque se baseia no

reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles

a ciência moderna) e em interacções sustentáveis e dinâmicas entre eles sem

comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o

conhecimento é interconhecimento.” (ibid.: 24)

Podemos perceber, a partir da co-presença, que a tarefa de constituir um

pensamento que abarque, também, o outro lado da linha, não é fácil; é de se esperar que

hajam tensões nesta tentativa. Todavia, também podemos esperar, por parte do

interconhecimento, que a ecologia dos saberes possibilite uma contaminação significativa

do conhecimento hegemônico por outros conhecimentos, quando posto em diálogo com

outros periféricos – uma forma ainda abissal de divisão – ou mesmo aqueles que ainda

estão invisíveis. Isso reconfiguraria, inclusive, a própria terminologia da palavra

hegemonia.

Conviver com as diferenças já é um passo rumo à ecologia dos saberes. “Como

ecologia de saberes, o pensamento pós-abissal tem como premissa a ideia da diversidade

epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de

conhecimento além do conhecimento científico” (ibid). Também é fundamental que

distingamos a diversidade cultural da diversidade epistemológica do mundo: aceitar a

primeira, não necessariamente significa aceitar a segunda. Para Sousa Santos, o alcance da

ecologia dos saberes acontece a partir de uma contra-epistemologia, sendo que esta só é

possível a partir de dois fatores básicos. O primeiro volta-se para o surgimento político de

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povos com visões de mundo que não pertencem a “este lado da linha”, atuando como

resistentes ao capitalismo global. Em outros termos, o conhecimento produzido por estes

povos que estão “do outro lado da linha”, em zonas periféricas do sistema mundial

moderno – onde a crença na ciência moderna é predominante e esta é utilizada, muitas

vezes, para fins colonizadores – volta-se para o “não-científico”, “não-ocidental”. O

segundo fator, que está atrelado aos resistentes do capitalismo global e que, para Sousa

Santos, fazem parte de uma globalização contra hegemônica (ibid: 26), volta-se para a

proliferação de alternativas, sem que se caia em uma única alternativa global. Esta é a

característica principal que Sousa Santos aponta acerca da globalização contra-hegemônica.

As manifestações artísticas também podem ser analisadas à luz desse entendimento.

Há inúmeras delas que não são vistas, nem mesmo consideradas como existentes. O

pensamento hegemônico também ocorre em trabalhos artísticos. Neste momento, uma

ecologia dos saberes no território das artes é fundamental para percebemos que há uma

série de trabalhos que não têm voz presente dentro do circuito das artes. Como dito

anteriormente, não significa que a diversidade cultural implica em um aumento de

qualidade de produções. Diversidade quantitativa não implica, necessariamente, em

diversidade qualitativa. Temos casos e casos para ver as inúmeras formas de trabalhos

apresentados e, com eles, as questões que os artistas colocam no mundo. Aceitar as

diferenças de trabalhos é algo que devemos fazer; porém, entender que aquilo que foi

trazido, como algo que de fato esteja contribuindo para rever a própria condição de artistas

não conhecidos, não implica em dizer que estes estão, necessariamente, tendo uma postura

crítica.

Mais do que considerar conhecimentos que estejam “do outro lado da linha”, uma

ecologia dos saberes preocupa-se, também, com a intervenção no real que estes

conhecimentos possam vir a ter. “A credibilidade da construção cognitiva mede-se pelo

tipo de intervenção no mundo que proporciona, ajuda ou impede” (ibid. : 29). É necessário

que haja uma preocupação que se volte para o tipo de conhecimento que é produzido, uma

vez que, independente de este ser abissal ou pós-abissal, há conseqüências diretas no

mundo. Neste sentido, a eficiência de um pensamento pós-abissal está na proliferação de

diferenças cognitivas que podem agir no mundo. Nele, pelo fato de não haver

predominâncias que impeçam outras vozes, possibilidades que não são vistas por uns

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podem, deste jeito, ser vistas por outros. Sem rivalidades ou competições, mas com

protocooperações, as vantagens são, sem dúvida, maiores que as desvantagens.

Sousa Santos diz que é necessário, para uma ecologia dos saberes, a distinção entre

ação conformista e aquilo que ele designa por ação-com-clinamen. Neste sentido, nas ações

conformistas, estão baseadas práticas rotineiras que apenas são reproduzidas e repetitivas, a

fim de somente dizer que elas existem. Já para a ação-com-clinamen, Sousa Santos utiliza-

se do conceito de clinamen de Epicuro e Lucrécio, ou seja, a capacidade de desvio que

Epicuro atribuiu aos átomos de Demócrito. “O clinamem é o que faz com que os átomos

deixem de parecer inertes e revelem um poder de inclinação, isto é, um poder de

movimento espontâneo” (Epicurus, 1926, Lucretius, 1950 apud SOUSA SANTOS 2007a:

35). Deste modo, a ação-com-clinamen proporciona não rupturas, mas desvios que tornam

possíveis combinações complexas, tanto entre átomos, como entre seres vivos e grupos

sociais. “O seu potencial para o pensamento pós-abissal decorre da sua capacidade para

atravessar as linhas abissais” (SOUSA SANTOS, 2007a: 36).

As ações-com-clinamem são uma recorrência de um pensamento pós-abissal. A

ecologia dos saberes como proposta de fuga da monocultura científica permite que os

saberes ocultos nos mostrem que há outras possibilidades, tanto de entendimentos, como de

intervenções no real que não fazemos ideia de que existem. A questão central que está em

jogo é a imposição de poderes feita por uma parte do conhecimento, que se nega a

considerar a existência de outras vozes. Mesmo quando há a detecção de outras produções

do saber, os atos de colonizá-los são feitos também como caminhos para afirmação de qual

é o mais forte e, por conseqüência, o que deve ser aceito.

“O papel de uma ecologia de saberes a esse respeito será somente o de

identificar as condições que maximizam a probabilidade em que o desvio virá a

‘operar’. A ecologia de saberes é constituída por sujeitos desestabilizadores,

individuais ou colectivos, e é, ao mesmo tempo, constitutiva deles. A

subjectividade capaz da ecologia dos saberes é uma subjectividade dotada de

uma especial capacidade, energia e vontade para agir com clinamen. A própria

construção social de uma tal subjectividade implica necessariamente recorrer a

formas excêntricas ou marginais de sociabilidade ou subjectividade dentro ou

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fora da modernidade ocidental, as formas que recusaram a ser definidas de

acordo com os critérios abissais.” (ibid)

Em outros termos, Sousa Santos utiliza-se do conceito de “subjetividades rebeldes”

(SOUSA SANTOS: 2007b). A proposta de se fazer uma ecologia dos saberes implica em

produzir subjetividades rebeldes ao pensamento abissal. As formações de subjetividades

que possam ver, aceitar e agir a partir de saberes que vão além daqueles mostrados pelo

pensamento hegemônico permitem maiores possibilidades de desvio das estruturas

oferecidas por ele.

Uma vez que o mundo visto por olhos educados na cultura abissal já está saturado

de significações e pontos de vista dominantes, a arte pode funcionar como uma ferramenta

que instigue a percepção outras formas de entendê-lo. Só que, para isso, é necessário que

haja informações de como se chegar a outras informações: textos críticos, matérias de

jornal ou mesmo curadorias podem contribuir para tal.

Além de Boaventura de Sousa Santos, o geógrafo Milton Santos (que será

mencionado diversas vezes no próximo capítulo) explora uma série de discussões voltadas

às desigualdades sociais; para tal, foca a geografia das cidades como eixo de discussão. Em

“Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal” (2001), Santos

propõe outros modos de globalização voltados a uma distribuição mais igualitária das

riquezas e das informações; também acentua, positivamente, que nos movimentos advindos

das classes mais pobres há esperança de mudanças nas perspectivas da globalização.

Recorremos a sua reflexão pelo fato de ser indispensável que, como

desenvolveremos adiante (Capítulo 2), um curador crítico seja um mapeador de trabalhos

que muitas vezes podem estar camuflados por situações sociais e econômicas não

favoráveis a sua visibilidade.

A ida a lugares desconhecidos, talvez seja uma maneira de encontrar assuntos que

não poderiam ser encontrados de outra forma. Em lugares onde há uma complexa mistura

de culturas, em que hábitos tradicionais são combinados com inovações, há a possibilidade

de se deparar com brechas que escapam das racionalidades dominantes.

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“É nesse caldo de cultura que numerosas frações da sociedade passam da

situação anterior de conformidade associada ao conformismo a uma etapa

superior de produção de consciência, isto é, a conformidade sem o conformismo.

Produz-se dessa maneira a redescoberta pelos homens da verdadeira razão e não

é espantoso que tal descobrimento se dê exatamente nos espaços sociais,

econômicos e geográficos também ‘não conformes’ à racionalidade dominante”

(SANTOS, 2001: 120)

A velocidade, que é um elemento que caracteriza fortemente o mundo hoje, segundo

Milton Santos, é um fator bastante presente do processo de globalização. Ela é alcançada

através de muitas vias. Uma delas é o aprimoramento de técnicas que auxiliam para que a

circulação das informações seja mais eficaz. Em sociedades privadas do contato com tais

recursos, vê-se claramente que há desigualdades, sociais, físicas, econômicas, financeiras, e

também culturais, com relação a outras cujo acesso é mais abrangente. Por este motivo, a

velocidade, mais do que estar relacionada apenas às técnicas, está diretamente ligada a uma

questão política, quando discutida sob o ponto de vista de acessos.

Poderíamos ampliar a discussão para os vários níveis em que a velocidade é uma

característica geradora de desigualdades, como por exemplo o acesso à rede banda-larga.

No entanto, sugerimos dois eixos em que, de algum modo, a questão da velocidade está

presente.

O primeiro eixo que podemos atribuir às técnicas nas quais a velocidade é

característica, ressaltando o valor político que está implícito nisso tudo, é de que as

cobranças feitas pelas leis de incentivo, voltadas aos prazos de desenvolvimento dos

trabalhos artísticos, são feitas de forma com que não haja um tempo de elaboração mais

consistente dos trabalhos. No caso do Programa Municipal de Fomento à Dança para a

cidade de São Paulo, o prazo para a elaboração dos trabalhos gira em torno de 6 meses a

um ano.

O segundo eixo diz respeito às formas de dominação hegemônica para com aqueles

que não fazem parte desse sistema, pelo menos não com uma participação ativa. No

entendimento da globalização hegemônica, percebemos uma ânsia pela homogeneização,

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justamente por esta permitir um controle mais eficiente sobre aquilo, ou aqueles, que estão

sendo dominados.

“O funcionamento dos espaços hegemônicos supõe uma demanda desesperada

de regras; quando as circunstâncias mudam e, por isso, as normas reguladoras

têm de mudar, nem por isso a demanda deixa de ser desesperada. Tal regulação

obedece à consideração de interesses privatísticos. Já o cotidiano supõe uma

demanda desesperada de política, resultado da consideração conjunta de

múltiplos interesses” (ibid. : 127)

Podemos afirmar, com isso, que a homogeneização buscada pelos processos de

globalização apenas empobrece e limita as formas de vida e de manifestações artísticas.

Mesmo a heterogeneidade (LIPOVETSKY e SERROY, 2010), nem sempre pode ser vista

como algo positivo. Já o universo do cotidiano é um caminho para a heterogeneidade

criadora (SANTOS, 2001: 127). A racionalidade dominante possibilita apenas que certas

coisas, serviços, relações e ideias sejam produzidas, uma vez que gera modelos nos quais

nem todos podem, querem ou precisam se encaixar.

A diversidade social, além de dividir o mundo entre ricos e pobres, divide, também,

formas de pensamento e de ação que, muitas vezes, podem ser potencializadas. Neste

sentido, aqueles que têm menos chance de se enquadrarem em um discurso

homogeneizador encontram estratégias de sobrevivência que englobam, também, as

práticas artísticas. “A pobreza é uma situação de carência, mas também de luta, um estado

vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível” (ibid. : 132).

A cidade, com isso, segundo Milton Santos, cria e recria a cultura dependendo do

tempo. Ou seja, há um movimento nos processos culturais que nos impede de analisar a

diversidade proveniente nas cidades de uma forma estática. Por causa das mudanças, a ação

de mapear faz-se, constantemente, necessária.

Milton Santos utiliza-se de um termo para falar sobre os modos de organização

social das classes menos favorecidas financeiramente – a elaboração de uma política dos de

baixo:

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“Trata-se de uma política de novo tipo que nada tem a ver com a política

institucional. Essa última se funda na ideologia do crescimento, da globalização

etc. e é conduzida pelo cálculo dos partidos e das empresas. A política dos

pobres é baseada no cotidiano vivido por todos, pobres e não pobres, e é

alimentada pela simples necessidade de continuar existindo. Nos lugares, uma e

outra se encontram e confundem, daí a presença simultânea de comportamentos

contraditórios, alimentados pela ideologia do consumo. Este, ao serviço das

forças socioeconômicas e hegemônicas, também se entranha nas vida dos

pobres, suscitando neles expectativas e desejos que não podem contentar” (ibid. :

133)

Um mapeamento crítico-curatorial de regiões diversas pode ser uma ação que

busque atividades artísticas em locais que têm vozes inaudíveis para muitos. Uma busca por

trabalhos desenvolvidos por grupos, por exemplo, de teatro ou de dança, seria uma forma

de ver, através de uma linguagem artística, um discurso que deseja ser ouvido.

A possibilidade de constatar a reprodução de modelos já ditados, do “como se faz”,

nesses trabalhos, é, com certeza, alta. É alta porque ainda há restrições voltadas à

acessibilidade de informações que ampliam o repertório dessas comunidades, como a ida

freqüente a teatros, palestras ou outros meios que, além de ampliar o repertório, possam

promover uma construção de autonomia crítica dessas pessoas. Talvez esse fosse um outro

ponto de atuação de um curador crítico: o de contribuir com os fluxos que reciclassem as

ideias desses criadores.

Não podemos desmerecer propostas que anseiam por uma postura mais

inconformada da realidade. É óbvio que esse mapeamento será um processo lento, que

requer cuidados, “mas isso não impede que, no âmago da sociedade, já se estejam, aqui e

ali, levantando vulcões, mesmo que ainda pareçam silenciosos e dormentes” (ibid. : 134).

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CAPÍTULO 2: AÇÕES CRÍTICO-CURATORIAIS TERRITORIAIS

Considerando que uma das atividades pertinentes a curadores e críticos é a de

pesquisar as produções artísticas que acontecem, sugerimos, neste capítulo, uma reflexão

voltada a uma das ações que estes podem desempenhar: a de mapear. Tomaremos este

conceito baseando-nos, primeiramente, em um entendimento geográfico de mapeamento e

de espaço, proposto por Milton Santos (1996).

Se partirmos da premissa de que a geografia humana, ao estudar o espaço, também

estuda uma série de desdobramentos sociais, culturais e políticos, chegaremos em um

campo de discussões que talvez contribua com as ações de um curador crítico quando este

desempenha um mapeamento. Se admitirmos que “a geografia não deve ser considerada

como uma ciência do espaço, mas como uma ciência da ação”, que “a ação subjetiva deve

ser destacada numa pesquisa geográfica” e que “a dimensão espacial deve ser considerada,

mas ela não é a causa dos eventos, nem da ação” (Werlen apud SANTOS, 1996: 68-69),

poderemos olhar e testar, com uma certa sutileza, a ação do mapeamento.

Há, sem dúvida, várias explicações para a palavra evento. Porém aquela que

utilizamos para retratar uma possibilidade do mapeamento crítico-curatorial diz respeito ao

evento que está relacionado a um lugar e a um tempo. Milton Santos, a partir daquilo que o

físico Arthur Stanley Eddington (1882-1944) definiu, considera o evento como um ponto

no espaço-tempo, um instante em um lugar (p. 115). Ele chama a atenção de que “os

eventos dissolvem as coisas, eles dissolvem as identidades, propondo-nos outras,

mostrando que não são fixas e por isso, segundo Deleuze, submetendo-nos ao ‘teste do

saber’” (SANTOS, 1996: 115). Ou seja, o espaço não está separado das ações que nele

acontecem. Um mapeamento de um espaço, deste modo, implica em detectar processos

complexos que nele acontecem, sendo que o próprio espaço também pode ser um agente.

O aumento das redes de comunicação nos últimos anos contribuiu para que

passássemos a achar que estamos conectados com tudo e com todos no mundo. Todavia,

deve-se tomar cuidado em considerar que tudo faz parte da rede. Milton Santos alerta para

que tenhamos cautela ao utilizar esta palavra, devido à popularidade que ela tomou nos

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últimos anos. Assim também acontece com a palavra geografia (ibid. : 208), que também

pode sofrer imprecisões quando é usada para definir situações. Como uma das ações da

geografia volta-se à descrição dos espaços, é considerável que também se comece a buscar

as relações que acontecem entre diferentes locais. Deste modo, podemos visualizar a

descrição física e seus desdobramentos em um processo que forma uma rede. Contudo, esta

rede não é apenas de natureza física, mas também é social, cultural e política, uma vez que

há pessoas e valores que a freqüentam. “Sem isso, e a despeito da materialidade com que se

impõe aos nossos sentidos, a rede é, na verdade, uma mera abstração” (ibid. : 209). O

mapeamento crítico-curatorial, desta forma, não tem a intenção de apenas fazer uma

listagem de novos lugares e novas produções artísticas.

Mediante as redes, da maneira como definem os autores discutidos nesta

monografia, “a aposta não é a ocupação de áreas, mas a preocupação de ativar pontos [...] e

linhas, ou de criar novos” (Durand, Lévy, Rettaillé apud SANTOS, 1996: 209).

Outra coisa que precisamos lembrar, segundo Santos, é que nem tudo que existe na

Terra é rede, como é o caso dos magmas (SANTOS, 1996: 213). E onde eles existem, eles

não são uniformes. Em um mesmo espaço há superposições de redes, que implicam na

existência de redes principais e redes afluentes. “Levando em conta seu aproveitamento

social, registram-se desigualdades no uso e é diverso o papel dos agentes no processo de

controle e de regulação de seu funcionamento” (ibid. : 214). Mesmo que haja conexões

entre todos os elementos de uma rede, como artistas que se conectam a curadores, críticos e

produtores, não podemos considerar que não haja relações de poder nesta trama; “a

existência das redes é inseparável da questão do poder” (ibid. : 215). Se considerarmos que,

tanto críticos, curadores como também os produtores têm uma importância significativa

quando o assunto é circulação, o mérito de suas ações aumenta, uma vez que “no processo

global da produção, a circulação prevalece sobre a produção propriamente dita” (ibid. :

214).

As ações de críticos curadores, a partir da ação de mapeamento, podem ser vistas

sob a lógica das redes. Elas podem ser, ao mesmo tempo, concentradoras e dispersoras. A

força centrípeta e/ou centrífuga (ibid. : 222) característica das redes, possibilita, com isso, a

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reconfiguração de recortes espaciais. Há, portanto, uma atuação direta em um território, de

ordem e de desordem, de integração e desintegração.

“O fato de que a rede é global e local, uma e múltipla, estável e dinâmica, faz

com que a sua realidade, vista num movimento de conjunto, revele a

superposição de vários sistemas lógicos, a mistura de várias racionalidades cujo

ajustamento, aliás, é presidido pelo mercado e pelo poder público, mas

sobretudo, pela própria estrutura socioespacial” (ibid. : 222)

O sentido de território, deste modo, ultrapassa o aspecto meramente físico. O

território é formado também por pessoas, com seus valores sociais e culturais. Admitindo

que tanto pessoas como territórios estão em constante mudança, devido às trocas de

informações entre ambos; a circulação de trabalhos artísticos pode ser pensada como

agenciadora destas pessoas e destes territórios.

“A informação, sobretudo ao serviço das forças econômicas hegemônicas e ao

serviço do Estado, é o grande regedor das ações que definem as novas realidades

espaciais. Um incessante processo de entropia desfaz e refaz contornos e

conteúdos dos subespaços, a partir das forças dominantes, impondo novos mapas

ao mesmo território” (ibid. : 226)

Voltando às redes, podemos ver que existem ações que são desempenhadas de, pelo

menos, dois modos distintos: um vertical e outro horizontal. A tendência habitual é que as

ações sejam feitas através da verticalidade, uma vez que isso propicia o fortalecimento dos

mais fortes. A união dos lugares é, na maioria das vezes, feita desse modo quando verbas

internacionais são colocadas à disposição das regiões mais pobres e favorecem que a rede

seja estabelecida em favor do grande capital (ibid. : 228). O que está em questão aqui é uma

relação que evidencia o global na sua relação com o local. A verticalização das ações em

um território contribui para que aquilo que é de caráter local (costumes e valores) acabe

prejudicado pela ação de uma ordem hierárquica.

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Porém, segundo Santos, os lugares também podem se fortalecer horizontalmente.

Isso pode acontecer quando as ações constituídas no local contribuem com a ampliação da

coesão da sociedade civil, que objetiva o interesse coletivo.

“Os mesmos interesses criam uma solidariedade ativa, manifestada em formas

de expressão comum, gerando, desse modo, uma ação política [...] Essa ação

política pode, em muitos casos, ser orientada, apenas, por um interesse particular

e específico, freqüentemente o da atividade hegemônica no lugar. Mas este é,

apenas, um primeiro momento. As atividades que, complementares ou não, têm

uma lógica diversa da atividade dominante, provocam, a partir do seu conflito de

preocupações, um debate que acaba por interessar ao conjunto da sociedade

local. E o resultado é a busca de um sistema de reivindicações mais abrangentes,

adaptando às contingências da existência comum, no espaço da horizontalidade”

(ibid. : 228)

Uma ação crítico-curatorial que se baseie em ampliar a circulação de informações

em que as forças centrípetas e centrífugas se combinam pode, através de trabalhos

artísticos, contribuir para que lugares sejam alterados. Há, como mencionamos antes, pelo

menos duas ações possíveis: a centrípeta e a centrífuga. Ou seja, vetores físicos que

espalham, ora concentrando (centrípeta), ora dispersando (centrífuga). O que vale ressaltar

nessa discussão são as possibilidades de trocas proporcionadas pela circulação de trabalhos

artísticos. E é nesse sentido que o mapeamento geográfico, que desemboca em outros tipos

de mapeamentos, é interessante para compreender o trabalho artístico como modificador:

de pessoas, de lugares, de valores, de trabalhos artísticos.

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2.1 (Des)territorializando ideias

Insistimos na questão abordada anteriormente, agora dando mais atenção a um certo

tipo de geografia, ou seja, a uma proposta de mapeamento em que trabalhos artísticos tidos

como invisíveis possam ganhar uma voz mais ativa. É claro que uma ação crítica-curatorial

que mapeie esse tipo de trabalho requer alguns cuidados. Não podemos considerar que a

ação do mapeamento seja exclusivamente aquela que dê visibilidade para trabalhos

invisíveis. Falar assim significa aproximar-se de um discurso que acentua a qualidade dos

trabalhos “visíveis” e desmerece os que são “invisíveis”. Também corre-se o risco de

cairmos em um discurso colonizador se considerarmos que dar visibilidade para um

trabalho significa dar visibilidade para alguns, uma vez que estes nunca são invisíveis. A

nomeação de visível e invisível é sempre relativa.

Então, podemos considerar os “invisíveis” como aqueles que não estão tendo uma

presença significativa no campo das artes à luz de determinada situação. E é nesse ponto

que podemos desenvolver uma questão: será que grande parte dos trabalhos artísticos

desenvolvidos por grupos e /ou artistas não têm um potencial crítico para com o local de

onde falam? Por este motivo, talvez seja possível dizer que a ação do curador crítico de

mapear não se resume a descobrir – pois isso também seria um discurso completamente

colonizador –, mas sim de propiciar a potencialização dos discursos e das ações daqueles

artistas.

As iniciativas que ainda têm uma “voz baixa” no cenário da produção

contemporânea são prejudicadas por outros pontos da rede, como a falta de políticas

culturais claras e efetivas por parte dos poderes públicos e/ou pela falta de divulgação dos

veículos de comunicação (MARTINS, 2006: 12). Contudo, essas práticas, muitas vezes,

apontam para outras possibilidades de produção e de circulação.

“Criando pólos culturais regionais descentralizados, estas ações vêm desenhando

uma nova geografia de idéias, entendendo a dança como uma área de

conhecimento que se estabelece como um processo comunicacional do corpo,

organizado como um pensamento que questiona as estruturas de poder, os

procedimentos artísticos e as fronteiras entre as linguagens. A diversidade dessas

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ações comunicativas demonstra novas possibilidades de ação, que independem

da imitação e manutenção de um eixo hegemônico de pensamentos, apontando

assim, para a possibilidade da continuação de uma nova rede de idéias que venha

a reconfigurar todo um eixo geográfico de dominância, colocando em cheque o

discurso colonialista que norteia boa parte das produções em dança” (ibid. : 12-

13)

Giancarlo Martins levanta uma discussão voltada especificamente à dança. Porém

podemos estendê-la, também, para o teatro, uma vez que o número de grupos amadores de

teatro vem aumentando nos últimos anos.

A possibilidade de se deparar com trabalhos, de dança ou de teatro, que tentam

seguir um certo modelo é recorrente. Não se trata apenas da tendência à homogeneização, a

modos de fazer e de se comportar previamente dados. Podemos estudar essa questão,

também, à luz do conceito de mímica desenvolvido por Homi Bhabha:

“Trata-se de uma estratégia que procura se apropriar e se apoderar do Outro, e é

visível tanto no colonizado quanto no colonizador. No caso do colonizador, sua

identidade é articulada com relação ao lugar do Outro e é marcada pelo sonho

paranóico e atemorizante de perder seu lugar para o Outro; tal processo leva à

construção de uma imagem ou máscara, e portanto leva a uma cisão interna na

identidade desse sujeito” (SOUSA, 2004: 121)

Assim, poderíamos considerar o lugar das produções “invisíveis” como colonizadas

pelas produções “visíveis”? Como dito anteriormente, precisamos tomar cuidado para não

cairmos em respostas deterministas. Não podemos simplesmente dizer “sim”, uma vez que

não é sempre que isso pode acontecer. Presencia-se o uso da mímica como forma de se

aproximar daquelas produções que são mais midiatizadas ou consideradas como

referenciais. Mas seguir esse caminho é arriscar-se, já que tentar ser o outro implica em

uma ação artística vazia (MARTINS, 2006: 18). Juntamente com a impotência da criação

de trabalhos artísticos críticos, as intervenções efetivas no ambiente onde estes trabalhos

são desenvolvidos também são fracas.

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Uma atuação em que os discursos fossem desenvolvidos junto com os trabalhos

artísticos de forma crítica, ou seja, de forma desestabilizadora, ampliaria as mudanças, tanto

do ambiente e das pessoas, quanto de trabalhos vindouros. A forma crítica pode ser

considerada como desestabilizadora porque, ao se apresentar como tal, ela dá a

possibilidade para quem tem contato com ela, de rever alguns paradigmas. Porém, para que

isso aconteça, faz-se necessário um contato freqüente com essas “formas críticas” para que

elas mesmas não se tornem novos paradigmas. Assistir apenas uma vez um trabalho de

dança ou de teatro que questione, no seu modo de fazer, alguns valores, não possibilita que

a pessoa reveja os seus próprios. Uma alteração nas taxas de informação seria acionada

“criando um campo de possibilidades para que os envolvidos neste processo possam

desenvolver competências para intervir de maneira crítica em seu espaço social, a partir de

suas experiências corpóreas” (ibid. : 21). A importância dada àqueles que não estão tendo a

oportunidade de “falar alto” contribuiria com:

“Ações coletivas que atuam descentralizando e democratizando a informação,

expandindo os cenários culturais regionais com responsabilidade e

discernimento, intervindo na realidade de modo a produzir operadores capazes

de proporcionar a continuidade e a permanência de suas propostas. Para que

assim, possam criar instabilidades no sistema, provocando reconfiguração” (ibid.

: 22)

Mais uma vez é preciso notar que não bastam ações crítico-curatoriais para que

surjam outros agentes contestadores daqueles que já existem no cenário da produção

contemporânea das artes do corpo. O papel de um governo com políticas culturais que atue

de maneira eficaz contribuiria para que várias formas de acessibilidade fossem construídas

(informação, debates políticos, educação, etc.) e, com isso, possibilidades de mudança

aparecessem.

Voltando à discussão referente aos trabalhos coletivos, vemos que há uma série de

conexões feitas entre aqueles que criam e o ambiente em que a criação é desenvolvida. Tais

experiências podem ser vistas como possibilidades que criam “coletivos de enunciação que

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repõe em questão a distribuição dos papéis, dos territórios e das linguagens desses sujeitos

políticos que recolocam em causa a partilha já dada do sensível” (RANCIÈRE, 2005: 60).

Retomemos o que Milton Santos pensa sobre território, para que aprofundemos a

discussão sobre a relação entre produção/intervenção artística em um local:

“O território termina por ser a grande mediação entre o Mundo e a sociedade

nacional e local, já que, em sua funcionalização, o ‘Mundo’ necessita da

mediação dos lugares, segundo as virtualidades destes para usos específicos.

Num dado momento, o ‘Mundo’ escolhe alguns lugares e rejeita outros e, nesse

movimento, modifica o conjunto dos lugares, o espaço como um todo [...] É o

lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua realização

mais eficaz. Para se tornar espaço, o Mundo depende das virtualidades do Lugar.

Nesse sentido pode-se dizer que, localmente, o espaço territorial age como

norma” (SANTOS, 1996: 271)

Esta monografia sugere que um evento pode sim proporcionar uma partilha do

sensível. Quando artistas com diferentes propostas mostram seus trabalhos para o público e

uns para os outros, conforme o modo como o evento é realizado, pode haver uma troca de

informações que contribui para desestabilizações de pensamentos e ações.

“Os eventos não ocorrem de maneira descontextualizada de seu ambiente, não é

uma abstração a ser tratada independentemente do seu lugar de inserção, fazem,

antes sim, parte desta rede e se entrelaçam com os demais eventos, numa

somatória de processos e estados a se reconfigurar constantemente” (MARTINS,

2006: 57)

A comunidade, neste sentido, não é apenas aquela que cria produções culturais. As

práticas artísticas podem ir além, a fim de constituir atores sociais que possam intervir em

seu ambiente contextual (MARTINS, 2006: 30). Ou seja, artes do corpo, como a dança, o

teatro ou a performance, podem ser vistas como uma ação comunicativa que não entende

essas linguagens apenas como um espaço artístico e não “se restringe a representar e

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comentar a sociedade, mas que atua na sua produção, criando novas formas de

subjetividade política” (Lima apud MARTINS, 2006: 30). O entendimento de arte, assim, é

deslocado e colado, também, a uma ação social. Não atrelado a uma contrapartida, como se

a arte fosse apenas um recurso que auxiliasse no desenvolvimento social2. Mas a arte, em si

mesma, já é uma ação transformadora. Uma ativação nos circuitos de informação, aquilo

com que um curador crítico pode contribuir, aumenta a possibilidade das criações se

aproximarem das questões locais e busquem critérios estéticos que não advenham dos

centros da hegemonia cultural e artística. O que tal ação possibilitaria não isenta um

diálogo com produções do mainstream; pelo contrário, dessa forma, os trabalhos que estão

fora, apenas manifestariam “o desejo de reajustar a estratégia recebida da busca coletiva de

interesses, procurando ou criando novos interesses e novos atores no jogo do poder”

(Bauman apud MARTINS, 2006: 35). A arte precisa ser entendida como um processo

complexo em que a evolução está em jogo (Vieira apud MARTINS, 2006: 36). Ela, a arte,

entendida dessa maneira, propicia estratégias de sobrevivência, uma vez que traz outras

possibilidades de realidade e adaptações para com ela. “Carece entender a arte como um

bem simbólico que possibilita a expansão das interfaces do homem com seu ambiente,

contribuindo para o refinamento de sua sensibilidade e capacidade de leitura da realidade

com altos ganhos de complexidade” (MARTINS, 2006: 49). A criação artística, com isso,

pode e deve ser uma forma que o artista encontra para viver e apresentar suas questões.

Aqueles que têm o contato com o trabalho deste artista têm contato, também, com

informações que trazem em si outras possibilidades de (con)vivência. A experiência

artística pode ser uma possibilidade de “transformação do pensamento em experiência

sensível da comunidade” (RANCIÈRE, 2005: 67).

Ações crítico-curatoriais nas artes do corpo que se preocupam com contextos que

vão além dos circuitos onde a informação circula, contribuem para que haja uma

reformulação nos modos de fazer a dança ou o teatro, de modo que não apenas os que estão

2 Por exemplo: até a terceira edição, o edital do fomento à dança era dividido em modalidades (as companhias podiam se inscrever classificando se seu trabalho era de manutenção, circulação ou criação de um novo espetáculo). Para cada uma dessas modalidades havia uma série de contrapartidas que tinham de ser cumpridas (ex.: mínimo de 60 horas de oficinas). A partir da quarta edição, essa obrigatoriedade acabou, sendo a "Contrapartida" um item a mais a ser observado pela comissão na hora da seleção dos projetos (tão relevante quanto histórico do grupo, qualidade artística da proposta, compatibilidade e qualidade em relação a prazos, recursos e pessoas envolvidas no plano de trabalho, etc).

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“invisíveis” entrem em contato com outras informações, como também o “visíveis” possam

ver os “invisíveis” – e assim toda a terminologia e a estrutura da (in)visibilidade se

reconfiguraria. As criações em locais omissos dos circuitos tidos como principais, desta

forma, trariam “uma profunda relação com o ambiente local, sem, no entanto, encerrar-se

nas fronteiras territoriais” (MARTINS, 2006: 44).

As produções de dança e de teatro acontecem, também, fora do circuito tradicional.

Elas se dão, também, em outros lugares. Por este motivo, é importante que pontes de

diálogos sejam feitas entre aquilo que é considerado profissional e aquilo que é visto como

amador. Sobre os festivais de dança, Martins observa que:

“Experiências no campo da dança profissional deveriam nortear o que se faz no

campo dos festivais amadores, que não deveriam constituir-se como um universo

paralelo, pelo fato de serem dirigidos a artistas em fase de formação mas, ao

contrário, alimentar os trânsitos de informação com os contextos de onde

emergem, tendo como princípio ampliar e difundir as discussões desencadeadas

nos eventos profissionais, ampliando seu raio de apreensão, criando novos

públicos ao mesmo tempo em que possam servir como plataforma para novos

artistas e, sobretudo para discussões no que tange as esferas de formação,

educativas em dança” (ibid. : 57-58)

Ao questionar as formas de realização e interação entre tipos diferentes de festivais,

o autor indaga a possibilidade de propor novas configurações para esse sistema. Os festivais

de dança, e também os de teatro, são sistemas que promovem o confronto de idéias, que, ao

congregar produções de lugares dispersos “atualiza referências, mobiliza reflexão crítica,

desafia hábitos de pensamento. Mas acima de tudo, cria-se uma demanda – apontam novas

perspectivas de investigação” (Brito apud MARTINS, 2006: 58). As informações em

festivais ou mostras, de teatro e de dança, contaminam e reorganizam o ambiente; os corpos

que convivem nesse ambiente, por sua vez, também se modificam. Esses novos corpos

passam a transformar o ambiente, e assim sucessivamente. Assim, podemos considerar que

depois de um festival não apenas o local em que ele aconteceu está diferente, mas também

aqueles que o freqüentam. Além, é claro, das produções artísticas que serão produzidas

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posteriormente, que estarão contaminadas por uma série de informações que possibilitarão

rever os “modos de fazer”:

“Um processo de coevolução, de ações implicadas em que o evento modifica o

ambiente, que modifica os corpos nele inseridos, que modifica as ações deste

corpo. Nessa rede de acontecimentos, as idéias e pensamentos transmitidos pelo

corpo que dança contaminam público e criadores, fazendo dos mesmos

poderosos agentes de propagação desta informação, que lentamente vão

infectando outros e outros corpos. Informações que apontam para a diversidade

de pensamentos e o diálogo entre afinidades e contrastes, numa atitude de

tolerância entre os diversos pensamentos da dança” (MARTINS, 2006: 65)

Podemos ver que um festival que não se resume apenas a uma mostra de

espetáculos permite que várias trocas sejam feitas. Tais trocas, deste modo, podem

caracterizar um evento de cunho crítico. Neste evento, a desestabilização permite a

“possibilidade de atualização de idéias como ao discutir a obra de arte” (OSÓRIO, 2005:

39)”. Ou seja, um festival ou mostra, dependendo do modo como são propostos, também

permitem que a reflexão aconteça em vários de seus níveis (espetáculos, organização,

divulgação, etc.). Por isso, é importante a manutenção e a criação de novos espaços que

apresentem “a artistas e espectadores mais do que produtos, questões e propostas que

suscitem a reflexão” (MARTINS, 2006: 68).

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2.2 Colocando a mão na massa e percebendo a multidão

Nesta parte do capítulo, entraremos em uma discussão que leva em consideração

dois pontos que consideramos fundamentais para pensar a curadoria crítica perante a

produção artística atual. O primeiro diz respeito às formas de reprodução de trabalhos

artísticos. O segundo, sobre o desmerecimento de alguns trabalhos, quando advindo de uma

categorização que, algumas vezes, costuma se fazer entre as produções artísticas (popular,

urbana, contemporânea, erudita, etc). Entendemos que falar sobre esses assuntos contribui

para que um curador crítico possa se posicionar perante alguns modos de produção vigentes

no cenário contemporâneo das artes do corpo, como a política de editais. Talvez isso ajude

a construir estratégias para o seu mapeamento.

Partindo da discussão que Jesús Martin-Barbero, teórico e pesquisador da

comunicação, faz com os pensamentos formulados por Theodor Adorno (1903-1969), Max

Horkheimer (1895-1973) e as reflexões de Walter Benjamin (1892-1940), temos um

embate no qual a reflexão critica latino-americana está diretamente envolvida (MARTIN-

BARBERO, 2009: 76). A aproximação que temos dos frankfurtianos, segundo Martin-

Barbero, está mais próxima daquilo que foi desenvolvido por Walter Benjamin. Contudo é

pertinente, ao falarmos de um mapeamento artístico de um curador crítico, que entendamos

as diferenças e os conflitos gerados por estas linhas de pensamento.

Começamos pela escola de Frankfurt, especificamente por Adorno e Horkheimer.

Segundo estes autores, o desenvolvimento tecnológico que possibilitou a reprodução de

obras de arte teve uma repercussão negativa: a possibilidade da afirmação de uma unidade.

Martin-Barbero diz que “a materialização da unidade se realiza no esquematismo,

assimilando toda a obra ao esquema e na atrofia da atividade do expectador” (ibid.78), ao

comentar Adorno e Horkheimer. O cinema, como exemplo, a partir deste entendimento,

não deixaria as pessoas pensarem devido à velocidade das trocas das imagens. No entanto,

se formos rever a colocação destes autores, perceberemos que a posição que ambos têm

perante a reprodução de obras de arte parece datada entre outros autores que elegemos para

discutir nesta monografia.

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Os pensadores da Escola de Frankfurt se posicionam, segundo Martin-Barbero, de

um modo aristocrático, quando negam a arte contaminada pelas massas 3 como uma

potencialidade de reflexão crítica. Segundo Martin-Barbero, a crítica de Adorno “cheira

demais a um aristocratismo cultural que se nega a aceitar a existência de uma pluralidade

de experiências estéticas, e uma pluralidade dos modos de fazer e usar socialmente a arte”

(ibid. :82). A postura de Adorno e Horkheimer é de que a arte necessita afastar-se da “arte

inferior”, para que assim ela continue “pura” e não caía em pastiche, o qual ao invés de

desafiar a massa, acaba por estimulá-la . É por estes motivos que Martin-Barbero não

concorda com “o declínio da arte cultural” e se aproxima, com isso, das ideias de Walter

Benjamin, sobretudo quando este discute a reprodutibilidade técnica4.

Walter Benjamin, embora seja considerado como um autor da Escola de Frankfurt,

não adere completamente às ideias de seus colegas. Teve um percurso bastante diferente. O

recorte que nos interessa sobre os estudos desenvolvidos por Benjamin direciona-se para o

seu interesse em dissolver o centro e procurar as margens. “Essa dissolução do centro como

método é o que explica seu interesse pelas margens, esses impulsos que trabalham as

margens seja em política ou em arte” (ibid. : 80). Diferente por pensar as relações da

transformação das condições de produção, Benjamin sustenta que pensar a experiência é o

modo pelo qual podemos entender o que se passa culturalmente com as massas, “pois, em

contraste com o que ocorre na cultura culta, cuja chave está na obra, para aquela outra a

chave se acha na percepção e no uso” (ibid. : 80). Benjamin propõe uma reflexão voltada à

alteração da percepção a partir do espaço-tempo que se transforma. Por este motivo, se

interessa por aquilo que acontece nas ruas, nas fábricas e em outros lugares considerados

“marginais”. Ou seja, mais do que pretender analisar aquilo que uma obra de arte pode

promover enquanto conexão, puramente deslumbrando-a, Walter Benjamin se detém mais 3 Adotamos, primeiramente, o termo “massa” colocado por Martin-Barbero. No entanto, conforme veremos adiante, passaremos a substituí-lo por “multidão”. O conceito de “multidão” que trabalhamos aqui parte de Antonio Negri (2010). Para ele, a multidão se difere da massa pois trata de um coletivo de singularidades, e não é homogêneo. “A potência da multidão, olhada a partir das singularidades que a compõem, pode mostrar a dinâmica do seu enriquecimento, consistência e liberdade” (NEGRI, 2010: 411). 4 Conceito que W. Benjamin traz em um de seus mais famosos textos: “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” (publicado originalmente em 1936, em Paris, quando W. Benjamin estava refugiado nesta cidade). Ao desenvolver uma discussão a respeito da aura de uma obra de arte, Walter Benjamin fala sobre o fim da unicidade e a distância que as obras de arte tinham antes das técnicas que permitiram suas reproduções. Obras de arte, como quadros, passaram a ser mais acessíveis e, com isso, perderam o tom longínquo que antes tinham. (ver BENJAMIN, 1996).

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nos parentescos das “‘obscuras relações’” (ibid. : 81) que podem haver neste espaço

intermediário.

Um dos textos mais conhecidos de Walter Benjamin é, sem dúvida, “A obra de arte

na época de sua reprodutibilidade técnica” (ver BENJAMIN, 1996). Todavia, Martin-

Barbero adverte que há alguns equívocos quanto a sua leitura. Um deles refere-se ao

apontamento sobre o fim da aura: acabar com a aura da obra de arte não significa proclamar

o fim da arte (ibid. : 85). Aquilo que o fim da aura promove não se resume apenas à arte

enquanto técnica ou estética, mas também ao modo como se produzem as transformações

na experiência. Dentro das complexas e enredadas transformações históricas, temos,

também, a mudança das experiências das coletividades e, com elas, sua percepção

sensorial. Busca-se, então, “manifestar as transformações sociais que acharam expressão

nessas mudanças de sensibilidade” (Benjamin apud MARTIN-BARBERO, 2009: 82).

“A nova sensibilidade das massas é a da aproximação, isso que para Adorno era

o signo nefasto de sua necessidade de devoração e rancor resulta para Benjamin

um signo, sim, mas não de uma consciência acrítica, e sim de uma longa

transformação social, da conquista do sentido para o idêntico no mundo”.

(MARTIN-BARBERO, 2009: 82)

Antes, as pessoas sentiam-se distantes das obras de arte. Hoje esta distância é

menor, graças à reprodução, seja da própria obra, seja da imagem dela. Contudo, o acesso a

outros tipos de obras, como as que são feitas na cena, tem um outro viés. Uma dança, por

exemplo, é completamente diferente quando vista ao vivo e quando vista em um vídeo (a

não ser, é claro, que essa seja a proposta, como ocorre com as vídeo-danças). Não

queremos desmerecer, com isso, as outras linguagens da arte que não necessariamente

precisam do tempo ao vivo para serem vistas. O que acontece com as artes do corpo é que

este tempo é indispensável e decisivo na leitura de um determinado trabalho. Ele faz parte

do vocabulário das linguagens do corpo. Neste sentido, a aproximação com as linguagens

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que têm o corpo como mídia5 é diferente da que acontece, por exemplo, com um filme, uma

vez que este pode ser reproduzido em várias cópias.

A morte da aura que Benjamin trata diz respeito à acessibilidade que os homens da

massa têm para com as obras de arte. Benjamin diz que não apenas as obras de arte

pareciam distantes do homem comum antes da “era da reprodutibilidade”, mas também, de

uma maneira geral, todas as coisas, pois um modo de relação social lhes parecia fazer

distantes (ibid. : 82). Novamente: em obras de arte cujo corpo é apresentado como um

corpomídia, as comparações precisam de um certo cuidado. As aproximações com

espetáculos de teatro e dança não mudaram apenas porque hoje temos cópias sendo

vendidas ou distribuídas.

No contexto das artes do corpo, um dos aspectos que podemos enfocar a respeito de

cópias não se refere às cópias estudadas por Benjamin, mas a formatos aos quais as

criações, muitas vezes, acabam se encaixando. Editais destinados às criações artísticas,

devido a sua própria estrutura, tendem a resultar em trabalhos que nem sempre possuem

uma pesquisa consistente. É claro que não podemos generalizar e dizer que tudo que é

produzido com subsídios de editais é inconsistente do ponto de vista da pesquisa. Há

artistas que desenvolvem sua pesquisa já há muito tempo e eventualmente concorrem e

ganham um edita, mas as suas pesquisas não são dependentes deste dispositivo. Outra

característica presente em alguns editais é a generalização de seus públicos alvos (no caso

da Lei de Fomento à Dança de São Paulo, tanto os artistas com pouco tempo quanto os

artistas com uma pesquisa de maior tempo concorrem no mesmo edital) Neste sentido,

Marilia Gabriela Gonçalves (2008), sobre a Lei de Fomento à Dança da cidade de São

Paulo, diz:

“A Lei de Fomento, porém, assim como os editais e prêmios, ainda precisa de

muita reflexão sobre sua configuração e objetivos, dada à abrangência da dança.

Temos de ter uma idéia das especificidades da dança para podermos construir

estruturas coerentes na lei, ou seja, para não colocar todo os segmentos no

5 O corpo como mídia é o entendimento que a Teoria Corpomídia tem da relação que há entre corpo e ambiente. Segundo ela, as informações são trocadas entre ambos, de modo que tanto corpo quanto ambiente são contaminados uns pelos outros (ver KATZ & GREINER, 2008) (ver Capítulo 3).

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mesmo fomento. É preciso pensar em nichos especiais para cada área,

respeitando as particularidades de cada pesquisa artística” (op. cit. : 2008: 42)

Deste modo, chegamos a um ponto em que presenciamos uma grande quantidade de

“cópias” sendo feitas no cenário da arte contemporânea. Por um lado, podemos ver,

segundo Martin-Barbero, que a reprodução a partir das novas técnicas contribuiu para que

uma nova percepção surgisse com as massas. “A operação de aproximação faz entrar em

declínio o velho modo de recepção, que correspondia ao valor ‘cultural’ da obra, e a

passagem para outro que faz primar seu valor expositivo.” (MARTIN-BARBERO, 2009 :

84). Martin-Barbero, com isso, fala sobre uma forma de recepção coletiva, na qual o sujeito

é a massa. Todavia, vale ressaltar que o autor faz menção a uma massa de um tipo de

linguagem artística que está inserida nas de caráter reprodutível, como o cinema. Ele diz

que, neste tipo de arte, a atividade crítica e o prazer artístico não se opõem, mas se

complementam. “Benjamin vê na técnica e nas massas um modo de emancipação da arte.”

(ibid. : 84). Neste ponto, podemos substituir, como dissemos anteriormente (nota nº 3), o

termo “massa” por “multidão”, já que o que passaremos a discutir tem uma proximidade

com este conceito desenvolvido por Antonio Negri (2010).

Por outro lado, presenciamos um momento em que, no campo das artes do corpo,

especificamente no da dança na cidade de São Paulo, os outros tipos de reprodução – as que

são proporcionadas pelos editais – não podem ser comparadas com o cinema ou a

fotografia, os quais Martin-Barbero, apoiado em Walter Benjamin, aponta como pontos

positivos na descentralização das produções e nos modos de percepção. Os formatos que os

editais propiciam afetam diretamente a potencialidade das criações artísticas.

Assim, temos um impasse: ao mesmo tempo em que nos deparamos com as

barreiras das exigências de editais, precisamos considerar, também, que há aqueles que são

ainda invisíveis à produção artística das artes do corpo. Aquilo que está sendo desenvolvido

em artes do corpo, fora do “centro”, também tem seu direito de manifestar-se, de tornar-se

visível. Evidentemente que os editais não são exclusivos apenas a uma classe de artistas.

Todos que quiserem, podem concorrer a um edital. No entanto, esta democracia mostra-se

frágil em muitas situações em que prevalece a lógica da “exclusão pela inclusão”.

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“A distribuição de dinheiro via editais que tenta se disfarçar em programa de

política pública se assenta no princípio da exclusão pela inclusão. Segundo o

filósogo italiano Giorgio Agamben, o sistema funciona assim: é necessário

incluir uns para que a maioria permaneça excluída, em um rodízio que anestesia

os excluídos com a esperança de que serão os próximos a se salvar. O cultivo

dessa esperança imobiliza a todos em uma dependência perversa, que se

transforma em norma de sobrevivência”6

Contudo, não será apenas via contemplação de editais que estes trabalhos se

tornarão circuláveis, e muito menos terão chances de alcançarem um grau de qualidade em

suas pesquisas. Os editais, com isso, podem ser considerados mediadores: dos modos de

produção de alguns trabalhos artísticos. Outra questão que intuímos neste trabalho é que

muitos artistas, provavelmente, não fazem questão de recorrer à editais. Ou seja, há a

possibilidade de que estes artistas desenvolvam seus trabalhos por outras vias de incentivo,

ou mesmo sem ele.

Tomamos, aqui, uma função fundamental que um curador crítico também pode

desempenhar: a de um mapeador-acionador. Aquilo que é ainda “invisível” à produção das

artes do corpo deve ser visto como uma espécie de fonte para o trabalho de um curador

crítico. Se “é com multidão que a massa exerce seu direito à cidade” (ibid. : 87), aquilo que

é desenvolvido fora do que é considerado centro necessita ser visto.

O trabalho crítico-curatorial, deste modo, requer uma sensibilidade para mapear, ir

atrás de trabalhos que estão “do outro lado da linha” (c.f. SANTOS, 2007a) e neles detectar

as potencialidades de discussões e ações críticas. Outra possibilidade que o curador crítico

pode ter no papel de mediador é de ressignificar as noções de centro e periferia. Ao

contribuir com a visibilidade daqueles que não estão no circuito, contribuiria, também, com

os fluxos. Isso seria apenas uma contribuição; porém, para que o fluxo do qual falamos

aconteça, uma série de outros fatores deveria ser acionada. Dentre eles, as políticas públicas

que fazem parte da rede na qual a produção artística está inserida.

6 Helena Katz, em “Falta à dança o reconhecimento como uma atividade produtiva”, Caderno 2 D3, O Estado de São Paulo, 2 de janeiro de 2009

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Haveria, assim, uma espécie de contraposição do mediador-curador para com o

mediador-edital. Enquanto aquele vai atrás dos trabalhos de artistas que estão na multidão,

a ponto de ver o que está sendo desenvolvido e dar-lhes voz ativa dentro de um cenário que

os colocará em circulação, nos editais o caminho é contrário: são os artistas que vão até

eles. Ao aceitarem enquadrar-se em um formato, que é propiciado, por exemplo, na Lei de

Fomento à Dança da cidade de São Paulo, o desenvolvimento de seus trabalhos estará,

direta ou indiretamente, comprometido. A restrição que estes artistas têm em criar uma voz

crítica é bem maior do que quando lhes são dadas liberdades maiores para criar e dar

continuidade as suas pesquisas; ou mesmo quando estes formatos são revistos, com a

finalidade de abrir as suas próprias possibilidades de atuação.

Voltando à função do curador crítico como mapeador-acionador, atribuímos tal

atividade como uma de suas mais importantes. Se na multidão emergem muitas

potencialidades, sendo muitas delas as artísticas relacionadas às artes do corpo, podemos

dizer que um curador crítico é aquele quem vai para o outro “lado da linha” (c.f. SOUSA

SANTOS, 2007a). Este outro “lado da linha”, neste sentido, pode ser o lugar daquilo que é

tido como invisível. A combinação das transformações perceptivas apontadas por

Benjamin, através das mudanças de experiências, com as da busca por um pensamento pós-

abissal, de Boaventura de Sousa Santos, permite que encontremos em outros lugares aquilo

que não nos é mostrado no cenário principal da produção das artes do corpo. “E então a

experiência social pode ter duas faces – um obscurecimento e um empobrecimento

profundo – mas, ao mesmo tempo, sem perder sua capacidade de crítica e de criatividade”

(MARTIN-BARBERO, 2009: 87). O curador crítico pode ser aquele que, além de

organizar exposições, mostras ou eventos, faz também da pesquisa, da investigação e do

mapeamento seus parceiros de trabalho. Deste modo, ao mapear as críticas dos

desesperados (ibid. : 87), o curador torna-se, também, um crítico, uma vez que “não nos foi

dada a esperança, senão pelos desesperados” (BENJAMIN apud MARTIN-BARBERO,

2009: 87).

Uma das possibilidades de o curador crítico fazer seu trabalho em campo, buscando

e mapeando outros modos do fazer artístico implica, justamente, em abrir caminhos para

que outras pessoas se insiram na rede que é a da arte contemporânea, segundo Anne

Cauquelin (2005). A invisibilidade de muitas pessoas tem uma série de fatores que a

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sustenta, sendo uma delas a falta de políticas públicas que dêem conta de abranger fazeres

específicos de outras manifestações culturais que, não necessariamente, se enquadram nos

editais propostos pelas leis. Além de propiciar um aumento de pessoas que circulem na rede

– claro que para isso não basta um curador nem um crítico, mas um sistema complexo que

envolve uma série de outros profissionais7 –, o curador crítico, também, é um parceiro na

hora de dar voz a artistas emergentes.

Como dito anteriormente, baseando-nos no conceito de Antonio Negri, é na

multidão que estão as potencialidades de transformações. Neste sentido, não contamos

apenas as transformações de organização social e política, mas também as configurações

estéticas. Assim, é necessário que fiquemos atentos às diversidades que constituem as

manifestações artísticas, zelando por não cair apenas em núcleos específicos. O que

queremos levantar não é que tudo o que não está na rede da arte contemporânea deva nela

se adentrar; nem todo mundo que faz arte deseja isso. É necessário, sim, respeitar as

diferenças em seus mais variados graus. O que acontece é que precisamos tomar um certo

cuidado de não nos fechar a poucos discursos feitos pelos artistas que fazem parte do

mainstream da arte. Sem pretensões de deslegitimá-los, podemos praticar outras ações.

Neste ponto, praticamos o entendimento de Martin-Barbero, de que “o eixo do debate deve

se deslocar dos meios para as mediações, isto é, para as articulações entre práticas de

comunicação e movimentos sociais, para as diferentes temporalidades e para a pluralidade

de matrizes culturais” (MARTIN-BARBERO, 2009: 270). As mediações devem ocorrer de

modo que abarquem não apenas o “outro lado da linha” (c.f. SOUSA SANTOS, 2007a),

mas, também, aquilo que acontece entre: as hegemonias e a multidão, os dominantes e os

dominados, os que são os mainstream e o que são emergentes.

Ao propormos uma análise do “entre”, e não a de um ou de outro lado, estamos

tentando escapar de um discurso dualista que simplificaria as realidades dos artistas em

7 “Qualquer coisa que componha a realidade pode ser considerada um sistema: toda coisa é formada pela associação de coisas menores, que, quando bem relacionadas, permitem o surgimento de propriedades que não existiam antes da união. Esse novo todo formado é o que chamamos de sistema. As partes que o compõem são chamadas seus elementos” (VIEIRA, 2006: 22) Curadores e críticos, deste modo, podem ser considerados elementos do sistema arte e suas ações podem reconfigurá-lo.

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apenas os que estão e o que não estão dentro do circuito. Para tal, precisamos visualizar as

formações, tanto políticas e sociais, como as culturais, como híbridas

“O surgimento desse conhecimento é, na teoria e na prática, o surgimento de

uma sensibilidade política, não instrumental nem finalista, aberta tanto à

institucionalidade quanto à cotidianidade, à subjetivação dos atores sociais e à

multiplicidade de solidariedades que operam simultaneamente em nossa

sociedade. E de uma linguagem que procura dizer da imbricação na economia na

produção simbólica e da política na cultura sem se restringir a uma operação

dialética, uma vez que mistura saberes e sentires, seduções e resistências que a

dialética desconhece.” (ibid. : 271)

Reconhecendo o hibridismo8 como um processo que acontece na cultura, podemos

pensar sobre as diferentes formas que as ações artísticas estão tomando “não como forma

de esconder as contradições, mas sim para extraí-las dos esquemas, de modo a podermos

observá-las enquanto se fazem e se desfazem: brechas na situação e situações na brecha”

(ibid. : 271).

Com esta ideia de “brechas”, passamos a complexificar a discussão a respeito

daquilo que dualmente vivemos: as diferenças entre as classes que são colocadas sob a

proteção de barreiras. Deste modo, um curador crítico de arte tem uma função importante

quando vista sob a lógica das brechas: propiciar espaços que permitam a reflexão, a ponto

de que estes espaços gerados possam, também, gerar novas situações. O olhar crítico

possibilita justamente detectar algumas brechas que se encontram nos mais variados

campos das relações. No cenário das artes, especificamente as que fazem do corpo sua

8 O conceito de hibridismo usado aqui pode ser entendido a partir do que foi desenvolvido por Homi Bhabha, que diz: “Agora, se o conceito de hibridismo no ato da tradução cultural (tanto como representação quanto [como] reprodução nega o essencialismo de uma cultura anterior original ou originária, então vemos que todas as formas de cultura estão constantemente num processo de hibridismo. Porém, para mim, a importância do hibridismo não é poder traçar dois momentos originários a partir dos quais surge um terceiro; ao invés disso, o hibridismo para mim é o “terceiro espaço” que possibilita o surgimento de outras posições. Esse terceiro espaço desloca as histórias que o constituem e estabelece novas estruturas de autoridade, novas iniciativas políticas, que são mal compreendidas através da sabedoria normativa (received wisdom)” (Bhabha apud SOUSA, 2004: 126)

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mídia, é fundamental que leiamos, nos corpos, a potencialidade de discursos outros

daqueles que querem colocá-lo em um lugar estabilizado; nessas brechas que dão vazão a

outras formas de se colocar no mundo.

Nos últimos anos, o crescimento de recursos que permitiram um alcance maior da

informação, como a televisão, contribuiu para que processos que almejam a

homogeneização da cultura, de algum modo, fossem aumentados. A quantidade de

informações que é veiculada na mídia de massa, atrelada ao acesso cada vez maior das

pessoas a estes recursos, propiciou que uma espécie de língua comum fosse disseminada

entre as classes sociais. Ou seja, o fortalecimento da publicidade, juntamente com o

aumento da circulação das informações, acabou por contribuir com o achatamento da

diversidade cultural.

Os pensadores Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2010) falam de uma “cultura-

mundo”. A trama dos processos que acontecem nas culturas atualmente são bem mais

complexas do que a mera homogeneização. Segundo estes autores, ao mesmo tempo em

que há uma homogeneização de vários setores, como o alimentar, há uma acentuação das

especificidades locais (um desses casos pode ser visto com a rede de fast-food Mc

Donald’s, que faz alguns de seus lanches destinados especialmente para determinados

lugares). Há paradoxos e ambivalências que acontecem na cultura e não podemos dizer que

há apenas um eixo que a perpassa. A globalização não cria apenas homogeneidade; ela cria

a heterogeneidade, diversidade e individualização. E é o individualismo transformado em

hiperindividualismo que permite que não haja a “verdade absoluta”, mas “a minha

verdade”. Isso contribui para que a complexidade seja diminuída e dificulte o diálogo com

o outro. O que podemos acentuar para a nossa discussão é a tendência a essa

individualização. “Dum ponto de vista mais geral, o capitalismo virou-se cada vez mais

para o que em grande parte lhe escapava até então, ou seja, para a cultura” (LIPOVESTKY

e SERROY, 2010: 136). Em suma, seja pela homogeneização ou pelas estratégias de

reverter a heterogeneidade da cultura em processos de dominação que precisamos ficar

alertas, tentando, com isso, analisar e entender por que os trabalhos artísticos têm ou não

potencial crítico.

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Um hábito que temos recorrentemente é o de categorizar as coisas a fim de separá-

las. Na arte, muitas vezes, praticamos estas ações de categorizar e separar. Em outros

termos, em outro contexto e em um outro momento, Charles Percy Snow (1905-1980),

físico e novelista inglês, ao falar sobre a separação que há entre a literatura e a ciência,

chama a atenção de que tal separação apenas empobrece uma relação que, se fosse

vinculada, contribuiria em uma série de coisas. “Essa polarização é pura perda para todos

nós. Para nós como pessoas, e para a nossa sociedade. É ao mesmo tempo perda prática,

perda intelectual e perda criativa, e repito que é errôneo imaginar que esses três aspectos

são claramente separáveis” (SNOW, 1995: 29).

Podemos “pegar emprestada” a discussão promovida por Snow para debater,

também, a separação entre as práticas artísticas tidas como populares daquelas que têm um

outro nome, como por exemplo, eruditas ou contemporâneas. Transpassar estas divisões

multiplicaria não apenas as novas entradas na rede da arte onde o regime estabelecido é o

da comunicação (c.f. CAUQUELIN, 2005: 76), mas também promoveria uma acentuação

das falas de diferentes e diversos locais de emissão, e por conseqüência, de diferentes

pontos de vista críticos sobre as realidades.

Uma característica que freqüentemente constatamos em relação ao urbano e o

popular é um desmerecimento do primeiro em relação ao segundo.

“Trata-se de um mito tão forte que falar em popular automaticamente evoca o

rural, o camponês. E de seus traços de identificação: o natural e o simples, o que

seria o irremediavelmente perdido ou superado pela cidade, entendida como o

lugar do artificial e do complexo. E se acrescentarmos a essa visão a concepção

fatalista com que hoje se encara a homogeneização promovida pela indústria

cultural, dizer urbano é falar o antônimo do popular” (MARTIN-BARBERO,

2009: 277)

Entender a cultura dita como popular dessa maneira, contribui para que caiamos em

discursos simplificadores das ações culturais que são desenvolvidas em locais que não são

tidos como centrais. Uma ação de mapeamento artístico nesses locais contribuiria para que

os clichês fossem desfeitos. Obviamente, não significa que tudo que é produzido fora do

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centro seja interessante sob o ponto de vista crítico. Conseqüente ao crescimento de

massificação proveniente das mídias de grande alcance, a postura crítica de muitas pessoas

acaba por ser encoberta. Todavia, esse não é um motivo que deve impedir a legitimação de

artistas que vivem nesses lugares. Muitas vezes, são em locais desconhecidos onde são

desenvolvidos trabalhos com uma fala autoral bastante significativa, uma vez que estes têm

a propriedade para dizer algo com uma certa consistência, a partir dos contextos de onde

estão falando.

O papel de articuladores em bairros é fundamental para dar voz aos moradores. Em

bairros, bibliotecas, associações, escolas e outros lugares onde a convivência coletiva é

estimulada, as articulações em prol de um interesse da comunidade são potencializadas.

Muitas vezes, são nos bairros onde nascem movimentos sociais.

“O que se acentua nesses movimentos é o projeto de uma democracia nova, em

que não se questiona a necessidade de partidos, mas sim o monopólio da política

por parte destes, com sua concepção de política dissociada da vida cotidiana do

povo e dedicada exclusivamente à luta pela tomada do Estado ou pela

permanência à sua frente” (ibid . : 284)

Nos bairros, algumas soluções encontradas pelos moradores, voltadas à convivência

coletiva, normalmente fogem daquilo que é “autêntico”. Precisamos considerar que,

embora a televisão seja uma fonte emissora de modelos que tendem a se tornar hábitos de

consumo, como as tendências da moda e comportamentos que certos programas exibem, as

mestiçagens provenientes das culturas locais impedem que os habitantes desses lugares

sejam vistos apenas como colonizados desses modelos.

No desenvolvimento cultural, segundo Martin-Barbero, está implícito um processo

de comunicação que não condiz com o modelo clássico de emissor/receptor de informação.

Deste modo, compreender aquilo que é desenvolvido no âmbito popular não desmerece a

importância de considerar uma trama mais complexa na qual estão as produções artísticas.

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“Abre-se assim ao debate um novo horizonte de problemas, no qual estão

redefinidos os sentidos tanto da cultura quanto da política, e do a problemática

da comunicação não participa apenas a título temático e quantitativo – os

enormes interesses econômicos que movem as empresas de comunicação – mas

também qualitativo: na redefinição da cultura, é fundamental a compreensão de

sua natureza comunicativa. Isto é, seu caráter de processo produtor de

significações e não de mera circulação de informações, no qual o receptor,

portanto, não é um simples decodificador daquilo que o emissor depositou na

mensagem, mas também um produtor” (ibid. : 299)

Voltando às ações de mapeamento de um curador crítico, podemos compreender

que a busca por trabalhos que estão ainda invisíveis, que não são do “centro”, requer um

cuidado minucioso para não se cair em uma generalização. Contudo, também há um

cuidado em não tender a achar que tudo o que é desenvolvido fora deste “centro” tem a

potencialidade de articular pensamentos críticos. Por este motivo, é indispensável a um

curador crítico um olhar analítico para com aquilo que ele vê em sua busca de novos

artistas e novos trabalhos. É claro que, quanto mais articulações houver, menos chance há

de cair em opiniões dadas por uma única pessoa. Isso acarretaria em uma espécie de

colonização, na qual a figura do curador, ou da pessoa que faz o levantamento de nomes,

acaba por impor critérios muitas vezes pessoais e subjetivos.

O mapemamento-acionador, desta maneira, pode ser uma ação de um curador

crítico que se preocupa em atuar nas beiradas da produção contemporânea. Estas beiradas

podem ser geográficas, mas também podem ser referentes a um modelo alternativo daquele

que é desenvolvido através de editais. A ação de mapeamento entendida desta forma é

estendida, também, para essa possibilidade: a de acionar, ou potencializar, as vozes que não

estão audíveis em um determinado contexto e que algumas vezes já dizem “não” para os

modos de produção que as despotencializariam.

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CAPÍTULO 3: O CURADOR CRÍTICO, UM PESQUISADOR DO CORPO

Como foi proposto na introdução, este trabalho tem como uma de suas intenções

não apenas propor uma reflexão sobre curadoria crítica, mas também buscar entender como

tais ações podem acontecer no território das artes do corpo9.

A princípio (no capítulo 1), vimos que, tanto a funções da crítica, quanto a da

curadoria tiveram – e talvez ainda tenham – uma presença mais forte no campo das artes

visuais. Os profissionais que atuam como críticos, no cenário da dança ou do teatro, por

exemplo, apareceram a mais tempo10. Entendemos que uma curadoria, ao propor uma

programação, faz um recorte conceitual na escolha dos trabalhos. Mesmo em festivais,

como os de dança, o tipo de programação feita habitualmente mostra-se mais próximo de

um entendimento de preencher o evento com trabalhos. A função do programador, neste

caso, nem sempre tem uma postura crítica perante aquilo que ele seleciona para fazer parte

da programação.

Neste capítulo, proporemos uma discussão voltada ao corpo e às artes do corpo,

dando continuidade com o conceito de mapeamento-acionamento desenvolvido

anteriormente.

3.1 Outros territórios: os das artes do corpo

Para podermos propor reflexões e ações para a curadoria crítica das artes do corpo,

faz-se necessário, antes de qualquer coisa, entender quais são os territórios das artes do

corpo. Como o foco desse trabalho não é necessariamente fazer um estudo mais profundo

sobre as artes do corpo, poderíamos simplesmente resumir que elas são as artes que iniciam 9 Entendemos as artes do corpo como um território epistemológico que cruza arte e comunicação. Neste território, as contaminações entre as linguagens, como a dança, a performance e o teatro, se fazem presentes. No território das artes do corpo, as pesquisas e a investigações partem do corpo, e não de modelos previamente dados. 10 Théophile Gautier (1811-1872), por exemplo, já desempenhava o papel de crítico de dança. Em “Écrtis sur la Danse” (Editora Actes Sud, Paris), ele escreve textos sobre alguns trabalhos de dança, como o de Marie Taglioni, a célebre bailarina de “La Sylphide”.

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as suas experiências no e a partir do corpo, e não por um modelo estético dado a priori. A

dança, o teatro e a performance, desta maneira, podem ser linguagens que partem deste

entendimento. Contudo, não basta “encontrar” linguagens artísticas em que o corpo está

presente, como também o circo, para classificarmos todas elas como artes do corpo.

Poderíamos estudar todas essas áreas (a dança, o teatro, a performance, o circo)

separadamente, já que todas elas já têm uma história e uma tradição. E, por esse motivo,

elas podem ser estudas e praticadas a partir de modelos dados.

“A singularidade e o território de investigação das Artes do Corpo vão além

disso, podendo ser melhor descritos valendo-se de três questões fundamentais: a

presença do corpo como mídia primária do fazer artístico; o entendimento da

prática corporal como fonte de formulações do pensamento; e o movimento

como matriz da comunicação e das artes” (GREINER, 2006: 35)

A proposição do corpo como um corpomídia vem sendo desenvolvida pelas

pesquisadoras Christine Greiner e Helena Katz desde 2001. O corpo, segundo a Teoria

Corpomídia, não é um veículo ou um recipiente de informações, onde elas meramente se

abrigam. Há uma complexificação das relações entre corpo e ambiente, de modo que ambos

trocam informações a partir de um processo co-evolutivo:

“O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda

informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o

resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas

abrigadas. É com essa noção como mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e

não com a ideia de mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia a qual

o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar

informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em

processo de contaminação” (KATZ e GREINER, 2008: 131)

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Ou seja, para um artista, e conseqüentemente para um curadorcrítico das artes do

corpo, que tratem o corpo como um corpomídia, as criações artísticas são formuladas

juntamente com as práticas corporais, já que, “ao pensar, deslocamos informações de

dentro para fora do corpo, de fora para dentro do corpo, e entre os nossos diversos sistemas

corporais e domínios do cérebro” (GREINER, 2006: 37). O pensamento e a ação não são

processos dissociados para um artista do corpo. Um curador crítico, dessa maneira, precisa

analisar trabalhos de artes do corpo a partir desse entendimento.

Os estudos das artes do corpo indicam que todas as linguagens são corporais, e que

a matriz dos acionamentos sempre é o movimento (ibid.: 37). O movimento, aqui, não é

apenas aquele que é visível a olho nu, como os grandes deslocamentos ou gestos mais

delicados, mas também os movimentos internos.

“Os movimentos do pensamento, antes mesmo de serem externalizados, já

desenham uma postura, uma presença, uma ação intencional em nossos corpos

[...] Assim, a singularidade e o território das Artes do Corpo são, mais do que

mapas geográficos, o que poderíamos chamar de mapas perceptivos e

cognitivos, os quais se destacam pela natureza eminentemente indagadora que

colocam em xeque nossas certezas, acionando nosso sistema límbico (o centro

da vida), que nos faz lembrar que estamos vivos.” (ibid. : 37)

Desse modo, podemos começar a estudar a ação curatorial crítica como uma ação

que, além de ter como um de seus pontos de trabalho o território geográfico, ou seja, a ação

do mapeamento, uma preocupação com os mapas perceptivos e cognitivos. Como a matriz

da comunicação é o movimento, é o movimento que um curador crítico das artes do corpo

precisa avaliar. E talvez seja a partir de ações curatoriais críticas que se possam gerar

movimentos geográficos que, por sua vez, contaminem as ações cognitivas e assim por

diante. Já que o assunto/objeto de ação/objeto de trabalho/objeto de transformação é o

corpo, é importante que discutamos um pouco a respeito de alguns estatutos do corpo hoje,

e quais seriam as possíveis ações das artes do corpo, dos artistas do corpo e dos curadores

críticos das artes do corpo nesse território.

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3.2 Algumas considerações sobre o estatuto do corpo hoje e seu impacto na crítica-curatorial

A noção do que seja um corpo está sempre relacionada com uma determinada

época. Os desenvolvimentos dos diversos saberes reformularam e continuam a reformular o

que é um corpo. Dentre esses saberes, a ciência talvez seja um dos que mais têm força hoje

quando o assunto é designar as formas de vida. Todavia, as diversas descobertas que

surgiram no campo científico foram atreladas a uma série de elementos relacionados

diretamente ao campo social, cultural e político.

Atualmente, uma discussão grande volta-se para debater a biopolítica. O filósofo

Giorgio Agamben é um nome presente na discussão que trata a vida como objeto do poder.

Para podermos falar um pouco a respeito do papel do corpo hoje, ao invés de recorrermos

diretamente à obra de Agamben, pretendemos articular pensamentos desenvolvidos em

releituras – já que estas ultrapassam os limites colocados por Agamben sobre o biopoder.

Passemos, então, a discutir, apoiados no texto de Helena Katz (2010) e Peter Pál Pelbart

(2007), o papel do corpo e pensar quais seriam as possibilidades outras de corpo que a arte

e os curadores críticos podem trazer.

O conceito de biopolítica usado por Michel Foucault em sua obra dizia respeito a

um poder advindo, principalmente, das instituições. Eram os hospitais, os manicômios e as

prisões que exerciam o poder. A disciplina produzida por essas e outras instituições, porém,

escorreu para a sociedade, passando a constituir modelos de administração (KATZ, 2010:

125).

“A ‘vida nua’ (‘zoe’)11 foi dominando o espaço político. Nada mais escapa da

regulação que atua na nossa subjetividade, no nosso inconsciente, na nossa

11 Agamben, a partir de seus estudos sobre o Homo Sacer, utiliza-se de dois conceitos para designar vida: bios e zoe. Bios seria a vida qualificada, adquirida. Zoe, a vida nua, supostamente “natural”. Porém, esses conceitos podem ser vistos separadamente por uma questão didática, já que natureza (zoe) e cultura (bios) coevulem. “A vida nua e animal não está despida daquilo que a cerca e de tudo o que a antecedeu. Todo corpo é sempre um corpo-mídia, isto é, um estado transitório das trocas que faz com os ambientes. Assim, a vida nua, essa força produtora das formas de vida que podem surgir, age nesse trânsito de trocas que promove mestiçagens entre natureza e cultura” (KATZ, 2010: 132)

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sexualidade, sonhos, desejos, amores, percepções. Trata-se de uma atuação

difusa, em rede, sem centro. Não mais vem de fora, como no tempo em que

Foucault escrevia sobre os corpos disciplinados pelas instituições, pois agora

somos nós – e não mais somente as instituições – os agentes dessa docialização”

(ibid. : 131)

Somos nós, então, que criamos modelos de vida, formas de convivência. O Estado,

a ciência, o capital e a mídia, por vias diretas ou indiretas, ditam normas que quase sempre

seguimos. É importante alertar, contudo, que não podemos nos isentar e colocar toda a

“culpa” no outro. Cada vez que seguimos, por exemplo, o “Tratado da Saúde Perfeita”

(ibid. : 132), ou seja, quando fazemos as dietas para ficar no peso “ideal”, ou tomamos

vitaminas feitas em laboratórios para não adoecer, contribuímos para que o poder sobre a

vida se fortaleça.

O poder passou a reger todas as esferas da existência (PELBART, 2007: 21). Tanto

os genes, devido às descobertas intermináveis da engenharia genética, como a afetividade

passaram a ser controlados. Além, é claro, da imaginação e da criatividade, que, pelo

menos antes, eram as válvulas de escape das formas de dominação. “O próprio poder se

tornou ‘pós-moderno’, ondulante, acentrado, reticular, molecular. Com isso, ele incide

sobre nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar” (ibid.

: 21).

No entanto, não podemos, em uma atitude esperançosa, nos redimir às formas de

vida ditadas pelo biopoder. Talvez seja com a potência de vida, com a biopotência (ibid. :

22) que tenhamos que rebatê-lo.

Pelbart acentua que, diferentemente dos modelos mais antigos de instituições ou de

poderes ditatoriais em que “fazia-se morrer e deixava-se viver”, o biopoder contemporâneo

é aquele que faz sobreviver (ibid. : 22). Criando sobreviventes e produzindo sobrevida, o

biopoder contemporâneo forma vidas vazias (aquilo que Agamben compara com os

mulçumanos em campos de concentração, que esperavam pela morte sem qualquer

esperança).

Na época em que vivemos, o corpo é o centro das atenções. Seja quando falamos de

saúde, estética ou ações humanitárias, sempre nos voltamos para o corpo. “Hoje, o eu é o

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corpo. A subjetividade foi reduzida ao corpo, a sua aparência, a sua imagem, a sua

performance, a sua saúde, a sua longevidade” (ibid. : 25).

É importante lembrar também que os modelos e as formas de vida estipulados pela

biopolítica, muitas vezes, são inalcançáveis para muitos. Isso contribui para que uma boa

parcela da população fique em uma”condição de inferioridade subumana” (ibid. : 26).

Formas de vida, desse jeito, são esmagadas pelas formas ditas “certas”. E, o pior, é que

ainda muita gente não contesta o por que de ter que ser dessa ou daquela maneira; o por que

de se seguir um modelo dado como ideal. Isso implica em um aumento da insatisfação e da

ânsia de querer ser o que não se pode. Talvez esse seja um dos motivos que cada vez mais

pessoas busquem a terapia.

Diante de toda essa situação, é necessário que se abram possibilidades que

contestem os modelos de vida ditados, inclusive no campo da arte – e quem deve abrir

essas possibilidades, além de ser o “outro”, deve ser, também, cada um de nós. Com isso,

utilizando-nos daquilo que Pelbart propõe, ou seja, “retomar o corpo naquilo que lhe é mais

próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas

forças do mundo” (ibid. : 29-30), podemos, quem sabe, reverter as condições de vida que

temos hoje.

Quem sabe, também, a arte não tenha um papel importante a desempenhar, “pois é

às custas do corpo empírico que um corpo virtual pode vir à tona” (ibid. : 31). Já que ela

remexe com o real, a fim de interrogá-lo e sugerir outras estruturações, talvez seja

importante que, tanto as estéticas artísticas como os fluxos de suas ações sejam pensados.

3.3 Colocar o corpo e o território em crise

A partir destas breves considerações do estatuto do corpo hoje, partimos para uma

análise de possíveis atuações da curadoria crítica perante essa situação. Já que estamos

falando de artes, a premissa é a de que ela tem como um de seus papéis fundamentais

promover outras possibilidades de ver aquilo que estamos acostumados e,

conseqüentemente, passar a agir de outra forma, saindo, desta maneira, dos hábitos

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fortemente aderidos. Como nosso foco são as artes do corpo, a questão que levantamos diz

respeito ao modo como elas, as artes do corpo, podem contribuir com a desestabilização de

modelos previamente dados, ou seja, de “receitas” de como fazer, como ser, como se

comportar. Assim, nossa intenção é de tentar enxergar a atuação dos curadores críticos das

artes do corpo como agentes que, mais do que fazer mediações institucionais, possam

potencializar os trabalhos dos artistas. Além disso, como proposto anteriormente, com a

ideia de mapeamento-acionador, pode-se potencializar também os fluxos dos trabalhos,

contaminando, com isso, territórios diversos e reconfigurando-os, tanto cognitiva, quanto

politicamente. Isso porque, o mapeamento-acionador, como mencionamos anteriormente,

propicia que se potencializem (e não apenas que se “descubra”) a ação comunicativa de

trabalhos que, muitas vezes, não estão com uma voz ativa no circuito das artes.

Para tanto é provável que seja importante submeter seu próprio corpo e o corpo dos

outros a uma crise. A submissão à crise que um artista do corpo pode fazer não é aquela

meramente de risco fisiológico; ela pode se dar através de outras vias, como, por exemplo,

a contestação das técnicas corporais que ele treinou durante sua vida. Já a submissão do

corpo dos outros, dos espectadores, pode acontecer de diferentes formas. O espectador não

precisa necessariamente participar junto com o artista em cena para se envolver; contudo,

ele sempre se envolve. E é nesse ponto, do envolvimento, que o corpo do espectador

também pode ser desestabilizado, entrar em crise.

Nesse sentido, podemos dizer que há o desenvolvimento de uma atuação crítica,

seja no artista, seja no espectador. Entendendo que fazer uma crítica não implica apenas

falar o que foi bom ou ruim, “mas relacionar aquilo que existe, empiricamente observável,

com algo que é uma possibilidade e não pode ser considerado como dado” (GREINER.

2010: 23).

Submeter o corpo a uma crise, de modo a desestabilizá-lo e fazer com que outras

possibilidades surjam, é a tarefa do artista do corpo (claro que um curador crítico não está

isento, muitas vezes, na educação dos artistas). Cabe ao curador crítico, também, a partir de

um trabalho intenso de pesquisa, mapear aquilo que está sendo produzido.

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“Daí um interesse na geopolítica do conhecimento que vai questionar quem

produz o conhecimento, em que contexto e para quem. É, portanto, insuficiente

‘aplicar’ teorias críticas, elaborar uma sistematização possível do conhecimento

e continuar fazendo o que se está fazendo. É preciso questionar o conhecimento,

quando e para que” (ibid. : 25)

Estamos em um momento bastante tênue da discussão, uma vez que chegamos a um

ponto em que tratamos as liminaridades, os territórios e os mapeamentos de uma forma que

absorve tanto as questões sobre a ação da curadoria crítica, quanto do corpo.

“A ação de territorializar tem sido definida por filósofos e etologistas como a

possibilidade de qualificar um ambiente, deslocando-o de um contexto para

outro (e, portanto, criando novos). Envolve uma ação concomitante de

desterritorialização, uma vez que há sempre um deslocamento. Mas não se trata

de uma relação exclusiva com o espaço (uma mudança de local) e sim de uma

reorganização sígnica que cria novas metáforas e mediações” (ibid. : 47)

Trataremos esse processo em conjunto, já que o curador crítico de artes do corpo

tem suas ações específicas, como a de mapear-acionar-potencializar; no entanto, ele

também pratica o ato de reconfigurar, proposto por artistas do corpo, só que de outra

maneira. Neste sentido, Greiner, sobre Boaventura de Sousa Santos, diz que:

“A seu ver, é preciso recuperar a capacidade de espanto. Todas as imagens que

se pode criar como imagens desestabilizadoras só serão eficientes se forem

amplamente partilhadas. A subjetividade desestabilizadora é uma subjetividade

poética, mas também uma construção social que é, por sua vez, um exercício de

liminaridade porque implica experimentar formas marginais de subjetividade”

(ibid. : 28)

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A atribuição, à arte, de se instigar subjetividades desestabilizadoras faz-se

necessária em uma sociedade em que dispositivos de subjetivação convivem com nosso

cotidiano o tempo todo. Podemos entender, por isso, que esses dispositivos são:

“Qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar,

determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as

opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os

manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as

medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente,

mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro,

a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria

linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e

milhares de anos um primata – provavelmente sem se dar conta das

conseqüências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar”

(AGAMBEN, 2009: 40-41)

Agamben diz que a fase extrema do desenvolvimento do capitalismo está

implicando em uma proliferação de dispositivos (ibid. : 42). Segundo ele, os dispositivos já

existem desde que os homo sapiens surgiram. No entanto, hoje, não há um só momento em

que não sejamos contaminados e controlados por dispositivos. A partir disso, Agamben se

coloca uma pergunta: “de que modo, então, podemos fazer frente a esta situação, qual a

estratégia que devemos seguir no nosso quotidiano corpo a corpo com os dispositivos?”

(ibid. : 42). A resposta, com certeza, não é unívoca.

Todavia, segundo Greiner, na fase atual do capitalismo, os dispositivos são menos

produtores de sujeitos e são mais acionadores de dessubjetivação. Dessa maneira, aquilo

que Foucault chamara de “corpos dóceis”, ou seja, corpos submissos, altamente

especializados 12, passam a ser corpos inertes. “Estes são os cidadãos que executam tudo

que mandam, deixando-se controlar em todas instâncias – dos gestos cotidianos a saúde,

divertimentos e alimentação” (GREINER, 2010: 43). Voltando à pergunta colocada por

Agamben, não basta “destruir” ou usar de modo correto os dispositivos. Naquilo que nos

12 Michel Foucault desenvolve melhor essa ideia no primeiro capítulo de “Vigiar e punir: história da violência das prisões” (Petrópolis: Editora Vozes)

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concerne, as artes, especificamente as do corpo, podemos prosseguir pensando em como

elas podem exercer uma função profanadora. E, com isso tudo, podemos pensar, também,

como as ações curatoriais críticas também podem ser exercidas da mesma maneira.

Desenvolvendo aquilo que Agamben chama de profanação, ou seja, de colocar ao

uso comum aquilo que fora separado, podemos entender melhor uma possível ação

profanadora de curadores críticos.

“Se, conforme sugerido, denominamos a fase extrema do capitalismo que

estamos vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua

separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces de uma

única impossibilidade de usar. O que não pode ser usado acaba, como tal,

entregue ao consumo ou à exibição espetacular. Mas isso significa que se tornou

impossível profanar (ou, pelo menos, exige procedimentos especiais). Se

profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do

sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema, está voltada para a criação de

algo absolutamente Improfanável” (AGAMBEN, 2007: 71)

Lipovetsky e Serroy argumentam que a “nas nossas sociedades, as obras funcionam

como objectos de animação das massas destinados a diversificar os lazeres e a ‘matar’ o

tempo” (LIPOVETSKY e SERROY, 2010: 132), ou seja, há uma quantidade significativa

de trabalhos artísticos que não são profanadores. O capitalismo se tornou um grande

dispositivo que passou a capturar tais comportamentos profanadores (AGAMBEN, 2007:

76). Cabe, desse modo, tanto a artistas quanto a curadores críticos buscarem a profanação –

pelo menos aqueles que tenham a intenção de desestabilizar os modelos ditados atualmente.

“No entanto, o que fazer quando os dispositivos de poder parecem mimetizar nossas

próprias ações profanadoras?” (SAFATLE, 2008: 176). Com certeza, a resposta para essa

pergunta não é tão fácil e rápida; porém, isso não impede que possamos pensar,

constantemente, em como respondê-la.

Vivemos em um período em que os processos de socialização geram padrões de

racionalidade, que, por sua vez tendem a guiar o comportamento social (ibid. : 116). Safatle

argumenta que socializar é um “fazer como”, que estimula a identificação para com

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modelos ideais (ibid. : 117). Tal identificação é levada também aos modos de desejar,

julgar e agir. No entanto, Safatle alerta que tal processo não se limita aos núcleos

elementares da interação social, como a família e as instituições sociais. Podemos estender

esse pensamento para as formas de produção artística e para os “fazeres” curatoriais

críticos. “O que vale para a crítica social vale também para a arte. Pois, da mesma maneira,

haveria uma tonalidade de relações que poderia, de direito, ser revelada em sua estrutura

através das obras de arte” (ibid. : 182).

Se admitirmos que a arte é um interstício social (BOURRIAUD, 2009a: 19), a

atividade artística se transforma conforme as época e os contextos sociais. Dessa maneira, é

indispensável que os trabalhos artísticos e suas curadorias críticas acompanhem tais

mudanças, a fim de que seus potenciais de questionamentos não sejam desativados. “As

obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram

constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer

que seja a escala escolhida pelo artista” (ibid. : 18). A arte relacional, à qual se refere

Nicolas Bourriaud, diz respeito a uma arte em que as interações humanas, juntamente com

o contexto social, são matrizes transformadoras, e não apenas a obra em si mesma. Ou seja,

é importante que a arte, em um período de extrema individualização, retome, de algum

modo, os laços humanos, “pois ela estreita o espaço das relações, ao contrário da televisão

ou da literatura, que remetem a seus respectivos espaços de consumo privado”(ibid. : 21). O

interstício que a arte pode propor, com isso, pode ser aquele em que as relações, mesmo

inseridas de alguma forma no sistema global, sugiram outras possibilidades de troca além

dos vigentes nesse sistema. As “zonas de comunicação” que nos são impostas (ibid. : 23)

podem ser discutidas e reconfiguradas por ações artísticas. Tal saída, talvez, possa ser

através da percepção.

A representação que fazemos do mundo sempre acontece de modo que a informação

externa seja internalizada. Porém, a cognição é sempre “situada” (GREINER, 2010: 51).

Desta maneira, as formas com que a internalização da informação acontece é sempre

específica, relativa a um espaço e um tempo. “Isso significa que a cognição não é a

representação de um mundo independente, mas um tipo de relação corporificada do mundo

e da mente” (ibid. : 51). O contato com um trabalho artístico pode propiciar novos modos

de internalizar a informação. Também, quando as informações de uma obra entram em

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contato com as que fazem parte do corpo naquele momento e o reconfiguram, despendendo

de quais são essas informações, as formas de estar/agir no mundo podem ser, com o tempo,

radicalmente modificadas.

“Radical, da origem radix, diz respeito à raiz. Mas não se trata de buscar a

recuperação ou a replicação de uma raiz ou origem e sim da identificação de

conexões latentes. Busca-se reconectar com uma prática antiga (às vezes

perdida) para se desconectar de um modo presente de ver/sentir [...] Há uma

coarticulação entre as formas artísticas e políticas” (ibid. : 63)

As formas artísticas e as políticas podem caminhar conjuntamente sem que seja

necessário, para tal, uma submissão das obras a um discurso revolucionário. Isso pode

acontecer a partir das mudanças das formas de percepção que se dão, também, com novas

possibilidades de experiência. Já em 1934, o filósofo norte-americano John Dewey (1859-

1952) propôs que a experiência estética e a intelectual não são dissociadas. Assim, “se o

artista não produzir uma nova visão em seu processo de fazer, agirá mecanicamente e

repetirá algum antigo modelo fixado como um padrão em sua mente” (DEWEY, 1974:

259). Experiência, percepção e ação entram em um campo de discussões que as aproxima

cada vez mais.

Tomaremos o sentido de percepção não como uma via em que as informações do

mundo chegam ao corpo, mas como uma ação, algo que o corpo faz (Noë apud

GREINER, 2010: 73). Ela é, com isso, uma simulação interna da ação e uma

antecipação de suas conseqüências (ibid. : 72). Após uma simulação que acontece

inicialmente, há uma espécie de adaptação a estimulações futuras. Contaminada pelos

estudos desenvolvidos tanto por Alain Berthoz como por Alva Noë, Greiner articula outras

maneiras de entendermos como se dá o processo de percepção e sugere que supramos a

dissociação entre percepção e ação. “O que percebemos é determinado pelo que fazemos,

pelo que sabemos como fazer ou estamos prontos para fazer. Essas ações são sutilmente

diferentes entre si, mas intimamente relacionadas” (GREINER, 2010: 73). Uma

experiência, qualquer que seja, significa se confrontar com possibilidades de mundo, já que

ela não necessariamente precisa se configurar como um julgamento para ser pensável. “O

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conteúdo da experiência e o conteúdo do pensamento são os mesmos” (ibid. : 76).

Intervenções artísticas, dessa maneira, podem contribuir com experiências que coloquem o

corpo em um estado ativo de produção de novas possibilidades, de si e dos territórios. .

“A arte, nesse viés, não seria um arranjo produtivo de qualidades, mas a aptidão

para organizar um território. Isso a torna uma ação local, mas com potência de

autonomia e comunicação em contextos mais amplos [...] Para tanto, a arte não

depende nem da ciência nem da filosofia. Ela é autônoma, mas guarda contato a

partir dos seus pontos de partida: o caos, o território e o corpo. É sempre o gesto

que dá poder à imagem. O que ele comunica, não só para o outro, mas para si

mesmo, é uma comunicabilidade e não um significado pronto. Toda escritura é

dispositivo de poder. A escritura do gesto não é exceção” (ibid. : 106)

Todavia, podemos pensar que os dispositivos criados pelas artes podem contribuir

para que outros dispositivos sejam reconfigurados. Greiner propõe que a suposta

imaterialidade de processos, que é admitida na arte por muitos, seja repensada: “Quando a

referência é o corpo, a ausência de um produto final não significa ausência de

materialidade” (ibid. : 107). Isso tudo, como aponta Greiner, pode parecer somente uma

mudança de vocabulário.

“Portanto, considerar as ações de pensar, criar e conhecer como fenômeno

imateriais é uma forma de deslocá-las do corpo e de seus contextos específicos,

revelando uma posição cartesiana camuflada que ajuda a reafirmar dispositivos

de poder ao invés de profaná-los” (ibid. : 107)

Porém, se passarmos a considerar que os pensamentos e os processos de criação têm

materialidade, teremos que reconsiderar uma série de coisas quando o assunto for uma obra

de arte. Nas artes do corpo, não é apenas o corpo do dançarino, do ator ou do performer que

muda; mas também o corpo daquele que tem uma experiência com o trabalho desenvolvido

por eles.

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Deste modo, o papel do curador crítico de artes do corpo pode ser bem diferente

quando este considera que a materialidade do corpo é alterada a partir daquilo que o

espectador vê/lê/experiencializa. E ainda mais: pode ser política quando, com suas

atividades, potencializarem que os corpos “alterados” sejam capazes de desestabilizar os

territórios.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Feitas algumas reflexões sobre aquilo que chamamos de curador crítico de artes do

corpo, passamos a fazer algumas considerações que, ao invés de chamarmos de finais,

talvez seja mais interessante colocarmos como iniciais.

Apontando algumas funções da curadoria crítica em artes do corpo, vimos que suas

ações, seja qual for o território da linguagem envolvida, têm um papel significativo quando

o assunto é contaminação. Isso porque, como são mediadores de trabalhos artísticos, a

relevância que esses profissionais têm de contaminar é alta. Seja a contaminação de

trabalhos com outros trabalhos, seja a contaminação entre trabalhos e público. Ela, a

contaminação, pode ser, por eles, acionada e/ou potencializada.

Como admitimos que as trocas de informações entre sistemas são sempre

reconfiguradas, podemos supor que as trocas entre trabalhos artísticos e público, sendo

ambos considerados como sistemas, também poderiam propiciar mudanças. Dependendo da

mediação que é feita, essas mudanças podem ter um cunho político bastante interessante.

Ao pensar algumas ações que os curadores críticos podem exercer em territórios,

consideramos territórios como combinações entre a geografia e as ideias. Por isso, um

curador crítico, pelo fato de atuar como um profissional que busca conhecer os trabalhos,

busca, também, uma atuação em territórios. O seu desempenho pode ser transformador para

o território, para as pessoas, para os artistas e seus trabalhos.

A atuação nestes territórios pode ser proveniente da combinação entre a

territorialidade geográfica (que implica, por sua vez, em territorialidades sociais, políticas,

culturais, econômicas) e em uma territorialidade onde acontecem fluxos de ideias. Uma

curadoria crítica, desta maneira, não pode sobrepor os seus valores sobre um território.

Quando a ação é a do mapeamento, por exemplo, é necessário que se “ouçam” os trabalhos,

sem tratá-los como meros objetos para se fazer a programação. O curador crítico, com isso,

trabalha junto com os artistas. Agora, quando a ação é a de conceber a curadoria, o curador

crítico pode possibilitar que o fluxo de informações de um determinado território contribua

com a reflexão, tanto dos artistas, como do público e dele mesmo. Com isso, a sua atuação

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nos territórios mostra-se em níveis diferentes, mas que, de algum modo, implica em

reterritorializações das ideias.

O olhar analítico e crítico para com trabalhos de arte é necessário hoje. Mais do que

afirmar juízos de valor, é necessário entender que “a forma crítica esgotou-se porque a

realidade internalizou as estratégias da crítica” (SAFATLE, 2008: 194). Como os trabalhos

de arte são uma fonte de possibilidades para que não estagnemos nas formas dadas, estes

também não podem se deixar mover pela inércia. Curadores críticos podem contribuir para

que isso não aconteça. E, como já mencionado, as transformações podem sempre ir além:

pessoas que modificam territórios, que modificam pessoas...

Em um mundo em que o controle vem de todos os lados, de cima, de baixo e em

todas as direções, ele também se adentra em nossos corpos. Nossos hábitos, nossos modos

de (con)viver tendem a ser modelados, cada vez mais. Novas visões de corpo, novas

possibilidades podem vir de proposições feitas por artistas, em seus próprios corpos. Um

artista do corpo, deste modo, tem um papel importante para colocar no mundo essas outras

possibilidades. Um curador crítico de artes do corpo poderia contribuir para que elas

circulem.

Dessa maneira, explicamos o porquê de fazermos uma consideração inicial, ao invés

de final. Talvez, seja com uma reflexão sobre algumas relações entre a crítica, a curadoria e

as artes do corpo que possamos começar a agir objetivando certas transformações: nos

modos de fazer curadorias, nos modos de entender a crítica, nos modos de entender e atuar

em territórios, nos modos de entender e ser um corpo hoje.

Com isso, se a realidade realmente internalizou as estratégias da crítica, como disse

Safatle, é necessário que continuemos a pensar em outras estratégias. “A profanação do

improfanável é tarefa política da geração que vem” (AGAMBEN, 2007: 79).

Não nos deixemos render, e continuemos a pensar, agir, criar...

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