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Construindo memórias: o fotógrafo Paulino Araújo e a representação da cidade
de Campanha na primeira metade do século XX
Raquel de Fátima dos Reis1
RESUMO:
O presente trabalho propõe apresentar uma síntese da pesquisa que vem sendo
desenvolvida sobre a trajetória do fotógrafo Paulino de Araújo Ferreira Lopes, importante
expoente da fotografia no sul de Minas Gerais na primeira metade do século XX, e a
caracterização da coleção visual Paulino Araújo sobre o espaço urbano e sociedade
campanhense. Busca-se principalmente discutir a metodologia que vem sendo empregada no
trabalho e trazer uma reflexão sobre a abordagem do fotógrafo como sujeito ativo, que
interaje e se posiciona diante da imagem que produz bem como apontar as especificidades da
coleção fotográfica em questão.
ABSTRACT:
The present work proposes to present a synthesis of the research that has been
developed over the course of the photographer Paulino de Araujo Ferreira Lopes, an
important exponent of photography in southern Minas Gerais in the 20th century, and the
characterization of your collection and visual production on urban space and the campanhense
society. Search mainly discuss the methodology that has been used at work and bring a
reflection about the photographer's approach as active subject, which interacts and is
positioned before the image it produces as well as point out the specifics of the visual
collection.
PALAVRAS-CHAVE: Paulino Araújo, fotografia, Campanha
*Mestranda em História Contemporânea II, pela Universidade Federal Fluminense PPGH-UFF. Bolsista da
CAPES/Reuni. Orientador: Ana Maria Mauad.
Nas últimas décadas do século XX e primeira do século XXI, houve uma expansão na
historiografia que trata da trajetória de fotógrafos brasileiros e/ou estrangeiros e suas
respectivas produções. As pesquisas procuram abordar além da trajetória de fotógrafos,
conceitos e noções como olhar engajado, circuito social, consumo de imagens, prática e
experiência fotográfica. Segundo Mauad (2010, p. 171), “não se busca mais apenas a história
por detrás das imagens, mas a história das imagens e dos sujeitos que atentos às
transformações do mundo, produziram essas mesmas imagens”.
Nesta direção o presente trabalho investiga a vida do fotógrafo sul mineiro Paulino
Araújo a partir das noções de “prática e experiência”2, na perspectiva de construir sua
memória. Além disso, visa perceber aspectos do seu olhar sobre a cidade de Campanha na
primeira metade do século XX através da análise da coleção visual Paulino Araújo.
O mineiro Paulino Araújo Ferreira Lopes nasceu em 22 de junho de 1891 em
Campanha, a mais antiga cidade ao sul do estado. Não havendo sua biografia ou autobiografia
prévias foi necessário me lançar em uma busca por vestígios e depoimentos que pudessem
oferecer indícios relativos a seus antepassados, às diferentes fases de sua vida e a sua prática e
experiência fotográfica que desenvolvia na cidade.
O trabalho com história, com a realização de entrevistas, consiste no principal meio
utilizado nesta pesquisa para construção da memória de Paulino Araújo. Para tanto, tomei
uma série de cuidados em cada etapa da coleta de depoimentos orais, transcrição e
arquivamento dos materiais resultantes.
Vindo de uma família antiga e tradicional na cidade, era filho do capitão Eulálio da
Veiga Lopes e de Clara de Araújo Ferreira Lopes, mais conhecida por Sinhazinha, descendia
de duas famílias de destaque no cenário social e político da cidade.
2 Na contemporaneidade a noção de experiência, associada à noção de práxis vem sendo trabalhadas pela historia
e pela Antropologia como conceitos que integram a base teórica para os estudos de sociedade e cultura e
permitem um distanciamento de conceitos mais abstratos como cultura e sociedade. A esse respeito ver:
BARTH, Fredrik. “A análise da cultura nas sociedades complexas”. In: O guru, o iniciador e outras variações
antropológicas. Rio de Janeiro: Contra capa, 2000. THOMPSON, Edward P. Folclore, antropologia e história
social. In: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001.THOMPSON, Edward P.
“Educação e experiência”. In: Os Românticos, a Inglaterra na Era revolucionária. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
A pesquisa constatou que seus familiares e antepassados participavam ativamente da
cultura visual do período pelo acesso que tinham a um universo de serviços, como jornais e
teatro, e itens de consumo próprio a uma economia visual oitocentista, a saber o
daguerreotipo, fotografia3 e/ou cartões de visita
4, como podemos observar na Figura 1. Tal
envolvimento de seus familiares com a cultura visual do período pode, em certa medida, ter
influenciado para Paulino Araújo ter tido uma inclinação natural para a fotografia.
Na Figura 1, temos um cartão de visita retratando as três mulheres a partir do qual
podem ser percebidos vários aspectos. Há a questão da pose e da encenação das clientes que
figuram como atrizes na performance do retrato, percebe-se ainda também a presença de
vários atributos ligados ao fundo e aos adereços para as clientes, respectivamente a tela de
paisagem natural ao fundo, a cadeira para compor o ambiente, as vestimentas sofisticadas das
mulheres, os penteados e as cestas de flores. Já no verso do cartão temos o nome do fotógrafo
acompanhado por referência a premiações e/ou outras qualidades que atribuem status e
prestígio, para atrair clientes e há ainda a localização do ateliê. Ainda há que se considerarem
as inscrições que são feitas pelo contratante, podendo ter geralmente mensagens de
lembranças e saudações e/ou simplesmente os nomes das remetentes, destinatários, local e
data.
Este cartão de visita expressaria assim uma síntese do retrato oitocentista, dos padrões
de representação, das estratégias do fotógrafo e das aspirações sociais do contratante.
3 A chegada da fotografia no Império do Brasil ocorreu em 1840, no bojo da difusão das novidades técnicas e
modas européias para a corte e consequentemente para a população do Rio de Janeiro e das demais províncias do
Império . Desde então passou a ser construída uma imagem do Brasil através dos dispositivos fotográficos, sendo
que tal construção no século XIX se dará, sobretudo pelo olhar dos estrangeiros e viajantes. A demanda social
por imagem fez com que houvesse um crescimento no setor fotográfico por volta de 1850, o número de
fotógrafos e ateliês fotográficos só faziam aumentar, e a partir daí não parou mais. A esse respeito ver:
MAUAD, Ana Maria. Imagem e autoimagem do Segundo Reinado. IN: ALENCASTRO, Luis Felipe de. (org).
História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
4 A partir de 1850 com a descoberta do cartão de visita por Desdéri, tornou-se comum principalmente às classes
mais populares tirar retrato em estúdio. Esta prática permaneceu por algumas décadas em alta, dado a demanda
por imagens e seu valor acessível, de modo que criou o hábito de distribuir cartões de visita entre amigos e
parentes, o que se pode notar no verso dos cartões. Esta prática era mais comum entre as classes menos
abastadas, pois as mais abastadas preferiam recorrer as fotopinturas e/ou daguerreótipo que indicavam certa
diferenciação social. Os cartões de visita seguiam padrões de visualidade da época, mas, sobretudo traziam a
marca de quem os produzira, não só pelos carimbos e assinaturas no verso mas pela composição às vezes teatral
do retrato. A esse respeito ver: FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. (org). São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1991.
Figura 1: Carneiro Silva e Tavares. Cartão de visita (esquerda) e seu verso (direira). Rio de
Janeiro, 1880. Coleção Paulino Araújo Ferreira Lopes nº 34, Cartão de Visita.
Sobre seus primeiros contatos com a fotografia, possivelmente ele já cresceu em um
ambiente familiar cercado pelo costume de confeccionar álbuns de família, ter e receber
cartões de visita, hábitos estes que fazem referência a um contexto histórico e cultural mais
amplo, caracterizado pela cultura por imagens oitocentista.
Sabe-se que ele teria aprendido as técnicas básicas necessárias para fotografar por
volta de 1907 com o francês Etienne Farnier, que residia em Campanha no início do século
XX por ocasião de um casamento com uma moça da cidade.
Na região havia uma demanda social crescente por imagens fotográficas5. De modo
que a questão mercadológica figurava como um atrativo pois a região carecia de fotógrafos
profissionais e/ou amadores com ateliê fotográfico fixo em inícios do século XX. Muito
provavelmente essa combinação de fatores, e talvez outros que a pesquisa desconheça, teria
levado Paulino Araújo a atuar como fotógrafo na cidade de Campanha e na região Sul
Mineira.
5 O hábito de se dirigir a um ateliê para ter a imagem representada e perenizada através da fotografia, iniciado
no Império do Brasil, tornou-se cada vez mais comum no século XIX nas cidades brasileiras.
Paralelamente ao trabalho como fotógrafo, Paulino Araújo tinha outro ofício
autônomo como cortador de vidros o que certamente se deve ao fato de a profissão como
fotógrafo não garantir renda fixa e regular.
Sobre o início de sua prática fotográfica o que se sabe é que quando ele ia fotografar
nas localidades mais distantes ele tinha um cavalo como meio de transporte e amarrava junto
a cela seus objetos de trabalho6. Também se sabe que havia um menino que o auxiliava no
carregamento de materiais e composição do ambiente quando era solicitado para fazer
fotografias externas.
Não há registro da fundação de seu ateliê fotográfico, “Loja Araújo”, este só teve sua
situação regularizada por volta da década de 1940, mas teria funcionado desde 1907.
Localizava-se no centro da cidade, lugar de considerável movimentação de pessoas e próximo
aos espaços de sociabilidade da época.
Aos poucos Paulino Araújo ia aprimorando seu aprendizado, isto se dava por vários
meios: pelo contato com outros fotógrafos7, leitura de manuais de fotografia que circulavam
na época, mas, sobretudo pela experiência que foi adquirindo ao longo do tempo.
Os relatos orais e as fontes visuais apontam para uma característica importante de
Paulino, a preocupação com o registro por meio da fotografia. Tal preocupação fez com que
Paulino se lançasse por iniciativa própria a uma atividade de documentar a história da cidade
paralelamente aos seus afazeres pessoais e profissionais. De modo, que pelas lentes de
Paulino e pelas imagens por ele colecionadas temos um legado riquíssimo que consiste na
Coleção Paulino Araújo, que se encontra no Centro de Memória Cultural do Sul de Minas
(CEMEC-SM).
O conjunto de fotografias que compõem a Coleção Paulino Araújo soma 1232
imagens8, sendo estas reproduções de negativos em vidro, fotos originais e cartões de visitas.
6 Almir Ferreira Lopes, entrevista realizada no dia 07/01/2011 com duração de 1:20:09 no âmbito do projeto
“Construindo memórias: trajetória e prática fotográfica de Paulino Araújo Ferreira Lopes – Campanha, Minas
Gerais (1907-1970)”. Depositada no arquivo do LABHOI-UFF e CEMEC-SM.
7 De acordo com as informações levantadas por meio de entrevistas, sabe-se que Paulino Araújo tinha contato
com fotógrafos de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Este contato se dava nas viagens que fazia para
comprar materiais de fotografia, nessas ocasiões ele aproveitava para se atualizar conhecendo e/ou conversando
com outros profissionais.
8 Esta soma ainda passará por uma reavaliação e/ou atualização até o final da pesquisa de mestrado.
Empreendi nesta coleção o trabalho de digitalização das fotos e criação de um código de
identificação para cada imagem, visando entre outras coisas obter a criação de um banco de
dados para pesquisas futuras.
Considero relevante comentar que julguei ser mais preciso trabalhar com o termo
“coleção” ao invés de “acervo” para referir ao conjunto de fotografias em questão, pois ocorre
que as imagens que ali se encontram não são unicamente de produção de Paulino Araújo,
embora estas representem a maior parte há também, daguerreotipo, cartões de visita e
fotografias, tiradas por diversos fotógrafos a partir da segunda metade do século XIX.
Portanto quando me referir à coleção Paulino Araújo, estarei entendendo por esta o conjunto
de imagens colecionadas ou produzidas pelo fotógrafo Paulino Araújo.
A Coleção Paulino Araújo possui fotografias dos mais diferentes temas: Atos
Fúnebres, Ruas, Praças, Meios de Transporte, Fazendas, Inaugurações, Monumentos, Festas,
Casamento, Vistas Panorâmicas, Prédios Públicos, Escolas, Banda de Música, Igreja e etc...
Todavia os Retratos de Pessoas representam a maior parte das imagens com 61,4% da coleção
distribuídos entre: cartões de visita, criança, homens, mulheres, grupo de pessoas, presos,
trabalhadores, funcionários públicos, professores, alunas do colégio Sion, alunos diversos,
alunos do colégio São João, elite, casais e religiosos. Não era a toa que Paulino era conhecido
por muitos como retratista.
Figura 2: Paulino Araújo. Crianças. Campanha primeira metade do século XX.
Coleção Paulino Araújo, nº 06 e 39, Retrato de pessoas: criança.
Na figura 2 temos dois retratos de criança de corpo inteiro, porém com propostas
diferentes. No primeiro uma proposta mais formal e serena da criança. Observamos a
presença da referência à religião manifestada através da pose da menina, ajoelhada como se
estivesse em oração, da vestimenta, do terço segurado a mão e pelos símbolos usados na
composição do ambiente, a santa e a pequena biblía sobre a mesa. O fotógrafo enquadra o
momento exato em que a menina se harmoniza com o ambiente transmitindo a expressão
serena, calma e angelical.
No segundo retrato já há uma proposta mais descontraída, a menina posa foleando um
álbum de fotografias. Interessante notar como em ambos os casos o fotógrafo lança mão,
respectivamente de almofadas e cadeira para driblar o tamanho pequeno das clientes, que
devem ser mostrados, mas em equilíbrio com os demais objetos de composição da imagem.
Tomo como pressuposto que o fotógrafo Paulino Araújo foi um sujeito dono de um
olhar atento e diferenciado que enquadrou vistas da cidade e retratos da sociedade criando
uma imagem dos modos de vida do interior.
Na figura abaixo, notamos como Paulino enquadra os meios de transporte rústico,
representado pelos cavalos e bois, convivendo com o moderno, representado pelo trem. A
imagem traduz o homem de interior parado, numa relação de sublimidade, olhando para o
novo que chega, que seria o trem trazendo o progresso. Pelo foco e distribuição de planos da
fotografia observa-se claramente a preocupação do fotógrafo em mostrar o progresso
chegando pelas vias férreas, adentrando o interior e causando ao mesmo tempo estranhamento
e contemplação aos homens que param para olhar. A figura do novo convivendo e/ou sendo
substituído pelo velho ainda pode ser encontrada nos dias de hoje nas cidades de interior,
porém talvez em circunstâncias diferentes.
Figura 3: Paulino Araújo. Meios de Transporte. Campanha primeira metade do século XX.
Coleção Paulino Araújo, nº 16, Meio de Transporte.
Em contrapartida, Paulino Araújo também foi um sujeito dedicado ao registro do
processo de urbanização que a cidade ia sofrendo. Tratava de registrar tudo, sobretudo por
iniciativa própria. Assim ele criou documentou pelas suas lentes as transformações ocorridas
na cidade. Obviamente sabemos essa característica não se restringia a Paulino Araújo,
registrar a cidade era uma preocupação comum aos fotógrafos brasileiros e estrangeiros que
viviam a urbanidade e modernidade em inícios do século XX.
Figura 4: Paulino Araújo. Praça Dom Ferrão. Campanha primeira metade do século
XX. Coleção Paulino Araújo, nº 57, Praça.
Na figura 4, observamos uma fotografia panorâmica da Praça Dom Ferrão,
provavelmente tirada do andar de cima da Igreja Matriz, localizada no centro da cidade de
Campanha. O fotógrafo enquadrou um espaço que havia sido transformado, encontrava-se
agora urbanizado e ordenado com iluminação, arborização e planejamento.
Contudo, a produção visual de Paulino Araújo constitui-se como fonte riquíssima para
pensar o espaço e sociedade Sul Mineira no século XX, especialmente a cidade de Campanha.
As imagens que compõem a coleção Paulino Araújo têm muito a falar, no entanto precisam
ser questionadas.
Bibliografia:
ALENCASTRO, Luis Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. IN:
ALENCASTRO, Luis Felipe de. (org). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e
a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 11-93.
BARTH, Fredrik. “A análise da cultura nas sociedades complexas”. In: O guru, o iniciador e
outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra capa, 2000.
FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. (org). São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1991.
MAUAD, Ana Maria.A UNE somos nós, nossa força e nossa voz... experiência fotográfica e
os sentidos da história no século XX. In: discusos fotográficos, Londrina, v.6, n.8, p. 169-193.
jan-jun.2010. p. 171.
MAUAD, Ana Maria. Imagem e autoimagem do Segundo Reinado. IN: ALENCASTRO,
Luis Felipe de. (org). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade
nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
THOMPSON, Edward P. Folclore, antropologia e história social. In: As peculiaridades dos
ingleses e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001.