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Construindo e expandindo corpos: o basquete em cadeiras de rodas na ANDEF 1 Luiz Fernando Rojo (UFF/RJ) Resumo: O processo de treinamento de uma equipe de basquete em cadeira de rodas tem a mesma complexidade de qualquer outro treinamento de modalidades esportivas e, como ocorre com qualquer outra modalidade, tem também suas características singulares. Meu objetivo neste trabalho, portanto, como em todo o conjunto da pesquisa que venho desenvolvendo junto a Associação Niteroiense do Deficiente Físico (ANDEF) é analisar o processo de aprendizagem desta prática esportiva e a construção de uma corporalidade específica, necessária para o desenvolvimento do alto rendimento de uma equipe que se situa entre as melhores do Brasil nesta modalidade. Mas, mais especificamente, é realizar esta interpretação sem cair nos dois extremos que a desqualificariam enquanto um investimento na área da Antropologia dos Esportes ou que, por outro lado, borrariam a especificidade dos estudos sobre os esportes adaptados. No primeiro caso, estaria olhando para estas pessoas não como atletas – que é a identidade central que constroem no seu cotidiano de treinos e competições – mas fundamentalmente como “portadores de deficiência”. No segundo, estaria esquecendo que “atleta” é uma identidade genérica e que pensar a corporalidade associada à prática esportiva é indissociável de analisar as particularidades das diversas interações entre os corpos e as múltiplas “próteses” esportivas – tomadas aqui em seu sentido mais amplo (Novaes, 2006), que envolvem não apenas as cadeiras de rodas, mas as raquetes, as chuteiras e quaisquer outros implementos utilizados pelas diferentes modalidades - com as quais estes corpos interagem. Palavras-chave: esporte adaptado; corporalidade; próteses. A ANDEF A Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos (ANDEF), onde estou desenvolvendo esta pesquisa, é uma organização não-governamental que foi fundada 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 3 e 6 de agosto de 2014, em Natal/RN. 1

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Construindo e expandindo corpos: o basquete em cadeiras de rodas na ANDEF1

Luiz Fernando Rojo (UFF/RJ)

Resumo:

O processo de treinamento de uma equipe de basquete em cadeira de rodas tem a

mesma complexidade de qualquer outro treinamento de modalidades esportivas e, como

ocorre com qualquer outra modalidade, tem também suas características singulares.

Meu objetivo neste trabalho, portanto, como em todo o conjunto da pesquisa que venho

desenvolvendo junto a Associação Niteroiense do Deficiente Físico (ANDEF) é analisar

o processo de aprendizagem desta prática esportiva e a construção de uma corporalidade

específica, necessária para o desenvolvimento do alto rendimento de uma equipe que se

situa entre as melhores do Brasil nesta modalidade. Mas, mais especificamente, é

realizar esta interpretação sem cair nos dois extremos que a desqualificariam enquanto

um investimento na área da Antropologia dos Esportes ou que, por outro lado, borrariam

a especificidade dos estudos sobre os esportes adaptados. No primeiro caso, estaria

olhando para estas pessoas não como atletas – que é a identidade central que constroem

no seu cotidiano de treinos e competições – mas fundamentalmente como “portadores

de deficiência”. No segundo, estaria esquecendo que “atleta” é uma identidade genérica

e que pensar a corporalidade associada à prática esportiva é indissociável de analisar as

particularidades das diversas interações entre os corpos e as múltiplas “próteses”

esportivas – tomadas aqui em seu sentido mais amplo (Novaes, 2006), que envolvem

não apenas as cadeiras de rodas, mas as raquetes, as chuteiras e quaisquer outros

implementos utilizados pelas diferentes modalidades - com as quais estes corpos

interagem.

Palavras-chave: esporte adaptado; corporalidade; próteses.

A ANDEF

A Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos (ANDEF), onde estou

desenvolvendo esta pesquisa, é uma organização não-governamental que foi fundada

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 3 e 6 de agosto de 2014, em Natal/RN.

1

em 1981 e, desde 2002, funciona em sua atual sede em Rio do Ouro (Niterói-RJ). Esse

espaço de 26 mil metros quadrados é dividido em quatro platôs, conforme pode ser

observado na foto abaixo, no qual se localizam áreas esportivas (campo de futebol, dois

ginásios2, piscina e pista de atletismo), de reabilitação, de teatro, um hotel e a parte

administrativa.

Foto: http://www.andef.org.br/instituicao/sede.php

No que diz respeito às práticas esportivas, estas são divididas entre práticas

direcionadas para a comunidade, práticas educativas ou recreacionais e esporte de alto

rendimento. Com relação a este último grupo, que é o objeto de minha pesquisa, são

praticadas as seguintes modalidades: atletismo, natação, futebol3, tênis de mesa, tiro

com arco, vôlei, bocha, halterofilismo, tênis e basquetebol. No presente trabalho irei me

deter especificamente nesta última modalidade, a qual irei apresentar com mais detalhes

a seguir.

O basquetebol em cadeiras de rodas

O basquetebol foi um dos primeiros esportes a serem adaptados para a sua

prática por portadores de deficiência, sendo também um dos poucos a terem estado

2 Recentemente o ginásio localizado no platô inferior está passando por obras que vai alterar a sua funcionalidade, deslocando os setores médicos e de reabilitação para este local, de mais fácil acesso.

3 Há duas modalidades de futebol praticadas na ANDEF: o futebol para amputados e o futebol de sete (paralisados cerebrais).

2

presente em todas as edições dos Jogos Paralímpicos. Conforme uma das árbitras

presentes no Campeonato Brasileiro Feminino de Basquetebol em Cadeiras de Rodas de

2013, que foi disputado na sede da ANDEF junto com o campeonato masculino de

seleções regionais, a quem entrevistei durante a competição, há poucas diferenças, do

ponto de vista das regras, entre o basquete convencional e o basquete em cadeira de

rodas. As principais delas dizem respeito à questão da condução (a cada dois toques na

cadeira o jogador tem que quicar, passar ou arremessar a bola), aos tipos de contato

permitido entre as cadeiras de rodas e, principalmente, ao tema da classificação

funcional.

Os jogadores de basquetebol em cadeiras de rodas, como qualquer outro atleta de

esportes adaptados, têm que passar por um processo de classificação para poder

participar de competições oficiais. Essa classificação envolve aspectos médicos e de

rendimento esportivo orientado para cada tipo de prova e, no caso do basquete, divide

os jogares em categorias que vão de um (1,0) até quatro e meio (4,5) com subdivisões

de meio ponto e, seguindo os padrões do esporte adaptado, indo do maior grau de

comprometimento físico para o menor.

Este aspecto tem importância decisiva na estruturação de qualquer equipe, uma

vez que um time nunca pode ultrapassar o somatório de catorze pontos em quadra.

Assim, por exemplo, um técnico pode escolher montar sua equipe da seguinte forma

(4,5 + 3,5 + 2,5 + 2 + 1,5) ou qualquer outra combinação como essa que, obviamente,

deve ser mantida a cada substituição realizada o que implica que, muitas vezes, estas

mudanças envolvam de dois a três jogadores a cada vez. Ela também implica em um

processo de recrutamento de jogadores que capacite cada equipe a apresentar um

rendimento equilibrado, dentro das limitações físicas variadas, bem como um padrão

tático que se adeque às funções que cada jogador pode exercer, como irei desenvolver

mais à frente.

De forma ainda mais marcante do que ocorre no basquete convencional

brasileiro, a situação do basquete em cadeira de rodas mostra um enorme desequilíbrio

entre as categorias masculina e feminina. Quando iniciei o acompanhamento da equipe

de basquete da ANDEF, ela estava se preparando para a disputa do campeonato

brasileiro, da qual havia sido terceiro lugar na edição anterior. Neste campeonato, que

acabou sendo realizado apenas em janeiro de 2014, a ANDEF terminou na quarta

3

colocação e, acompanhando estes eventos, pude identificar a existência de três divisões

estruturadas da seguinte forma: 1ª divisão com 12 clubes; 2ª divisão com 9 clubes e 3ª

divisão com nove clubes e uma divisão de acesso, totalizando 39 clubes e mais de 400

atletas que representavam as cinco regiões do país e dezoito estados da federação. Por

outro lado, o campeonato feminino de 2013 contou com apenas seis equipes em uma

única divisão, reunindo 67 atletas que representaram o Pará (2 equipes), Espírito Santo,

Distrito Federal, Bahia e Ceará. Este quadro se reproduz na própria ANDEF que,

contando com uma importante equipe masculina, não possui basquetebol feminino.

Aspectos metodológicos

Como indiquei acima, comecei a acompanhar o basquete na ANDEF quando

eles já estavam em plena preparação para o campeonato brasileiro. Na minha primeira

ida, como em algumas outras posteriormente, estava com uma orientanda de iniciação

científica, cujo trabalho era voltado para a construção das trajetórias dos técnicos dos

esportes adaptados. Nesta primeira vez, como fazia em cada esporte no qual estava pela

primeira vez, eu começava por observar à distância, procurando identificar quem era o

técnico e esperando por uma ocasião propícia para me apresentar e falar da pesquisa,

solicitando a autorização para desenvolvê-la também ali.

Penso ser relevante afirmar que, até este momento, todos os técnicos

responderam positivamente a esta solicitação e mesmo alguns deles – como foi o caso

de Júlio, técnico do basquetebol – não apenas autorizaram a pesquisa, mas enfatizaram

sua disposição de me ajudar em qualquer questão relacionada aos esportes em que estão

inseridos. Para cada um deles eu agradeci esta disponibilidade e disse que, inicialmente,

eu iria apenas observar e aprender mais sobre aquelas modalidades e que,

posteriormente, gostaria de fazer entrevistas com eles e com alguns dos atletas.

Pensando sobre isso, me recordei das palavras de Cardoso de Oliveira sobre o

“ver e o ouvir disciplinados”. Ele afirma que um antropólogo:

“no início de uma pesquisa junto a um determinado grupo

indígena e entrando em uma maloca (…) [estas] teriam o seu

interior imediatamente vasculhado pelo 'olhar etnográfico', por

4

meio do qual toda a teoria que a disciplina dispõe relativamente

às residências indígenas passaria a ser instrumentalizada pelo

pesquisador. Neste sentido, o interior da maloca não seria visto

com ingenuidade, como uma mera curiosidade diante do

exótico, porém com um olhar devidamente sensibilizado pela

teoria disponível” (1998:19).

Esta citação nos leva a dois pontos que necessitam de uma discussão mais

profunda. A primeira diz respeito ao que fazemos quando não há, ainda, uma teoria

desenvolvida em relação às questões que estejam sendo investigadas. Embora exista um

debate acumulado sobre a Antropologia do Corpo e mesmo sobre a Antropologia da

Saúde, estes nos fornecem apenas orientações gerais uma vez que estas “teorias

disponíveis” praticamente ainda não dialogaram com as especificidades de como

pessoas portadoras de deficiências (que, a parte, praticamente não foram pesquisados

pela Antropologia) constroem significados sobre suas corporalidades e suas noções de

saúde no contexto particular da prática esportiva de alto-rendimento. O segundo ponto a

ser mais debatido é a necessidade de que nosso olhar seja não apenas “teoricamente

disciplinado”, mas “etnograficamente disciplinado” também. Retomando os

ensinamentos de Evans-Pritchard:

“O antropológo deve seguir o que encontra na sociedade

que escolheu estudar: a organização social, os valores e

sentimentos do povo, e assim por diante. Eu não tinha interesse

por bruxaria quando fui para o país zande, mas os Azande

tinham; e assim tive de me deixar guiar por eles. Não me

interessava particularmente por vacas quando fui aos Nuer, mas

os Nuer, sim; e assim tive aos poucos, querendo ou não, que me

tornar um especialista em gado” (2005: 244-245).

Eu não penso que irei me tornar um especialista em esportes adaptados, ou

mesmo em basquetebol em cadeiras de rodas. O que eu pretendo é afirmar a

importância desta primeira aproximação sobre o que as pessoas com as quais iremos

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realizar nossa pesquisa estão fazendo, antes de começarmos a elaborar nossos roteiros

de entrevistas. Para realizar esta primeira abordagem, a partir das minhas leituras

prévias sobre este campo, tinha a compreensão de que parte significativa da pesquisa

iria ser realizada a partir de uma adaptação que venho desenvolvendo da proposta

metodológica de Magnani (2002) para a etnografia urbana. Este autor propõe a

“observação de perto e de dentro” como uma forma de construção de um olhar

etnográfico sobre espaços urbanos nos quais a observação participante não se apresenta

como a melhor forma de construção dos dados de pesquisa, rompendo com isso com

uma naturalização que identifica esta como a técnica de pesquisa por excelência da

Antropologia.

Portanto, até o momento em que escrevo esta apresentação, tenho

principalmente observado seus treinamentos, filmando alguns movimentos e falando

com eles sobre os primeiros aspectos que têm chamado a minha atenção. Nos próximos

meses, minha intenção é aprofundar estas observações, incluindo o acompanhamento de

algumas competições e realizar entrevistas que me permitam ampliar a compreensão

sobre os significados que eles atribuem aos aspectos da corporalidade e da relação entre

a prática esportiva de alto-rendimento e a saúde, no caso específico do basquetebol em

cadeiras de rodas.

O time de basquete da ANDEF

Na época em que eu estava observando a preparação para o Campeonato

Brasileiro de 2013, o time da ANDEF era composto por doze pessoas, com a seguinte

divisão pela classificação funcional:

Classe Número de Atletas

1,0 2

2,0 4

3,0 1

3,5 1

4,0 2

4,5 2

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É importante enfatizar que este é um primeiro trabalho sobre este tema e escrito

a partir de uma aproximação ainda inicial com o campo – eu comecei esta pesquisa pelo

atletismo na própria ANDEF e apenas após algum tempo nesta instituição que surgiu a

possibilidade de acompanhar o time de basquete. Deste modo, estou atento para o fato

de que há, ainda, uma série de lacunas no presente estado desta etnografia e esta

apresentação é, também, uma tentativa de contribuir, inclusive com os comentários que

certamente receberei, no desenvolvimento das opções que terei que tomar para decidir

quais são aquelas lacunas mais importantes a serem preenchidas e quais serão aquelas

que, provavelmente, irão permanecer como tais, desde que todo o trabalho etnográfico

implica no estabelecimento de recortes que, se por um lado possibilitam o

aprofundamento de determinadas questões, por outro, acarretam no abandono de alguns

caminhos que o trabalho de campo nos abre.

Deste modo, por exemplo, não tenho ainda a história de vida de cada um deles –

tanto em termos de suas deficiências físicas (se congênitas ou adquiridas) quanto nas

suas trajetórias esportivas – as quais eu pretendo construir nos próximos meses. O que

pude identificar nestes primeiros momentos de observação foi que há uma enorme gama

de diferenças, não apenas nas classificações funcionais (como mostradas na tabela

acima), o que é necessário para o equilíbrio do time, mas em aspectos como o status

profissional de cada atleta, que repercute diretamente na capacidade maior ou menor de

cada um se dedicar aos treinamentos.

Eu comecei a notas estas diferenças quando estava passando pela quadra de

basquete e vi alguns jogadores por lá. Devia ser por volta das onze da manhã e isso me

causou estranheza, uma vez que já havia tido a informação de que os treinos eram

sempre no período da noite. Mas, ali estavam algumas pessoas treinando passes,

arremessos e rebotes por quase uma hora e, após este tempo, jogando três contra três

durante algum tempo. Quando o jogo terminou, eu conversei um pouco com um deles,

que confirmou que o treino era mesmo de noite, quando o técnico (um dos dois únicos

técnicos da ANDEF que também é cadeirante e que já foi jogador de basquete e técnico

da seleção brasileira) e a assistente técnica estavam presentes e o time estava completo.

Mas, com a competição principal chegando, alguns deles – os que tinham a manhã livre

por conta de terem dispensa do trabalho para treinar ou por serem atletas profissionais –

aproveitavam aquele tempo para desenvolver alguns fundamentos e exercitar algumas

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jogadas.

Este mesmo jogador, Cláudio, com quem conversei era um destes

“profissionais”. Segundo ele, que tinha jogado em um time de São Paulo em 2012, veio

para a ANDEF como parte de um projeto de tentativa de superar o terceiro lugar obtido

naquele ano e que, por conta deste projeto e também da proximidade com a família e a

esposa, havia escolhido esta proposta em detrimento de duas outras, de times

estrangeiros4.

Esta era, portanto, uma das diferenças mais importantes ali, pelo menos naquele

contexto próximo a disputa do campeonato. Alguns dentre eles tinham condições de

treinar duas vezes por dia porque eram “profissionais” (em suas mais variadas

acepções), enquanto outros treinavam apenas de noite, com as consequências que eles

mesmo admitiam em seu rendimento, tal como um deles me explicou, quando

conversávamos no caminho de volta para nossas casas, em um ônibus comum que

pegávamos, já depois das 21 horas:

“Eu já chego no treino com a cabeça e o corpo muito

cansados, porque tenho que cuidar de óleo, da verificação de um

monte de carros na ALERJ5 e se um carro fica ruim a culpa é

minha, então é difícil conseguir treinar bem, porque é muita

coisa mesmo, mas eu espero que vá valer a pena, porque no ano

passado a gente chegou em terceiro e este ano a gente quer o

título”.

Eu ainda não consegui descobrir quanto cada “profissional” ganha para jogar,

mas eu sei que existem diferenças expressivas entre estes também, desde que alguns –

como o Cláudio, a quem me referi acima – são mais literalmente profissionais,

4 A não obtenção do resultado almejado, por sua vez, tem implicado, no momento em que escrevo este trabalho (1º semestre de 2014), na reestruturação do time, o que implicou na não-renovação do contrato deste e de outro jogador igualmente contratado para aquele projeto. Pelo que soube, entretanto, ele se manteve no Rio de Janeiro, também por conta de uma possibilidade de adaptação a uma perna mecânica que passaria a usar a partir deste ano.

5 Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. A ANDEF tem um convênio com esta entidade de manutenção da frota de veículos o que possibilita que muitos de seus atletas e outras pessoas portadoras de deficiência possam trabalhar por lá. Embora este convênio permita a ausência em competições – ocasionalmente também nos períodos finais de treinamento – não representa uma liberação absoluta, causando o tipo de impacto nos treinos cotidianos, tais como os relatados nesta citação.

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ganhando para jogar, enquanto outros trabalham em diferentes locais, como na própria

ANDEF ou na pequena empresa que fabrica cadeira de rodas de propriedade do próprio

técnico da equipe que permitem, em diferentes níveis, algum tipo de liberação para

treinos e/ou campeonatos. Também é importante salientar que, para além dessas

diferenças, todos eles ganhavam uma “bolsa atleta” durante o ano de 2013, como

decorrência da terceira posição obtida no Campeonato Brasileiro de 2012. Por outro

lado, o quarto lugar no campeonato de 2013 implicou na perda desta bolsa, com

consequências que ainda estou observando em relação ao planejamento da temporada de

2014.

Treinando habilidades, construindo corpos

Quando eu voltei naquela mesma noite em que havia encontrado com Cláudio e

seus colegas treinando na parte da manhã, eu comecei a observar alguns dos principais

aspectos que pretendo desenvolver aqui. Eu nunca estive em um treinamento de

basquete convencional antes e deste modo eu não tenho um padrão com o qual

comparar as principais diferenças entre este e o treino em cadeiras de rodas, mas uma

das primeiras coisas que chamaram a minha atenção foi o fato de que quase não se fazia

referência às deficiências durante o tempo de treino.

Eu não estou dizendo aqui, obviamente, que eles agiam como se ignorassem as

especificidades de seus corpos ou mesmo que as jogadas ensaiadas não levassem em

consideração as cadeiras de rodas ou as diferentes habilidades relacionadas às

classificações funcionais. Isso estava presente desde o momento em que eles chegam no

local de treinamento, alguns com suas cadeiras de rodas de uso cotidiano e outros

caminhando com ou sem o uso de muletas6 e todos pegam suas cadeiras de jogo. Neste

momento, cada um deles dedica algum tempo para preparar essas cadeiras, observando

as rodas e os pneus, ajustando qualquer coisa que percebam que não esteja no melhor

estado possível ou apenas polindo ou limpando alguma parte, tudo para garantir a

melhor performance no treinamento. Essa compreensão se encontra presente também na

primeira parte de cada dia de treino em que, normalmente, a assistente coloca uma série

6 De acordo com o tipo de lesão, alguns deles necessitam o uso da cadeira de rodas para todos os tipos de deslocamento, enquanto outros podem caminhar com diferentes tipos de dificuldades. Este é um, entre muitos, dos aspectos que são levados em consideração na definição das classificações funcionais.

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de obstáculos na quadra, para que eles desenvolvam suas habilidades de correr em

zigue-zague ou mover a cadeira em diferentes direções para usá-las seja para defender o

garrafão ou o perímetro.

A questão, portanto, que quero ressaltar é que estas atividades não são tão

diferentes do que muitos atletas fazem em seus próprios treinos, independentemente de

serem ou não portadores de deficiências físico-motoras. O cuidado que os cadeirantes

têm com suas cadeiras é muito similar com a atenção com suas “próteses” feita por

jogadores de tênis, os quais observam a tensão do encordoamento de suas raquetes,

esgrimistas que analisam o punho de suas armas e outros atletas que necessitam do uso

de múltiplos objetos os quais podem ser pensados como extensões de seus corpos,

necessárias para a prática de seus esportes. Ampliando o sentido tradicionalmente

associado com este termo, Novaes (2006), irá trabalhar com o conceito de prótese, tal

como utilizado por Couto (2001), no qual este afirma que nossos corpos são

atravessados e construídos por muitos tipos de máquinas e tecnologias:

“Próteses de todos os tipos, sensores, lentes de contatos,

dentes artificiais, silicone, implantes auditivos, marca-passos,

pinos e ossos de titânio e estimulantes químicos entre outros,

revelam que este é o momento da realização dos sonhos de

futuro: aqueles em que os corpos dos homens serão alimentados

pelas tecnologias. As próteses supervisionam, aceleram e

compõem o organismo de muitas pessoas (…). O corpo torna-se

o lugar privilegiado das técnicas e o destino das máquinas e a

crescente introdução destes novos componentes técnicos

integrados promovem uma nova natureza, outra realidade

corporal” (2001:87).

Eu não estou afirmando, e nesta parte me diferencio da citação acima, que estes

processos são exatamente uma novidade. Interferências nos corpos, sejam

escarificações, tatuagens, modificações de partes dos corpos ou inserção de

implementos estão presentes não apenas em períodos mais antigos de muitos grupos

“ocidentais”, como também em uma série de sociedades ao redor do mundo, com

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diferentes significados associados. O que eu queria afirmar aqui, a partir desta

referência de Couto, é que a presença das próteses nos esportes adaptados, pelo menos

no time de basquete da ANDEF o qual tenho acompanhado, não é algo que os

transformem em pessoas com deficiência que jogam basquete, mas sim em atletas de

basquete que usam tipos específicos de implementos. Isso é ainda mais evidente tanto

pelo fato de que alguns jogadores, como já observado acima, não necessitam deste

artefato em suas vidas diárias, quanto porque aqueles que a utilizam de forma cotidiana,

usam um tipo um pouco diferente de objeto, que são as cadeiras especificamente

adaptadas para o basquetebol, como pode ser constatado pelas fotos abaixo:

cadeira de competição – observar as rodas de apoio observar a proteção na parte da frente da cadeira.

Mas, não é apenas um tipo diferente de cadeira que demarca esta distinção.

Muito mais importante é a necessidade de desenvolvimento de novas habilidades para

usá-las. Eu pude observar esta questão particularmente no dia em que um jovem estava

em sua primeira semana de treinos. Enquanto o técnico dava instruções para o time, a

assistente estava orientando esse novo integrante da equipe em uma série de exercícios

cuja finalidade era o de ensinar o uso da cadeira de rodas em diversas situações de jogo.

Isto era feito, naquele momento, sem a utilização de uma bola, desde que, segundo a

assistente, isso poderia tornar muito mais complexo para ele controlar a ambos, cadeira

e bola, simultaneamente, o que seria desenvolvido mais tarde. Estes exercícios

consistiam em aumentar a velocidade do deslocamento com a cadeira, seja em linha

reta, seja ultrapassando cones que obrigavam a variações da direção e em sucessivos

avanços e recuos em diagonal, em espaços curtos e outros movimentos que serão,

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posteriormente, exigidos nas rotinas de treinos e jogos.

Portanto, não apenas antes de estar pronto para jogar, mas mesmo antes de estar

pronto para treinar com bola, ele irá necessitar construir sua performance corporal como

um jogador de basquetebol através de um processo o qual pode ser aproximado com

aquele descrito por Wacquant, quando analisa os modos pelos quais um boxeador é

criado:

“A simplicidade da aparência dos gestos do boxeador

não pode ser mais enganosa: longe de serem 'naturais' e

evidentes, os golpes de base (jabe, gancho direto, uppercut) são

difíceis de serem executados corretamente e supõem uma

'reeducação física' completa, uma verdadeira modelagem de sua

coordenação ginástica e até mesmo uma conversão física. Uma

coisa é visualizá-los e compreendê-los em pensamento, outra

bem diferente é realizá-los e, mais ainda, encadeá-los no fogo da

ação”. (2002:88).

Assim, seguindo o caminho proposto por Wacquant (2002), entendo que isso

será feito por uma reconfiguração do habitus destas pessoas que implica também no

aprendizado de uma nova posição corporal sobre suas cadeiras de rodas (no caso de

pessoas que as utilizem diariamente) e pela construção da capacidade de interagir com

estas cadeiras na procura de criar espaços para uma infiltração na defesa adversária ou

para bloquear estas infiltrações, quando se está jogando na parte defensiva, entre outras

habilidades que terão que ser desenvolvidas.

Conclusão

Como um trabalho ainda em fase inicial de elaboração, é impossível pensar em

conclusões aqui, mas sim em tentar sistematizar algumas das direções em que estas

reflexões têm me encaminhado. A primeira delas é aprofundar o entendimento sobre a

relação que estes atletas desenvolvem com as suas cadeiras de competição. Se, como

venho afirmando neste trabalho, há inúmeras próteses com as quais nos relacionamos no

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nosso cotidiano, muitas das quais sequer significamos desta maneira, também é visível

que o entendimento sobre cada uma delas varia em cada sociedade e em diferentes

grupos dentro de cada uma delas. Portanto, penso ser possível dizer que na sociedade

em que estes atletas vivem, o sentido atribuído a determinados tipos de próteses, tais

como os implantes dentários por exemplo, não caracteriza ninguém como “portador de

deficiência”, enquanto a necessidade de uma cadeira de rodas o identifica como tal. A

segunda questão que este trabalho suscita, portanto, é a de pensar como, a partir destas

“hetero-identidades” (Simon) eles constroem suas auto-identidades e a relação que

estabelecem com estes objetos, particularmente, como já apontei, na distinção que possa

ser estabelecida entre as cadeiras de uso diário e a de competição, tal como foi

identificado por Novaes, a partir da fala de um de seus nativos:

“'- Pronto, me transformei! Agora sou um atleta, não um

deficiente. Já faz algum tempo isso..., a partir deste equipamento

me tornei conhecido, não como um aleijado e sim como um

corredor cadeirante', disse Jorge logo após trocar de cadeira

durante uma palestra” (2006:128).

Assim um dos caminhos que penso ser mais produtivo para analisar como estes

atletas constroem seus corpos é pensar como se relacionam com a “expansão” destes a

partir de suas próteses e de como estas resignificam sua corporalidade e sua identidade.

BIBLIOGRAFIA:

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COUTO, Edvaldo. O zumbido do híbrido: a filosofia ciborgue do corpo. Revista

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NOVAES, Varlei de Souza. O híbrido paraolímpico: ressignificando o corpo do atleta

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com deficiência a partir de práticas tecnologicamente potencializadas. Dissertação de

Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, UFRGS.

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WACQUANT, Loic. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de

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