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Construindo e expandindo corpos: o basquete em cadeiras de rodas na ANDEF1
Luiz Fernando Rojo (UFF/RJ)
Resumo:
O processo de treinamento de uma equipe de basquete em cadeira de rodas tem a
mesma complexidade de qualquer outro treinamento de modalidades esportivas e, como
ocorre com qualquer outra modalidade, tem também suas características singulares.
Meu objetivo neste trabalho, portanto, como em todo o conjunto da pesquisa que venho
desenvolvendo junto a Associação Niteroiense do Deficiente Físico (ANDEF) é analisar
o processo de aprendizagem desta prática esportiva e a construção de uma corporalidade
específica, necessária para o desenvolvimento do alto rendimento de uma equipe que se
situa entre as melhores do Brasil nesta modalidade. Mas, mais especificamente, é
realizar esta interpretação sem cair nos dois extremos que a desqualificariam enquanto
um investimento na área da Antropologia dos Esportes ou que, por outro lado, borrariam
a especificidade dos estudos sobre os esportes adaptados. No primeiro caso, estaria
olhando para estas pessoas não como atletas – que é a identidade central que constroem
no seu cotidiano de treinos e competições – mas fundamentalmente como “portadores
de deficiência”. No segundo, estaria esquecendo que “atleta” é uma identidade genérica
e que pensar a corporalidade associada à prática esportiva é indissociável de analisar as
particularidades das diversas interações entre os corpos e as múltiplas “próteses”
esportivas – tomadas aqui em seu sentido mais amplo (Novaes, 2006), que envolvem
não apenas as cadeiras de rodas, mas as raquetes, as chuteiras e quaisquer outros
implementos utilizados pelas diferentes modalidades - com as quais estes corpos
interagem.
Palavras-chave: esporte adaptado; corporalidade; próteses.
A ANDEF
A Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos (ANDEF), onde estou
desenvolvendo esta pesquisa, é uma organização não-governamental que foi fundada
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 3 e 6 de agosto de 2014, em Natal/RN.
1
em 1981 e, desde 2002, funciona em sua atual sede em Rio do Ouro (Niterói-RJ). Esse
espaço de 26 mil metros quadrados é dividido em quatro platôs, conforme pode ser
observado na foto abaixo, no qual se localizam áreas esportivas (campo de futebol, dois
ginásios2, piscina e pista de atletismo), de reabilitação, de teatro, um hotel e a parte
administrativa.
Foto: http://www.andef.org.br/instituicao/sede.php
No que diz respeito às práticas esportivas, estas são divididas entre práticas
direcionadas para a comunidade, práticas educativas ou recreacionais e esporte de alto
rendimento. Com relação a este último grupo, que é o objeto de minha pesquisa, são
praticadas as seguintes modalidades: atletismo, natação, futebol3, tênis de mesa, tiro
com arco, vôlei, bocha, halterofilismo, tênis e basquetebol. No presente trabalho irei me
deter especificamente nesta última modalidade, a qual irei apresentar com mais detalhes
a seguir.
O basquetebol em cadeiras de rodas
O basquetebol foi um dos primeiros esportes a serem adaptados para a sua
prática por portadores de deficiência, sendo também um dos poucos a terem estado
2 Recentemente o ginásio localizado no platô inferior está passando por obras que vai alterar a sua funcionalidade, deslocando os setores médicos e de reabilitação para este local, de mais fácil acesso.
3 Há duas modalidades de futebol praticadas na ANDEF: o futebol para amputados e o futebol de sete (paralisados cerebrais).
2
presente em todas as edições dos Jogos Paralímpicos. Conforme uma das árbitras
presentes no Campeonato Brasileiro Feminino de Basquetebol em Cadeiras de Rodas de
2013, que foi disputado na sede da ANDEF junto com o campeonato masculino de
seleções regionais, a quem entrevistei durante a competição, há poucas diferenças, do
ponto de vista das regras, entre o basquete convencional e o basquete em cadeira de
rodas. As principais delas dizem respeito à questão da condução (a cada dois toques na
cadeira o jogador tem que quicar, passar ou arremessar a bola), aos tipos de contato
permitido entre as cadeiras de rodas e, principalmente, ao tema da classificação
funcional.
Os jogadores de basquetebol em cadeiras de rodas, como qualquer outro atleta de
esportes adaptados, têm que passar por um processo de classificação para poder
participar de competições oficiais. Essa classificação envolve aspectos médicos e de
rendimento esportivo orientado para cada tipo de prova e, no caso do basquete, divide
os jogares em categorias que vão de um (1,0) até quatro e meio (4,5) com subdivisões
de meio ponto e, seguindo os padrões do esporte adaptado, indo do maior grau de
comprometimento físico para o menor.
Este aspecto tem importância decisiva na estruturação de qualquer equipe, uma
vez que um time nunca pode ultrapassar o somatório de catorze pontos em quadra.
Assim, por exemplo, um técnico pode escolher montar sua equipe da seguinte forma
(4,5 + 3,5 + 2,5 + 2 + 1,5) ou qualquer outra combinação como essa que, obviamente,
deve ser mantida a cada substituição realizada o que implica que, muitas vezes, estas
mudanças envolvam de dois a três jogadores a cada vez. Ela também implica em um
processo de recrutamento de jogadores que capacite cada equipe a apresentar um
rendimento equilibrado, dentro das limitações físicas variadas, bem como um padrão
tático que se adeque às funções que cada jogador pode exercer, como irei desenvolver
mais à frente.
De forma ainda mais marcante do que ocorre no basquete convencional
brasileiro, a situação do basquete em cadeira de rodas mostra um enorme desequilíbrio
entre as categorias masculina e feminina. Quando iniciei o acompanhamento da equipe
de basquete da ANDEF, ela estava se preparando para a disputa do campeonato
brasileiro, da qual havia sido terceiro lugar na edição anterior. Neste campeonato, que
acabou sendo realizado apenas em janeiro de 2014, a ANDEF terminou na quarta
3
colocação e, acompanhando estes eventos, pude identificar a existência de três divisões
estruturadas da seguinte forma: 1ª divisão com 12 clubes; 2ª divisão com 9 clubes e 3ª
divisão com nove clubes e uma divisão de acesso, totalizando 39 clubes e mais de 400
atletas que representavam as cinco regiões do país e dezoito estados da federação. Por
outro lado, o campeonato feminino de 2013 contou com apenas seis equipes em uma
única divisão, reunindo 67 atletas que representaram o Pará (2 equipes), Espírito Santo,
Distrito Federal, Bahia e Ceará. Este quadro se reproduz na própria ANDEF que,
contando com uma importante equipe masculina, não possui basquetebol feminino.
Aspectos metodológicos
Como indiquei acima, comecei a acompanhar o basquete na ANDEF quando
eles já estavam em plena preparação para o campeonato brasileiro. Na minha primeira
ida, como em algumas outras posteriormente, estava com uma orientanda de iniciação
científica, cujo trabalho era voltado para a construção das trajetórias dos técnicos dos
esportes adaptados. Nesta primeira vez, como fazia em cada esporte no qual estava pela
primeira vez, eu começava por observar à distância, procurando identificar quem era o
técnico e esperando por uma ocasião propícia para me apresentar e falar da pesquisa,
solicitando a autorização para desenvolvê-la também ali.
Penso ser relevante afirmar que, até este momento, todos os técnicos
responderam positivamente a esta solicitação e mesmo alguns deles – como foi o caso
de Júlio, técnico do basquetebol – não apenas autorizaram a pesquisa, mas enfatizaram
sua disposição de me ajudar em qualquer questão relacionada aos esportes em que estão
inseridos. Para cada um deles eu agradeci esta disponibilidade e disse que, inicialmente,
eu iria apenas observar e aprender mais sobre aquelas modalidades e que,
posteriormente, gostaria de fazer entrevistas com eles e com alguns dos atletas.
Pensando sobre isso, me recordei das palavras de Cardoso de Oliveira sobre o
“ver e o ouvir disciplinados”. Ele afirma que um antropólogo:
“no início de uma pesquisa junto a um determinado grupo
indígena e entrando em uma maloca (…) [estas] teriam o seu
interior imediatamente vasculhado pelo 'olhar etnográfico', por
4
meio do qual toda a teoria que a disciplina dispõe relativamente
às residências indígenas passaria a ser instrumentalizada pelo
pesquisador. Neste sentido, o interior da maloca não seria visto
com ingenuidade, como uma mera curiosidade diante do
exótico, porém com um olhar devidamente sensibilizado pela
teoria disponível” (1998:19).
Esta citação nos leva a dois pontos que necessitam de uma discussão mais
profunda. A primeira diz respeito ao que fazemos quando não há, ainda, uma teoria
desenvolvida em relação às questões que estejam sendo investigadas. Embora exista um
debate acumulado sobre a Antropologia do Corpo e mesmo sobre a Antropologia da
Saúde, estes nos fornecem apenas orientações gerais uma vez que estas “teorias
disponíveis” praticamente ainda não dialogaram com as especificidades de como
pessoas portadoras de deficiências (que, a parte, praticamente não foram pesquisados
pela Antropologia) constroem significados sobre suas corporalidades e suas noções de
saúde no contexto particular da prática esportiva de alto-rendimento. O segundo ponto a
ser mais debatido é a necessidade de que nosso olhar seja não apenas “teoricamente
disciplinado”, mas “etnograficamente disciplinado” também. Retomando os
ensinamentos de Evans-Pritchard:
“O antropológo deve seguir o que encontra na sociedade
que escolheu estudar: a organização social, os valores e
sentimentos do povo, e assim por diante. Eu não tinha interesse
por bruxaria quando fui para o país zande, mas os Azande
tinham; e assim tive de me deixar guiar por eles. Não me
interessava particularmente por vacas quando fui aos Nuer, mas
os Nuer, sim; e assim tive aos poucos, querendo ou não, que me
tornar um especialista em gado” (2005: 244-245).
Eu não penso que irei me tornar um especialista em esportes adaptados, ou
mesmo em basquetebol em cadeiras de rodas. O que eu pretendo é afirmar a
importância desta primeira aproximação sobre o que as pessoas com as quais iremos
5
realizar nossa pesquisa estão fazendo, antes de começarmos a elaborar nossos roteiros
de entrevistas. Para realizar esta primeira abordagem, a partir das minhas leituras
prévias sobre este campo, tinha a compreensão de que parte significativa da pesquisa
iria ser realizada a partir de uma adaptação que venho desenvolvendo da proposta
metodológica de Magnani (2002) para a etnografia urbana. Este autor propõe a
“observação de perto e de dentro” como uma forma de construção de um olhar
etnográfico sobre espaços urbanos nos quais a observação participante não se apresenta
como a melhor forma de construção dos dados de pesquisa, rompendo com isso com
uma naturalização que identifica esta como a técnica de pesquisa por excelência da
Antropologia.
Portanto, até o momento em que escrevo esta apresentação, tenho
principalmente observado seus treinamentos, filmando alguns movimentos e falando
com eles sobre os primeiros aspectos que têm chamado a minha atenção. Nos próximos
meses, minha intenção é aprofundar estas observações, incluindo o acompanhamento de
algumas competições e realizar entrevistas que me permitam ampliar a compreensão
sobre os significados que eles atribuem aos aspectos da corporalidade e da relação entre
a prática esportiva de alto-rendimento e a saúde, no caso específico do basquetebol em
cadeiras de rodas.
O time de basquete da ANDEF
Na época em que eu estava observando a preparação para o Campeonato
Brasileiro de 2013, o time da ANDEF era composto por doze pessoas, com a seguinte
divisão pela classificação funcional:
Classe Número de Atletas
1,0 2
2,0 4
3,0 1
3,5 1
4,0 2
4,5 2
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É importante enfatizar que este é um primeiro trabalho sobre este tema e escrito
a partir de uma aproximação ainda inicial com o campo – eu comecei esta pesquisa pelo
atletismo na própria ANDEF e apenas após algum tempo nesta instituição que surgiu a
possibilidade de acompanhar o time de basquete. Deste modo, estou atento para o fato
de que há, ainda, uma série de lacunas no presente estado desta etnografia e esta
apresentação é, também, uma tentativa de contribuir, inclusive com os comentários que
certamente receberei, no desenvolvimento das opções que terei que tomar para decidir
quais são aquelas lacunas mais importantes a serem preenchidas e quais serão aquelas
que, provavelmente, irão permanecer como tais, desde que todo o trabalho etnográfico
implica no estabelecimento de recortes que, se por um lado possibilitam o
aprofundamento de determinadas questões, por outro, acarretam no abandono de alguns
caminhos que o trabalho de campo nos abre.
Deste modo, por exemplo, não tenho ainda a história de vida de cada um deles –
tanto em termos de suas deficiências físicas (se congênitas ou adquiridas) quanto nas
suas trajetórias esportivas – as quais eu pretendo construir nos próximos meses. O que
pude identificar nestes primeiros momentos de observação foi que há uma enorme gama
de diferenças, não apenas nas classificações funcionais (como mostradas na tabela
acima), o que é necessário para o equilíbrio do time, mas em aspectos como o status
profissional de cada atleta, que repercute diretamente na capacidade maior ou menor de
cada um se dedicar aos treinamentos.
Eu comecei a notas estas diferenças quando estava passando pela quadra de
basquete e vi alguns jogadores por lá. Devia ser por volta das onze da manhã e isso me
causou estranheza, uma vez que já havia tido a informação de que os treinos eram
sempre no período da noite. Mas, ali estavam algumas pessoas treinando passes,
arremessos e rebotes por quase uma hora e, após este tempo, jogando três contra três
durante algum tempo. Quando o jogo terminou, eu conversei um pouco com um deles,
que confirmou que o treino era mesmo de noite, quando o técnico (um dos dois únicos
técnicos da ANDEF que também é cadeirante e que já foi jogador de basquete e técnico
da seleção brasileira) e a assistente técnica estavam presentes e o time estava completo.
Mas, com a competição principal chegando, alguns deles – os que tinham a manhã livre
por conta de terem dispensa do trabalho para treinar ou por serem atletas profissionais –
aproveitavam aquele tempo para desenvolver alguns fundamentos e exercitar algumas
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jogadas.
Este mesmo jogador, Cláudio, com quem conversei era um destes
“profissionais”. Segundo ele, que tinha jogado em um time de São Paulo em 2012, veio
para a ANDEF como parte de um projeto de tentativa de superar o terceiro lugar obtido
naquele ano e que, por conta deste projeto e também da proximidade com a família e a
esposa, havia escolhido esta proposta em detrimento de duas outras, de times
estrangeiros4.
Esta era, portanto, uma das diferenças mais importantes ali, pelo menos naquele
contexto próximo a disputa do campeonato. Alguns dentre eles tinham condições de
treinar duas vezes por dia porque eram “profissionais” (em suas mais variadas
acepções), enquanto outros treinavam apenas de noite, com as consequências que eles
mesmo admitiam em seu rendimento, tal como um deles me explicou, quando
conversávamos no caminho de volta para nossas casas, em um ônibus comum que
pegávamos, já depois das 21 horas:
“Eu já chego no treino com a cabeça e o corpo muito
cansados, porque tenho que cuidar de óleo, da verificação de um
monte de carros na ALERJ5 e se um carro fica ruim a culpa é
minha, então é difícil conseguir treinar bem, porque é muita
coisa mesmo, mas eu espero que vá valer a pena, porque no ano
passado a gente chegou em terceiro e este ano a gente quer o
título”.
Eu ainda não consegui descobrir quanto cada “profissional” ganha para jogar,
mas eu sei que existem diferenças expressivas entre estes também, desde que alguns –
como o Cláudio, a quem me referi acima – são mais literalmente profissionais,
4 A não obtenção do resultado almejado, por sua vez, tem implicado, no momento em que escrevo este trabalho (1º semestre de 2014), na reestruturação do time, o que implicou na não-renovação do contrato deste e de outro jogador igualmente contratado para aquele projeto. Pelo que soube, entretanto, ele se manteve no Rio de Janeiro, também por conta de uma possibilidade de adaptação a uma perna mecânica que passaria a usar a partir deste ano.
5 Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. A ANDEF tem um convênio com esta entidade de manutenção da frota de veículos o que possibilita que muitos de seus atletas e outras pessoas portadoras de deficiência possam trabalhar por lá. Embora este convênio permita a ausência em competições – ocasionalmente também nos períodos finais de treinamento – não representa uma liberação absoluta, causando o tipo de impacto nos treinos cotidianos, tais como os relatados nesta citação.
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ganhando para jogar, enquanto outros trabalham em diferentes locais, como na própria
ANDEF ou na pequena empresa que fabrica cadeira de rodas de propriedade do próprio
técnico da equipe que permitem, em diferentes níveis, algum tipo de liberação para
treinos e/ou campeonatos. Também é importante salientar que, para além dessas
diferenças, todos eles ganhavam uma “bolsa atleta” durante o ano de 2013, como
decorrência da terceira posição obtida no Campeonato Brasileiro de 2012. Por outro
lado, o quarto lugar no campeonato de 2013 implicou na perda desta bolsa, com
consequências que ainda estou observando em relação ao planejamento da temporada de
2014.
Treinando habilidades, construindo corpos
Quando eu voltei naquela mesma noite em que havia encontrado com Cláudio e
seus colegas treinando na parte da manhã, eu comecei a observar alguns dos principais
aspectos que pretendo desenvolver aqui. Eu nunca estive em um treinamento de
basquete convencional antes e deste modo eu não tenho um padrão com o qual
comparar as principais diferenças entre este e o treino em cadeiras de rodas, mas uma
das primeiras coisas que chamaram a minha atenção foi o fato de que quase não se fazia
referência às deficiências durante o tempo de treino.
Eu não estou dizendo aqui, obviamente, que eles agiam como se ignorassem as
especificidades de seus corpos ou mesmo que as jogadas ensaiadas não levassem em
consideração as cadeiras de rodas ou as diferentes habilidades relacionadas às
classificações funcionais. Isso estava presente desde o momento em que eles chegam no
local de treinamento, alguns com suas cadeiras de rodas de uso cotidiano e outros
caminhando com ou sem o uso de muletas6 e todos pegam suas cadeiras de jogo. Neste
momento, cada um deles dedica algum tempo para preparar essas cadeiras, observando
as rodas e os pneus, ajustando qualquer coisa que percebam que não esteja no melhor
estado possível ou apenas polindo ou limpando alguma parte, tudo para garantir a
melhor performance no treinamento. Essa compreensão se encontra presente também na
primeira parte de cada dia de treino em que, normalmente, a assistente coloca uma série
6 De acordo com o tipo de lesão, alguns deles necessitam o uso da cadeira de rodas para todos os tipos de deslocamento, enquanto outros podem caminhar com diferentes tipos de dificuldades. Este é um, entre muitos, dos aspectos que são levados em consideração na definição das classificações funcionais.
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de obstáculos na quadra, para que eles desenvolvam suas habilidades de correr em
zigue-zague ou mover a cadeira em diferentes direções para usá-las seja para defender o
garrafão ou o perímetro.
A questão, portanto, que quero ressaltar é que estas atividades não são tão
diferentes do que muitos atletas fazem em seus próprios treinos, independentemente de
serem ou não portadores de deficiências físico-motoras. O cuidado que os cadeirantes
têm com suas cadeiras é muito similar com a atenção com suas “próteses” feita por
jogadores de tênis, os quais observam a tensão do encordoamento de suas raquetes,
esgrimistas que analisam o punho de suas armas e outros atletas que necessitam do uso
de múltiplos objetos os quais podem ser pensados como extensões de seus corpos,
necessárias para a prática de seus esportes. Ampliando o sentido tradicionalmente
associado com este termo, Novaes (2006), irá trabalhar com o conceito de prótese, tal
como utilizado por Couto (2001), no qual este afirma que nossos corpos são
atravessados e construídos por muitos tipos de máquinas e tecnologias:
“Próteses de todos os tipos, sensores, lentes de contatos,
dentes artificiais, silicone, implantes auditivos, marca-passos,
pinos e ossos de titânio e estimulantes químicos entre outros,
revelam que este é o momento da realização dos sonhos de
futuro: aqueles em que os corpos dos homens serão alimentados
pelas tecnologias. As próteses supervisionam, aceleram e
compõem o organismo de muitas pessoas (…). O corpo torna-se
o lugar privilegiado das técnicas e o destino das máquinas e a
crescente introdução destes novos componentes técnicos
integrados promovem uma nova natureza, outra realidade
corporal” (2001:87).
Eu não estou afirmando, e nesta parte me diferencio da citação acima, que estes
processos são exatamente uma novidade. Interferências nos corpos, sejam
escarificações, tatuagens, modificações de partes dos corpos ou inserção de
implementos estão presentes não apenas em períodos mais antigos de muitos grupos
“ocidentais”, como também em uma série de sociedades ao redor do mundo, com
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diferentes significados associados. O que eu queria afirmar aqui, a partir desta
referência de Couto, é que a presença das próteses nos esportes adaptados, pelo menos
no time de basquete da ANDEF o qual tenho acompanhado, não é algo que os
transformem em pessoas com deficiência que jogam basquete, mas sim em atletas de
basquete que usam tipos específicos de implementos. Isso é ainda mais evidente tanto
pelo fato de que alguns jogadores, como já observado acima, não necessitam deste
artefato em suas vidas diárias, quanto porque aqueles que a utilizam de forma cotidiana,
usam um tipo um pouco diferente de objeto, que são as cadeiras especificamente
adaptadas para o basquetebol, como pode ser constatado pelas fotos abaixo:
cadeira de competição – observar as rodas de apoio observar a proteção na parte da frente da cadeira.
Mas, não é apenas um tipo diferente de cadeira que demarca esta distinção.
Muito mais importante é a necessidade de desenvolvimento de novas habilidades para
usá-las. Eu pude observar esta questão particularmente no dia em que um jovem estava
em sua primeira semana de treinos. Enquanto o técnico dava instruções para o time, a
assistente estava orientando esse novo integrante da equipe em uma série de exercícios
cuja finalidade era o de ensinar o uso da cadeira de rodas em diversas situações de jogo.
Isto era feito, naquele momento, sem a utilização de uma bola, desde que, segundo a
assistente, isso poderia tornar muito mais complexo para ele controlar a ambos, cadeira
e bola, simultaneamente, o que seria desenvolvido mais tarde. Estes exercícios
consistiam em aumentar a velocidade do deslocamento com a cadeira, seja em linha
reta, seja ultrapassando cones que obrigavam a variações da direção e em sucessivos
avanços e recuos em diagonal, em espaços curtos e outros movimentos que serão,
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posteriormente, exigidos nas rotinas de treinos e jogos.
Portanto, não apenas antes de estar pronto para jogar, mas mesmo antes de estar
pronto para treinar com bola, ele irá necessitar construir sua performance corporal como
um jogador de basquetebol através de um processo o qual pode ser aproximado com
aquele descrito por Wacquant, quando analisa os modos pelos quais um boxeador é
criado:
“A simplicidade da aparência dos gestos do boxeador
não pode ser mais enganosa: longe de serem 'naturais' e
evidentes, os golpes de base (jabe, gancho direto, uppercut) são
difíceis de serem executados corretamente e supõem uma
'reeducação física' completa, uma verdadeira modelagem de sua
coordenação ginástica e até mesmo uma conversão física. Uma
coisa é visualizá-los e compreendê-los em pensamento, outra
bem diferente é realizá-los e, mais ainda, encadeá-los no fogo da
ação”. (2002:88).
Assim, seguindo o caminho proposto por Wacquant (2002), entendo que isso
será feito por uma reconfiguração do habitus destas pessoas que implica também no
aprendizado de uma nova posição corporal sobre suas cadeiras de rodas (no caso de
pessoas que as utilizem diariamente) e pela construção da capacidade de interagir com
estas cadeiras na procura de criar espaços para uma infiltração na defesa adversária ou
para bloquear estas infiltrações, quando se está jogando na parte defensiva, entre outras
habilidades que terão que ser desenvolvidas.
Conclusão
Como um trabalho ainda em fase inicial de elaboração, é impossível pensar em
conclusões aqui, mas sim em tentar sistematizar algumas das direções em que estas
reflexões têm me encaminhado. A primeira delas é aprofundar o entendimento sobre a
relação que estes atletas desenvolvem com as suas cadeiras de competição. Se, como
venho afirmando neste trabalho, há inúmeras próteses com as quais nos relacionamos no
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nosso cotidiano, muitas das quais sequer significamos desta maneira, também é visível
que o entendimento sobre cada uma delas varia em cada sociedade e em diferentes
grupos dentro de cada uma delas. Portanto, penso ser possível dizer que na sociedade
em que estes atletas vivem, o sentido atribuído a determinados tipos de próteses, tais
como os implantes dentários por exemplo, não caracteriza ninguém como “portador de
deficiência”, enquanto a necessidade de uma cadeira de rodas o identifica como tal. A
segunda questão que este trabalho suscita, portanto, é a de pensar como, a partir destas
“hetero-identidades” (Simon) eles constroem suas auto-identidades e a relação que
estabelecem com estes objetos, particularmente, como já apontei, na distinção que possa
ser estabelecida entre as cadeiras de uso diário e a de competição, tal como foi
identificado por Novaes, a partir da fala de um de seus nativos:
“'- Pronto, me transformei! Agora sou um atleta, não um
deficiente. Já faz algum tempo isso..., a partir deste equipamento
me tornei conhecido, não como um aleijado e sim como um
corredor cadeirante', disse Jorge logo após trocar de cadeira
durante uma palestra” (2006:128).
Assim um dos caminhos que penso ser mais produtivo para analisar como estes
atletas constroem seus corpos é pensar como se relacionam com a “expansão” destes a
partir de suas próteses e de como estas resignificam sua corporalidade e sua identidade.
BIBLIOGRAFIA:
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NOVAES, Varlei de Souza. O híbrido paraolímpico: ressignificando o corpo do atleta
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