construçao social da moradia de risco - doravargas

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CONSTRUÇÃO SOCIAL DA MORADIA DE RISCO AEXPERIÊNCIA DE JUIZ DE FORA (MG) M ARIA A UXILIADORA R AMOS V ARGAS R ESUMO A problemática da moradia de risco tem ganhado ênfase no debate con- temporâneo sobre políticas públicas urbanas. As diversas iniciativas observadas se enqua- dram, de maneira geral, na perspectiva objetivista do risco, que traz como principal decor- rência a demanda pela mensuração e quantificação do fenômeno. Resulta daí uma visão técnica do risco que se apresenta dominante, e que promove não só a noção de que as situa- ções precárias envolvendo grupos específicos são decorrentes de decisões imprevidentes, como também intervenções de remoção que afetam as condições de vida desses grupos. Problemati- zando esse argumento, a literatura sociológica da construção social do risco sustenta que este é objeto de uma elaboração socialmente diferenciada. Utilizando-se da análise das trajetórias de moradia de famílias removidas de áreas condenadas tecnicamente no município de Juiz de Fora (MG), este artigo aponta discursos e práticas que conformam a resistência da popu- lação à noção técnica dominante do risco. P ALAVRAS - CHAVE Construção social do risco; desigualdade ambiental; periferia urbana. No debate sobre risco, têm prevalecido tendências objetivistas associadas à busca de quantificação e prescrição de intervenções preventivas ou compensatórias. A perspectiva da “construção social do risco” apresenta-se, por sua vez, no debate sociológico atual, co- mo uma vertente que problematiza essa visão dominante. Sustenta que o risco não pode ser tratado com base em uma visão técnica e objetiva, mas é categoria objeto de constru- ção por grupos sociais diferenciados. Buscaremos evidenciar aqui os contrapontos existen- tes entre a percepção de técnicos e leigos, tendo por pressuposto que os sujeitos têm per- cepções diferentes de um mesmo “perigo”, e que os saberes diferem, em sua origem e construção, entre conhecimento técnico e saber leigo. Esse debate carece, por certo, de pesquisas que revelem a associação entre “risco” e “desigualdade”, numa perspectiva que evidencie os atores sociais presentes num cenário atravessado por conflitos, e que incorpore analiticamente a diversidade social na constru- ção do risco, assim como a presença de uma lógica política a orientar a distribuição desi- gual dos riscos. Interessa, pois, considerar a noção de “desigualdade ambiental” (Torres, 1997, p.26), compreendida em sua associação com outras formas de desigualdade presen- tes na sociedade, como as de raça, sexo e grupos de renda. Características do mercado de terras, por exemplo, fazem com que áreas de risco (pró- ximas a lixões, sujeitas a inundações e desmoronamentos etc.) sejam as únicas acessíveis a grupos de renda mais baixa, que acabam por construir nesses locais domicílios em condições precárias, além de enfrentar outros problemas sanitários e nutricionais. Essa cumulatividade de riscos socioeconômicos e ambientais implica grande desafio do ponto de vista das políti- 59 R. B. ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS V.8, N.1 / MAIO 2006

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Construçao Social Da Moradia de Risco - Doravargas

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  • CONSTRUO SOCIAL

    DA MORADIA DE RISCOA EXPERINCIA DE JUIZ DE FORA (MG)

    M A R I A A U X I L I A D O R A R A M O S V A R G A S

    R E S U M O A problemtica da moradia de risco tem ganhado nfase no debate con-temporneo sobre polticas pblicas urbanas. As diversas iniciativas observadas se enqua-

    dram, de maneira geral, na perspectiva objetivista do risco, que traz como principal decor-

    rncia a demanda pela mensurao e quantificao do fenmeno. Resulta da uma viso

    tcnica do risco que se apresenta dominante, e que promove no s a noo de que as situa-

    es precrias envolvendo grupos especficos so decorrentes de decises imprevidentes, como

    tambm intervenes de remoo que afetam as condies de vida desses grupos. Problemati-

    zando esse argumento, a literatura sociolgica da construo social do risco sustenta que este

    objeto de uma elaborao socialmente diferenciada. Utilizando-se da anlise das trajetrias

    de moradia de famlias removidas de reas condenadas tecnicamente no municpio de Juiz

    de Fora (MG), este artigo aponta discursos e prticas que conformam a resistncia da popu-

    lao noo tcnica dominante do risco.

    P A L A V R A S - C H A V E Construo social do risco; desigualdade ambiental;periferia urbana.

    No debate sobre risco, tm prevalecido tendncias objetivistas associadas busca dequantificao e prescrio de intervenes preventivas ou compensatrias. A perspectivada construo social do risco apresenta-se, por sua vez, no debate sociolgico atual, co-mo uma vertente que problematiza essa viso dominante. Sustenta que o risco no podeser tratado com base em uma viso tcnica e objetiva, mas categoria objeto de constru-o por grupos sociais diferenciados. Buscaremos evidenciar aqui os contrapontos existen-tes entre a percepo de tcnicos e leigos, tendo por pressuposto que os sujeitos tm per-cepes diferentes de um mesmo perigo, e que os saberes diferem, em sua origem econstruo, entre conhecimento tcnico e saber leigo.

    Esse debate carece, por certo, de pesquisas que revelem a associao entre risco edesigualdade, numa perspectiva que evidencie os atores sociais presentes num cenrioatravessado por conflitos, e que incorpore analiticamente a diversidade social na constru-o do risco, assim como a presena de uma lgica poltica a orientar a distribuio desi-gual dos riscos. Interessa, pois, considerar a noo de desigualdade ambiental (Torres,1997, p.26), compreendida em sua associao com outras formas de desigualdade presen-tes na sociedade, como as de raa, sexo e grupos de renda.

    Caractersticas do mercado de terras, por exemplo, fazem com que reas de risco (pr-

    ximas a lixes, sujeitas a inundaes e desmoronamentos etc.) sejam as nicas acessveis a

    grupos de renda mais baixa, que acabam por construir nesses locais domiclios em condies

    precrias, alm de enfrentar outros problemas sanitrios e nutricionais. Essa cumulatividade

    de riscos socioeconmicos e ambientais implica grande desafio do ponto de vista das polti-

    59R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 8 , N . 1 / M A I O 2 0 0 6

  • cas pblicas que, na maior parte das vezes, tendem a ser compartimentalizadas segundo reas

    de interveno setorial. (Torres, 2000, p.70).

    Assim, os indivduos so postos em condies desiguais do ponto de vista ambien-tal porque so desiguais em outros planos, pois, como afirma Torres, sociologicamente aidia de desigualdade implica o sentido de sobreposio ou exposio simultnea a maisde uma forma de desigualdade num processo cumulativo e circular. Porm, mais do queisso, destacaremos que essa desigualdade social e ambiental, mas tambm de poder sim-blico de capacidade de enunciar e definir coisas, dizer o que e como elas so (Bour-dieu, 2005). O objetivo do presente artigo o de situar as controvrsias sobre risco co-mo parte da luta entre representaes, entendendo o processo de vulnerabilizao dossujeitos que menos se fazem ouvir nas arenas pblicas.

    A base emprica do presente trabalho composta pelos depoimentos de oito deman-datrios cujas solicitaes foram registradas no ento Departamento de Defesa Civil daPrefeitura de Juiz de Fora (DDC/PJF), em situaes e perodos diferenciados. Em sua maio-ria, as solicitaes reclamavam atendimento de emergncia, envolvendo ocorrncias comodeslizamentos de encosta, desabamento (ou ameaa) parcial ou total de edificao e inun-dao. Os casos foram selecionados com base em pesquisa documental, considerando-seinformaes relevantes j registradas institucionalmente acerca dos eventos apontando pa-ra situaes de vulnerabilizao e diagnstico de risco. Apesar da tentativa que fizemos deabordar a unidade familiar toda entendendo que a memria de uma trajetria pessoal,mas tambm social, familiar e grupal , as entrevistas contemplaram apenas um represen-tante de cada famlia (em sete casos, mulheres) por diversos fatores atinentes tanto pro-cura pelos depoentes como ao momento especfico das entrevistas.1

    Cabe assinalar preliminarmente, porm, que no se deve confundir a abordagem daconstruo social do risco aqui privilegiada com uma defesa romantizada das condiesprecrias das moradias de risco. Tampouco se quer incorrer, como alerta Guivant (1998,p.31), numa banalizao dos conhecimentos peritos, polarizando as duas formas respec-tivas de saber. A idia de construo social do ambiente e do risco ope-se, com efeito,aos mecanismos de naturalizao deles. No se pretende, portanto, desconsiderar a di-menso concreta dos desastres, mas considerar a necessria reflexo acerca do seu am-biente, que no est dado, mas produto de uma construo social e histrica.

    RISCO: O DISCURSO DOS PERITOS

    lugar-comum mencionar a multiplicidade de riscos a que estamos diariamente ex-postos. Outro lugar-comum definir a exposio a riscos em geral como algo inerente condio humana. No entanto, enquanto alguns riscos so facilmente caracterizados pe-la experincia cotidiana ou pela aquisio de informaes diversas, outros so adquiridossomente com a adoo de procedimentos cientficos e complexos.

    Foi especialmente a partir dos anos 60 que estudos tcnicos sobre riscos, de carterquantitativo, desenvolveram-se em vrias disciplinas, como toxicologia, epidemiologia,psicologia e engenharia (Guivant, 2000, p.285). O risco foi considerado, com base nessaabordagem tcnico-quantitativa, um evento adverso, uma atividade ou uma configuraofsica com determinadas probabilidades objetivas de provocar danos e que pode ser esti-mado atravs de clculos de nveis de aceitabilidade, estabelecendo-se standards por meio

    C O N S T R U O S O C I A L D A M O R A D I A

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    1 Procurou-se considerar a

    diversidade dos denomina-

    dos Setores Urbanos do mu-

    nicpio de Juiz de Fora com

    relao localizao das

    avaliaes de risco oito

    bairros distribudos por cin-

    co dos oito Setores, a sa-

    ber: Marumbi (Leste), Grami-

    nha (Sul), Progresso (Leste),

    Poo Rico (Centro), Ladeira

    (Leste), Trs Moinhos (Les-

    te), Ponte Preta (Noroeste) e

    Granjas Bethnia (Nordes-

    te). A Regio Administrativa

    Leste concentra 76 das

    146 remoes ocorridas

    nos anos de 2002, 2003 e

    2004 (mais de 50%), acom-

    panhadas pelo poder pbli-

    co municipal; por isso sua

    forte presena na referida

    pesquisa.

  • de mtodos diversos. Expressa-se, assim, uma forte demanda por quantificao, mensura-o, calculabilidade, com vistas ao controle dos respectivos fenmenos. Nessa perspectiva:

    Os leigos tendem a ser identificados como receptores passivos de estmulos indepen-

    dentes, percebendo os riscos de forma no-cientfica, pobremente informada e irracional. Es-

    tima-se que os riscos percebidos pelos leigos no necessariamente correspondem aos riscos

    reais, analisados e calculados pela cincia. (Guivant, 2000, p.286.)

    Nos anos 70 e 80, surgiram crticas, fundamentadas na falta de dados cientfi-cos quantitativos suficientes, que provocaram divergncias de interpretao das evidnciase incertezas nos resultados. Nas Cincias Sociais, a chamada teoria cultural do risco, for-mulada a partir da contribuio de Mary Douglas, d nfase ao carter cultural das defi-nies de risco, o que pode levar diluio da diferena de autoridade entre leigos e pe-ritos e ao reconhecimento da pluralidade de atores sociais com racionalidades especficasnas formas de lidar com os referidos eventos. O discurso dos peritos ser ento objeto depesquisas especficas, como a realizada por Grizendi (2003), atravs da observao de de-poimentos de engenheiros civis tcnicos do ento DDCJF2 , colhidos em entrevistas se-mi-estruturadas.

    Quando se trata de mensurar e prever riscos, no h como garantir que os clculosprobabilsticos vo assegurar a medio de sua gravidade. Esse um dos motivos pelosquais a abordagem tcnico-quantitativa (caracterstica predominante no campo cientfi-co da engenharia) criticada. No entanto, a pesquisa de Grizendi mostra que o enge-nheiro busca essa certeza cientfica no seu exerccio profissional; e a ausncia de equipa-mentos e instrumentos que possibilitem exercer essa competncia cientfica o deixa emcondio vulnervel. No enfrentamento dessa condio vulnervel, o profissional buscaaproximar sua avaliao tcnica o mais possvel daquela considerada cientfica. Contudo,por no contar com os instrumentos tecnicamente exigidos, essa aproximao nem sem-pre alcanada e o profissional tem que tomar decises, ainda que com base em recur-sos precrios. Eles argumentam utilizar o bom senso e a intuio (feeling, conheci-mento intuitivo), adquiridos por meio da experincia com situaes de risco, naorientao de suas decises.3

    Considerando essa condio vulnervel do tcnico, percebe-se que as diversas si-tuaes encontradas nas vistorias no podem ser avaliadas apenas com base em critriostcnicos das noes inculcadas pelo habitus profissional4 , pois a populao vivenciacondies de vulnerabilidade socioeconmica que estabelecem outros nveis de exign-cia e ateno.

    O enfrentamento dessas situaes diferenciadas em relao formao do tcni-co leva-os a encaminh-las para outros profissionais e setores; isso feito para que eleno fuja de seu propsito, ou seja, o de proceder avaliao tcnica para a qual foi pre-parado. Com efeito, as abordagens acerca dos desastres encontram-se, via de regra, ain-da fortemente atreladas a fenmenos climticos especficos, negligenciando-se as suascausas socioespaciais e dificultando o enfrentamento das emergncias. Revela-se umaincompreenso mtua (Valencio et al., 2003, p.229) entre atendente e atendido emdesastres, uma vez que esse formato convencionalmente adotado mostra-se distante nos da compreenso do que produzido socialmente em termos de configurao territo-rial, mas tambm da percepo social da populao acerca dos riscos e ameaas. Essas li-mitaes contribuem para a manuteno dos quadros de vulnerabilidade, uma vez que

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    2 Grizendi (2003, p.7) escla-

    rece que no procedimento

    adotado para tratar das si-

    tuaes de risco, no mbito

    do Departamento de Defesa

    Civil de Juiz de Fora, a pri-

    meira verificao em cam-

    po da existncia da ocorrn-

    cia e sua gravidade cabe ao

    Setor de Preveno e Opera-

    es de competncia da

    Engenharia. Os engenheiros

    atendem a solicitaes em

    diversos pontos da cidade ...

    Mas o risco nem sempre

    facilmente identificado e

    mensurado. Mesmo entre os

    tcnicos, nem sempre h

    uma clara caracterizao da

    situao de risco em termos

    dos nveis de susceptibilida-

    de. Afirma ainda a autora

    que uma avaliao equivo-

    cada pode trazer como con-

    seqncias no somente o

    comprometimento da vida

    das pessoas, mas do prprio

    exerccio profissional.

    3 Apesar de haver uma bus-

    ca pela referncia cientfica

    e a conscincia de sua ne-

    cessidade (anlises basea-

    das em sondagens do solo,

    levantamentos pedolgicos,

    hidrolgicos, verificao das

    patologias construtivas das

    edificaes e obras de con-

    teno, entre outros), os

    tcnicos revelam produzir

    seus diagnsticos constan-

    temente pressionados pela

    ausncia da sustentao

    tecnolgica necessria (ins-

    trumentos tecnicamente exi-

    gidos) e da retaguarda do

    poder pblico para o atendi-

    mento s situaes de risco

    nos quadros de vulnerabili-

    dade social. Segundo a vi-

    so de um dos engenheiros

    entrevistados por Grizendi:

    Na maior parte dos casos a

    gente realmente recorre a

    tentar traduzir em termos

    mecnicos, fsicos e mecni-

    cos, a situao que a gente

    encontra, ou seja, a gravida-

    de dos casos. A gente tenta,

    na maior parte dos casos,

    reduzir isso a um problema

    de mecnica, ou de mecni-

    ca dos solos, ou hidrulica,

    ou de eletricidade, se for o

    caso, e, ento, [d] um trata-

    mento o mais perto possvel

    de uma coisa cientfica ...

    Ns no temos recurso cien-

    tfico nenhum para fazer me-

    dies, para fazer controles,

    para fazer acompanhamen-

    tos, alm do que, ns, na

    maior parte dos casos en-

  • as intervenes buscam apenas ajustamento social, rpido, inquestionvel, s condiesfsico-naturais limitantes (Valencio et al., 2003), o que reduz a conduo para soluesque sejam estruturais.

    preciso buscar as outras dimenses do problema, o que demandaria reconhecer aslimitaes da viso hegemnica sobre desastres. Das dimenses interventivas atribudasnormativamente Defesa Civil quais sejam, a ao preventiva, o socorro, a assistnciae a recuperao , o socorro o mais facilmente identificvel em sua atuao, havendolimitaes polticas, tcnicas e operacionais para atuar nas pontas, o que seria ainda maisimperativo em razo do crescimento da vulnerabilidade humana (Valencio et al., 2003).

    Considerando as limitaes citadas, inclusive as de ordem institucional identificadasno mbito da gesto de desastres, cabe perguntar: como essa vulnerabilidade da populao traduzida pelo tcnico? A necessidade (privaes vivenciadas pela populao) a pri-meira coisa que o tcnico identifica e esse aspecto se mostra, nas representaes sobre o ris-co, como motivo de maior preocupao do que as chamadas situaes de risco avaliadastecnicamente. No entanto, as opinies dos tcnicos sobre essa vivncia da vulnerabilidadepela populao no expressa uma homogeneidade de pensamento no grupo, como apon-ta ainda Grizendi, pois aspectos valorativos interferem na interpretao das situaes.

    Grizendi (2003) buscou identificar essas representaes e apontou quatro dimen-ses, a saber: os fatores que os tcnicos consideraram que poderiam levar os sujeitos avivenciar o risco, as representaes relacionadas com a interpretao do comporta-mento da populao atendida (atitudes e prticas de enfrentamento dos riscos), o posi-cionamento dos tcnicos quanto demanda apresentada pelos moradores durante asvistorias, e, por fim, as representaes referentes vulnerabilidade de tcnicos e da po-pulao diante da ausncia de retaguarda do poder pblico para um efetivo atendimen-to populao.

    As situaes de risco-vulnerabilidade so, na viso dos tcnicos, decorrentes tanto defatores mais contextuais, produto do quadro sociopoltico do Pas, como tambm da pr-pria conduta do indivduo diante das situaes de risco. Segundo Grizendi, recorre-se a:

    ... um tipo de argumento que responsabiliza o morador, na medida em que este executa as

    obras sem orientao adequada, ocupa reas de proteo ambiental, utiliza materiais no-

    apropriados e outras prticas recorrentes. O discurso aqui se inverte. Da condio de no-as-

    sistido, o morador passa condio de culpado. Nesse caso, os fatores de risco estariam rela-

    cionados falta de educao dos moradores, como se houvesse uma falha na formao moral

    das pessoas atendidas. Nesse caso, os tcnicos assumem uma posio de que os moradores ca-

    recem de informao, de educao e, assim, propem que eles sejam educados e esclarecidos.

    (2003, p.56.)5

    Neste ponto cabe fazer uma ressalva questo do poder/saber que o perito porta res-paldado pela cincia e que se confronta com as prticas e juzos da populao. Tal tipo depoder reside na capacidade que certas profisses tm, no mbito da estrutura estatal e dascompetncias do tcnico, de instalar novas ordens sociais na cidade.

    Em nossas sociedades, a economia poltica da verdade tem cinco caractersticas his-

    toricamente importantes: a verdade centrada na forma do discurso cientfico e nas insti-

    tuies que o produzem; est submetida a uma constante incitao econmica e poltica (ne-

    cessidade de verdade tanto para a produo econmica quanto para o poder poltico);

    C O N S T R U O S O C I A L D A M O R A D I A

    62 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 8 , N . 1 / M A I O 2 0 0 6

    contramos situaes em

    que os fatos [esto] consu-

    mados e a possibilidade de

    interveno muito peque-

    na. Eu quero dizer o seguin-

    te: encontramos, por exem-

    plo, peas de concreto

    armado executadas de for-

    ma que os parmetros que

    determinam a resistncia

    dessas peas... eles no po-

    dem ser avaliados por ns

    segundo nenhum critrio ob-

    jetivo. Dizer simplesmente...

    visual e na base do feelingento... o atendimento

    muito nessa linha (Engenhei-

    ro 1) (2003, p.31). Essa

    anlise complementada

    por um segundo entrevista-

    do: Ento quando a gente

    chega no local, procura vi-

    venciar aquele momento ali,

    conversar com as pessoas,saber o histrico, o queaconteceu, procurar verifi-car o entorno daquela situa-o. muito difcil, sob ascondies em que a gentetrabalha... porque, s vezes,a gente chega no local, de

    madrugada, noite, ento a

    gente no tem condies de

    verificar o risco como luz

    do dia. Ento voc tem quefazer uma avaliao muitoprecria naquele momentoe, muitas vezes, pelas condi-es de bom senso, voc re-tira aquelas pessoas daque-

    le local, contando com a

    participao dos vizinhos,

    dos moradores, quer dizer,

    ento uma situao de risco,

    de emergncia, sempre

    assim, uma condio de in-

    segurana para a gente tam-

    bm, porque a nossa condi-

    o de julgamento muito

    falvel, ento eu me sinto

    dessa forma, eu no me sin-

    to seguro no. s vezes, nolocal, eu procuro me ampa-rar em questes ou em pes-soas que possam me darum retorno daquelas dvidasque eu tenho, para poder to-mar uma deciso... (Enge-nheiro 3) (Grizendi, 2003,

    p.32, grifos meus).

    4 A importncia do habitusno exerccio profissional po-

    de ser compreendida da se-

    guinte forma: No se pode

    pois, tanto como em outros

    domnios, confiar nos auto-

    matismos de pensamento

    ou nos automatismos que

    suprem o pensamento ... ou

    ainda nos cdigos de obser-

    vao, boa conduta cientfi-

    ca mtodos, protocolos

  • objeto, de vrias formas, de uma imensa difuso e de um imenso consumo (circula nos apa-

    relhos de educao ou de informao, cuja extenso no corpo social relativamente grande,

    no obstante algumas limitaes rigorosas); produzida e transmitida sob controle, no ex-

    clusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos polticos ou econmicos (universidade,

    exrcito, escritura, meios de comunicao); enfim, objeto de debate poltico e de confron-

    to social (as lutas ideolgicas). (Foucault, 2004.)

    O discurso dos peritos , pois, um fenmeno pertinente ao regime moderno de pro-duo de verdades. Os tcnicos apontaro a presena de condutas ativas ou passivas dosindivduos diante do problema do risco, valorizando as primeiras e criticando as prticasque resultam do que consideram desconhecimento, desinformao ou condutas equivo-cadas. Grizendi afirma ento que:

    O confronto dos relatos dos tcnicos e dos moradores entrevistados e a anlise dos Bo-

    letins de Ocorrncia revelou que as representaes sociais vm sendo construdas por esses

    dois grupos numa relao dialtica de negao e afirmao do risco. A anlise do contedo

    representacional dos enunciados de ambos revelou uma estreita relao entre as situaes de

    risco e as condies de vulnerabilidade socioeconmica: tanto as situaes de risco podem

    conduzir os indivduos a viverem em condies vulnerveis, quanto a vulnerabilidade so-

    cioeconmica pode lev-los a vivenciarem situaes de risco, numa dinmica de circulari-

    dade. (2003, p.74.)

    H, por outro lado, uma circulao das representaes sociais entre os dois grupospesquisados, tendo sido possvel identificar a presena de elementos das representaessociais dos tcnicos nos discursos dos moradores e vice-versa. Porm, essa circulao dereferncias no significa uma comunicao bem-sucedida e nem que os grupos com-partilhem as mesmas representaes. Veremos a seguir como os atingidos por polticasde remoo fundadas em situaes de risco constroem um contradiscurso fundamenta-do na legitimidade de sua permanncia.

    A NARRATIVA DOS MORADORES

    Em noite de chuva eu sentava, cobria as pernas com cobertor e ficava esperando o ba-

    rulho. Porque ningum acredita, mas quando um barranco cai, no sei o que , mas ele rus-

    na que nem bicho. (Maria Camlia Progresso)6

    Na anlise das representaes dos entrevistados submetidos a processos de remoo,observaremos que a recategorizao do que risco associa-se aos esforos de permannciano lugar para os fins de garantia da posse e dos ativos sociais, configurando uma resistn-cia noo tcnica dominante do risco. As narrativas apontam inicialmente para a pre-sena de um conhecimento acumulado pela populao ao longo de suas trajetrias, oriun-do da experincia pessoal, que se confronta e resiste noo tcnica de risco. A resistnciaaqui poderia ser caracterizada por formas particulares e difusas de reagir ao discurso tc-nico, que quase sempre resulta na expulso, sem outras garantias de acesso ao espao ur-bano e moradia prpria. Essas formas de conhecimento hbridas ou no propriamen-te codificadas, representadas pelas prticas de grupos sociais especficos, se confrontam

    M A R I A A U X I L I A D O R A R A M O S V A R G A S

    63R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 8 , N . 1 / M A I O 2 0 0 6

    de observao etc. que

    constituem o direito dos

    campos cientficos mais co-

    dificados. Deve-se pois con-

    tar sobretudo, para se obte-

    rem prticas adequadas,

    com os esquemas incorpo-

    rados do habitus (Bourdieuapud Grizendi, 2003, p.29).

    5 Em estudo denominado

    Reflexividade na sociedade

    de risco: conflitos entre lei-

    gos e peritos sobre os agro-

    txicos, realizado por

    Guivant (2000, p.283), en-

    contramos a afirmao de

    que os parmetros estabele-

    cidos cientificamente ser-

    vem, em muitos casos, para

    acabar atribuindo a culpa

    dos problemas de contami-

    nao ou intoxicao no

    aos cientistas, ao Estado ou

    s empresas, mas aos pr-

    prios agricultores, que esta-

    riam utilizando de forma ina-

    dequada o insumo, por falta

    de conhecimento, por negli-

    gncia ou por irracionalida-

    de, ocasionando acidentes.

    Esse argumento o outro

    lado do consenso cientfico

    sobre os riscos, que en-

    contra um terreno propcio

    para ser aceito na alta divi-

    so do trabalho, entre pes-

    quisa, produo, difuso,

    venda e uso de agrotxicos,

    o que provoca a diluio so-

    cial dos efeitos, sem que a

    responsabilidade pelos pro-

    blemas seja assumida por

    algum mais que os agricul-

    tores.

    6 Para preservar os entre-

    vistados, omitimos seus no-

    mes verdadeiros, bem co-

    mo seus endereos. Os

    bairros informados, entre-

    tanto, correspondem aos lu-

    gares de origem dos mora-

    dores ou queles em que

    eles tiveram suas respecti-

    vas experincias de contato

    com o risco e/ou remo-

    es.

  • com os modelos dos quais se utiliza a cincia moderna na tentativa de explicar os fen-menos e codific-los, modelos de conhecimento esses que se tornam instrumentos de po-der quando se impem como o saber legtimo.

    Figura 1 Alto dos Trs Moinhos. Juiz de Fora, janeiro de 2003. Fonte: DDC/PJF.

    ... dois dias antes [do deslizamento de terra] ns tinha visto uma rachadura na nossa varan-

    da, e eu ainda brinquei com meu marido: por que rachou se voc arrumou?. Ele falou: ah!

    deve ser por causa de ficar pisando aqui ... as crianas ficam passando, brincando aqui. Mas

    ele foi, arrumou, fez escora, fez tipo um muro de rip-rap por baixo da varanda. A aconteceu

    de comear a chover e quando a gente pensa que no, e ele chegou l fora e disse: l fora ra-

    chou, tem uma rachadura enorme l fora. Eu arrumei, mas no sei o que aconteceu no.

    Ento, j deveria estar rachando l de baixo at em cima, porque no ia comear de cima,

    n? J devia estar vindo l debaixo. Eu disse pra ele no preocupar, pra arrumar no dia se-

    guinte. (Simone Rodrigues Graminha.)

    A aceitao de um diagnstico tcnico que aponte para uma remoo definitiva quase sempre dificultada pela ausncia de alternativas num contexto de superposio decarncias e ainda mais quando feito com base na probabilidade de ocorrncia futurado problema,7 sem que algo de concreto, visvel, palpvel tenha ocorrido aos olhos dosujeito, o que se caracterizaria, no discurso tcnico, como uma iniciativa preventiva. Es-ta foi a experincia relatada por Ins Helena Silva Incio:

    ... eles disseram que minha casa no tinha tanto perigo, da ns ficamo l. Depois eles iam

    sempre l e olhavam pra ver como que tava. E disseram que eu tinha que sair: era eu, o

    Lus, a Ins e a dona Marilsa. A disseram que ns teria que sair dali.

    Minha casa no tinha problema nenhum. A do Lus caiu um barranco atrs, mas a ca-

    sa, tirando aquela terra, no tinha necessidade de ele ter mudado de l. A dona Marilsa tam-

    bm. Do jeito que o muro que tavam falando que ia cair sobre a casa, do mesmo jeito ele t

    l at hoje. No caiu nada. A da Ins rachou um pouco. No tinha assim tanto perigo ...

    C O N S T R U O S O C I A L D A M O R A D I A

    64 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 8 , N . 1 / M A I O 2 0 0 6

    7 Vale recordar o tempo de

    ocupao que cada um dos

    entrevistados teve nas res-

    pectivas reas denominadas

    de risco: Aline Cordeiro,

    20 anos; Simone Maria Ro-

    drigues, 10 anos; Maria Ca-

    mlia Ins Souza, 12 anos;

    Mrcia de Oliveira, 5 anos;

    Matias Machado Farias,

    aproximadamente 20 anos;

    Ins Helena Silva Incio, 11

    anos; Silia Assis de Jesus,

    3 anos; e Maria Tavares Da-

    vi, 4 anos.

  • Bem, a gente acha, n? Porque a gente que no entende do assunto, a gente fala: ah! no ti-

    nha perigo ... como no caiu at hoje. Ento, a gente fala que no tinha perigo, mas s ve-

    zes, se eles falaram, porque...

    Eu achava que no ia ter perigo. Mas eles disseram que iam derrubar todas, que no ficaria

    nenhuma inteira ali. Eu fui a ltima a sair de l, porque o Adauto ficou perguntando se eles no

    faziam um muro pra gente, porque no queria sair de l... (Helena Silva Incio Trs Moinhos.)

    O risco ambiental, que aqui aparece exemplificado especificamente por deslizamen-tos de terra e enchentes, se apresentar, ento, apenas como mais um elemento compo-nente do cenrio de dificuldades, privaes e demandas imediatas, numa condio depouca significncia em relao a outros elementos presentes. Ele visto como contorn-vel e passvel de convivncia. Diante da experincia de privaes, as conquistas (como aconstruo de suas casas, mesmo que precariamente) raras e rduas ganham relevn-cia, delimitando as posturas de resistncia adiante da avaliao tcnica, por vezes poucoclara na perspectiva do morador, mas quase sempre decisiva nos rumos de sua vida.

    A maior recordao que tenho foi a penitncia pra gente construir a casa. Da gente su-

    bir e descer aquela escada carregando gua, lajota, carregando o material, porque no tinha

    como deixar descer nem como o caminho chegar mais perto. Ento, foi com muita dificul-

    dade mesmo que a gente construiu aquilo ali. Posso dizer que no tenho assim outras grandes

    recordaes... Depois que colocaram a luz, n?, a gente podia ficar no terreiro batendo papo

    com os vizinhos, o que era at muito gostoso. ... Porque l eu fiz com tanto sacrifcio...

    Eu sa num dia da minha casa e no outro eles derrubaram ela. No deu pra aproveitar nada.

    Isso que triste, n? Voc faz com tanto sacrifcio e depois v aquele monte de tijolos jo-

    gados no cho. (Ins Helena Trs Moinhos.)

    Se o acionamento dos tcnicos da Defesa Civil ocorre em grande parte em razo daexpectativa de que eles possam atenuar o risco , por outro lado, pode ocorrer confrontoante avaliaes que levem a remoes definitivas ou com desdobramentos indesejados, oque justifica a opo de no-envolvimento, em alguns momentos, com o referido setor,mesmo em condies de ameaa e perigo.

    No raro, populaes em reas de risco, uma vez afetadas por desastres, como os rela-

    cionados s chuvas, deixam de reportar Defesa Civil as pequenas tragdias particulares vi-

    venciadas, assim como vem com desconfiana e agem com resistncia s estratgias de pre-

    veno que so colocadas em operao, como a remoo das pessoas do lugar, o que

    realizado geralmente, como deslocamento involuntrio ... a associao do descaso cotidiano

    do poder pblico em relao a eles com a abordagem pontual dos servios de emergncia em

    pocas de chuvas, que buscam retirar as pessoas do lugar ameaado, passvel de tomar a

    compreenso de que a emergncia no se trata de um resqucio de proteo social, mas de

    um esforo pblico de deslocar a vulnerabilidade em vez de resolv-la. Portanto, trata-se de

    um tipo de violncia. Como seria possvel queles que so invisveis a maior parte do tempo

    para o Estado e para a sociedade organizada aceitar que, ocorrendo o desastre (ou a sucesso

    de emergncias ou a calamidade), tornaram-se, desde ali, objeto de preocupao para o ou-

    tro? A desconfiana da populao vitimada em relao aos seus salvadores justifica-se pelo

    histrico de abandono e silenciamento, muitas vezes violento, de suas demandas, inclusive as

    que mitigariam os riscos de desastres ...8 (Valencio et.al., 2003.)

    M A R I A A U X I L I A D O R A R A M O S V A R G A S

    65R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 8 , N . 1 / M A I O 2 0 0 6

    8 Este aspecto ser retoma-

    do posteriormente quando

    da observao da postura

    do poder pblico pelos en-

    trevistados.

  • No possvel compreender a postura de segmentos sociais atingidos por decisesde remoo por risco se no se considerar as dinmicas de vulnerabilizao geradas porum poder desigual. Sobreviver urgente, imediato. Colocada nesse plano, a sujeio a umpossvel risco, noo de uma ameaa futura, vista como algo secundrio. O risco reinterpretado pela iminncia de um outro tipo de ameaa: a de expulso.9

    Os moradores contestam aquilo que lhes apontado como vivel em termos de se-gurana, alegando que essa segurana possvel desde que haja recursos financeiros paratal. Sugerem assim que, para muitos dos casos que so analisados como de risco, seriapossvel uma soluo tcnica de consolidao das reas, sem que houvesse necessidade deremoo. Porm, como a questo econmica, defrontam-se com o argumento da faltade recursos: a soluo delegada aos sujeitos, no plano individual. Em outros termos:nem sempre o problema o risco biofsico de uma rea, mas sim a ausncia de diretrizespblicas de consolidao das reas atravs de obras que permitam a permanncia.

    Eu fico alegre de estar fora do risco, porque eu tenho meus filhos. Mas triste, porque me

    pergunto: por que tiraram s ns? Ser que ns somos melhor ou ns somos pior?... Ah! Dei-

    xa o pobre morar onde quer. Eu falei com o engenheiro: por que vocs vo tirar ns daqui?.

    O povo no tem direito de escolher onde quer morar, no? Vocs vo me dar uma casa no cen-

    tro da cidade? Eu quero morar perto da cidade ... E ali dava, de corao, pra fazer uns predio-

    zinhos, sem risco, sem nada. Todo mundo ali t ciente disso. Eu no sou engenheiro, no, mas

    s colocar uma fundao l embaixo. Quer dizer, pros ricos no condena nada, o bolso fala

    alto, mas pros pobres. Condenado o bolso dos pobres. (Mrcia de Oliveira Poo Rico.)

    As estratgias dos moradores apiam-se tambm na reinterpretao dos fatos e sinaisdo cotidiano. H, em particular, um aprendizado acerca dos fenmenos naturais (a des-cida dos barrancos, a chegada das guas das enchentes). A leitura desses sinais se soma anoes de tcnicas construtivas, conformando um conhecimento que norteia suas aes,conferindo-lhes segurana.

    No sei se era pequeno ou grande demais [o risco]. No tempo da chuva, a gente vivia

    um martrio, acho que j tinha um trauma. A gente dormia sempre mais pros fundos da ca-

    sa, porque se o barranco comeasse a cair, ele ia atingir primeiro uma parte da casa. At che-

    gar, sempre tinha janelas pros fundos que daria pra sair. Juntava todo mundo e dormia mais

    pros fundos ... Graas a Deus. Eu sou uma pessoa que sou assim: caiu um pouquinho, eu

    presto ateno. Caiu a segunda, caiu a terceira, Deus que t avisando, pode sair ...

    porque eu no durmo. Ali era assim: quando comeava a chuva eu no dormia. Sem-

    pre ficava ligada porque eu tinha muito medo dos meus filhos morrer subterrados. Ento, eu

    j fazia com eles assim: vocs vo dormir tudo aqui perto da porta. E j punha cama ali

    perto da porta. Porque o barranco, ele vem demolindo, ele faz tipo um barulho que voc v

    que ele vem descendo. D pra escutar, que nem um bicho. s quem nunca viu que no

    sabe. Mas parece que a terra, ela um bicho, um monstro. (Maria Camlia Progresso.)

    forte a presena da religiosidade e muito se resolve na explicao mstica: a faltade apoio, pessoal ou pblico, manifestando-se na forma de avisos, proteo, explicaes eexpectativas diversas. A religiosidade aparece tanto no que diz respeito proteo com aqual afirmam poder contar, diante das instabilidades constantes, quanto ao que esperampara o futuro. Segundo Gomes & Pereira (1992, p.160), as camadas empobrecidas da po-

    C O N S T R U O S O C I A L D A M O R A D I A

    66 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 8 , N . 1 / M A I O 2 0 0 6

    9 No cabe aqui relatar com

    maior detalhe a trajetria de

    cada famlia envolvida nesta

    pesquisa, mas apresentare-

    mos alguns indicadores so-

    ciais com o objetivo de faci-

    litar a compreenso de seus

    contextos de vida e priva-

    es, buscando com isso

    dar mais sentido s narrati-

    vas aqui esboadas. En-

    trevistados: A.C., 32 anos,

    domstica, 1 grau incom-

    pleto, evanglica, residia

    com outros dez familiares

    na edificao condenada pe-

    la Defesa Civil (DC), no bair-

    ro Marumbi. Sua casa era

    constituda de placas de mu-

    ro e materiais diversos e se

    situava em rea totalmente

    carente de infra-estrutura,

    estava posicionada s mar-

    gens de um crrego e tinha

    como fundos um talude de

    aproximadamente 5 m de al-

    tura. S.R., 35 anos, doms-

    tica, 1 grau incompleto, 10

    filhos, teve sua casa de pa-

    dro construtivo muito sim-

    ples atingida por grande

    deslizamento de terra em

    dezembro de 2002 e foi re-

    movida juntamente com ou-

    tras sete famlias de rea

    tecnicamente condenada

    pela DC, no bairro Grami-

    nha. M.C.I.S., 44 anos, tra-

    balhadora informal, analfa-

    beta, foi removida (pela

    terceira vez) juntamente

    com outros 26 familiares

    (entre filhos, companheiro,

    netos, noras e genros) em

    razo de escorregamento

    de talude, no bairro Progres-

    so. M.O., 39 anos, domsti-

    ca, quatro filhos, morava

    em edificao de baixo pa-

    dro construtivo nas mar-

    gens da linha frrea, no bair-

    ro Poo Rico, em rea de

    ocupao condenada por

    ameaa de deslizamento de

    talude. M.M.F., 64 anos,

    marceneiro aposentado, se-

    te filhos, o nico que perma-

    nece na rea do bairro La-

    deira, avaliada como de

    risco. H 20 anos no local,

    lder comunitrio, partici-

    pante da luta pela perma-

    nncia da comunidade e in-

    fra-estruturao da rea.

    I.H.S.I., 56 anos, aposenta-

    da, analfabeta, quatro filhos,

    foi removida do bairro Trs

    Moinhos juntamente com

    outras 47 famlias em 2003,

    depois de grande desliza-

    mento de terra que vitimou

    duas crianas. Mora com

    seu companheiro em bairro

  • pulao engendram mecanismos que atendam no s s necessidades da vida material,mas tambm ao relacionamento com o sagrado: o universo divino no se coloca parale-lamente ao universo humano, mas penetra-o, investindo-o de possibilidades sobre-huma-nas (Gomes e Pereira, 1992, p.160).

    A religiosidade se apresenta em graus diferenciados, mas est sempre presente, obe-decendo dialtica da vida, entendida como sucesso de ganhos e perdas, subordinaoe dominao, inteireza e fragmentao.

    Figura 2 Bairro Marumbi, Juiz de Fora, janeiro de 2004. Fonte: DC/PJF.

    Vou muito igreja. Peo muito a Deus, porque se a gente no pedir a Deus, nada fei-

    to. Com ele j difcil, sem ele, ento, pior. A a gente tem que pedir muito a Deus pra ter

    misericrdia da gente ...

    Eu sei que Deus vai me ajudar a arrumar um lugarzinho. Eu no t escolhendo lugar,

    no, aonde eles mandar ns vamos com Deus, ns agradece a Deus. Porque ningum vai dar

    a ns um lote bom, numa baixada ou no centro. No espera isso, no, sempre mais afasta-

    do mesmo. (Silia Assis de Jesus Ponte Preta.)

    O que poderia ser apontado como passividade, pode ser lido como parte de um sis-tema de trocas simblicas com a divindade. Essas estratgias de resistncia, apoiadas, emparte, no carter divino atribudo aos fatos, sustentam-se tambm na insistncia em sepermanecer ou retornar e reconstruir no local do acidente, mostrando a importncia dolugar seu em relao despossesso vivenciada.

    ... parece que ns tem o umbigo agarrado aqui ... a gente no gostava do outro bairro, a vol-

    tamos pra essa casa! (Maria Camlia Progresso).

    Eu no vendo isso aqui de jeito nenhum, pode me dar a fortuna que der. Porque ns,

    se chegar aqui e falar: vocs querem uma manso l em Benfica?. Pode falar comigo, dona

    Gilda, qualquer um filho, ningum quer sair daqui. Nosso lugarzinho aqui. Daqui eu que-

    ro sair s l pro Municipal [Cemitrio], onde eu j tenho um lugarzinho. (Matias Machado

    Faria Ladeira.)

    M A R I A A U X I L I A D O R A R A M O S V A R G A S

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    vizinho. S.A.J., 60 anos,

    analfabeta, pensionista, tem

    seis filhas e foi removida de

    casa de padro construtivo

    simples, sem infra-estrutura,

    no bairro Ponte Preta, s

    margens do rio Paraibuna

    local sujeito a enchentes.

    M.T.D., 42 anos, analfabeta,

    desempregada, nove filhos,

    residia em rea de ocupa-

    o sem nenhuma infra-es-

    trutura, em dois cmodos

    improvisados que foram

    atingidos por deslizamento

    de terra com as chuvas do

    vero de 2004, no bairro

    Granjas Bethnia. Exceto o

    senhor M., todos os outros

    permanecem como benefi-

    cirios do Pase Programa

    de Ateno a Situaes

    Emergenciais, coordenado

    pela Prefeitura de Juiz de

    Fora, que compreende o pa-

    gamento de aluguel mensal

    para as famlias removidas.

  • A identidade implica partilha de um contexto determinado. vivendo na interse-o de instncias diversas como a famlia, o trabalho, a vizinhana, a Igreja, as associa-es de bairro e as instituies sociais e assistenciais, que constroem seu lugar na socie-dade com as reciprocidades da decorrentes. O relato abaixo aponta para umavinculao criada e fortalecida com base nos ativos sociais presentes na experincia dafamlia e da comunidade.

    Eu te falo: minha riqueza era l. Porque eram pessoas que te tratavam com certo cari-

    nho. Todo mundo que ia te ajudar... ali iam pessoas noite pra dar o lanche para as crian-

    as. Saa aquela crianada gritando . Natal nunca foi esquecido ali, Dia das Crianas,

    Pscoa, tudo voc tinha ali. Era pouquinho, mas cada um chegava com um pouco. Tinha

    pessoas da Universidade que ia fazer o trabalho. Cada um saa um pouco e arrecadava agasa-

    lhos, sapatos e levava l. Mesma coisa era a Casa do Caminho, a Igreja... Era bom, no que

    voc queira viver eternamente de ajuda, mas hoje voc t empregado, e amanh? Ali um

    lugar que pra mim riqueza. onde voc t passando uma certa dificuldade e acha uma mo

    estendida pra voc, a melhor forma de voc dar carinho ao prximo, estender a mo pra

    ele. (Mrcia de Oliveira Poo Rico.)

    Pode-se identificar a presena de elementos do meio rural nos modos de vida: aquesto do espao (da casa e do terreno) apresenta-se como um valor para a escolha dolocal de moradia: as prticas de plantar, trabalhar na terra, criar animais, cozinhar no fo-go lenha, possuir quintal (espao do encontro com os vizinhos e do lazer das crianas).

    Foi onde ele quis vir pra c, porque tem lugar pelo menos pra ele mexer com terra de

    vez em quando ... porque a me da gente sempre plantou, ento a gente continua a mes-

    ma coisa. E bom ter uma verdura no quintal, poder colher, no precisar comprar. (Ins He-

    lena Trs Moinhos).

    At hoje ns tamo esperando pra ver pra onde eles vo levar ns. Pode at ser assim no

    morro, mas eu quero um quintal, um pedacinho pra eu poder plantar alguma coisa ... Olha,

    de verdura eu no comprava nada quando morava l. Tinha tomate plantado. Eu mesma

    comprava semente, semeava e cuidava da minha hortinha. A gente sente falta ...

    O prazer de ter a minha casinha com terreirinho pra plantar uma couve... Eu me sen-

    ti muito feliz quando consegui isso l [na rea de inundao]. Eu sa do pesadelo do aluguel.

    A preocupao de pagar, dever e ter aquela responsabilidade. Pra mim foi um alvio porque

    eu j estava dentro do que era meu. S Deus pra me tirar dali. (Silia Assis Ponte Preta.)

    Dona Maria Camlia relata as diversas experincias de retorno para o mesmo localde onde teve que sair trs vezes em razo de deslizamentos de terra, da destruio de suascasas e da reconstituio delas, assim como as iniciativas para conter o risco. Uma pr-tica cuja legitimidade associada inconsistncia das iniciativas do poder pblico.

    Encontramos muito barro. Limpamos tudo e fizemos de pau-a-pique. Essa foi a segun-

    da casa. Depois ficamos desabrigados de novo, novamente porque desceu barranco. Da, no

    tivemos ajuda, s da Escola de Samba. Ficamos l e depois tivemos que caar suas casas ...

    Parece que ns tem o umbigo agarrado aqui ... voltamos pra essa casa, naquele mesmo lugar.

    E se eu pudesse, hoje eu voltava de novo. (Maria Camlia Progresso.)

    C O N S T R U O S O C I A L D A M O R A D I A

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  • O apego ao lugar aparece por vezes associado aos laos mais gerais criados ao longoda trajetria de vida: vizinhana, s prticas cotidianas, hbitos e valores. Em outros casos, em que a sociabilidade se mostra mais frgil, o apego estar diretamente associadoa conquistas mais especficas como a construo da casa prpria, marcada pelos sacrifciosconstantes e por uma luta para atingir o mnimo necessrio. De maneira geral, a relaocom a viso tcnica do risco se mostrar pouco significativa: ele aparecer na razo inver-sa da identificao do local como lugar noo que fortalecer a luta pela permann-cia e a contestao da verso tcnica.

    No processo de construo social do risco, o ambiental situa-se no mbito do risco so-cial, ou, como j enunciamos, no contexto das desigualdades ambientais, em que o conjun-to de privaes experimentadas, a conscincia do constrangimento de buscar reas mais ins-tveis ou degradadas como nica alternativa, a possibilidade de despejo, desmoralizao ehumilhao para os que no conseguem pagar aluguel levam relativizao do risco fsico.

    O que a gente viveu foi assim de muita dificuldade. Dificuldade financeira, assim, de

    no ter o que comer, de no ter o que vestir direito, sabe? isso o que eu lembro. Sempre

    foi assim ... Mas aquela casa que a gente ficou, ela caiu. Inclusive, ela ia cair em cima da Ali-

    ne [risos] ... mas a eu peguei ela antes. Assim que tirei ela, a casa caiu. Ns ficamo s com

    a parte da cozinha. Essa foi a primeira casa pra onde fomo, era grande mesmo, era a maior

    que tinha l no beco. Caiu, ns fomo pra casa de uma vizinha por um dia, e depois voltamo

    pra viver nela mesmo. Teve uma poca que colocamo um plstico que a DC deu e ns fica-

    va debaixo do plstico. Nessa poca caiu um caminho ali, eu fiquei preocupada com o mo-

    torista, quase que eu ca tambm l embaixo. Ns j camo muito [risos]. Eu j ca l, meu

    neto quando era pequenininho tambm j caiu. (Ndia me de Aline.)

    Em todos os relatos, a experincia do aluguel antecede a ocupao das reas de ris-co. Pressionados pela ausncia de recursos para custear as despesas do aluguel, a decisopor invadir os locais disponveis para os pobres expresso utilizada pelos prprios en-trevistados torna-se, na escala de privaes, um posicionamento legtimo. O risco tor-na-se pouco significativo diante da ameaa de desabrigo. A oportunidade de morar ex-plica, em grande parte, o fato de as pessoas estarem em locais instveis e precrios. Essareelaborao do risco aparece ancorada na necessidade de segurana da posse e dos ati-vos sociais. Turner, ao debater sobre novas formas de se avaliar o dficit habitacional,aponta os aspectos que julga essenciais no que diz respeito s funes da moradia:

    Postulo tres funciones esenciales que todo alojamiento debe satisfacer con objeto de lograr

    una realidad externa: refugio, seguridad y localizacin. Una casa no es una casa si no proporcio-

    na un mnimo de proteccin contra el clima insoportable y las personas insoportables; si el refu-

    gio, por muy excelente que sea la proteccin que suministre, no puede ser ocupado con una razo-

    nable garanta de posesin ser de poca o ninguna utilidad; y si la casa no proporciona un acceso

    a un medio ambiente adecuado; si los ocupantes no tienen acceso a los trabajos, mercados, escue-

    las y servicios que precisan sus vidas, o si no se encuentran en la comunidad a que pertenecen, la

    casa no tendr ningn valor prctico en ninguno de los casos. (1971, p.140.)

    A segurana que preocupa os mais pobres est ligada em particular localizao damoradia com relao s fontes de subsistncia e reduo de gastos, incluindo o paga-mento do aluguel, livrando-os do pesadelo do despejo e da humilhao. Sair da condio

    M A R I A A U X I L I A D O R A R A M O S V A R G A S

    69R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 8 , N . 1 / M A I O 2 0 0 6

  • de risco atravs da remoo para locais com infra-estrutura porm alugados, seguindoproposta do poder pblico, no configura a situao de segurana almejada. Fica manti-da a expectativa da casa prpria, da condio de proprietrio, a condio que os livre daameaa da expulso.

    Figura 3 Graminha, Juiz de Fora, dezembro de 2002. Fonte: DDC/PJF.

    O que espero? Construir a minha casa, e que seja a casa do meu sonho, com um belo

    de um sof, com uma bela de uma estante, uma TV de 20 polegadas na minha sala ... eu te-

    nho f no Deus maravilhoso que ns temos... que eu ainda vou construir minha casa. Antes

    de eu morrer, a minha casa vai estar de p, nem que eu faa hoje, desfrute dela s amanh,

    e depois, se Deus quiser me levar, no tem problema. Mas que eu vou conseguir construir a

    minha casa eu vou. O ltimo sonho que eu tenho: eu vou construir a minha casa, do jeito

    que eu sonhei e no podia. (Simone Rodrigues Graminha.)

    A ocupao dos locais restantes, possveis, abandonados, se d, por vezes, interme-diada por atores que, mesmo sem possuir a propriedade dos terrenos do ponto de vistajurdico formal se propem a comercializ-los, estipulando valores e condies. Paraquem paga, resta a expectativa de aquisio de um comprovante (documento) referente transao comercial e propriedade, mesmo que haja por parte do adquirente cinciaacerca da condio ilegal e informal do negcio realizado.

    Os seguintes relatos , respectivamente, de Silia Assis (Ponte Preta), Maria Camlia(Progresso) e Mrcia de Oliveira (Poo Rico) elucidam bem essa situao:

    Um rapaz falou comigo: um moo t vendendo e se a senhora quiser comprar, ele faz

    as prestaes pra senhora. Eu falei: dependendo das prestaes, porque eu no tenho con-

    dies de pagar vista mesmo. Ele disse: ele faz um precinho mais ou menos, de uns 50

    reais por ms. Assim eu fiz. Mas pra eu pagar esses 50 reais, eu tenho que fazer o barraco e

    entrar e ir pagando. Deixar o aluguel... A eu peguei e fui pra l. Dei a ele 50 reais e fiz o bar-

    raquinho de lona e eu entrei pra dentro.

    Documento da casa? Tinha o papel de compra e venda, registrada em firma, mas no

    em cartrio. Porque nesse caso no pode. No foi cartrio, porque l da Prefeitura, no

    lote comprado. Ns compramos o qu? A casa, o terreno no.

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  • L era tudo s na base do recibo. Meu pai comprou, na poca, por 1.200 ou 1.400

    reais. Inclusive a pessoa que passou mora l. invasor vendendo terra, aquela burocracia, n?

    Mas eu mesma nunca cheguei a vender no. Mas isso nunca gerou nenhum tipo de proble-

    ma pra gente no: todo mundo compra, vende, sai e volta. Vai pra outro lugar, vende aqui e

    v que t passando qualquer aperto e volta de novo.

    O sentido de oportunidade que um local de risco adquire est diretamente asso-ciado s impossibilidades de acesso moradia, experimentadas por parcelas populacio-nais urbanas que so levadas para as reas que no interessam ao mercado. E os sujeitosque se vem margem do mercado sero postos na condio de assistidos. Em algunscasos, essa condio denunciada devido ao tratamento que lhes conferido pelas pol-ticas sociais.

    Eu nunca fiquei toa. Depois que aconteceu isso tudo [a remoo] eu entrei em de-

    presso. Porque eu, desempregada, minha cunhada, desempregada. Mas da parte da Prefei-

    tura de Juiz de Fora ns no tivemos ajuda nenhuma... de alimentao. Ao contrrio: quan-

    do eu fui l pra pedir, eles disseram que tinha que ir pra fila, que tinha senha. E quando voc

    chega l s 6 da manh j acabou, j t lotado. A gente come por necessidade. Quando eu

    estava no Poo Rico e fui pedir ajuda e eles mandaram um assistente social l, um homem.

    A minha casa era limpinha. O homem chegou e disse: que limpeza que sua casa!. Era de

    cho, mas voc podia soprar que no levantava poeira. Eu gostava de arrumar. Tinha uns cai-

    xotes que eu botava assim na parede, enfeitava, arrumava minha cama direitinho. Minha ca-

    sa tinha dois cmodos quando meu pai me deu.

    O assistente social me disse que eu era muito caprichosa e eu respondi todos os requi-

    sitos que ele me perguntou. Mas ele no voltou mais. E eu fui l e a moa me disse que eu

    no tinha passado na pesquisa de carncia da AMAC [Associao Municipal de Apoio Co-

    munitrio] pra voc ser encaixada. Eu falei: meu Deus, o que preciso pra voc passar nes-

    sa carncia que eles falam ento?. (Mrcia de Oliveira Poo Rico.)

    Para alm das polticas assistenciais, a existncia de redes de sociabilidade interferirna escolha do local de moradia. No bairro popular, prticas de ajuda mtua so deter-minantes na estabilizao local das famlias.

    eu no podia mais pagar aluguel. No comeo eu fiz l de lona. Um vizinho me cedeu gua,

    o outro, a luz, at quando eu tive condio de trabalhar, fazer uns biscates, a coloquei luz

    por minha conta, gua por minha conta, mas com a ajuda dessa minha tia e da vizinha. De-

    pois disso, durante uns 10, 12 anos, eu vivi ali nesse local.

    Eu fui, cerquei em volta de madeira e o telhado eu fiz de lona. Teve dois colegas meus

    que minha tia pagou, eles cortaram bambu, colocaram por cima e fizeram tipo uma barraca.

    Deu pra tirar a terra mais pra frente e aproveitar um comodozinho que j tinha l e usei co-

    mo banheiro. Era at chiqueiro, no era nem cmodo de gente morar. Eu coloquei o vaso

    no lugar que dava pra fazer banheiro. Quando eu comecei a trabalhar, eu comprei lajota, um

    pouco de material e fiz mais dois cmodos, que eu dividi e fiz cozinha, banheiro, sala e quar-

    to. At o acidente eu tinha esses cmodos. (Simone Rodrigues Graminha.)

    No entanto, nem sempre essas redes de apoio tm caractersticas de acolhimento eamizade. Sawaia (apud Yazbek, 1996, p.128) observa que, muitas vezes, o que se tem na

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  • favela a unidade na misria e no a solidariedade entre iguais, uma vez que, mesmovivendo prximas e se conhecendo, as pessoas nem sempre se estimam e muitas vezes setemem, evidenciando a desconfiana dos vizinhos em bairros onde a sociabilidade bsi-ca no esteja previamente construda.

    Figura 4 Ocupao dos Sem-Terra em Granjas Bethnia, Juiz de Fora, 2003. Fonte:DDC/PJF.

    O relato de Maria Tavares Davi acrescenta o sentido de uma luta solitria, retrata-da pelo distanciamento total da famlia, pela ausncia de um parceiro com quem compar-tilhasse a criao dos filhos, pela sociabilidade fragilizada e a dependncia constante da as-sistncia social, que espordica e incerta, conformando abatimento, desnimo esentimento de desprestgio.

    Minha famlia do Paran. Tenho um filho que mora l com meus pais. Tem quase

    vinte anos que no vejo ningum. Entra ano e sai ano e a gente nunca tem dinheiro pra po-

    der ir l. Aqui eu t praticamente sozinha, s com meus filhos. Eles no vm aqui pra me

    ver, eles que tm mais condies do que eu, eu tambm no vou ver eles ...

    A Prefeitura paga esse salrio de R$ 180, e eu pago R$ 150 de aluguel, e o resto que fi-

    ca eu pago gua e luz. E eu recebo uma bolsa escola! Mas mesmo assim, pra sustentar cinco

    filhos, comigo seis, no d. difcil, eu no trabalho, no tenho ganho nenhum ... Desde

    que meus filhos nasceram, s junto comigo, eles no me largam pra nada. Eu preciso de

    uma cesta bsica, eu corro atrs ... A gente fica mais quieto no canto da gente, n? Porque se

    comear, muita conversinha, muita gente pra tomar conta da vida da gente, ento a gente

    tem que ficar mais... porque ajudar ningum ajuda no! Vir aqui perguntar se a gente t pre-

    cisando de 1 kg de feijo ningum vem no. Mas tomar conta da vida da gente t em pri-

    meiro lugar. Mas isso no s aqui, n?

    Quanto postura do poder pblico (a Prefeitura), no que diz respeito s reas ocu-padas, observa-se uma cultura segundo a qual sua omisso compreendida como per-misso/benefcio. A ocupao de reas restantes, pobres, sem infra-estrutura vista comoaquilo que destinado e permitido ao pobre uma tolerncia que tem como fundamen-to o clientelismo: favor em troca de apoio poltico.

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  • Porque minha tia me viu dormindo na varanda de uma casa com a barriga grande, j

    enorme, quase perto de ganhar a criana, a ela e a amiga dela foram nesse vereador, conver-

    sou com ele e ele falou que no teria problema de eu construir ali pra mim [em terreno da

    prefeitura] ... Nunca tive problema com a prefeitura, ao contrrio, consegui colocar gua no

    meu nome, luz. Em termos da prefeitura me perturbar, isso eu no posso falar ... (Simone

    Rodrigues Graminha.)

    Esse lote era da prefeitura, tipo assim invaso, porque as pessoas invadem ... a prefei-

    tura no ligou muito porque era perto de crrego e tudo, ento ela no ligou ... terra p-

    blica, s que a prefeitura no d ateno nenhuma pra aquele lugar no ... esse local j era de

    risco j, no servia pra nada. Vivemos ali no total 20 anos ... L tinha barranco atrs e cr-

    rego na frente, sem contar os esgotos dos vizinhos de cima que descia e ento passava na por-

    ta da casa da gente. (Aline Cordeiro Marumbi.)

    Por outro lado, h uma desconfiana com relao s aes do Estado, nem sempreclaras e efetivas, e insuficincia de suas intervenes, paliativas, precrias, inacabadas. Deintervenes que so pontuais tem-se a viabilizao de pequenas obras, sempre inacaba-das vias de acesso (como escades), muros de arrimo , iniciativas isoladas de cadas-tramento das famlias, com vistas regularizao da posse, nunca efetivada, de remoopara reas ditas mais seguras, porm sempre mais distantes e isoladas. A possibilidade deviverem a transferncia para locais isolados, distantes dos ativos sociais que favorecem suassubsistncias, fator determinante em seus posicionamentos e marca de sua resistncia.

    Quando eu vi, chegou l o pessoal da AMAC fazendo inscrio pra tirar, isso antes da

    enchente... Foi passando o ano, mais ano e no tirou ningum. At que veio essa tragdia da

    gua pra acabar com tudo. (Silia Assis Ponte Preta.)

    A metade dessa rea onde o pessoal foi desalojado da prefeitura. O pessoal passou,

    acho que funcionrio da Emcasa [Empresa Regional de Habitao de Juiz de Fora] mes-

    mo, da prefeitura, passou pegando os dados da gente. Disseram que, como a gente j tinha

    muito tempo ali, que eles iam liberar pra gente um documento comprovando que a gente

    j era morador dali de muito tempo. Ns tinha as contas de luz que falava, que provava o

    tempo. Mas at o dia que houve o desabamento eles no tinham dado documento nenhum

    pra gente. Eles falaram que, por eu ter 11 anos ali, por lei eu j tinha direito usucapio,

    mas a at a data do desabamento eles no deram documento nenhum no. (Simone Rodri-

    gues Graminha.)

    Os elementos acima apontados justificam a desconfiana da populao, e a sada doslocais condenados tecnicamente simboliza o risco de ficarem sem qualquer apoio, umavez que o Estado constantemente falha em seus compromissos. Contamos com a reflexode Cardoso (2005, p.13) que, utilizando-se de Hirschman (1996), afirma que a forma delidar com uma situao de precariedade e de ameaa poderia ser a sada ou a voz, al-ternativas colocadas para as camadas de maior renda e instruo, mas no para as cama-das populares, j que os custos neste caso (da busca de um local mais seguro ou do pro-testo junto ao poder pblico) tendem a ser elevados e com baixa expectativa de retornopositivo. Assim, busca-se alternativas individualizadas de minimizao dos danos, compermanncia nos mesmos lugares. Os custos associados voz mostram-se tambm ele-

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  • vados, uma vez que o Estado se faz pouco permevel s demandas populares, adotandode modo mais conveniente e imediatista as tradicionais prticas clientelistas, que so pon-tuais e nunca significativas a ponto de promover mudanas substanciais na qualidade devida da populao.

    Como exceo nesse contexto, o relato de Matias Machado Faria expe a experin-cia de vinte anos de luta da pequena comunidade do Ladeira, que se organizou inicial-mente para enfrentar a possvel expulso de uma rea pertencente Rede FerroviriaFederal S.A. (denominada Leito da Leopoldina), localizada no entorno do Centro dacidade, primeira e nica do municpio de Juiz de Fora a ser decretada, em 1997, comorea de risco pela prefeitura.

    minha irm, que mora aqui em Juiz de Fora, ela conheceu essa Margem da Leopoldina e

    comprou um pedao do morador que morava aqui, o senhor Alpio. Esse senhor tinha um

    documento da RFFSA que autorizava ele a morar pra tomar conta da rea, s que ele inver-

    teu o negcio, ele fez um negcio que no podia, que era vender a rea.

    Ele comeou a passar pra terceiros, minha irm comprou quatro pedacinhos dele e co-

    meou a construir. A minha dona, dona Gilda veio e viu, gostou disso aqui e a a gente veio

    pra essa luta. S que no tinha gua, nem luz, nem caminho. Ns tivemos que abrir cami-

    nho no poder da enxada, buscava gua l onde era o corpo de bombeiro, no Vitorino Braga.

    Ns sobrevivia porque eu trabalhava de carpinteiro. Os filhos, todos eles, catava papel

    com o carrinho. Essa dona Gilda saa 5 horas da manh, debaixo de chuva ou sol, pra catar pa-

    pel. A gente sofreu muito aqui: era a polcia em cima que vinha pra tirar, desmanchar barraco.

    Vinha a RFFSA pra desmanchar barraco, vinha o atual prefeito [na poca radialista] num car-

    rinho velho. Da a polcia corria dele, vinha a Globo e a polcia corria. Foi uma luta! At que

    ele [o prefeito] participou com ns na luta, ele conhece isso aqui at hoje. Isso tem uns 22 anos.

    A, a gente tava lutando. No primeiro ano que o B. candidatou direto pra prefeito e ganhou,

    ento, ns achamos, quando ele ganhou... j tinha vrias casas aqui com a ajuda dele e da Glo-

    bo. J tinha vrias casas e a vidinha nossa j tava mais ou menos. Eu j tava num barraquinho,

    metade de tijolo, metade de lata... j foi melhorando, eu trabalhava de carpinteiro, parava s

    trs horas, eu catava papel e os filhos tudo catava papel tambm. Tinha dia de arrumar 200 kg

    de papelo e a nossa vidinha comeou a melhorar. (Matias Machado Faria Ladeira.)

    Nesse caso, uma forma de resistncia articulada deu-se num cenrio com mlti-plos atores: a Comisso de Moradores do Leito da Leopoldina, a imprensa, as foras po-liciais, o poder pblico, os polticos locais e o Centro de Defesa dos Direitos Humanosda Arquidiocese de Juiz de Fora (CDDH), Ong que assessorou a comunidade durante oprocesso de luta pelo direito de permanncia no local. O fato ganhou tal visibilidade aolongo dos anos que outros interesses em torno da rea (do mercado e do prprio poderpblico) foram ofuscados e a permanncia das famlias no local parece dificilmente re-versvel, reconhecida que pelo poder pblico atravs de obras j realizadas e do plane-jamento de investimentos em infra-estrutura e segurana para o local. O recurso davoz teve seu lugar.

    O CDDH foi uma porta que abriu e ns comeamos a luta. E ns no ficamos nem saben-

    do se queriam tirar ns daqui ou se ia melhorar, mas melhorar no era, porque o prefeito fi-

    cou os quatro anos e, pra ns conversar com ele, ns tivemos que fazer uma passeata com

    umas 600 pessoas. Samos daqui e reunimos umas 600 pessoas com faixa, cartaz, batemos

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  • lata, assoviamos. Ento, nesse dia fizemos uma manifestao pblica l e ele recebeu trs do

    CDDH e trs da Comisso. Porque ns formamos uma comisso de moradores. A ele mar-

    cou uma reunio, marcou o dia e a gente foi, conversamos com ele, fizemos nossas propos-

    tas, ele ficou de resolver alguns problemas ... Era a luta pra ns permanecer aqui, porque era

    da RFFSA. E tinha vrias companhias querendo comprar essa parte da rede ...

    Fizeram uma avaliao da rea [Defesa Civil, prefeitura, Universidade] ... bem, mas an-

    tes o pessoal foi retirado pro aluguel, pro Abrigo ... A idia era tirar ns todos, da rua de ci-

    ma e de baixo tambm. Na poca tiraram 72 famlias, pro aluguel e pro Abrigo. Era pra ver

    o que iam fazer. Ns fizemos mais unio com o CDDH. Fizeram um levantamento e uma

    proposta pra ns: tiravam as casas de baixo todinhas. A j estavam a prefeitura, a AMAC

    tambm na jogada. Disseram o seguinte: vamos pagar o aluguel por trs meses e vocs tor-

    nam a voltar pro mesmo lugar. Pronto, ns fomos pro aluguel. Da comearam a mexer, fi-

    zeram a conteno. (Matias Machado Faria Ladeira.)

    Quanto ao pblica, se, por um lado, o pagamento do Auxlio-Social destina-do aos removidos de reas condenadas gerou segurana e conforto para seus benefici-rios10 e isso se evidencia em relatos j registrados anteriormente , por outro, e de ma-neira mais contundente, prevalece o receio permanente da interrupo do pagamento dobenefcio e a forte expectativa de viabilizao da casa prpria. Apesar de destacarem queo recurso vem sendo pago assiduamente pela prefeitura, os entrevistados se mostram aten-tos a quaisquer informaes, mesmo que no-oficiais, sobre a construo de suas casas,evidenciando o receio do abandono e a presso exercida pela figura do aluguel.

    Eu espero que se eles for dar realmente a casa pra gente... porque dizem que no vai ser

    muito caro pra gente pagar no. Eu espero ter uma casinha minha mesmo, n? Porque esse

    negcio da prefeitura, tem hora que a gente fica encucado com isso, preocupada... medo de

    eles no pagar o dinheiro do aluguel ... T vindo direitinho o dinheiro. Mas a gente fica preo-

    cupado. A gente dorme com o aluguel, pensando... A gente que sozinha, que o homem

    e a mulher de casa, a gente pensa muita coisa. Fica muito preocupada com gua, luz, com

    tudo. (Maria Tavares Davi Granjas Bethnia.)

    O aluguel, voc dorme com ele na cama, n? Voc deita e quando acorda j t na ho-

    ra de pagar de novo ... (Ins Helena Trs Moinhos.)

    A experincia de administrao do recurso recebido mostra os expedientes de sobre-vivncia j apreendidos: um esforo para que seja utilizado de modo que possa tambmsuprir as despesas com gua, luz e gs despesas, na maior parte dos casos, inexistentesnas situaes anteriores, em que o fogo lenha representava a economia do gs e a luz ea gua eram cedidas ou substitudas pelas velas, lampies, lanternas ou minas e poosdgua. Os contratos de aluguel so, quase sempre, semestrais, permitindo a busca cons-tante pelo menor valor, flexibilizando assim a utilizao do benefcio. So observadas al-teraes de endereo, de nmeros telefnicos e de rotinas, apontando para uma dinmi-ca de vida que sofre constantes modificaes: uma mobilidade social ora ascendente, coma insero em atividades espordicas de trabalho, que modificam seus ritmos cotidianos esuas rendas, ora descendente, com o enfrentamento de doenas graves em famlia, a au-sncia inesperada de personagens familiares por condenao na Justia , flutuaes quesinalizam a freqente necessidade de adaptao a novas situaes.

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    10 Porque, por mais remo-

    tas que as aspiraes pu-

    dessem parecer, se apre-

    sentaram mais concretas,

    na viso dos removidos,

    com os recursos disponibili-

    zados pelo poder pblico,

    delimitando uma outra quali-

    dade para suas vidas.

  • O depoimento de Matias Machado Faria, do bairro Ladeira, rene de forma sint-tica elementos de denncia, reflexo e resistncia, cunhados na trajetria das famlias e dascomunidades.

    Por que que ns sobrevive, eu e minha famlia e os nossos morador sobrevive? Porque

    s paga gua e luz, no paga mais nada ... Os nossos governantes ... como que esses ho-

    mens no pensam que 300 reais no d pra uma famlia comer... no d pra um comer! ...

    Esses nossos governantes, eu no sei o que vai acontecer... Esse Brasil! ... Isso vai dar uma

    guerra civil igual j t dando no lugar l onde o pessoal pobre t botando fogo em carro e

    queimando tudo. No Brasil isso tambm no vai demorar a acontecer no! ... Ns tamo che-

    gando no fim dos tempos. Eu lido e conheo o pobre, porque o cidado que j nasce em ber-

    o de ouro, ele no conhece o lado do pobre. Eu conheo. Porque eu j lutei muito, traba-

    lhei muito e luto at hoje com a classe pequena, com a classe pobre. Eu no quero ficar rico

    nunca na minha vida, porque eu vou perder minha liberdade, vem seqestrador seqestrar

    meu filho... eu no vou poder andar igual eu ando, mas as coisas difcil... esse Brasil... to

    cortando nossos matos tudo, t secando tudo. Mas ns aqui tamo pelejando.

    CONCLUSO

    Observamos aqui, atravs da trajetria de famlias removidas pelo poder pblico dereas urbanas condenadas por avaliaes tcnicas no municpio de Juiz de Fora, como construda socialmente a noo de risco. As evidncias no conduzem a uma negao ouminimizao do risco configurado em sua verso tcnica como se poderia num primei-ro momento presumir , mas sim pertinncia de se considerar a reinterpretao e reela-borao do risco por parte da populao. Tal reelaborao se manifesta atravs de estrat-gias discursivas e prticas sociais especficas que apontam para a permanncia no lugar com a garantia da posse e dos ativos sociais previamente construdos em resistncia noo tcnica de risco, que justifica a remoo do lugar.

    Observou-se, assim, a presena de um conhecimento acumulado pela populao aolongo de suas trajetrias: representaes e prticas comuns a esses grupos sociais configu-ram um habitus (Bourdieu, 2005) como sistema de predisposies que leva os indivduosa representaes e prticas socialmente compartilhadas.

    As estratgias de resistncia, alm de se apoiarem em fatores como a religiosidade, an-coram-se tambm na noo de um lugar identitrio que agrega aspectos subjetivos, extra-polando o espao fsico. O apego ao lugar aparece associado aos laos mais gerais criadosao longo das trajetrias de vida, situando a moradia de risco em plano secundrio fren-te a outros perigos sociais. Ante as dinmicas de vulnerabilizao decorrentes do desigualpoder entre os atores sociais na cidade, os moradores de reas vulnerveis efetuam umareelaborao moral da noo de risco, associando tal experincia a uma oportunidade demoradia em contexto de despossesso e de dificuldade de acesso a recursos pblicos.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    Maria Auxiliadora Ramos

    Vargas assistente social,mestre em PlanejamentoUrbano e Regional pelo Ippur/UFRJ. E-mail: [email protected]

    Artigo recebido em janeirode 2006 e aprovado parapublicao em maro de2006.

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    A B S T R A C T The social problem of risk is increasingly relevant to contemporarydebates, especially on public policies and urban affairs. In general, most of the initiatives come

    from an objectivist perspective of risks, based on quantification and mensuration of

    phenomena. From this technical approach emerges a dominant conception of risk, which

    spreads out the reckoning that precarious situation involving specific urban poverty groups are

    due to irrational consumption options; influenced by this point of view, social intervention

    comes out disqualifying those groups practices and interfering deeply in their lives. Discussing

    this argument, recent sociological literature presents the social construction of risk, structured

    on the idea that the notion of risk is socially constructed by differentiated groups, that bring

    upon different symbolic references, social representations and material practices. Using as

    empiric reference the trajectories of families removed from their home places characterized

    by municipality engineering as technically condemned in Juiz de Fora, Minas Gerais, this

    article stresses the discursive elements and material practices that express the resistance of the

    removed people to the dominant technical conception of risk.

    K E Y W O R D S Social construction of risk; environmental inequality; urbanperiphery.

    C O N S T R U O S O C I A L D A M O R A D I A

    78 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 8 , N . 1 / M A I O 2 0 0 6