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CONSTITUCIONALISMO, DESCOLONIZACIÓN

Y PLURALISMO JURÍDICO EN AMÉRICA LATINA

(Constitucionalismo, descolonização e pluralismo jurídico na América Latina)

Antonio Carlos WolkmerIvone Fernandes M. Lixa

(Orgs.)

CONSTITUCIONALISMO, DESCOLONIZACIÓN Y PLURALISMO JURÍDICO EN AMÉRICA LATINA

(Constitucionalismo, descolonização e pluralismo jurídico na América Latina)

Centro de Estudios Jurídicos y Sociales MispatNEPE - Universidad Federal de Santa Catarina (UFSC)

Aguascalientes / Florianópolis2015

Wolkmer, Antonio Carlos; Lixa, Ivone Fernandes M. (Orgs.)

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina/ Wolkmer, Antonio Carlos; Lixa, Ivone Fernandes M. / Aguascalientes : CENEJUS / Florianópolis: UFSC-NEPE, 2015. 294 pp.

Varios colaboradores. ISBN 978-607-8062-56-0

I. Constitucionalismo. 2. Pluralismo jurídico. 3. Wolkmer, Antonio Carlos (Orgs.)3. Lixa, Ivone Fernandes M. (Org.). 4. Título.Tamaño: 17 x 21.5 cm Fuente: Garamond 10.5 y 9.5

Primera edición, 2015

D.R. © Wolkmer, Antonio Carlos; Lixa, Ivone Fernandes M. (Orgs.)

D.R. © Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Mispat, A.C. Colón #443, Barrio de Triana, C.P. 20240, Aguascalientes, Ags.

D.R. © Universidade Federal de Santa Catarina NEPE - Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias Campus Universitário - Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) Trindade - Florianópolis - Santa Catarina CEP 88040-900 Brasil ISBN 978-607-8062-56-0

Portada: Fragmento de mural de Diego Rivera en Palacio Nacional (México)

Hecho e impreso en México

Conselho Científico:

David Sánchez Rubio (Espanha)Jesús Antonio de la Torre Rangel (México) Lidia Patricia Castillo Amaya (El Salvador)

Jorge Carvajal (Colômbia)Carol Proner (Brasil)

Álvaro Sánchez Bravo (Espanha)Sonia Boueiri Bassil (Venezuela)

Oscar Correas (México)

Apoio Institucional:

CLACSO (Argentina)CAPES (Brasil)

CRÍTICA JURÍDICA (México)PRUJULA (México)

UFSC (Brasil)NEPE - Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias

ÍNDICE

Introdução 9Introducción 13

PARTE IPLURALISMO JURÍDICO

Pluralismo jurídico e deslinde jurisdicional na Bolívia: a atuação 19do Tribunal Constitucional Plurinacional no controle de constitucionalidade Débora Ferrazzo

Sistema de necessidades humanas fundamentais no Pluralismo Jurídico: 35um possível reencontro da comunidadeLuís Henrique Orio

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária: 51o horizonte utópico do cooperativismo popular na praxis de uma democracia fundada na libertação latino-americanaFrancisco Quintanilha Véras Neto

Pluralismo jurídico e o direito indígena na América Latina: 79uma proposta de emenda constitucional no BrasilThais Luzia Colaço

PARTE IICONSTITUCIONALISMO, CRÍTICA JURÍDICA

Y FILOSOFÍA DE LA LIBERACIÓN

Pluralismo juridico, movimentos sociais e processos de lutas desde America Latina 95Antonio Carlos Wolkmer

El constitucionalismo en América Latina desde 103una perspectiva histórica crítica del derechoDaniel Sandoval Cervantes

Filosofia da libertação, crítica jurídica e pluralismo: 117uma justificação filosófica descolonialCelso Luiz Ludwig

Filosofía de la liberación, pluralidad cultural y derechos humanos 129Alejandro Rosillo Martínez

PARTE IIIDESCOLONIZACIÓN E INTERCULTURALIDAD

Teoria crítica e pluralismo: elementos constitutivos 153de uma nova hermenêutica jurídica latino-americanaIvone Fernandes Morcilo Lixa

Descolonização jurídica nos Andes 165Rosembert Ariza Santamaría

Descolonização e constitucionalismo numa perspectiva ecossocialista indoamericana 181E. Emiliano Maldonado Bravo

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado: 195um olhar para o pluralismo jurídicoRaquel Fabiana Lopes Sparemberger

Etnocentrismo jurídico, colonialidade e descolonização 217Isabella Cristina Lunelli

Diálogo intercultural no novo constitucionalismo latino-americano 233Flávia do Amaral Vieira

Ensino intercultural do direito: uma alternativa ao método tradicional 245João Victor Antunes Krieger

PARTE IVEL ESTADO EN AMÉRICA LATINA

Lo “plurinacional” como reto histórico: avances 263y retrocesos desde la experiencia bolivianaM. Vianca Copa Pabón

Pluralismo jurídico y neoconstitucionalismo latinoamericano 273Juan Carlos Martínez

El estado del Estado en Nuestra América. Continuidades y rupturas 287Beatriz Rajland

9

INTRODUÇÃO

A obra coletiva que está sendo apresentada, visa aprofundar a discussão e difusão do pensamento jurídico-político crítico, descolonizador e pluralista, e suas perspectivas teó-rico-práticas entre pesquisadores, professores, alunos e operadores jurídicos, abrindo um espaço para o diálogo na América Latina.

Tal esforço, concretizado por contribuições teóricas, originou-se do I Encontro Internacional sobre “Descolonização e Pluralismo Jurídico na América Latina”, ocorrido no Brasil, em Florianópolis-SC, entre os dias 11 e 13 de novembro de 2013, na Univer-sidade Federal de Santa Catarina (UFSC), proposto pelo Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE) do programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/UFSC), realizado em parceria com o Grupo de Crítica Jurídica – Centro de Investigaciones Inter-disciplinarias en Ciencias y Humanidades de la Universidad Nacional Autónoma de Me-xico (UNAM) e do Grupo Pluralismo Jurídico en Latinoamérica (PRUJULA), no âmbito do Projeto do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), “Crítica Jurídica Latinoamericano, Movimientos Sociales y Procesos Emancipatórios”.

O diálogo intercultural e o profícuo intercâmbio dos participantes reforçaram, assim, as expectativas de questionamento e ruptura com o ideário hegemônico da mo-dernidade universalista eurocêntrica de pensar as formas de produção do conhecimento jurídico e sua institucionalidade oficializante lógico-instrumental, reafirmando a impor-tância de um pensamento descolonizado e insurgente no campo da teoria e prática crítico-emancipadora do Direito. Esse exercício compartilhado expressa a confluência de pes-quisas e matrizes engendradas por fundamentações epistemológicas, históricas, políticas, sociais e culturais autenticamente voltadas para o pensamento e a realidade normativa dos povos latino-americanos, suas cosmovisões, possibilitando questionamentos, reflexões e inter-relações liberadoras, compromissados com uma outra visão de mundo, mais justa, igualitária e pluralista.

É com este intento que o conteúdo –que traduz os pontos nucleares do Evento Internacional– projeta-se nos eixos temáticos, distribuídos em quatro grandes momentos, como: I Parte – Pluralismo Jurídico; II Parte: Constitucionalismo, Crítica Jurídica e Filosofia da Libertação; III Parte: Descolonização e Interculturalidade; IV Parte: O Estado na América Latina.

Eis, portanto, este olhar diferenciado e comprometido presente na leitura de 18 (dezoito) contribuições que se seguem:

Primeiramente, Débora Ferrazzo introduz a discussão sobre as novas diretrizes cons-titucionais, a refundação do Estado boliviano, seguida pela análise e problematização da

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina10

Lei do Deslinde; e concluída pelo estudo de caso envolvendo jurisdição indígena, aprecia-do pelo Tribunal Constitucional Plurinacional.

Na sequência, Luís Henrique Orio, tomando em conta a materialidade das neces-sidades como fundantes do pluralismo comunitário-participativo e do socialismo indo-americano de Mariátegui, oferece reflexão no sentido de apontar elementos que contri-buem para recuperar a força do poder comunitário.

Diante da crise da estatalidade político-jurídica e dos impactos da globalização econômica o Prof. da UFRG, Francisco Quintanilha Véras Neto articula a economia solidária com o pluralismo jurídico comunitário-participativo, propondo formas de produção de-mocrática e de cooperativismo popular.

Por outro lado, Thais Luzia Colaço, professora do PPGD/UFSC, examina no âm-bito do pluralismo jurídico, o reconhecimento do Direito Indígena, destacando como a legislação brasileira tem tratado ineficazmente a questão, tornando imperiosa a neces-sidade de se propor uma emenda constitucional que venha atualizá-la diante das novas tendências na América Latina.

Já em nosso texto, “Pluralismo Jurídico, Movimentos Sociais e Processos de Lutas desde a América latina” que abre a II Parte da coletânea, tratou-se de defender uma cultu-ra político-jurídica latino-americana delineada pelo pluralismo, descolonização e liberação, fazendo-se necessário, forjar um pensamento crítico, construído a partir da práxis histó-rica e dos processos sociais de lutas, interagindo por novos sujeitos coletivos, capazes de legitimar parâmetros alternativos de Direito e Justiça.

O pesquisador de Crítica Jurídica, Daniel S. Cervantes (México) realça a questão de uma metodologia para explicar os processos políticos que se denominaram como “novo constitucionalismo latino-americano” desde uma perspectiva da Crítica Jurídica e do ma-terialismo histórico, especificamente, no contexto mais geral de uma história social.

Em outra reflexão, o Professor Celso Ludwig (titular de Filosofia do Direito da UFPR), considerando o delineamento metodológico e epistemológico na direção da filo-sofia da libertação, assentada nos conceitos dusselianos de “totalidade” e “exterioridade”, argumenta não só por uma racionalidade crítica, mas, sobretudo, advoga no sentido de uma filosofia jurídica descolonial.

Não menos relevante, em aporte jusfilosófico, o coordenador do Mestrado em Direitos Humanos, da Universidade de San Luis Potosí (México), Alejandro Rosillo Martínez discorre sobre formas limitadas, reducionistas e convencionais que sustentam as concep-ções hegemônicas de Direitos Humanos, para em seguida, introduzindo a visão pluricul-turalista e comprometida com o pensamento latino-americano, fazer a opção por uma fundamentação libertadora de Direitos Humanos.

Inaugurando a III Parte da obra, a Professora Ivone F. Morcila Lixa, uma das orga-nizadoras da obra, define a insurgência de uma teoria crítica desde o Sul e do pluralismo jurídico como elementos orientadores para a construção da nova hermenêutica na pers-pectiva da América Latina.

Introdução 11

Prosseguindo, o Professor Rosembert Ariza Santamaría (da Universidad Nacional da Colômbia, na área da Sociologia Jurídica), tomando em conta a proposta de um pluralis-mo descolonizador de sujeitos coletivos, analisa o constitucionalismo transformador na experiência contemporânea do Estado boliviano e de seu Tribunal Constitucional Pluri-nacional.

Na esteira da temática do “novo” constitucionalismo, o doutorando Emiliano Mal-donado Bravo debate os processos constituintes boliviano e equatoriano, a participação dos povos indígenas e as lutas sociais que resultaram em mudanças incorporadas nas recentes constituições dos Andes, destacando-se os princípios edificadores de um ecossocialismo indo-americano.

Avançando nessa temática complexa, a Professora do Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande, Raquel Fabiana Lopes Sparemberger busca repensar a produção do conhecimento jurídico, enfatizando o papel do pluralismo jurídico na con-vergência com as rupturas descoloniais e interculturais, sem deixar de comtemplar as “vozes silenciadas do subalterno”.

Também a doutoranda Isabella C. Lunelli propõe, em seu texto, que pensar sobre a descolonização e sobre o Direito permite refletir questões como o etnocentrismo jurídico. Assim, a concepção de Estado Pluriétnico, associada ao reconhecimento do pluralismo jurídico, demarca os traços próprios de uma cultura jurídica latino-americana, capaz de libertar-se de uma imposição colonizadora.

Em dois ensaios seguintes, privilegia-se a temática da interculturalidade. Primei-ro, Flavia do A. Vieira trata de verificar a presença do princípio da interculturalidade nos processos constituintes da Venezuela, Equador e Bolívia, compondo um “novo” consti-tucionalismo na região. Na sequência, João Victor A. Krieger trabalha a interculturalidade a partir de processos educacionais, mediante um aporte metodológico diferenciado, vin-culado com a alteridade e com o pluralismo.

A IV e última Parte da obra resgata a discussão sempre relevante e oportuna acerca do Estado na América Latina. Assim, a investigadora da Bolívia M. Vianca Copa Pabón, na esteira da tradição indígena e do pensamento amáutico, discute a proposta de um Estado Plurinacional desde a experiência constitucional boliviana de 2009, enquanto que o pro-fessor Juan Carlos Martínez, membro investigador do Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (CIESAS) e coordenador de PRUJULA, destaca em sua contribuição, a inserção do conceito de Estado nacional latino-americano, a identida-de indígena e as transformações sociais que vêm atravessando os países da região. Por fim, a discussão proporcionada pela Professora Titular de Teoría Del Estado da Universidade de Buenos Aires, Beatriz Rajland, que retoma a questão do Estado e sua problematização na América Latina, suas continuidades e rupturas em tempos de globalidade político-ideológica.

Em suma, o devido reconhecimento a todo o grupo de pesquisadores e co-autores, do Brasil e da América Latina (México, Colômbia, Argentina, Bolívia e Equador) que

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina12

participaram com a honrosa presença e com o esforço final de elaboração da obra com seus textos apresentados no I Encontro Latino-americano “Descolonização e Pluralismo Jurídico”. Agradecimentos aos colegas que representaram o apoio material e acadêmico de CLACSO (Beatriz Rajland), da Crítica Jurídica (Daniel Sandoval), do PRUJULA (Juan Carlos Martínez), da UASLP (Alejandro Rosillo). Igualmente, aos órgãos de financiamen-to no Brasil, como à CAPES (auxílio com passagens internacionais e infra-estrutura), ao Centro de Ciências Jurídicas/UFSC e ao PPGD/UFSC, pelo apoio institucional e material.

Por fim, os agradecimentos não somente ao Prof. Dr. Alejandro Rosillo (Universi-dad Autónoma de San Luis Potosí-México) por aceitar esta co-edição internacional, mas também a todos os integrantes do Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE/UFSC) pelo grande empenho na operacionalização e na dedicação acadêmica (desde o Projeto até o encerramento do Evento Internacional). Igualmente, uma menção especial aos “orientandos” João Victor A. Krieger e, de forma muito especial, à Débora Ferrazzo, pelo incansável labor e desprendimento, na montagem e na formatação da obra.

Fica, portanto, o convite para uma leitura atenta e compromissada dos textos que compõem esta obra, os quais contribuem para uma produção latino-americana mais inter-disciplinar, plural e descolonial de outro Direito possível.

Prof. ANTONIO CARLOS WOLKMERCoordenador Geral do Evento e do NEPE/UFSC

13

INTRODUCCIÓN

Esta obra colectiva pretende profundizar la discusión y difusión del pensamiento jurídico-político crítico, descolonizador, pluralista y sus perspectivas teórico-prácticas entre inves-tigadores, profesores, alumnos y operadores jurídicos, abriendo un espacio para el diálogo en América Latina.

Tal esfuerzo, concretizado por contribuciones teóricas, se originó del I Encuen-tro Internacional sobre “Descolonización y Pluralismo Jurídico en América Latina”, que ocurrió en Brasil, en Florianópolis-SC, entre los días 11 y 13 de noviembre de 2013, en la Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), propuesta por el Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE) del Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/UFSC), realizado en asociación con el Grupo de Crítica Jurídica – Centro de Investigacio-nes Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades de la Universidad Nacional autónoma de Mexico (UNAM) y del Grupo Pluralismo Jurídico en Latinoamérica (PRUJULA), en el ámbito del Proyecto del Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) “Críti-ca Jurídica en Latinoamérica, Movimientos Sociales y Procesos Emancipatorios”.

El diálogo intercultural y el proficuo intercambio de los participantes reforzaron, así, las expectativas de cuestionamiento y ruptura con el ideario hegemónico de la mo-dernidad universalista eurocéntrica de pensar las formas de producción del conocimiento jurídico y su institucionalidad oficializante lógico-instrumental, reafirmando la importan-cia de un pensamiento descolonizado e insurgente en el campo de la teoría y práctica crítico-emancipadora del Derecho. Este ejercicio compartido expresa la confluencia de investigaciones y matrices engendradas por fundamentaciones epistemológicas, históricas, políticas, sociales y culturales auténticamente dirigidas para el pensamiento y la realidad normativa de los pueblos latinoamericanos, sus cosmovisiones, posibilitando cuestiona-mientos, reflexiones e interrelaciones liberadoras, comprometidos con una otra visión del mundo, más justa, igualitaria y pluralista.

Es con esa intención que el contenido –que traduce los puntos nucleares del Even-to Internacional– se proyecta en los ejes temáticos, distribuidos en cuatro grandes mo-mentos, como: I Parte – Pluralismo Jurídico; II Parte: Constitucionalismo, Crítica Jurídica y Filosofía de la Liberación; III Parte: Descolonización e Interculturalidad; IV Parte: El Estado en América Latina.

Esa es, por lo tanto, la mirada diferenciada y comprometida presente en la lectura de las dieciocho contribuciones que siguen:

Primeramente, Débora Ferrazzo introduce la discusión sobre las nuevas directrices constitucionales, la refundación del Estado boliviano, seguida por el análisis y proble-

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina14

matización de la Ley de Deslinde; y concluida por un estudio de caso sobre jurisdicción indígena apreciado por el Tribunal Constitucional Plurinacional.

En secuencia, Luís Henrique Orio, tomando en cuenta la materialidad de las ne-cesidades como fundamento del pluralismo comunitario-participativo y del socialismo indoamericano de Mariátegui, ofrece una reflexión en el sentido de apuntar elementos que contribuyen para recuperar la fuerza del poder comunitario.

Ante la crisis de la estatalidad político-jurídica y de los impactos de la globalización económica el Prof. de la FURG, Francisco Quintanilha Véras Neto articula la economía so-lidaria con el pluralismo jurídico comunitario-participativo, proponiendo formas de pro-ducción democrática y de cooperativismo popular.

Por otro lado, Thais Luzia Colaço, profesora del PPGD/UFSC examina en el ám-bito del pluralismo jurídico, el reconocimiento del Derecho Indígena, destacando cómo la legislación brasilera ha tratado ineficazmente la cuestión, tornando imperiosa la necesidad de proponer una enmienda constitucional que venga actualizarla frente a las nuevas ten-dencias en América Latina.

Ya en nuestro texto, “Pluralismo Jurídico, Movimientos Sociales y Procesos de Luchas desde América latina” que abre la II Parte da colectánea, se trató de defender una cultura político-jurídica latinoamericana, delineada por el pluralismo, descolonización y liberación, tornando necesario, forjar un pensamiento crítico, construido a partir de la praxis histórica y de los procesos sociales de luchas, interactuando con los nuevos sujetos colectivos, capaces de legitimar parámetros alternativos de Derecho y Justicia.

El investigador de Crítica Jurídica, Daniel S. Cervantes (México) destaca la cues-tión de una metodología para explicar los procesos políticos que se denominaron como “nuevo constitucionalismo latinoamericano” desde una perspectiva da Crítica Jurídica y del materialismo histórico, específicamente, en el contexto más general de una historia social.

En otra reflexión, el profesor Celso Ludwig (titular de Filosofía del Derecho de la UFPR), considerando el delineamiento metodológico y epistemológico en la dirección de la filosofía da liberación, asentada en los conceptos dusselianos de “totalidad” y ‘exterio-ridad”, argumenta no solo una racionalidad crítica, pero, sobre todo, aboga en el sentido de una filosofía jurídica descolonial.

No menos relevante, en aporte jusfilosófico, el coordinador de la Maestría en De-rechos Humanos, de la Universidad de San Luis Potosí (México), Alejandro Rosillo Martínez discute las formas limitadas, reduccionistas y convencionales que sustentan las concepcio-nes hegemónicas de Derechos Humanos, para en seguida, introduciendo la visión pluri-culturalista y comprometida con el pensamiento latinoamericano, hacer la opción por una fundamentación liberadora de Derechos Humanos.

Inaugurando la III Parte de la obra, la Profesora Ivone F. Morcila Lixa, una de las organizadoras de la obra, define la insurgencia de una teoría crítica desde el Sur y del

Introducción 15

pluralismo jurídico como elementos orientadores para la construcción de una nueva her-menéutica en la perspectiva de América Latina.

Prosiguiendo, el profesor Rosembert Ariza Santamaría (de la Universidad Nacional da Colombia, en el área de la Sociología Jurídica), tomando en cuenta la propuesta de un pluralismo descolonizador de sujetos colectivos analiza el constitucionalismo transforma-dor en la experiencia contemporánea del Estado boliviano y de su Tribunal Constitucional Plurinacional.

A raíz de la temática del “nuevo’ constitucionalismo, el doctorando Emiliano Mal-donado Bravo debate los procesos constituyentes boliviano y ecuatoriano, la participación de los pueblos indígenas y las luchas sociales que resultaron en los cambios incorporados en las recientes constituciones de los Andes, destacando los principios edificadores de un ecosocialismo indoamericano.

Avanzando en esa temática compleja, la profesora de la Maestría en Derecho de la Universidade Federal do Rio Grande, Raquel Fabiana Lopes Sparemberger busca repensar la producción del conocimiento jurídico, enfatizando el papel del pluralismo jurídico en la convergencia con las rupturas descoloniales e interculturales, sin dejar de contemplar las “voces silenciadas de lo subalterno’.

También la doctoranda Isabella C. Lunelli propone, en su texto, que pensar sobre la descolonización y sobre el Derecho permite reflexionar cuestiones como el etnocen-trismo jurídico. Así, la concepción del Estado pluriétnico, asociada al reconocimiento del pluralismo jurídico, demarca los rasgos propios de una cultura jurídica latinoamericana, capaz de liberarse de una imposición colonizadora.

En los dos ensayos siguientes, se privilegia la temática de la interculturalidad. Pri-mero, Flavia do A. Vieira trata de verificar la presencia del principio de la interculturali-dad en los procesos constituyentes de Venezuela, Ecuador y Bolivia, componiendo un “nuevo” constitucionalismo en la región. En secuencia, João Victor A. Krieger trabaja la interculturalidad a partir de procesos educacionales, mediante un aporte metodológico diferenciado, vinculado con la alteridad y con el pluralismo.

La IV y última parte de la obra rescata la discusión siempre relevante y oportuna acerca del Estado en América Latina. Así, la investigadora de Bolívia, M. Vianca Copa Pa-bón, a raíz de la tradición indígena y del pensamiento amáutico, discute la propuesta de un Estado Plurinacional desde la experiencia constitucional boliviana de 2009. Mientras que el profesor, miembro investigador del Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología (CIESAS) y coordinador de PRUJULA, Juan Carlos Martínez destaca en su contribución, la inserción del concepto de Estado nacional latinoamericano, la identidad indígena y las transformaciones sociales que vienen ocurriendo en los países de la región. Por fin, la discusión proporcionada por la profesora titular de Teoría del Estado de la Universidad de Buenos Aires, Beatriz Rajland, que retoma la cuestión del Estado y su pro-blematización en América Latina, sus continuidades y rupturas en tiempos de globalidad político-ideológica.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina16

En síntesis, el debido reconocimiento a todo el grupo de investigadores y coauto-res, de Brasil y de América Latina (México, Colombia, Argentina, Bolivia y Ecuador) que participaron con honrosa presencia y con el esfuerzo final de elaboración de la obra con sus textos presentados en el I Encuentro Latinoamericano “Descolonización y Pluralismo Jurídico”. Agradecimientos a los colegas que representaron el apoyo institucional y aca-démico del CLACSO (Beatriz Rajland), de la CRÍTICA JURÍDICA (Daniel Sandoval), del PRUJULA (Juan Carlos Martínez), de la UASLP (Alejandro Rosillo). Igualmente, a los órganos de financiamiento en Brasil, como la CAPES (auxilió con pasajes internacionales e infraestructura), al Centro de Ciencias Jurídicas/UFSC y al PPGD/UFSC, por el apoyo institucional y material.

Por último, los agradecimientos no solamente al Prof. Dr. Alejandro Rosillo (Uni-versidad Autónoma de San Luis Potosí, México) por aceptar esta coedición internacional, sino también a todos los integrantes del Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE/UFSC) por el gran empeño en la operacionalización y en la dedicación académica (desde el Proyecto hasta el encerramiento del Evento Internacional). Igualmente, una mención especial a los “orientandos” João Victor Krieger y, de forma muy especial, a Debora Fe-rrazzo, por el incansable labor y desprendimiento, en el montaje y en el formateo de la obra.

Queda, por lo tanto, la invitación para una lectura atenta y comprometida de los textos que componen esta obra, los cuales contribuyen para una producción latinoameri-cana más interdisciplinar, plural y descolonial de otro Derecho posible.

Prof. ANTONIO CARLOS WOLKMERCoordenador General del Evento y del NEPE/UFSC

PARTE IPLURALISMO JURÍDICO

19

PLURALISMO JURÍDICO E DESLINDE JURISDICIONAL NA BOLÍVIA: A ATUAÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

PLURINACIONAL NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADEDébora Ferrazzo1

Introdução

Após intensa resistência política na Bolívia, entrou em vigor, no ano de 2009, a nova Constituição Política do Estado. Trazendo diversas novidades em termos de normatiza-ção e também de horizontes jurídicos, consagra, dentre seus principais alicerces o plura-lismo, a interculturalidade e a descolonização. O potencial inovador dos novos institutos adotados na Bolívia faz da cena política e jurídica do país um campo profícuo de estudo e aprendizado.

Os mecanismos desenvolvidos no país para coordenar as jurisdições têm sido alvo de críticas e também de apostas positivas, como é o caso da Lei de Deslinde, que se mos-trou bastante vulnerável às críticas de teóricos e juristas do país, especialmente no que se refere ao seu processo legislativo e seu caráter pouco democrático.

A imbricação dos elementos essenciais da Constituição (pluralismo, intercultura-lidade e descolonização) e como todos se materializam –ou nem tanto– nas normas e práticas do país serão analisadas neste texto, recorrendo ao método monográfico de pro-cedimento, cujo caso de estudo será a Sentença Constitucional Plurinacional 1422/2012, proferida em Ação de Liberdade proposta no país. Tal sentença foi selecionada por abar-car diversos aspectos teóricos suscitados nas primeiras partes deste texto, bem como de-monstrar a funcionalidade e importância dos instrumentos criados pelo Tribunal Consti-tucional Plurinacional para solucionar as controvérsias decorrentes do novo sistema, tal como, a Unidade de Descolonização do Tribunal.

Portanto, o seguinte estudo se desenvolverá apresentando na primeira parte um re-corte teórico dos pressupostos assinalados, especialmente os aspectos vinculados à refun-dação do Estado; a segunda parte, analisará a Lei de Deslinde e a terceira parte analisará a forma como o Tribunal Constitucional Plurinacional tem procedido quanto aos casos decorrentes da jurisdição indígena originária campesina, por meio do estudo do caso sele-cionado. Finalmente, na quarta parte, analisará a vinculação dos pressupostos teóricos do

1 Mestranda no curso de Pós-Graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE). Bolsista de mestrado da CAPES. Graduada em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) em 2011.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina20

pluralismo jurídico comunitário participativo proposto por Antonio Carlos Wolkmer, aos novos valores e princípios jurídicos e políticos da Bolívia.

1. Refundação do Estado boliviano e a Constituição Política do Estado

A Bolívia foi, recentemente, palco de diversos conflitos sociais, dos quais emergiu um novo quadro de protagonismo e empoderamento popular. As comunidades e movimen-tos sociais inicialmente se organizaram para resistir às políticas neoliberais implementadas no país, notadamente a privatização das riquezas naturais em contraste com conjunturas de privação das massas no acesso às mesmas riquezas. Posteriormente se mobilizaram para garantir a primeira eleição de um líder indígena (num país de maioria étnica descen-dente de comunidades indígenas) para a função de presidente do país.

As mudanças sociopolíticas foram tão profundas que impuseram a necessidade de um novo referencial político e jurídico para o país, o qual se materializou na Constituição Política do Estado, após um complexo processo constituinte, onde interesses contraditó-rios se enfrentaram, negociaram e complementaram, até culminar no referido documento, que passou a vigorar no ano de 2009.

A Constituição Política do Estado da Bolívia consolida, dentre diversas inovações, uma forma de Estado distinta daquela conhecida e herdada pela cultura jurídico-política eurocêntrica. Deixa para traz o velho Estado nação, para reconhecer formalmente a re-alidade concreta do país, marcada por diversas comunidades, povos e nações indígenas. Deixa para traz, tal como destaca seu Preâmbulo, o Estado colonial, republicano e neo-liberal, para assumir o compromisso de assumir um Estado unitário, mas Plurinacional Comunitário. Assim é que, nos termos do artigo 1º da nova Constituição, enuncia-se o novo horizonte político do país, bem como suas implicações necessárias:

Artículo 1. A Bolívia se constitui em um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias. A Bolívia se funda na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural y linguístico, dentro do processo integrador do país.2

Deste artigo e do Preâmbulo, extraem-se alguns princípios, cuja reflexão se faz importante no esforço por materializar a nova ordem democraticamente aspirada para o país. Destacam-se: o Estado Plurinacional, a interculturalidade, a descolonização e o pluralismo jurídico.

2 BOLÍVIA. Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia. 2007-2008. Disponível em: <http://www.tcpbolivia.bo/tcp/sites/all/modulostcp/leyes/ cpe/cpe.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2014. Tradução livre da autora.

Pluralismo jurídico e deslinde jurisdicional na Bolívia 21

1.1. Novos princípios e diretrizes constitucionais do estado boliviano

Com relação ao Estado Plurinacional, o advogado e professor Augustín Grijalva Jimenez e o cientista social José Luis Exeni Rodríguez,3 referem-se à plurinacionalidade4 como princípio constitucional. Tomada enquanto princípio, a plurinacionalidade converte-se em horizonte hermenêutico das ações políticas no Estado boliviano. O princípio da Plurina-cionalidade também é indissociável dos processos de refundação do Estado, inauguran-do uma nova forma de organização política, como profundo questionamento ao Estado nacional, mas que não requer a secessão estatal, e sim sua transformação estrutural.5 O Estado Plurinacional é, enfim, um modelo de organização política com potencial desco-lonizador.6

Assim, o princípio da plurinacionalidade imbrica-se com outros princípios intro-duzidos de modo pioneiro em uma Constituição, como é o caso da descolonização, tal como defende o advogado indígena, Moisés Idón Chivi Vargas, para quem uma constitui-ção descolonizada, se alcança por meio de um “pluralismo plurinacional comunitário”.7 No mesmo sentido, pode-se dizer que a descolonização constitucional pode conduzir a um “constitucionalismo pluralista e intercultural”,8 um constitucionalismo que se ativa com a soberania do povo.9

3 GRIJALVA JIMENEZ, Augustín. EXENI RODRÍGUEZ, José Luis. Coordinación entre jus-ticias, ese desafio. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidade em Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 699-732. p. 724.4 A própria Lei do Tribunal Constitucional Plurinacional reconhece a plurinacionalidade, assim como o pluralismo jurídico, a interculturalidade entre outros, como princípios da “justiça constitu-cional” (vide item 3 deste trabalho).5 GRIJALVA JIMENEZ, Augustín. O Estado Plurinacional e intercultural na Constituição Equa-toriana de 2008. In: VERDUM, Ricardo (org.) Constituição e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: INESC, 2009. pp. 115-133. p. 117-118.6 GARCÉS V., Fernando. Os esforços de construção descolonizada de um Estado Plurinacional na Bolívia e os riscos de vestir o mesmo cavalheiro com um novo paletó. In: VERDUM, Ricardo (org.) Constituição e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: INESC, 2009. pp. 167-192. p. 176.7 CHIVI VARGAS, Moisés Idón. Os caminhos da descolonização na América Latina: os Povos Indígenas e o igualitarismo jurisdicional na Bolívia. In: VERDUM, Ricardo (org.) Constituição e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: INESC, 2009. pp. 151-166. p. 155.8 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico e perspectivas para um novo constituciona-lismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos. MELO, Milena Petters. Constitucio-nalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013. pp. 19-42. p. 29-32.9 VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. O processo constituinte vene-zuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Car-

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina22

A descolonização, portanto, constitui-se como princípio segundo o qual, é possível romper com o domínio das elites econômicas, muitas vezes transnacionais, distribuindo o poder político de modo democrático entre os povos, comunidades e nações. Superando os “enxertos” eurocêntricos políticos, jurídicos e culturais, são resgatados os saberes, tra-dições e conhecimentos dos povos originários.

Tal princípio, assim como o da plurinacionalidade, imbrica-se com os demais, in-clusive a interculturalidade, constitucionalizada na Bolívia, enquanto uma das característi-cas do modelo de Estado.

Uma adequada configuração teórica para a interculturalidade no contexto cons-titucional boliviano é oferecida por meio da contribuição de Raúl Fornet-Betancourt, segundo o qual a interculturalidade, enquanto forma de diálogo, pressupõe sujeitos que se interpelam reciprocamente e não pode ser relação onde o outro é mero objeto de inte-resse ou de pesquisa. Através do diálogo intercultural, aceita-se que o outro também faz filosofia.10 É dizer que “no diálogo intercultural filosófico, as filosofias não falam somente sobre, mas sim com e desde sua correspondente diferença histórica”.11

A interculturalidade, então, é o reconhecimento de que os povos, nações e co-munidades indígenas e afrodescendentes na América Latina guardam sabedoria, ciência, tecnologias. Que suas culturas não concorrem, muito menos perdem para a cultura euro-cêntrica, mas que podem, mutuamente e de modo horizontal, se relacionar e se enrique-cer em processos de intercâmbio onde todas as culturas deem e recebam. A consolidação da interculturalidade impõe a necessidade de abandonar a ideia de que no mundo existem formas de existência natural, racional ou cientificamente superiores, de abandonar as prá-ticas reducionistas e universalizantes que a ideia de superioridade impulsiona.

A imbricação de tais princípios conduz necessariamente às disposições constitu-cionais sobre as autonomias. Assim, no artigo 2º, ao reconhecer a existência pré-colonial das comunidades indígenas originarias campesinas, a nova Constituição determina sua livre determinação. Uma das implicações desta prerrogativa é o reconhecimento e legiti-mação das Justiças Indígenas, já que no âmbito daquele país, verifica-se que as experiên-cias não são uniformes, derivando dos valores legítimos no âmbito de cada comunidade, de modo que é mais adequado sua denominação no plural.12 O fato é que não há uma só justiça indígena, mas sim, diversas.

los. MELO, Milena Petters. Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013. pp. 43-58.10 FORNET-BETANCOURT, Raúl. Questões de método para uma filosofia intercultural a partir da Ibero-América. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1994. p. 16.11 Ibid., p. 15. Grifo no original.12 BAZURCO OSORIO, Martín; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis. Bolivia: justicia indígena en tiempos de plurinacionalidad. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidade em Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 49-144. p. 128.

Pluralismo jurídico e deslinde jurisdicional na Bolívia 23

Tais justiças se concretizam nas práticas de inspiradas ou fundamentadas nos va-lores ancestrais, nos acúmulos históricos dos povos ou nações indígenas ou nas formas criativas que as comunidades desenvolvem para solucionar seus conflitos e contornar as dificuldades que cotidianamente se lhes apresentam. A justiça ordinária historicamente se contrapôs às justiças indígenas, marginalizando-as e mesmo criminalizando-as. Inclusive as formas plurais e de base mais democrática de gestão da justiça foram recentemente alvo de desmoralização pública, por meio de intensos ataques midiáticos no país que agiam associando linchamentos a espaços de justiça comunitária.13

Com relação à justiça ordinária, inversamente às demais tratadas neste estudo, tra-ta-se do sistema de justiça cuja base de legitimação é a lei e não as práticas comunitárias. Tal sistema de justiças deriva das práticas e teorias europeias, e nos primeiros séculos da colonização, foi se inserindo na América Latina por meio de um processo de hibridação entre o direito da Coroa e o direito Inca14, para após, impor-se como único sistema de direito “legítimo”, marginalizando as práticas originarias. É assim que

[...] tradicionalmente as relações entre os sistemas indígenas de administração de justiça e a justiça ordinária se concretizam em um contexto colonial (ou neocolonial) expressando-se mais como uma sobreposição assimétrica, onde um sistema –a justiça ordinária– se impõe sobre o outro negando-o, estigmatizando-o ou inclusive criminalizando-o, de modo que as formas de articulação predominantemente existentes entre ambas as justiças são muito mais exercícios de submissão e dominação do que expressões de coordenação e cooperação.15

Assim, é imperiosa a descolonização inclusive dos sistemas de justiça, suprimindo o locus privilegiado da justiça ordinária, como um dos passos necessários à emancipação e libertação das comunidades deste continente. Isto conduz ao pluralismo jurídico, enuncia-do na nova Constituição Política do Estado da Bolívia.

O pluralismo jurídico, um fenômeno passível de inúmeras abordagens e interpre-tações, pode ser delimitado na teoria de Antonio Carlos Wolkmer, representando assim uma fórmula viável para possibilitar a efetivação de um sistema de justiça descolonizado e intercultural.

13 SANTOS, Boaventura de Sousa. Cuando los excluidos tienen derecho: justicia indígena, pluri-nacionalidad e interculturalidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidade em Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp. 11-48. p. 14-15.14 CHIVI VARGAS, Idón Moisés. El largo camino de la jurisdicción indígena. In: SANTOS, Boa-ventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidade em Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. pp.275-379. p. 287 e ss.15 BAZURCO OSORIO; EXENI RODRÍGUEZ, 2013, op. cit., p. 121. Tradução livre da autora.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina24

Considerando que a questão das jurisdições na Bolívia não se circunscreve ao âm-bito estritamente jurídico, mas perpassa também pelo âmbito político, notadamente os processos de edição de normas de coordenação e cooperação e que irradia efeitos pela vida das comunidades, a questão da democratização radical do poder político, constitui passagem obrigatória na efetivação deste novo sistema e, considerando o escopo consti-tucional do país, cristalizado na Constituição Política do Estado, em vigor desde o ano de 2009, crê-se que tal teoria oferece as bases, o horizonte para se alcançar tal escopo: um Estado plurinacional, intercultural e descolonizado, não mais subalterno aos interesses oligárquicos que historicamente o determinaram. E na reunião dos cinco elementos do pluralismo jurídico comunitário participativo configura uma ordem político-jurídica que rompe de modo contundente, e em suas diversas dimensões, com a colonialidade do po-der (eurocentrismo).

Neste sentido, acertadamente determina a Constituição boliviana (art. 179, II) que a jurisdição da “Justiça Indígena Originária Campesina”, deve gozar de igualdade hierárqui-ca em relação à jurisdição ordinária. A forma de coexistência destas diferentes jurisdições teve sua regulamentação reservada pela Constituição (art. 179, I) à lei, a qual foi posterior-mente editada sob a denominação de “Lei de Deslinde Jurisdicional”. No mesmo artigo 179, fica determinado que a jurisdição ordinária será exercida pelo Tribunal Supremo de Justiça e a jurisdição indígena originária campesina pelas suas próprias autoridades.

A “justiça constitucional” por sua vez, deve ser exercida, nos termos da Constitui-ção boliviana (179, III), pelo Tribunal Constitucional Plurinacional.

2. Lei de Deslinde Jurisdicional na Bolívia

A Lei 73 de 29 de dezembro de 2010, Lei de Deslinde Jurisdicional, é a norma editada pela Assembleia Plurinacional para ajustar a coordenação e cooperação entre justiças. Esta norma tem sido criticada por teóricos, juristas e comunidades. Para Boaventura de Sousa Santos, a Lei de deslinde é um atentado contra o mandamento constitucional, inclusive por não ter contemplado os resultados da consulta prévia, conforme determina a própria constituição e o direito internacional.16 O desrespeito pelas deliberações das comunidades indígenas na consulta prévia, deixa a norma vulnerável às críticas destas mesmas comu-nidades, que afinal, foram incluídas de modo meramente formal na produção da lei, uma vez que suas deliberações não surtiram consequências, ou efeitos materiais, no processo legislativo.

É fato que existem diversas interpretações sobre a lei de deslinde e, nem todas tão pessimistas, como para Bazurco Osorio e Exeni Rodríguez17, para quem, apesar de a lei não garantir de imediato o respeito às decisões emanadas de autoridades da justiça indígena, abre caminho e possibilidades para que os sistemas legitimamente constituídos

16 SANTOS, 2013, op.cit.., p. 33-36.17 BAZURCO OSORIO; EXENI RODRÍGUEZ, 2013, op.cit., p. 121-123.

Pluralismo jurídico e deslinde jurisdicional na Bolívia 25

nas comunidades se consolidem e se fortaleçam. Por outro lado, é possível falar em qua-tro premissas fundamentais acerca da coordenação entre justiças indígenas e ordinária, tomando como horizonte o pluralismo jurídico: a primeira é que uma norma, por si só, não basta para garantir a coordenação entre justiças; a segunda, é que a lei não é um ins-trumento fundamental para tanto; a terceira é que normas inadequadas podem colonizar as justiças indígenas e a quarta é que na promulgação de uma lei de deslinde, esta deve expressar verdadeiramente um Estado Plurinacional.18

Neste sentido, a Lei de Deslinde pode ser um instrumento de manutenção da co-lonização jurídica e política, e pode mesmo, atentar contra o Estado Plurinacional. Para estes autores, a Lei de Deslinde confina e desapropria as justiças indígenas de suas prer-rogativas constitucionais e trata como concessão a repartição de competências, deixando matérias residuais para as autonomias indígenas originárias campesinas.

Isto porque, embora enunciando diversos dos princípios constitucionais relaciona-dos à descolonização do Estado e do próprio sistema de justiças, tais como a intercultu-ralidade, o pluralismo jurídico e outros, a Lei de Deslinde avança num sentido contrário ao preconizado pela Constituição, ao determinar somente “competências residuais” para a jurisdição indígena. Tal se depreende do art. 10 da citada lei, quando esta determina o rol de matérias que a jurisdição indígena não alcança, abrangendo diversos fatos afetos à matéria penal, civil, trabalhista, seguridade, tributário entre outros, até, finalmente, vedar também o alcance a outras matérias reservadas pela Constituição às demais jurisdições. Expressamente, reserva à jurisdição indígena as matérias que esta tradicionalmente co-nheceu. Segundo Augustín Grijalva e Exení Rodriguez,19 desta forma, a Lei de Deslinde confina a justiça indígena e a impede de evoluir.

3. Tribunal Constitucional Plurinacional

A figura do Tribunal Constitucional aparece pela primeira vez em um texto constitucional na Bolívia, na Constituição Política de 1995. Conforme art. 116, IV, o controle de consti-tucionalidade no país deve ser exercido por este Tribunal.

No ano de 2009, com a nova Constituição, o Tribunal Constitucional passa a ser denominado Tribunal Constitucional Plurinacional e a este se reserva a responsabilidade de exercer a “justiça constitucional” (art. 179, III). Este Tribunal deve ser composto por autoridades eleitos com critérios de plurinacionalidade, inclusive, por autoridades do sis-tema indígena originário campesino.

Também é função deste Tribunal (art. 202, 8 e 11), responder consultas das au-toridades indígenas originárias campesinas acerca da aplicação de suas normas em casos concretos e também conflitos de competência entre esta jurisdição e as demais.

18 Ibid., p. 699-700.19 Ibid., p. 725-727.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina26

Atualmente, a lei que dispõe e organiza o funcionamento do Tribunal Constitu-cional Plurinacional (TCP) é a Lei 027 de 6 de julho de 2010. Segundo o artigo 3 desta norma, são princípios da justiça constitucional o Pluralismo Jurídico, a plurinacionalidade, a interculturalidade, a complementariedade (inclusive entre indivíduos, sociedade e natu-reza), harmonia social, gratuidade entre outros. Dentre os sete magistrados que compõe o TCP, ao menos dois devem provir do sistema indígena originário campesino (art. 13, 2).

Sua estrutura conta com três salas, dentre as quais, uma é a “sala especializada” que deve tratar, em caráter exclusivo, das consultas formuladas pelas autoridades indígenas, acerca da aplicação de suas normas em casos concretos (art. 32).

Além disto, constata-se no organograma do TCP a existência de uma “Secreta-ria Técnica e Descolonização”, vinculada à Presidência do Tribunal. Esta Secretaria é formada por uma equipe multidisciplinar, subdividida em duas chefias: de “unidade de descolonização”, onde constam dois antropólogos, um historiador, um sociólogo, um linguista, um especialista em descentralização e um advogado constitucionalista e a chefia da unidade de Justiça Indígena Originaria Campesina, com um advogado constituciona-lista, um cientista político, um sociólogo e três especialistas em justiça indígena originária campesina.

Com relação às jurisprudências emanadas do TCP, seguem um sistema de classifi-cação que as dividem em cinco tipos diferentes: sentença fundadora (por criar novo direi-to); sentença moduladora (modifica ou especifica algum aspecto da linha jurisprudencial sem alterá-la); sentença modificadora de linha (que efetua uma modificação substancial na linha jurisprudencial); sentença recondutora de linha (que recupera um entendimento anteriormente superado) e sentença sistematizadora (ordena precedentes dispersos de de-terminado tema, estabelecendo suas subregras). O sistema de consulta às jurisprudências é claramente explicitado na página virtual do TCP, visando tornar acessível à toda comu-nidade seu conteúdo e assim, subdivide-se em dois blocos: a) de interpretação da Consti-tuição, com seus subtemas e b) interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição com seus subtemas.

Assim, foi selecionada uma decisão emanada deste Tribunal e relacionada aos te-mas aqui abordados, de modo a possibilitar a percepção dos novos procedimentos ado-tados na Bolívia para efetivar os postulados da descolonização, interculturalidade e plura-lismo jurídico.

3.1. Justiça Indígena Originária Campesina e a intervenção do Tribunal Constitucional Plurinacional

Verifica-se conforme a Sentença nº 1422/2012, que um caso de roubo ocorrido em uma comunidade integrante do sistema de justiça indígena originário campesino, mesmo após acordo e restauração integral do dano, culminou na decisão (emanada da comunidade) pela expulsão de toda família do autor do fato, bem como discriminação e maus tratos

Pluralismo jurídico e deslinde jurisdicional na Bolívia 27

contra familiares do autor. A família, inconformada com a decisão, interpôs “Ação de Liberdade”20 sustentando que seu direito à vida, integridade física, psicológica, entre ou-tros direitos humanos, foram violados, inclusive com suspensão do fornecimento de água. Também foi alegada a ofensa ao devido processo e que a decisão afetou, além do próprio autor, mulheres e crianças que não haviam cometido nenhum ato sancionável, e que a comunidade demandada não poderia ser considerada organização campesina, portadora de tradições ancestrais.

Considerando a natureza da controvérsia, foi solicitado perícia à Unidade de Des-colonização do TCP, da qual se extraíram as seguintes conclusões desde a perspectiva da antropologia jurídica: a) a comunidade demandada (população de Poroma) tem existência pré-colonial e subsistência posterior à colonização, vinculada a identidade cultural dos Qhara Qharas, sendo os QharaQharaSuyu uma nação originária pertencente aos Qullasuyu e sua população autodeclarada Indígena Originária Campesina Quechua; b) os dois prin-cipais idiomas do município de Poroma são o espanhol e o quéchua; c) quanto à orga-nização administrativa do município, tal é mista, pois mesclam-se à população urbana comunidades locais, sindicatos campesinos e organizações originárias sob o sistema de ayllus; mesclam-se também formas de autoridades no local, havendo autoridades originá-rias (Cacique e Cacique Kuraca Menor) e conflito entre estas autoridades e autoridades do sistema ordinário; d) é legítima sua condição de territorialidade ancestral, visto que o processo de reconstrução territorial estabelecido pelos Qhara Qahara Suyu data desde a colonização e República, resultando em processos de fragmentação e formação de cultura de resistência; e) seus rituais fundam-se em sua cosmovisão, fundando-se em suas tradi-ções e elementos específicos; f) suas práticas de justiça concretizam-se por meio de seus cabildos territoriales, suas instâncias de deliberação da justiça indígena originária; g) entre suas sanções é admitida a expulsão dos que traem a comunidade por interesses pessoais, ou reincidem em faltas que afetam a convivência pacífica da comunidade, reincidência esta demonstrada por meio das atas da comunidade.

No caso concreto aqui analisado, o TCP sistematiza a reflexão dividindo-a em algumas problemáticas jurídico-constitucionais, as quais desenvolve nos termos a seguir sintetizados:

a) Refundação do Estado Plurinacional da Bolívia e os princípios do plu-ralismo, interculturalidade e descolonização: ocorrida com a promulgação da nova Constituição, em fevereiro de 2009, converte o “pluralismo” em eixo essencial da re-forma constitucional e novo fundamento do Estado. Agora a inclusão das comunida-des originárias na estrutura estatal deve se dar sob os postulados da interculturalidade, complementariedade e da descolonização. Isto impõe a superação do Estado monista e a consequência disto são dois elementos essenciais: a Constituição como fonte primeira

20 Ação prevista na Constituição Política do Estado, artigo 125, enquanto instrumento hábil para proteção de toda e qualquer pessoa que considere sua vida ou liberdade em risco, bem como, considere-se indevidamente processada ou ofendido seu direito ao devido processo.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina28

e direta de direitos e as normas e procedimentos das comunidades originárias também como fontes diretas de direitos. Ou seja: o novo sistema jurídico boliviano é composto tanto por normas positivas quanto por normas não positivadas. Com a refundação do Estado, a jurisdição boliviana fica tripartida entre a jurisdição ordinária, agroambiental e indígena originária campesina.

b) Nações e Povos Indígenas Originários Campesinos no novo regime cons-titucional: na nova ordem Constitucional, conforme art. 30, estas comunidades passam a ser reconhecidas como sujeitos coletivos de direitos. Tal reconhecimento, à luz do plu-ralismo, implica em que, dentre seus direitos, as comunidades originárias possam existir livremente, tenham direito de autodeterminação, inclusive com respeito à sua organização administrativa e outros elementos de coesão coletiva, devendo seus sistemas políticos, jurídicos e econômicos ser respeitados e possam compor a estrutura geral do Estado.

c) o exercício da justiça indígena originário campesina e os direitos funda-mentais: a livre determinação e exercício da jurisdição indígena originária campesina en-contra uma limitação, justamente nos direitos fundamentais, os quais, todavia, devem ser interpretados em contextos inter e intraculturais. Tal jurisdição não pode ser submetida a nenhuma outra, mas tão somente, ao controle plural de constitucionalidade.

d) incidência do controle plural de constitucionalidade sobre a justiça in-dígena originário campesina: embora não submetida a nenhuma outra jurisdição do Estado boliviano, em virtude do Estado Plurinacional da Bolívia ser um Estado unitário, submetido à Constituição como norma suprema, a jurisdição indígena originária campesi-na submete-se ao controle plural de constitucionalidade, confiado exclusivamente ao TCP. Neste sentido, inclusive a Ação de Liberdade é mecanismo hábil para habilitar a atuação deste Tribunal, que deve interpretar as pautas tomando como horizonte os direitos funda-mentais sob o marco da interculturalidade.

e) interpretação de direitos fundamentais em contextos inter e intra cultu-rais e o vivir bien: um aspecto relevante é que a Constituição Política da Bolívia, além de seu conteúdo normativo, possui também conteúdo axiomático, o qual se irradia por todo o ordenamento. Neste sentido, o pluralismo e a interculturalidade, enquanto elementos de refundação do Estado, habilitam também uma pluralidade axiomática no cenário bo-liviano, contemplando cosmovisões das comunidades e o paradigma do vivir bien, este, tomado como pauta específica de interpretação intercultural dos direitos fundamentais, submetendo as decisões da jurisdição indígena, bem como suas controvérsias, e oferecen-do os seguintes parâmetros axiológicos: harmonia axiomática; decisões fundadas em cos-movisão própria; ritos e procedimentos tradicionais de acordo com cosmovisão própria; proporcionalidade e necessidade estrita. Traduzindo tais parâmetros, o TCP propõe como método jurídico a “ponderação intercultural” no controle plural de constitucionalidade, agindo em quatro momentos: primeiro comparando os fins almejados aos meios empre-gados de modo a verificar sua coerência; além disto, sob o mesmo método, deve-se com-parar a decisão emanada da comunidade à sua cosmovisão; deve-se analisar se a decisão

Pluralismo jurídico e deslinde jurisdicional na Bolívia 29

é harmônica com os ritos e procedimentos tradicionalmente adotados na comunidade e, finalmente, o TCP deve estabelecer se há proporcionalidade entre a natureza e gravidade dos fatos praticados e a sanção aplicada pela decisão da comunidade, bem como, a estrita necessidade no caso de as sanções serem graves.

f) proteção de mulheres e menores em contextos inter e intra culturais: re-conhece-se a condição de “vulnerabilidade material” que acomete mulheres e crianças, si-tuando ambos no setor de atenção prioritária pela doutrina constitucional, com superpro-teção reforçada, fator que também deve se submeter à interpretação inter e intracultural, mas nestes casos, favorável, progressiva e extensiva a mulheres e menores.

g) Ação de Liberdade em contextos inter e intraculturais: esta ação cons-titucional, fora da jurisdição indígena originaria campesina, precisa contemplar quatro pressupostos essenciais: ofensa ao direito à vida; ofensa ao direito à liberdade física e de locomoção; ato ou omissão que constitua processo indevido e ato ou omissão que impli-que em perseguição indevida. Tratando-se de jurisdição indígena, todavia, considerando o pluralismo, interculturalidade e descolonização, tais pressupostos já não submetem a ação do controle plural de constitucionalidade, exigindo outra forma de interpretação, pautada na inter e intraculturalidade, assegurando a justiça material à luz do paradigma do vivir bien, citado no item e.

Após considerar a perícia da unidade de descolonização, o TCP entendeu ser ine-quívoca a condição de povo indígena originário campesino, bem como a titularidade de direitos coletivos referentes ao seu próprio sistema jurídico, entre outros, da comunidade de Poroma, rejeitando assim, a tese dos autores da ação de que tal comunidade seria “moderna” e não pré-colonial. Desta forma, a solução adotada pelo Tribunal, é aplicar a “ponderação intercultural” ao caso apresentado. Segundo tal ponderação, prevaleceu o entendimento de que a decisão da comunidade por expulsar toda a família do autor do roubo, não é harmônica com os valores plurais supremos, como igualdade, solidariedade, inclusão, bem estar comum, entre outros e que a finalidade de medida não pode ser justifi-cável à luz da preservação do interesse coletivo. Não cumpre assim, o primeiro momento da aplicação do método da ponderação intercultural.

Da mesma forma, a decisão pela expulsão é considerada contraditória com a cos-movisão da comunidade, pois, constatou-se por meio da perícia realizada que tal cosmo-visão implica em devolver à ordem a desordem causada por uma conduta não adequada, ou, em seus termos próprios, de origem aymara, ch’uwanchar, isto porque somente uma das pessoas expulsas era de fato responsável pela conduta inadequada e não toda a sua família, também expulsa. Quanto ao procedimento adotado, constatou-se que a expulsão da comunidade, levada a conhecimento por meio de notificação, também não é coerente com os ritos e procedimentos tradicionalmente adotados pela comunidade. O Tribunal ainda concluiu pela desproporcionalidade da decisão da comunidade, uma vez que os afetados não haviam praticado ato lesivo algum. E, sendo a sanção considerada grave, na

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina30

ponderação acerca da estrita necessidade, concluiu-se que tal sanção não era estritamente necessária comunitária.

Finalmente, entende o TCP, a decisão da comunidade afeta dois grupos em con-dição de vulnerabilidade –mulheres e menores– contrariando sua própria cosmovisão. Assim, a decisão do TCP acaba por determinar que os atos considerados ofensivos aos autores da ação, especialmente os contrários ao paradigma do vivir bien, fossem cessados, inclusive a suspensão do fornecimento de água. A sentença também deveria ser traduzida para quéchua e aymara e socializada com toda a comunidade de Poroma.

4. O pluralismo e os novos princípios político-jurídicos bolivianos

Verifica-se que o pluralismo é um elemento essencial da nova ordem política e jurídica na Bolívia. É importante, todavia, ater-se a questão de qual pluralismo, especialmente no que se refere aos sistemas jurídicos vigentes no país.

Assim é que, considerando-se os antecedentes sócio-políticos da Constituição Polí-tica do Estado, de 2009, pode-se delimitar o conteúdo do pluralismo base do novo sistema de direitos, identificando-o com a teoria proposta por Antonio Carlos Wolkmer acerca de um pluralismo jurídico comunitário participativo. Tal pluralismo surge como um sistema com-posto pela pluralidade de expressões comunitárias, a partir de cinco elementos estrutura-dos em dois fundamentos: os fundamentos de efetividade material, que são os novos sujeitos coletivos e a satisfação das necessidades humanas fundamentais e os fundamentos de efetividade formal, que são a reordenação do espaço público, privilegiando uma democracia descentralizada e de participação popular, o desenvolvimento da ética concreta da alteri-dade e a construção de processos favorecedores de uma racionalidade emancipatória.21

Note-se que tal teoria, de modo harmônico a Constituição do país, pressupõe a superação do poder e da cultura coloniais. Tal se verifica por meio dos novos sujeitos coletivos que se insurgem contra o sujeito individual e abstrato do poder colonial e suas instituições, impondo novas maneiras de pensar e construir os sistemas de direitos e im-pondo o respeito pela cultura ancestral, seus saberes e acúmulos históricos, bem como por meio do reconhecimento das necessidades humanas fundamentais, que não podem ser contempladas na perspectiva universalista e abstrata dos direitos humanos (uma das instituições da colonialidade eurocêntrica), mas que são particulares, variando de socie-dade para sociedade e que estão sendo permanentemente redefinidas,22 de modo que não podem ser compreendidas senão pelo diálogo intercultural.

Há também a questão da reordenação do espaço público, pois a genuína verifica-ção de tal sistema de necessidades humanas fundamentais requer uma democracia descen-tralizada protagonizada pelo povo, como a proposta por Wolkmer, bem como o respeito

21 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Di-reito. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Alfa Omega. 2001. 403 p. 231-232.22 Ibid., pp. 127-129; 160.

Pluralismo jurídico e deslinde jurisdicional na Bolívia 31

pela autodeterminação –inclusive jurídica, e que são radicalmente opostas ao sistema de representações políticas e decisões jurídicas do monismo estatal–.

Também se deve destacar a ética concreta da alteridade, que, assim como os demais pressupostos, impõe-se como elemento de coesão do pluralismo jurídico comunitário participativo, que só pode se efetivar a partir da reunião de todos os seus pressupostos e sem a qual, o outro, notadamente o indígena, o campesino, segue ocultado, negado, su-balternizado. Assim, a ética concreta da alteridade apresenta-se como processo em que os sujeitos transcendem a si próprios, reconhecendo-se nos outros sujeitos23 e possibilita-se, a partir deste exercício, a construção de processos favorecedores de uma racionalidade emancipatória, e isto exige uma radicalização ainda mais profunda da democracia, permi-tindo que todos os sujeitos (individuais ou coletivos) tenham condições de argumentar, ouvir e serem ouvidos e terem respeitados os seus sistemas.

Conclusão

A consolidação de um sistema de justiça nos termos determinados pela Constituição Polí-tica do Estado da Bolívia –ou seja, intercultural, descolonizado, com respeito à plurinacio-nalidade e igualdade hierárquica entre as jurisdições ordinária e indígena– está profunda-mente relacionada ao Pluralismo Jurídico Comunitário Participativo enquanto horizonte e, por consequência, à efetivação de cada um dos seus cinco elementos constitutivos.

Inclusive, a ausência destes elementos, verificada no processo de edição da lei de deslinde, foi significativa para caracterizar tal norma diante de boa parte dos juristas e teóricos do país, como instrumento eurocêntrico de subalternização da justiça indígena. Fala-se especificamente da negação da reordenação do espaço público com radicalização da democracia, decorrente do desrespeito aos resultados da consulta prévia às comuni-dades com relação à edição da norma; do mesmo modo, a lei de deslinde, como alertam diversos teóricos, ao blindar a jurisdição ordinária e conceder para a jurisdição indígena originário campesina competências residuais, mitiga seu campo de autonomia, nega a va-lidade de seus saberes ancestrais, mantendo-os ocultados e, desta forma, nega o segundo elemento de ordem formal constitutivo do pluralismo jurídico, qual seja, a ética concreta da alteridade. Mantendo subalternos tais saberes, nega os processos favorecedores de uma racionalidade emancipatória, o que se verifica inclusive, no desrespeito às delibera-ções democráticas das comunidades indígenas e sua participação na construção da lei de deslinde.

O processo legislativo do qual decorreu a norma complementar aos mandamentos constitucionais, tem o potencial de silenciar e negar os dois elementos de ordem material, que caracterizam o marco teórico desta pesquisa: os novos sujeitos coletivos de direitos, reconhecidos pela Constituição em seus dispositivos acerca da plurinacionalidade, auto-

23 Ibid., p. 241.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina32

nomia dos povos e nações, entre outros, bem como, a concretização de um sistema de satisfação de necessidades fundamentais.

Verifica-se também que a regulamentação dada pela lei de deslinde, apesar de reco-nhecer, em seu artigo 7º, a competência das justiças indígenas para administrar seus con-flitos, nos artigos seguintes impõe limitações a esta competência, dentre elas, a ocorrência simultânea24 de três requisitos: pessoal, territorial e material. Impondo o limite de que os efeitos da transgressão se produzam no âmbito territorial da jurisdição indígena, ignora a dificuldade em delimitar tais territórios.

Por outro lado, a Lei de Deslinde traz importantes contribuições, como o dever de cooperação entre justiças, fator que pode contribuir para a factibilidade dos sistemas de justiça ao possibilitar-lhes acesso a instrumentos, mecanismos e métodos que possam contribuir com a solução de seus conflitos, sempre que julgados adequados.

Finalmente, com relação ao Tribunal Constitucional Plurinacional, verifica-se o im-portante avanço deste no sentido de reconhecer que as comunidades indígenas originárias campesinas constituem-se como fontes diretas e originárias de direito, tal como a Consti-tuição, retirando desta o locus privilegiado de enunciação de direitos, mitigando com isto, o monismo estatal. Além disto, a criação de uma Unidade de Descolonização, composta inclusive por profissionais raramente respaldados nas práticas jurídicas eurocêntricas, tais como antropólogos, historiadores e sociólogos e, em especial, a participação ativa e deci-siva de tal Unidade no controle plural de constitucionalidade representam um significativo avanço na perspectiva da interculturalidade, inclusive na metodologia transdisciplinar, tal como propõe o Raúl Fornet-Betancourt.

É certo que o sistema é inovador e muito recente e complexo, pelo que, muito há que se fazer, observar e aprender com a experiência boliviana. Apesar das inúmeras dificuldades e controvérsias vivenciadas no processo de efetivação da nova ordem políti-ca, jurídica e cultural no país, há também inúmeras possibilidades de sucesso no sentido da emancipação e da libertação das comunidades, especialmente aquelas historicamente negadas e silenciadas.

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24 Tal exigência é específica da Lei de Deslinde, uma vez que na Constituição Política do Estado, art. 191, não se exige a simultaneidade de requisitos, mas somente apresenta a enunciação de âm-bitos de vigência.

Pluralismo jurídico e deslinde jurisdicional na Bolívia 33

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SISTEMA DE NECESSIDADES HUMANAS FUNDAMENTAIS NO PLURALISMO JURÍDICO:

UM POSSÍVEL REENCONTRO DA COMUNIDADELuís Henrique Orio1

Introdução

O recente fenômeno do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, dentre outras aber-turas e reaberturas históricas, retomou a atualidade e a necessidade da construção de uma cultura jurídica que se colocasse em alternativa à histórica crise institucional dos estados democráticos latino-americanas. Mais acentuadamente por conta das novas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009), recupera-se a possibilidade da retomada da força social comunitária de organização jurídico-política própria, amparada por um novo para-digma de Direito.

Estas circunstâncias obviamente revigoram a pertinência teórico-prática do Plura-lismo Jurídico, tanto em seu núcleo progressista comum, no sentido do reconhecimento de juridicidades produzidas desde baixo, como em uma elaboração que se situa dentro deste marco epistemológico, mas que se apresenta mais densa e específica, representada pelo Pluralismo Jurídico dito Comunitário-Participativo, de Antonio Carlos Wolkmer2. Portanto, mais do que pela sua grandeza teórica e compromisso político, a investigação em torno do Pluralismo Jurídico hoje encontra na reordenação estatal dos países mencio-nados, mais acentuadamente, uma justificativa histórica a clamar pela renovação crítica de sua problemática central.

Tendo como premissa, portanto, a compreensão do Pluralismo Jurídico Comuni-tário-Participativo como uma proposta de novo modelo de organização jurídico-política, centralmente em oposição ao monismo estatal, o presente artigo concentrará um enfoque na análise desta proposta: de certa forma quase como uma reinterpretação, o que interes-sará aqui centralmente do Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo é sua busca de legitimidade pela recuperação de um sentido comunitário societal perdido ou destruído na ordem mundial capitalista.

1 Mestrando em Teoria, Filosofia e História do Direito no Programa de Pós-Graduação em Direi-to da UFSC. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE-UFSC). Bolsista do CNPq-Brasil.2 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 2001.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina36

A abertura para a construção desta síntese e sua posterior mediação teórica virá amparada no exame das necessidades como critério de efetividade material do Pluralismo Jurí-dico Comunitário Participativo. O foco na materialidade da efetividade deste novo modelo de organização jurídico-política impõe buscar, em nosso entender, as origens do desman-telamento da vida comunitária, da perda do mútuo reconhecimento humano dos seres sociais, explicação que não pode ser outra que não a que parte da centralidade do trabalho e seu estranhamento na égide do capital, o que traz na sua dinâmica a consequente aliena-ção das necessidades humanas.

Na esteira de uma síntese da crítica da economia política marxiana, busca-se por último, a partir do marxista peruano José Carlos Mariátegui, arrematar a questão da efeti-vidade material de um modelo comunitário de organização jurídico-política em correlação a sua particular aplicação do método do materialismo histórico-dialético à realidade lati-no-americana: o problema do índio e, em última instância, das classes exploradas, como um problema estreitamente ligado à questão da propriedade, e sua visão do comunismo inca como experiência e embrião de uma reordenação societal avançada rumo à emancipação humana.

A difícil proposta de articulação entre a importância das necessidades para o Plu-ralismo Jurídico Comunitário-Participativo, a crítica filosófico-econômica da ordem bur-guesa marxiana e a perspectiva da emancipação humana mariateguiana para a América La-tina estará colocada, no presente artigo, como um conjunto de mediações dialeticamente possíveis e pretensamente propositivas, de alguma forma, de desdobramentos conceituais úteis para armar a crítica de fenômenos sócio-políticos em curso, como o mencionado no início desta introdução.

1. Sistema de necessidades como elemento de efetividade material do pluralismo jurídico comunitário-participativo

Uma primeira advertência é necessária ao desenvolvimento desta seção: trataremos aqui de uma elaboração teórica sita nos marcos do Pluralismo, mas que se constitui por si só em um marco teórico destacado daquele. Para fins do presente trabalho, a referência sintética a Pluralismo Jurídico remeterá, quando não expressar o contrário, como já anteci-pado acima, ao Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo, de que é autor o Professor Antonio Carlos Wolkmer3.

Com sua tese, Wolkmer pretende construir um novo paradigma jurídico-político que represente uma reposta histórica e social à crise da institucionalidade burguesa, “ca-racterizado por formas múltiplas de produção de juridicidade e por modalidades demo-cráticas e emancipatórias de práticas sociais”4.

3 Ibid.4 Ibid., p. 24.

Sistema de necessidades humanas fundamentais no Pluralismo Jurídico 37

Partindo de uma caracterização já muito conhecida acerca do esgotamento do Direito burguês e suas variantes históricas, com assento na crítica de seus sustentácu-los epistemológicos e filosófico-políticos (positivismo e liberalismo) a proposta cultural do Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo, de corte progressista (para estabelecer uma diferenciação dos demais pluralismos jurídicos5) se encontra então nucleada na ideia de superação paradigmática, socialmente referenciada na práxis (e na teoria) dos novos movimentos sociais, na aposta política da centralidade da participação popular e na trans-cendência da ética da alteridade.

Em síntese, portanto, a proposta de nova cultura jurídico-política de Wolkmer alicerça-se em dimensões formais e materiais que lhe dão a amplitude de um projeto que ousa ressignificar a totalidade social (em certa medida) em que se insere. Por requisitos materiais, portanto, entende-se a legitimidade de novos sujeitos coletivos e a implementação de um sistema apropriado de satisfação das necessidades. Por fundamentos formais, a seu modo, com-preende-se a democratização e abertura de um espaço público participativo; uma construção pedagógica rumo a uma ética da alteridade; e uma ressignificação da racionalidade pautada pela emancipação6.

Neste ponto chega-se ao contato do elemento a ser trabalhado na presente seção. Caracterizado, a grosso modo, o Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo, é a partir da análise e reinterpretação de um de seus requisitos materiais que partirá a proposta de aproximação com os demais marcos teóricos e conceitos lançados na sequência. Trata-se da ideia de implementação de um sistema justo de satisfação das necessidades7. De pronto importa observar que a análise isolada de um dos elementos de efetividade não pretende desman-telar a unidade semântica da proposta, senão que, buscando ao máximo resguardar seu núcleo, intenta abrir campo para entrecruzamentos críticos que possam eventualmente dinamizar a própria proposta ou extrair dela projeções para outras.

Em sendo a satisfação das necessidades um elemento material da proposta pluralista, sua ancoragem é estreitamente vinculada a uma perspectiva histórico-social periférica, latino-americana. De modo que a vinculação da questão das necessidades, sua origem, ou a materialidade de sua satisfação se dá com o(s) contexto(s) para o(s) qual(is) a proposta pluralista pretende incidir. Esclarecendo eventuais confusões terminológicas, nosso autor conceitua necessidade

[…] (sentido genérico, mais abrangente) [como sendo] todo aquele sentimento, intenção ou desejo consciente que envolve exigências valorativas, motivando o comportamento humano para a aquisição de bens materiais e imateriais considerados essenciais.8

5 Ibid., p. 77.6 Ibid.7 Ibid.8 Ibid., p. 242. Grifo no original.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina38

Em sua obra, Wolkmer9 de certa forma acompanha o percurso teórico de Agnes Heller na compreensão das necessidades, valendo-se dela como principal marco teórico para este setor da sua tese, adequando-a ao contexto para o qual se dirige. A autora, ori-ginalmente filiada a uma matriz lukacsiana do marxismo, vai progressivamente se aproxi-mando de uma vertente pós-moderna. Para o trato da questão das necessidades, é dizer: de uma interpretação das necessidades vinculada à crítica da economia política marxiana, com as premissas do trabalho e de uma ontologia do ser social, articulando as noções de “necessidades obrigatórias e determinadas”, Agnes Heller produz seu giro no sentido da noção de “necessidades contingentes” e “vida cotidiana”10.

Para Wolkmer, a partir do exame das formulações e variações teóricas de Agnes Heller, a importância das necessidades está em fornecer um critério material de fonte para sua satisfação no interior do seu novo paradigma jurídico-político, e isto levando em conta a especificidade periférica de sua proposta, o que implica, na sua síntese, em uma ampli-tude maior das necessidades a integrarem seu sistema de satisfação:

[…] Com isso quer-se frisar que, para alcançar a real compreensão da “estrutura da satisfação das necessidades” nas formas de vida imperantes na América Latina e no Brasil, ainda que ela seja em grande parte constituída por carências e “necessidades necessárias”, engendradas pelas condições do seu próprio modelo de desenvolvimento capitalista, não caberá excluir a contingência de necessidades eventuais, indeterminadas ou racionalizadas.11

Em certa medida propomos afirmar que não está tanto em pauta, no exame da questão das necessidades, a regulamentação de sua justeza em si, o que não é de somenos importância, mas sim a compreensão de seu papel na dinâmica social no marco da plu-ralidade. Fica claro que Wolkmer não pretende hierarquizar as necessidades, nem mesmo restringi-las consoante sua qualidade (reconhecendo, ademais, que aquelas também podem se referir a valores, desejos, etc.), mas não deixa de consignar, entrementes, em uma pas-sagem do texto, um indício de critério: pode ser legítima a satisfação de uma necessidade se nesse mister não for utilizada outra pessoa como mero meio12.

Advogando, portanto, que o conjunto das necessidades humanas fundamentais é amplo e plurideterminado, Wokmer fornece uma pista metodológica para o que enten-demos ser a real dimensão das necessidades na sua obra: tal conjunto de necessidades apresenta-se “quer como gerador de novos sujeitos coletivos, quer como força motivado-

9 Ibid.10 Conferir da autora, respectivamente, Teoria das Necessidades em Marx e Políticas da pós-modernidade. 11 WOLKMER, 2001, op.cit., p. 248.12 Ibid..

Sistema de necessidades humanas fundamentais no Pluralismo Jurídico 39

ra e condição de possibilidade de produção jurídica”13. É nas implicações deste primeiro ponto que localizaremos nosso foco para o desdobramento do tema.

Antes, uma referência ao segundo: em sendo o Pluralismo centralmente a defesa do arrefecimento do monismo estatal e do reconhecimento de juridicidades advindas da sociedade, as necessidades como fonte de geração de novos direitos são mecanismo essen-cial para oxigenar o conteúdo de uma ordem jurídica em crise e redefinir a legitimidade do Direito.

No seio da caracterização das necessidades como elemento gerador de novos su-jeitos coletivos é que encontramos o que entendemos ser a chave para a compreensão da questão das necessidades para o Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: as neces-sidades possuem mediadamente um revestimento político, que, para a efetividade do novo paradigma proposto, é central.

Aponta Wolkmer que o “sistema de necessidades dá origem aos corpos sociais intermediários e insurgentes”14. As necessidades, assim, sentidas em uma determinada realidade, conformam um sujeito político que ressignifica sua carência como ferramenta de coesão coletiva e, consequentemente, projeta o novo (direito-satisfação) como objetivo, que se renova na medida em que a complexidade social e as mediações da sociedade bur-guesa impedem conquistas historicamente estruturantes.

É dizer então que, mais do que propriamente um estatuto filosófico próprio para as necessidades (como o que veremos na seção seguinte e como o construído por Agnes Heller), interessa ao Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo o potencial de cons-cientização, mobilização e politização que o sentimento coletivo de necessidades insatis-feitas produz em determinada coletividade.

A interação de fatores que permitem práticas reivindicatórias, numa lógica distinta de organização social, está estreitamente conectada com as formas de consciência assumidas por atores coletivos. Tais sujeitos sociais passam por um processo preliminar de vivência objetiva da negação das necessidades e da insatisfação de carências, acabando, tanto por adquirir consciência de seu estado de marginalidade concreta, quanto por constituir uma identidade autônoma capaz de se autodirigir por uma escolha emancipada, que se efetiva em mobilização, organização e socialização.15

A questão das necessidades, portanto, em leitura inapartável do outro elemento de efetividade material do Pluralismo (os novos sujeitos coletivos), confere tal efetividade material àquele na medida em que produz lutas sociais e coloca na cena destes novos

13 Ibid., p. 248.14 Ibid., p. 242.15 Ibid., p. 160-161.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina40

sujeitos um nível de coesão e coletivismo que permitem que, em seu seio, produza-se normatividade, formas organizativas político-jurídicas próprias.

Agnes Heller não deixa de observar que a efetivação e a força motora dos movimentos sociais depende cada vez mais do sistema de necessidades insatisfeitas, sistema pautado em reivindicações de índole social, política e cultural-espiritual. Sem dúvida, os movimentos sociais são engendrados por uma estrutura de necessidades que os torna “potencialmente emancipadora”, fonte de legitimação de um direito próprio, importância que assegura aos novos sujeitos sociais sua afirmação como modo de participação democrática e intermediação emancipatória […]16

Em síntese, afirmamos que a importância do sistema de necessidades como elemento de efetividade material do Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo está não no in-ventário ético das suas formas justas de satisfação (muito embora esta preocupação esteja presente) ou mesmo na elaboração de um estatuto filosófico que melhor as defina17 (mui-to embora Wolkmer igualmente proponha um estudo do ponto a partir de Agnes Heller), mas sim está naquilo que sua negação –que lhe é inerente no contexto sócio-histórico do qual se fala– implica para sua potencialização enquanto elemento de tensão política.

Esta potencial força de mobilização das necessidades, portanto, implica em um importantíssimo avanço de consciência, dando ciclo a um processo de organização e in-dignação que progressivamente põe em jogo o questionamento das estruturas. “Não se trata de mobilizações marcadas por relações mecânicas entre necessidades e demandas […] mas por uma prática humana que necessariamente expressa a ‘conscientização’ de sua condição de historicidade presente”18. Nossa síntese do trato deste ponto, portanto, diz com a análise das necessidades em sua relação dialética com organização dos movimentos, progressiva conscientização e perspectiva de mudança societária radical.

2. Trabalho e estranhamento: a alienação das necessidades no capital

Neste segundo momento do artigo, evoluiremos na análise das necessidades prismada diretamente pela crítica marxiana à economia política, onde as necessidades têm para si, de

16 Ibid., p. 247.17 Não obstante, como já ressaltado anteriormente, neste ponto Wolkmer (2001, p. 248) não aceita qualquer compreensão reducionista das necessidades, entendendo-as pluricausais e multidetermi-nadas. A nota a se fazer aqui é que esta análise é estreitamente colada à teoria dos novos movimen-tos sociais, que Wolkmer (2001, p. 121; 138) repercute em sua tese. A partir do deslocamento da noção da centralidade da classe e, portanto, entendendo a dinâmica deste novo ator político em cena como mais fluída e pluridimensional, os novos movimentos sociais corporificam o novo sujeito histórico do Pluralismo. A expansão dos tipos de necessidades, portanto, está atrelada a expansão da morfologia destes novos sujeitos políticos.18 WOLKMER, 201, op.cit., p. 161.

Sistema de necessidades humanas fundamentais no Pluralismo Jurídico 41

certa forma, um estatuto filosófico-econômico derivado da análise histórico-materialista das relações de produção e das mediações das relações humanas sob o sistema do capital.

Não é a intenção desta seção estabelecer um contraponto entre o estudo das ne-cessidades tal como perfilado aqui e o que foi proposto na seção anterior. Mesmo porque há uma marca presente do método marxiano na análise das necessidades exposta por Wolkmer19, em recepção à contribuição teórica de Agnes Heller em sua fase marxista20. Antes a proposta é robustecer a compreensão das necessidades com seu estatuto filosófi-co próprio que, como exposto antes, não é a preocupação central do Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo. Pontuamos então que, enquanto que no exame das necessida-des para o Pluralismo estabelecemos um foco histórico-estrutural que reflete centralmen-te na sua dimensão política, na presente seção o estudo versa sobre o traço constitutivo das necessidades para o ser social ontologicamente compreendido. Isto nos permitirá, assim, agregar dialeticamente à perspectiva pluralista a perspectiva da emancipação hu-mana marxiana, relacionando neste mister as transições possíveis rumo ao esplendor da vida comunitária, num amálgama entre o marxismo romântico de Mariátegui e o nexo comunitário que visa recuperar o Pluralismo. Neste intento, a satisfação das necessidades servirá para estabelecer a linha de corte do nível de ruptura societária possível.

Partimos, neste ínterim rumo à compreensão das necessidades, do que para o pen-samento marxiano é central: o trabalho como atividade básica do homem. A partir da re-lação primária com a natureza, o homem se diferencia dos demais animais pela capacidade de idealizar o objeto de satisfação de sua necessidade e, com a matéria que a natureza lhe oferece, produzir seus meios de vida. O homem se diferencia, portanto, pela sua “atividade vital consciente”21, que é o trabalho.

O trabalho, a atividade prática de produção dos seus meios de vida, é a repercussão da generalidade da vida humana, a expressão objetiva da vida genérica dos homens.

O engendrar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico consciente, isto é, um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser genérico. […] Precisamente por isso, na elaboração do mundo

19 Ibid.20 Bem assim, o presente excerto da tese de Wolkmer é lapidar para esclarecer a presença da noção de alienação das necessidades e seu vínculo com o nível da produção: “Agnes Heller parte de uma interpretação adequada de Marx para registrar que as condições econômicas geradas pelo capitalis-mo impedem a satisfação das necessidades essenciais, determinando um sistema de falsas necessi-dades, sedimentadas basicamente na divisão social do trabalho, nas leis do mercado e na valorização do capital. Assim, a sociedade capitalista como totalidade social não apenas produz alienação mas também propicia a ‘consciência da alienação’ representada pelo conjunto de ‘necessidades radicais’, necessidades ligadas ás forças sociais criadas pelo trabalho e que ‘não podem ser satisfeitas nos limites desta sociedade’” (WOLKMER, op. cit.) 21 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 84.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina42

objetivo [é que] o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa. […] O objeto do trabalho é portanto a objetivação da vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele.22

Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx esboça originalmente sua compreensão ontológica do ser social fundada no trabalho, pelo qual “a autoprodução e a reprodu-ção social se desenvolvem”23. Transformando a natureza, o homem se transforma, pro-duzindo o necessário para suas necessidades e reelaborando-as, com novas habilidades e conhecimentos, instantaneamente reproduzindo também, outrossim, novas e contínuas relações sociais. Estas atividades básicas de reprodução societal conformam o que Mészá-ros24 caracteriza como mediações de primeira ordem, que incluem, dentre outros elementos, “o estabelecimento de um sistema de trocas compatível com as necessidades requeridas, his-toricamente mutáveis e visando otimizar os recursos naturais e produtivos existentes”25.

Na sua apresentação de edição recente dos Manuscritos, Jesus Ranieri é didático ao relacionar a questão das necessidades (e sua complexidade neste momento do pensamen-to marxiano, evitando previamente reducionismos economicistas) à esfera da produção:

A produção aparece como a forma de o homem se manter, além de configurar a forma de ele definir e orientar suas necessidades. Necessidades que, uma vez satisfeitas, repõem, ao infinito, novas necessidades; inclusive, na medida em que a produção se enriquece, a produtividade aumenta e, portanto, o trabalho se sofistica. Repõem e renovam necessidades não propriamente materiais, mas abstratas, espirituais, que aparecem, também elas, como resultado da atividade produtiva, tendo em vista o fato de que o marco inicial desse movimento é a relação estabelecida entre o ser humano e o meio natural.26

Em outras palavras:

Pelo disposto, o estatuto filosófico das necessidades, nos Manuscritos, é o de que elas são uma determinação ontológica imanente ao ser social, intermediadas pela categoria da atividade humana sensível, o trabalho, que com elas compõe

22 Ibid., p. 85.23 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do tra-balho. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 22.24 MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2010.25 ANTUNES, 2009, op. cit., p. 22.26 MARX, 2010, op. cit., p. 14 (Apresentação).

Sistema de necessidades humanas fundamentais no Pluralismo Jurídico 43

um complexo histórico-infinito, articulador do correlacionamento vital do homem com a natureza e dos homens entre si […]27

Assim precariamente caracterizadas as necessidades para o pensamento marxia-no na sua nascente ontologia do ser social, resta analisar a especificidade histórica da degradação das descritas mediações primárias. Falamos do estranhamento do trabalho, um movimento que se dá com a interposição da propriedade privada e da divisão social do trabalho entre os homens.

Ora, se o trabalho como atividade vital consciente dos homens se interpõe uma força estranha, no caso, a privação dos meios de trabalho e a consequente apropriação privada do resultado do trabalho, disso deriva que o objeto da sua produção “se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor”28.

Examinamos o ato do estranhamento da atividade humana prática, o trabalho, sob dois aspectos. 1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto estranho e poderoso sobre ele. Esta relação é ao mesmo tempo a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da natureza como um mundo alheio que se lhe defronta hostilmente. 2) A relação do trabalho com com ato da produção no interior o trabalho. Esta relação é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma [atividade] estranha não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a procriação como castração. A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal –pois o que é senão atividade– como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele.29.

Estranhado portanto da natureza e de si mesmo, estão os homens estranhados da sua própria essência humana, fazendo com que sua vida genérica, sua universalidade como mediador da natureza e ser criativo, seja represada de modo a parecer-lhe um mero meio, de modo que a “vida mesma só aparece como meio de vida”30.

Permitindo-se um salto teórico na tradição marxista para uma melhor caracteriza-ção da alienação das necessidades na cena contemporânea, é interessante identificar o pro-cesso de estranhamento e alienação do trabalho já a partir do primado do modo de pro-dução (categoria que Marx ainda não utiliza nos Manuscritos). Neste sentido Mészáros31

27 FRAGA, Paulo Denisar Vasconcelos. A teoria das necessidades em Marx: da dialética do re-conhecimento à analítica do ser social. Campinas-SP, 2006. Dissertação de mestrado - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, p. 187.28 MARX, 2010, op. cit., p. 80.29 Ibid., p. 83.30 Ibid., p. 84.31 MÉSZÁROS, 2010, op. cit..

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina44

identifica as mediações de segunda ordem como o modo operativo de constituição e consolida-ção do sistema do capital, correspondente “a um período específico da história humana, que acabou por afetar profundamente a funcionalidade das mediações de primeira ordem ao introduzir elementos fetichizadores e alienantes de controle social metabólico”32.

Pois, consolidado este sistema de mediações, hoje altamente complexo e cada vez mais destrutivo, que suplanta as mediações de primeira ordem, separando e alienando os homens dos seus meios de produção, tornando sua atividade vital consciente um mero objeto de apropriação de valor de troca, não pode haver outra consequência que não uma “completa subordinação das necessidades humanas à reprodução do valor de troca –no interesse da autorrealização expansiva do capital [...]”33.

Entra em cena, ademais, neste processo de deterioração do sentido genuíno das necessidades na sociabilidade humana, o dinheiro como veículo do valor de troca:

Frente ao estranhamento entre os homens, que lutam pelo objeto na relação das trocas, isto é, por aquilo que não produziram verdadeiramente enquanto homens comunitários, o dinheiro lhes toma o lugar de automediadores entre si e aparece-lhes “como o verdadeiro meio de ligação, a força galvano-química da sociedade”, o “vínculo de todos os vínculos”34.

Num plano ainda mais desenvolvido deste sócio-metabolismo da apropriação privada do trabalho humano, as necessidades ficam mercê desta dinâmica perversa: “os objetivos fetichistas da produção, submetendo de alguma forma a satisfação das necessi-dades humanas (e a atribuição conveniente dos valores de uso) aos cegos imperativos da expansão e acumulação do capital”35.

No marco do capital, portanto, vemos a miséria das necessidades e consequen-temente, a depauperação completa do homem. “Em outras palavras, o estranhamento não se reflete somente sobre as necessidades materiais, mas também subjetivamente, no empobrecimento do espírito do homem”36.

Veja-se, ao final desta seção, que foram manejados vários conceitos que, pela pro-fundidade com que foram elaborados originalmente e são conhecidos, mereceriam apu-ros maiores, não fossem as limitações do presente artigo. Muito embora isto, preferiu-se lançá-los, priorizando a construção semântica que possibilitavam e dando um caminho mais seguro ao trato do tema, não osbtante as reduções.

Pretendemos, assim, ter deixado minimamente exposto o estatuto das necessidades na crítica original da economia política marxiana (já com aportes da vertente ontológica

32 ANTUNES, 2009, op. cit. p. 22.33 Ibid., p. 23.34 FRAGA, 2006, op. cit., p. 194.35 MÉSZÁROS, op. cit. p. 180.36 FRAGA, 2006, op. cit., p. 148.

Sistema de necessidades humanas fundamentais no Pluralismo Jurídico 45

lukacsiana) que, como alertado no começo, vem a lume no presente trabalho para possibi-litar o encontro da centralidade produtiva do homem com a abertura crítica para a questão das necessidades que faz o Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo na projeção de um marco comunitário possível para o contexto plural da América Latina, proposta da qual vem a calhar, por último, um encontro com Mariátegui e seu marxismo romântico.

3. Um encontro com Mariátegui: da satisfação das necessidades ao retorno à comunidade

Nesta seção final do presente artigo, faremos um paralelo entre a análise das necessidades no Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo lançada na primeira parte do trabalho e as necessidades ontologicamente consideradas, de cuja compreensão partimos a partir da seção imediatamente anterior. A tentativa de síntese dialética desta tarefa será arrematada, como anunciado, por alguns traços elementares do pensamento do revolucionário e inte-lectual peruano José Carlos Mariátegui.

Metodologicamente convém observar que não pretendemos com esta proposta de trabalho negligenciar as diferenças epistêmicas, éticas e políticas centrais entre as elabora-ções das quais tratamos. Entrementes, a não exposição suficiente delas se dá pelos limites do artigo, ao mesmo passo que o desafio de entrecruzar elementos de cada uma das ra-zões críticas analisadas é o que entendemos necessário e salutar no ambiente acadêmico com corte progressista e comprometido com a constante reelaboração teórica instrumen-tal que se ponha a serviço da transformação do Direito e das relações sociais.

É dizer: apostamos aqui na possibilidade de síntese dialética crítica que permita expandir propostas do marco do Direito para o marco global das relações sociais. Por isso, ao confrontarmos um elemento inserido em uma proposta cultural por um novo pa-radigma jurídico-político (o Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo) com o cerne da crítica filosófica-econômica do sistema do capital, queremos indicar a precedência da interdisciplinaridade e a necessidade da superação de quaisquer positivismos, de modo a oxigenar o caldo teórico política e socialmente comprometido com o qual dialogamos.

Partimos assim, das observações da primeira seção para reafirmar a interpretação de que o Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo qualifica o fundamento material da satisfação das necessidades e sua geração de mobilização e organização coletiva como um momento de um movimento maior: o avanço da consciência da situação histórica de privação37. Ressalte-se que Wolkmer reconhece que as necessidades no seio do capital são tendencialmente falsas38, mediadas por aquele. As necessidades caracterizadas como origem dos novos sujeitos históricos, conforme dito, é que se investem da condição de necessida-des emancipatórias, que engendram os sujeitos coletivos.

37 WOLKMER, 2001, op. cit.38 Ibid., p. 245.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina46

Assim, muito embora a proposta geral da via pluralista não comporte o que para a crítica das necessidades em seu fundamento ontológico é essencial, ou seja, a emancipação do trabalho, da atividade consciente de mediação primária dos homens, a abertura histó-rica apontada pela consciência das necessidades e da luta política daí derivada importa (a) na tendência à negação da ordem burguesa, suas leis e suas explorações veladas e (b) na construção de laços coletivos que podem também evoluir para uma crescente expansão organizativa social.

Este movimento dialético das necessidades é historicamente determinado: a gera-ção das necessidades tanto guarda relação com o estágio de desenvolvimento da realidade social no qual se insere como a sua satisfação obrigatoriamente é pautada neste mesmo contexto. Para o Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo e sua hipótese central, qual seja, a da primazia da produção jurídico-política comunitária, desde baixo, isto im-plica em que um novo paradigma jurídico deverá estar conformado tanto por aquilo que a história logrou afirmar como conquista como por aquilo que surge como novo e que encontra nesta produção jurídica autônoma sua objetivação39.

No marco de uma nova cultura jurídico-política pluralista, portanto, podemos afirmar que a superação do monismo jurídico burguês passa pela sua negação dialética (portanto com a incorporação de seus avanços históricos) e que a força material deste movimento está na comunidade organizada, em corpos coletivos que põem em cena este processo produzindo e reproduzindo sua juridicidade.

Bem aqui é que ousamos transcender este marco cultural jurídico e trazer a cena José Carlos Marátegui, situando o debate na esfera das relações de produção. Desenha-mos de certa forma quase que um paralelo: o gérmen do novo tanto para uma nova cultura jurídica como para uma nova sociabilidade está na regeneração de vínculos coletivos, em última análise, na comunidade.

Nossa inserção de Mariátegui no presente trabalho está colocada, assim, sob o prisma de um dos traços distintivos de sua militância socialista e produção intelectual: estudando as formações econômicas primitivas (principalmente do Peru) utilizando-se do método marxiano, Mariátegui construiu sua perspectiva revolucionária própria e original, visualizando no comunismo incaico, na célula comunitárias do ayllu, relações sociais de tal modo organizadas que necessariamente deveriam ser as “bases mais sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista”40.

Sem entrar na polêmica quanto a caracterização do pensamento mariateguiano como um “marxismo romântico”, ainda que esta pecha seja quase um senso comum para

39 Cf. RUBIO, David Sánchez. Pluralismo Jurídico e Emancipação Social. In: WOLKMER, Anto-nio Carlos (Org.); NETO, Francisco Q. Veras (Org.); LIXA, Ivone M. (Org.). Pluralismo Jurídico: os novos caminhos da contemporaneidade. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 51-66.40 MARIÁTEGUI apud LOWY, Michael. Nem decalque, nem cópia: o marxismo romântico de José Carlos Mariátegui. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano: en-saios escolhidos. Seleção e Introdução: Michael Lowy. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 20.

Sistema de necessidades humanas fundamentais no Pluralismo Jurídico 47

quem sobre sua obra se debruça, Mariátegui foi sobretudo um revolucionário. A agudeza de sua análise combinada com a originalidade e sensibilidade para utilizar o marxismo como método para interpretação da sua realidade lhe permitiu revelar o problema do índio no problema da terra41; por via de consequência, a um problema da esfera de produção, relacionado às formas de propriedade e a organização do trabalho e sua libertação das amarras de um estado racista: “Somente o movimento revolucionário classista das massas indígenas exploradas poderá permitir-lhes dar um sentido real a libertação de sua raça, da exploração, favorecendo as possibilidades de sua auto-determinação”42.

Mariátegui tinha a clareza, portanto, de que a união de índios, negros e trabalha-dores tinha um recorte de classe e era, portanto, revolucionária. Dizia: “Capitalismo ou Socialismo. Este é o problema de nossa época”43. Entrementes, ao colocar a tarefa históri-ca neste plano, Mariátegui não aplicava uma fórmula específica, mas sim exortava (em uma demonstração do que se entende pelo seu “romantismo”) as massas exploradas a criarem o novo pela sua própria práxis:

[…] E o socialismo, embora tenha nascido na Europa, tal como o capitalismo, tampouco é específica ou particularmente europeu. É um movimento mundial, ao qual não se subtrai nenhum dos países que se movem dentro da órbita da civilização ocidental. Esta civilização conduz, com uma força e com meios de que nenhuma civilização dispôs, à universalidade”. Mas ele insiste, ao mesmo tempo, na especificidade do socialismo na América Latina, enraizada em seu próprio passado comunista: “E o socialismo, afinal, está na tradição americana. A mais avançada organização comunista primitiva que a história registra é a inca. Não queremos, certamente, que o socialismo seja na América decalque e cópia. Deve ser criação heroica. Temos de dar vida, com nossa própria realidade, na nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Eis uma missão digna de uma geração nova”44

De outra forma: a perspectiva da revolução, para Mariátegui, era inexorável, o que pressupunha (ele reivindicava o marxismo-leninismo nos programas do Partido que criou, recorde-se) a tomada do poder. Para além, a transcendência de seu socialismo indo-americano encontrava nas organizações coletivas agrárias primitivas um balizador de uma nova sociabilidade.

41 MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana. São Paulo: expressão Popular, 2010.42 MARIÁTEGUI, José Carlos. Ideología y Política. Lima, Peru: 1929. Obras completas de José Carlos Mariátegui. Disponível em <http://www.patriaro ja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/Ideologia%20y%20Politica/index.html >. Tradução livre do autor.43 Ibid.. Tradução livre do autor.44 LOWY, 2005, op. cit., p. 29.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina48

“A defesa da “comunidade” indígena não repousa em princípios abstratos de justiça nem em considerações sentimentais e tradicionais, mas, sim, em razões concretas e práticas de ordem econômica e social.” [...]45

A “comunidade”, ao contrário, por um lado, acusa capacidade efetiva de desenvolvimento e transformação e, por outro, se apresenta como um sistema de produção que mantém vivos no índio os estímulos morais necessários para seu rendimento máximo como trabalhador. […]46

A originalidade destas formulações não é pouca: Mariátegui já nesta época apre-sentava um marxismo destoante das interpretações progressistas e economicistas da In-ternacional, emprestando um sentido próprio a perspectiva comunista para um cenário periférico, “atrasado”. Traço que seria desentranhado do próprio Marx, principalmente a partir do estudo de escritos posteriores seus sobre as lutas de classes na Rússia47:

[…] Marx rejeita as concepções etapistas dos pretensos “marxistas” (as aspas irônicas são do próprio Marx) convencidos de que se deveria esperar que o capitalismo se desenvolvesse na Rússia, conforme o modelo ocidental. Rompendo com a ideologia liberal burguesa do Progresso –compartilhada por seus supostos discípulos russos–, seu interesse recai sobre uma forma “arcaica”: “não há porque deixar-se atemorizar pela palavra “arcaico”, chega a escrever em um de seus esboços. O socialismo será uma manifestação superior do coletivismo arcaico, capaz de integrar as conquistas técnicas e culturais da modernidade.48

Cinquenta anos depois desta correspondência [Lowy se refere às cartas de Marx à revolucionária russa Vera Zasulitch, possivelmente de 1881], um dos mais eminentes representantes do marxismo romântico-revolucionário no século XX, o peruano José Carlos Mariátegui, vai desenvolver, no contexto da América Latina, um argumento muito similar ao de Marx sobre o papel das comunidades rurais indígenas em um processo revolucionário socialista. […]49

Assim pretendemos apontar, ao final desta seção, a detecção de uma simbiose do peso do comunitário para as formulações de Wolkmer e Mariátegui. Novamente desta-cando que não se pretende produzir nenhuma aproximação vulgar ou aparencial,

45 MARIÁTEGUI, 2010, op. cit., p. 96,46 Ibid., p. 98.47 Cf., no mesmo sentido: ARICÓ, José. Marx e a América Latina.48 LOWY in MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Rússia. São Paulo: Boitem-po, 2013. Prefácio, p. 13.49 Ibid., p. 14.

Sistema de necessidades humanas fundamentais no Pluralismo Jurídico 49

mas sim produzir uma síntese que permita novas formulações críticas interre-laionadas: a razão de se encontrar na comunidade o gérmen do novo, seja de um novo paradigma jurídico-político, seja de um novo marco de produção material comunitária. Este desdobramento das formulações ventiladas sofre o recorte das necessidades e sua repercussão crítica dimensionada materialmente na crítica das formas jurídico-políticcas burguesas e na crítica de todas as formas de exploração e opressão que derivam do sistema do capital.

Estas tímidas aproximações aqui ventiladas não intentam sintetizar fórmulas, novos paradigmas ou elucubrações idealistas, senão que são influenciadas pelos novos fenômenos sócio-políticos que surgem no cenário latino-americano, marcadamente o Novo Constitucionalismo Latino-Americano e suas criações históricas, no sentido de poder abrir possibilidades teórico-práticas para o desenvolvimento cada vez maior de um arsenal crítico para armar as lutas dos povos latino-americanos.

Conclusão

Pretendíamos, com o presente escrito, articular uma proposta de revisão teórica do peso da comunidade para as formulações de um novo paradigma cultural jurídico-político do Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo de Antonio Carlos Wolkmer e do social-ismo indo-americano de José Carlos Mariátegui. O recorte deste labor se deu pelo trato da questão das necessidades, a partir de interpretação de sua fundamentação para o Plu-ralismo, com o aporte da crítica marxiana da economia política e seu dimensionamento na esfera produtiva da chave analítica de Mariátegui.

Se bem partíamos do pressuposto de que os temas tratados não encontrariam total identidade epistêmica, foi todo modo possível expor algumas incompatibilidades de modo a abrir a oportunidade dialética da formulação de novos caminhos teórico-práticos que visavam aproveitar elementos de uma ou outra proposta analisada.

Daí podemos concluir que crítica da ordem burguesa, com suas formas político-jurídicas e suas explorações e opressões, encontra na perspectiva comum de recuperação do comunitário um caminho de transformação, concebendo-o como um espaço e uma prática tendencialmente criadoras do novo adequado às necessidades históricas e contingenciais dos povos latino-americanos (contexto que demarca as propostas), seja no momento da produção autônoma jurídico-política seja no momento mais primário da produção material da vida comunitária em si.

Avaliar e compreender as implicações, as pertinências e os problemas desta síntese de retorno ao comunitário de baixo da força destrutiva, universal e totalizadora do capital é uma tarefa que fica pendente, mas que se esboça necessária para um responsável trato dos caminhos de transformação da serem seguidos.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina50

Referências

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O PLURALISMO JURÍDICO COMUNITÁRIO PARTICIPATIVO E A ECONOMIA SOLIDÁRIA: O HORIZONTE UTÓPICO DO

COOPERATIVISMO POPULAR NA PRÁXIS DE UMA DEMOCRACIA FUNDADA NA LIBERTAÇÃO LATINO-AMERICANA

Francisco Quintanilha Véras Neto1

Introdução

O artigo objetiva estabelecer uma leitura de convergência, entre o pluralismo jurídico co-munitário participativo e a economia popular solidária utilizando, como ponto de partida a forma do cooperativismo de viés autêntico popular. A justificativa deste estudo é a de criar uma perspectiva em que estas realidades se transformam em instrumentos de trans-formação social utópica do quadro societal em face da sua corrosão pela implementação do ideário conservador do neoliberalismo imposto pela internacionalização capitalista globalitária das últimas décadas.

1. Convergência histórica do cenário da formação da economia solidária e da pro-posição do pluralismo jurídico comunitário participativo

A economia popular solidária é um dos seus mais importantes vetores de emancipação social existentes. O cooperativismo popular pode se constituir em meio de proposição de um novo viés autogestionário, para os excluídos pelo processo neoliberal das últimas déca-das2, ou para os incluídos na perspectiva da inclusão produtiva assalariada subordinada.

1 Professor Associado I, titular da cadeira de História do Direito da Faculdade de Direito (Fadir) da Universidade Federal de Rio Grande (FURG) líder do GTJUS- Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade do curso de Direito da mesma universidade, professor Co-labora no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da FURG. Autor de vários livros, dentre os quais: Cooperativismo. Nova Abordagem Sócio-Jurídica. Curitiba: Juruá, 2002.2 Apesar de atentarmos para as proposições críticas de autores como Carlos Montaño que foca-lizam a economia solidária dentro do espectro das políticas do terceiro setor: O terceiro setor se refere à ajuda ao próximo e a própria auto-ajuda, no conceito expresso por uma sociedade civil, apenas cooperativa, situada fora do conceito de sociedade civil classista, em que devem aparecer, o conjunto de organizações de classe e de luta política-econômica. No primeiro caso (terceiro setor), o termo é parceria, no segundo caminho classicista se incluí a dimensão do confronto, do combate, no primeiro caminho, ocorre um impasse no desenvolvimento democrático, e não há a possibilida-de de superação da ordem do capital posta, Cf. MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e Questão Social. Crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002, p. 158. Para

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina52

O pluralismo jurídico, por sua vez, edifica uma teoria da história e da práxis social que demonstra o caráter fetichista e ideológico do modelo do monismo jurídico emanado das grandes revoluções burguesas do século XVIII e XIX.

Esta modelagem jurídica eurocêntrica cristalizou uma forma jurídica axiologica-mente sustentada pela metanarrativa do positivismo jurídico de cunho tecnicista e con-servador3.

Historicamente o monismo jurídico era o corolário do processo pós-absolutista, dentro da processualidade não linear ditada pela contextualização histórica de ruptura com o mundo medievo; que levou a consolidação da forma jurídica monista estabelecida através do nacionalismo jurídico do século XIX, consolidado após o processo de ruptura revolucionária representado pelas Revoluções burguesas: Gloriosa Inglesa de 1688, Ame-ricana de 1776 e Francesa de 1789, a primeira no século XVII e as duas últimas no século XVIII.

A burguesia, ao instalar-se no poder, não só coíbe as formas herdadas de organi-zações corporativas, como, sobretudo, cria uma moderna instituição burocrática centra-lizadora (Conselho de Estado); e implementa, mediante o controle do poder estatal, um corpo orgânico de normas abstratas, genéricas e sistematizadoras, visando a constituir um Direito nacional unificado4 dentro do modelo de dominação racional legal centrado no “monopólio legítimo da violência pela estatalidade5”.

Paul Singer, “... Nessas condições a economia solidária se integra ao terceiro setor tomando a forma de organizações não-governamentais (ONGs), sustentadas primordialmente pelo poder público mediante contratos, In: SINGER, Paul. Economia Solidária, p. 116, In: CATTANI, Antonio David (Org) A outra economia: os conceitos essenciais. In: CATTANI, Antonio (Org.). A outra econo-mia. Porto Alegre: Veraz, 2003 Veraz Editores, 2003.3 Neste sentido, Antônio Cattani define o intervencionismo estatal de forma crítica: “O inter-vencionismo estatal foi, em primeiro lugar, uma tradução política dos conflitos de interesse que já não podiam continuar se desenvolvendo no marco da esfera privada. Mais tarde, incrementou-se como resposta aos desafios e reajustes colocados pelo crescimento econômico, pela reestruturação agrária, pela hiper-urbanização, pelas mudanças ocorridas na estratificação e mobilizações sociais e pelos conflitos ideológicos e políticos, alternando-se ciclos de autoritarismo e democracia, in: CUNILL, apud: CIMADAMORE, Alberto D.; CATTANI, Antonio David. Produção da pobreza e desigualdade na América Latina. Porto Alegre: Tomo Editorial/Clacso, 2007, p. 133.4 Cf. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. Editora Alfa-Ômega: São Paulo, 1991, p. 53.5 Weber dentro de sua visão do tipo ideal descreve a dominação legal como quadro administrativo burocrático dentro dos limites das normas legais, como a imposição da impessoalidade, a hierarquia racional fixa, o formalismo burocrático, a gestão racional significa dominação pelo conhecimento, o princípio da organização documental, separação entre o quadro administrativo e os meios de administração, a execução utilitarista pelos funcionários das tarefas pessoais, In: WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Vol. 1. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa (a partir da quinta edição, revista, anotada e organizada por Jo-hannes Winckelmann). Revisão técnica de Gabriel Cohn. Brasília: Editora da UNB, 20000, pp.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 53

Assim, ocorre a consolidação do modelo jurídico centrado exclusivamente em sua fonte estatal mantida segundo o intento da revolução sócio-econômica criada no processo de constituição da modernidade capitalista, conduzida pela burguesia vitoriosa nas etapas de constituição deste modo de produção, nas fases mercantilista, concorrencial, monopo-lista financeira e hoje da mundialização neoliberal.

Neste quadro, o pluralismo tipificado como certo direito espontâneo popular não está isento de manipulações do poder oligárquico instituído, podendo, por manobra de juristas comprometidos com a ordem do status quo, assumir a transparência de uma não-oficialidade pseudo-insurgente e paralegal, de cunho comunitário, quando, em realidade, tem a função de esvaziar os conflitos, mascarar as genuínas expressões populares e refor-çar o controle por parte do Direito oficial em níveis de absorção que permitem a recom-posição do próprio sistema dominante6

Como estratégia pluralista comunitária, participativa e emancipatória, Antônio Carlos Wolkmer define a conceituação, que diferencia o pluralismo jurídico conservador inviabilizador das organizações de massa (pluralismo jurídico mercatório neoliberal, por exemplo), do pluralismo jurídico comunitário participativo, que como estratégia democrá-tica, que procura promover e estimular a participação múltipla dos segmentos populares e dos novos sujeitos coletivos de base7.

Neste sentido, Wolkmer propõem a ampliação e alargamento da sociedade demo-crática descentralizadora, como caminho para completar a efetiva autogestão e controle descentralizado realizado com associações voluntárias, movimentos sociais, grupos comu-nitários e redes de organizações representativas.

Na medida, em que a democracia formal burguesa e o sistema convencional de representação (partidos políticos) envelhecem e não conseguem absorver e canalizar as demandas sociais, e as necessidades da justiça criam-se condições para a participação de identidades coletivas insurgentes8.

O processo de globalização neoliberal planejado, no bojo da ascensão das forças multilaterais fortalecidas pela queda do socialismo real permitiu um processo de quebra da esfera pública estatal, nos mais variados níveis desde as privatizações, criação de agências reguladoras, enfatização da celeridade processual das instâncias de conciliação, mediação e arbitragem, que em alguns casos se comprometeram com a disponibilização, por exemplo,

142-147. Ou na acepção marxista como comitê de negócios da burguesia devido à consolidação dos interesses materiais: econômicos, políticos, ideológicos, jurídicos das classes dominantes dentro da superestrutura jurídica. 6 WOLKMER, 2001, Op. cit., p.229.7 Cf. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: nuevo marco emancipatorio em América Latina, p.25, In: RANGEL, Jesús Antonio de la Torre. Pluralismo Jurídico: Teoria y Experiências. Cenejus, 2007.8 WOLKMER, Antônio Carlos. Sociedad civil, poder comunitário y acceso democrático a La justicia, pp. 137-138, In: Pluralismo jurídico y alternatividad judicial. El outro derecho. Bogotá-Colômbia: ILSA-Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos, abril de 2002.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina54

de direitos trabalhistas, sucateamento dos serviços sociais estatais já erguidos no mundo periférico sem a ajuda do Plano Marshall que beneficiaram a reconstrução da Alemanha, Itália e Japão incluindo a reforma agrária como estratégias de contenção geopolítica do comunismo soviético, sob o modelo da cidadania seletiva e tutelada.

O neoliberalismo ortodoxo e os seus extremos baseados na doutrina ortodoxa de Milton Friedman consolida-se; com a doutrina privatizante do consenso de Washington e é implementado por Carlos Saúl Menen, Alberto Fujimori, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Salinas de Gortari, dentre outros na América Latina.

Neste sentido, a ditadura de Pinochet orientada pelos Chicago Boys inaugura no 11 de setembro chileno de 1973 com a implementação deste modelo antes de Thatcher e de Reagan9.

Atualmente, esta governança de fratura social está sendo implementada na Europa pela Troika (Banco Central Europeu, FMI e Banco Mundial), com força equiparável ao ajustamento estrutural latino-americano, guardando as proporções, ao que ocorreu na nossa região nos anos 90.

Como herança maldita deste modelo nós tivemos os processos que culminaram na ampliação do desemprego estrutural e da economia informal10, que eram identificados pela mídia conservadora propagadora da cantilena neoliberal como um caminho natural e evolutivo da sociedade dentro da longa tradição do mito sacrifical latino-americano.

Outra consequência da entropia social e ambiental gerada pela desarticulação ne-oliberal deu-se pelo crescimento exponencial de antimovimentos, como o do tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, utilizados para reforçar a criminalização das supostas clas-ses perigosas; identificadas com as camadas populares marginalizadas; e para ampliar o controle social e o panoptismo social das sociedades orientadas pelo “medo líquido”, e pela ostentação consumista da modernidade tardia ou da pós-modernidade passiviza-dora e celebradora da alienação coletiva. Esta pós-modernidade conservadora embala ideologicamente a superestrutura cultural do neoliberalismo como cultura do dinheiro11, guardadas as rupturas do pós-modernismo de combate e da transmodernidade, capazes de conferir cunho autêntico e revolucionário as demandas das populações oprimidas da América Latina.

Estes fenômenos foram ampliados pela concentração de renda arregimentada pe-las oligarquias beneficiadas pelo processo de financeirização econômica rentista, desna-cionalização do parque produtivo estabelecida pela entrada de capitais voláteis, e pelo endividamento externo e interno:

9 KLEIN, Naomi. A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo do desastre. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 2008.10 Deve-se diferenciar a economia informal, subterrânea, da economia popular que sinaliza um novo projeto social de solidariedade e de novos valores dentro da cooperação comunitária, In: GADOTTI, Moacir, apud: VÉRAS NETO, Francisco Quintanilha. Cooperativismo: Nova abor-dagem sócio-jurídica. Curitiba: Juruá Editora, 2004, p. 93.11 JAMESON, Fredric. A cultura do dinheiro. Petrópolis: Rio de Janeiro, Vozes, 2001.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 55

A dívida consumiu R$ 708 bilhões em 2011, ou seja, quase dois bilhões de reais por dia! Essa façanha é possibilitada pela crescente expansão de privilégios que compõem o Sistema da Dívida. Durante os trabalhos da CPI da Dívida Pública, sequer chegou a ser aprovado o Requerimento de Informações que requisitava dados sobre detentores dos títulos da dívida pública brasileira. A informação que a CPI obteve foi extremamente limitada e está reproduzida no gráfico a seguir, que indica que a quase totalidade dos títulos da dívida mobiliária brasileira se encontram em poder do setor financeiro nacional e internacional, revelando que grande parte da dívida interna está em mãos de estrangeiros (ou de brasileiros no exterior), ou seja, é também externa. Em resumo, não são conhecidos os beneficiários da Bolsa Rico, que receberam quase R$ 2 bilhões por dia durante o ano de 2011. A sociedade brasileira sabe somente que está pagando uma elevadíssima dívida, mas não sabe para quem paga.12

Assim, a economia solidária e o cooperativismo sinalizam para um duplo movi-mento com a construção de um cooperativismo tradicional associado ao agronegócio direcionado pela internacionalização desde o ciclo das ditaduras militares dentro do es-pectro da guerra-fria.

E posteriormente, nos anos 90, pelo programa privatizador do consenso de Wa-shington como meio de concentração agrária viabilizador de superávits primários e desti-nado especialmente para a contenção de movimentos sociais como o dos sem-terra.

Por outro lado, o cooperativismo popular de cunho autêntico autogestionário apa-receu como saída dos excluídos para o desemprego e como forma de geração de renda em um contexto de acentuação das formas selvagens de capitalismo possibilitadas pelas políticas macroeconômicas de cunho neoliberal, desde a autogestão de empreendimentos falidos com apoio de sindicatos; até a formação de redes de economia solidária em parce-rias com sindicatos e universidades, processo acentuado no cenário de desestruturação do mundo do trabalho dos anos 90.

E também como parte de manobras de delegação de serviços públicos sociais para outros atores sociais não estatais também embaralhados no jogo clientelista e patrimonia-lista, com a criação de um falso espaço público não estatal, originário de ONGs criadas para consolidar o processo de dominação neoliberal13 dentro do espectro conservador do

12 FATTORELLI, Maria Lucia. Bolsa Rico. In: Antonio David Cattani & Marcelo Ramos Oliveira. A sociedade justa e seus inimigos. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2012, p. 63.13 Euclides Mance define que muitas ONGs podem sistematizar uma atuação defensora de versões neoliberais de atuação social, sendo solidárias ou não as ONGs aglutinam um número extrema-mente expressivo de recursos, In: MANCES, Euclides. A revolução das redes. A colaboração soli-dária como uma alternativa pós-capitalista à globalização atual. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001, p. 21.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina56

terceiro setor e da ideologia da terceira via14 com o formato de Oscips e outras formata-ções jurídicas destinadas a substituir o estado social, já que o Estado Paternalista Penal sofre nítido endurecimento Hobbesiano.

No próximo item, se demonstrará como as duas formas de organização societária alternativa no plano jurídico comunitário participativo; e econômico associativo comuni-tário popular articulam-se como vias abertas de empoderamento social.

2. Formas de articulação do pluralismo jurídico comunitário participativo e da economia solidária

As práticas e as experiências do pluralismo, ora sedimentam modelos com suas consequ-ências sociais totalmente negativas, no campo da delegação jurídica descentralizadora ne-oliberal ou da busca emancipatória da autonomia libertadora por novos sujeitos coletivos plurais, emancipatórios e propagadores de um verdadeiro conjunto de práticas jurídicas contrárias aos sistemas de regulação e metabolização capitalistas hegemônicos.

Tal reflexão se liga a busca de um novo patamar de constituição do direito. Neste sentido, a economia solidária pode ser apreciada, como alternativa ao neoliberalismo ex-cludente inclusive no plano do combate da desarticulação das políticas públicas estatais embora a mesma se caracterize por funcionar no circuito inferior da economia capitalista urbana dos países subdesenvolvidos de acordo com o geógrafo Milton Santos15, espe-

14 O sociólogo do trabalho da Unicamp, Ricardo Antunes, define criticamente o denominado liberalismo social e a sua elaboração empírica através da terceira via de Tony Blair. A terceira via constitui-se no marco teórico e simbólico para a consecução das políticas do terceiro setor, pois permitiu reconstituir a racionalidade conserva-dora, dentro de um novo projeto, agora conhecido por liberalismo social, que con-ciliaria a inevitável hegemonia do mercado, combinando-a com a busca dos valores retóricos da justiça social, da democracia e dos direitos humanos, pleiteados por uma sociedade civil reinventada por esse novo marco político da terceira via, consistindo ecleticamente num viés da preservação do fundamental do neoliberalismo, com um verniz discursivo social democrático. Na política internacional, essa terceira via im-plicou uma adesão sem precedentes às políticas externas da era Bill Clinton e George Bush, assim como implicou uma política pragmática de gestão da crise social capaz de preservar os interesses do capital britânico, in: ANTUNES, Ricardo. A “terceira via” de “Tory” Blair: a outra face do neoliberalismo inglês. São Paulo: Revista de Estu-dos Socialistas. Outubro, n. 03, p. 50-1, mai./1999.15 SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subde-senvolvidos. Tradução de Myrna T. Rego Viana. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 57

cialmente em períodos de crise, quando o capital delega aos excluídos a sobrevivência na sociedade providência16.

Esta é a sociedade dos pobres sem recursos, mais rica em solidariedade gerada pelas demandas ocasionadas pela omissão estatal nas políticas públicas sociais desinte-gradas ou ausentes pela lógica privatizante do neoliberalismo, em que o emprego vai ser buscado nos circuitos da economia informal e subterrânea gerada pelo exército de reserva ampliado, a sobrevivência inclusive em cooperativas, bicos e pequenos negócios informais acentua-se. Por sinal, tendência histórica que também ocorria no contexto das crises gera-das pela Revolução Industrial e por guerras.

Neste sentido, as cooperativas, surgem no contexto histórico de crise gerada pelo capitalismo em períodos de extrema transformação social, propiciados por grandes mu-danças provocadas pela revolução industrial e pelas guerras europeias, com suas graves consequências sobre a desestruturação da economia e da força de trabalho:

Nesta altura, é preciso introduzir as cooperativas, que tinham sua origem também em reações defensivas de trabalhadores, no caso contra preços altos de bens de primeira necessidade. A mais antiga cooperativa, com existência documentada, parece ter sido iniciativa de trabalhadores empregados nos estaleiros de Woolwich e Chatham, que em 1760 fundaram moinhos de cereais em base cooperativa para não ter de pagar os altos preços cobrados pelos moleiros, que dispunham de um monopólio local. No mesmo ano, o moinho de Woolwich foi incendiado e os padeiros da localidade foram acusados de serem os culpados. Graças ao incidente, a história registrou a existência destas duas cooperativas de produção.17

Neste cenário de crise do capital, especialmente em sociedades periféricas; as pró-prias classes marginalizadas tem que criar uma rede de assistência e segurança social pró-pria, e suas redes de solidariedade social, quando a sociedade esta afundada em grandes crises recessivas do capital, como a produzida pela crise da dívida externa nos anos 80, e pela abordagem das contra-reformas neoliberais dos anos 90 se pronúncia.

Não devemos nos esquecer também, que a economia solidária é também desesta-bilizada pela concorrência do desemprego estrutural com seu gigantesco exército de re-serva; ou pelo Pleno Emprego Keynesiano obtido pela gestão macroeconômica desenvol-vimentista contemporânea amparada no crescimento econômico baseado no incremento do mercado interno através do planejamento estatal; complementada atualmente por po-líticas de renda mínima e compensatórias dirigidas aos grupos mais vulneráveis. Processo,

16 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1999.17 SINGER, Paul. Uma utopia militante. Repensando o socialismo. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1998, p. 90.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina58

que já reduziu consideravelmente, a economia informal e subterrânea que capturava boa parte da população economicamente ativa dos anos 90, mais que também reduz a sedução da economia solidária para amplos segmentos de trabalhadores incorporados ao mercado do trabalho e pelo pleno emprego:

A primeira década do século XXI passará para a história como um ponto de inversão na trajetória socioeconômica brasileira. As duas últimas décadas do século passado foram muito difíceis, com sinais de regressão econômica e social do país. No ano de 2000, a economia brasileira era a 13ª do mundo, o desemprego atingia 11 milhões de pessoas e o rendimento do trabalho respondia por somente 39% da renda nacional. Vinte anos antes, em 1980, O Brasil encontrava-se entre as oito maiores economia do mundo, com menos de 2 milhões de desempregados e o rendimento do trabalho representava metade da renda nacional. O Brasil recuperou o dinamismo econômico, e o rendimento das famílias cresceu generalizadamente nos anos 2000. Mas, vale notar, isso também ocorreu nos anos 1970- e de forma mais intensa-, sem ter resultado na diminuição simultânea da pobreza e da desigualdade de renda do trabalho. 18

O cooperativismo como forma coletivista autogestionária que pode emergir como práxis sócio-jurídica pluralista, comunitária e participativa19, e não como foco de criação de flexibilização e precarização do trabalho através das gato e fraudo cooperativas20 tôni-ca do período neoliberal, especialmente das décadas perdidas ostentadas pelos governos Collor e FHC.

18 POCHMAN, Márcio. Políticas públicas e situação social na primeira década do século XXI, p. 145, In: SADER, Emir. 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.19 Essa discussão é ampliada por autores como Eugen Ehrlich que define a gênese social das normas de conduta nas associações, a norma legal brotaria dos fatos sociais, a sua função é a de definir a posição e a função de cada membro da associação. Neste sentido, Eugen Erhlich distingue o direito individualista do comunitário, sendo que o primeiro não conseguir aniquilar totalmente as comunidades. Nas cooperativas familiares, nas corporações, nas instituições beneficentes, no Estado, na medida em que se constitui numa comunidade militar, de funcionários ou de bem estar. Não há prestações e contraprestações delimitadas segundo propriedade e contrato: os indivíduos prestam serviço segundo suas forças e capacidades e são recompensados segundo suas necessida-des. A ideia comunitária não visa estruturar toda a sociedade segundo princípios, como o socialismo ou o comunismo, mas procura introduzir alguns dos princípios que já parecem realizados nas co-munidades existentes. Em lugar da livre aplicação da posse e do trabalho através do contrato deve ser colocado em ordem, na qual o indivíduo, ao menos em casos de necessidade, põe suas forças e habilidades à disposição da totalidade e em contrapartida a totalidade contribui com o indivíduo, ao menos em caso de necessidade, In: EHRLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito. Tradução de René Ernani Gertz. Revisão de Vamireh Chacon. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p.184.20 VÉRAS NETO, 2004, op. cit., p. 278.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 59

Neste quadro, a Economia popular e solidária oferece uma oportunidade única de inclusão social com sustentabilidade ambiental, o que implica uma alteração do processo de desenvolvimento econômico crematístico confundido como processo de formação de riqueza econômica pela economia burguesa21 vulgarmente chamado de crescimento eco-nômico, dentro da crematística, expansão econômica não sustentável geração de riqueza concentrada, sem equilíbrio, canibalizadora da natureza e do homem.

O que não reverte o subdesenvolvimento social histórico de países como o Brasil, se no prisma qualitativo não ocorrer, investimentos em serviços públicos, como educação, saúde e segurança, devido a extrema desigualdade e a transferência de riqueza para o ex-terior, com reflexões na mortalidade infantil22. Embora vários indicadores nestes campos tenham tido avanços nas últimas décadas, em relação ao desenvolvimentismo do período militar ou do neoliberalismo dos anos 90, o empoderamento social e a cultura solidária e participativa ambicionada pelo pluralismo jurídico comunitário emancipatório, não se fir-mou no plano macrosocial, pois o padrão de inclusão produtivo e de concessão de direitos sociais embora melhor edificado, ainda é hierárquico e vertical metabolizado pelas forças do mercado, ainda que estas estejam agora reguladas pelo capitalismo de Estado.

Assim o desafio da distinção da economia solidária das práticas conservadoras do terceiro setor23 ou mesmo fraudulentas de atores empresariais capitalistas; são premis-sas essenciais para a formação de uma autêntica economia alternativa capaz de desafiar a lógica do mercado neoliberal impondo-se com pólo de resistência dentro do campo do solidarismo emancipador também objetivado por um pluralismo jurídico comunitário participativo na esfera da democratização cidadã do direito:

O segundo desafio a ser enfrentado pela economia solidária é a demarcação precisa entre as verdadeiras alternativas e as práticas conservadoras no chamado terceiro setor. As elites dominantes vêm desenvolvendo uma ardilosa estratégia para assegurar a hegemonia nesse campo. Sob o charme cativante do trabalho voluntário, das parcerias cidadãs, das empresas sociais, observa-se a tentativa de preservar privilégios, assegurando a legitimidade elitista na condução dos processos sociais. Os estragos do capitalismo foram tão grandes que se nada for feito, a exclusão, a marginalização e o empobrecimento de largas faixas da

21 PORTO GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globa-lização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.22 ARROYO, João Cláudio Tupinambá & Flávio Camargo Schuch. Economia popular e soli-dária: a alavanca para um desenvolvimento sustentável e solidário. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006 (Coleção Brasil Urgente).23 A re-instrumentalização da sociedade civil está ainda sendo definida, mediante a docilização dos atores sociais, a ideologização de ser um setor (o terceiro) que integra diversos sujeitos que perseguem o mesmo fim (a ajuda ao necessitado), a desarticulação das lutas sociais e, ainda mais, a sua retirada do horizonte de seu agente, transformando luta em agir comunicativo, em interação, o confronto de interesses em procura do consenso, In: MONTAÑO, Carlos, 2002, op. cit., p. 232.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina60

população trazem o risco de convulsão social ou do direcionamento da violência contra os poderosos. Como demonstrou Bronislaw Geremek em A piedade e a força (1978), ao longo da história ocidental, para frear essa ameaça, as elites se valem hora da força, hora da piedade. Atualmente, a ofensiva caritativa conservadora disputa terreno com as verdadeiras iniciativas do solidarismo emancipador, mas se não der resultados, a estratégia poderá ser outra.24

As comunidades atingidas pela lógica neoliberal, também se organizam de variadas formas para resistir à barbárie, em algumas ocasiões surgem movimentos que edificam novas experiências que permitem vislumbrar oportunidades emancipatórias em face da crise dos pólos tradicionais de regulação jurídica e social:

Os movimentos das massas não controladas pela esquerda pragmática cresceram de importância, à primeira vista, como estratégia defensiva contra o aprofundamento das políticas de privatizações. Porém, mais importante, a nova resistência vincula a novas formas de produção: as ocupações de terras e as cooperativas de trabalhadores do campo no Brasil e no Paraguai, e também os produtores de coca na Bolívia, relacionam-se com formas de produção cooperadas que buscam alianças com organizações de trabalhadores urbanos (...)25.

Em outros contextos, o pluralismo jurídico remete a barbárie de sociedades viti-madas pela ausência do aparato estatal assistencialista, e que buscam garantir a sua so-brevivência em situação de violência estrutural gerida por uma lógica, que não deve ser romantizada pela pesquisa acadêmica.

O direito insurgente por outro lado, como ponto de reflexão epistemológica repre-senta uma ameaça ao Direito estatal, mais do que o crime organizado, o banditismo ou a lavagem do dinheiro.

O Estado teme a violência fundadora, isto é, capaz de justificar, de legitimar (be-gründen) ou de transformar as relações de direito (Rechtsverhältnisse), e portanto apre-senta-se como tendo um direito ao direito. O que ameaça o direito pertence já ao direito, ao direito ao direito, à origem do direito. A greve geral, por exemplo, fornece um fio condutor precioso, já que ela exerce o direito concedido para contestar a ordem do direito existente e criar uma situação revolucionária no qual se tratará de fundar um novo direito, se não sempre, veremos num instante, um novo Estado26.

24 CATTANI, 2003, op. cit., pp. 12-13, 25 PETRAS, James. Armadilha Neoliberal e alternativas para a América Latina. São Paulo: Xamã, 1999, p. 71.26 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade; tradução Leyla Perro-ne-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 81-82.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 61

Neste cenário, o próprio pluralismo jurídico comunitário participativo quando con-duzido, por novos sujeitos coletivos de direito pode se prestar a esta interpretação de cho-que, com o sistema jurídico estatal principalmente; quando o mesmo está reconvertido, pela lógica neoconservadora contemporânea: de privatização e redução da democracia, processo desencadeado pela lógica vigente na concepção do Estado Mínimo neoliberal na área social e de repressão ampliada aos sujeitos coletivos de direito quando representam um poder social que suprime a lógica de financeirização dominante. Mais a insurgência é também necessária nos momentos de expansão econômica propondo horizontes autoges-tionários; e de mobilização social capazes de superar a alienação geradas pelo consumis-mo e individualismo excessivo produzidos pelas sociedades capitalistas contemporâneas, e gestionar a democracia direta e participativa, radicalizando a democracia.

Os movimentos sociais assumem historicamente uma posição contestadora a exemplo, dos movimentos sociais, como o dos Sem-Terra, lutando pela democratização da terra, ou de movimentos urbanos que lutem pela socialização da moradia ou coletivi-zação da produção.

3. O pluralismo jurídico comunitário participativo e a economia solidária como ferramentas para a construção de uma nova estatalidade político-jurídica e um novo mundo econômico

Outra questão vital é a da contribuição da problemática ecológica, para redimensionar as novas perspectivas e horizontes possíveis do mundo do trabalho, dentro da busca de con-dições sociais dignas de reprodução da humanidade, e do entorno ambiental, o que exige outra estratégia para responder aos danos sociais e ecológicos que ameaçam ao planeta.

Desta forma, o papel do marxismo e de outras concepções socialistas inclusive as da Filosofia da Libertação; devem ser mudadas em face às novas demandas e desafios co-locados pela dimensão ecológica da crise planetária atual, cindida com a crise econômica e de sociabilidade inerentes ao atual estágio de desenvolvimento da crise do capital.

O que não permite tratar as questões ecológicas e sociais de forma independente, incluindo aí uma nova ecologia dos saberes jurídicos e econômicos que podem ser legi-timados pelo pluralismo jurídico comunitário participativo em sinergia com a práxis da economia solidária.

Tem cada vez menos sentido tratar as questões ecológica e social de forma independente, tanto no plano político quanto reivindicativo. Não podemos aceitar ou estaremos correndo o risco de contradições explosivas, desenvolver dois conjuntos paralelos de medidas, um para responder às necessidades sociais (salvar a humanidade) e outro para responder aos danos ecológicos (salvar o planeta). O objetivo atual é combinar estas duas exigências solidárias em um mesmo programa de ação que seja, de fato, coerente. Isto vale também para o

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina62

plano teórico: a ecologia não deveria ser reduzida a um capitulo adicionado, a uma peça importada para um programa fundamental de transformação social imutável, ela faz parte dos questionamentos contemporâneos que impõem uma revisão geral das concepções socialistas e marxistas.27

Desta premissa básica ditada pelo cenário contemporâneo e futuro desenhado por esta perspectiva, que implica em uma ruptura do paradigma cartesiano mecanicista impos-to pelo saber matematizado e quantitativo do capitalismo naturalizador da realidade social e da “civilização” capitalista28 rumo a uma nova articulação epistemológica dos saberes demarcada pelo suleamento no sentido Paulo Freiriano da autonomia pedagógica popular libertadora.

Esta busca implica na busca de um novo Estado forte na questão social e ambien-tal; mais que seja passível de seu controle transparente pela ação democrática e pluralista dos sujeitos sociais coletivos insurgentes que moldam práticas sociais e jurídicas pluralis-tas, um Estado não baseado no monismo jurídico, mais na pluralidade de fontes jurídicas, na pluralidade dos poderes sociais, e não apenas dualidade de poderes, ou seja, além da dualidade de poderes preconizadas pelo marxismo leninismo com seus soviets subordina-dos ao “centralismo democrático”.

Isto pode ser efetuado pela pluralização das esferas jurídicas pelos movimentos sociais, o que implica na quebra do modelo do monismo jurídico conservador imposto hierarquicamente para consolidar uma dominação racional legal desenhada a favor das oligarquias ou das classes dominantes.

Esta nova esfera social dialógica insurgente implica também na reconstrução de um novo mundo das solidariedades culturais, econômicas e étnicas situadas, num novo marco ético da alteridade capaz de desconstruir as premissas do produtivismo capitalista anti-socioambiental e induzindo a uma solidariedade dialógica, plural, horizontal e basista formadas por redes de troca solidária e por uma cultura da partilha fundada na ética da alteridade.

Esta nova forma de conceber a economia de uma forma indivisível em relação as outras realidades sociais fundamentais, edifica-se pela busca de um plano emancipatório libertador, o que somente pode ser consolidado pela ação da práxis de intelectuais e da própria comunidade de vítimas, os sujeitos coletivos, os intelectuais orgânicos coletivos além da lógica do partido, ou do príncipe defendida por Gramsci e Lênin, que não precisa ser eliminadas mais devem ser subordinadas a base da espontaneidade dos movimentos sociais que os criaram mitigando a lógica de burocratização institucional típica da chegada

27 ROUSSET, Pierre. O ecológico e o social: combates, problemas, marxismos, p. 223, In: CAT-TANI, Antonio David. Fórum Social Mundial: a construção de um mundo melhor. Porto Ale-gre/Petrópolis: Editora da Universidade/UFRGS/Vozes/Unitrabalho/Corag/Veraz Comunica-ção, 2001.28 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A Civilização Capitalista. São Paulo: Ed. Saraiva, 2013.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 63

ao poder estatal com a cooptação da guerra de posição e a fragilidade da guerra de movi-mento no sentido gramsciniano.

Estes sujeitos coletivos buscam romper com o modelo de dominação eurocêntrico e etnocêntrico posto pela colonização econômica, simbólica e cultural, ou seja, efetivam o movimento dialético de ruptura descolonizadora com o imperialismo e o colonialismo cultural.

Este novo projeto se funda em uma nova ética da libertação, que cede ao conteúdo empírico do mundo da vida superando o procedimentalismo vazio e o puro do formalis-mo da ética do discurso produzindo uma simetria crítica em meio à situação de assimetrias hegemônicas através do recurso a uma ética do conteúdo ou material29.

Esta virada antropológico-filosófico civilizacional em prol de uma nova política assentada nas bases societárias populares somente pode ser obtida a partir da descoloni-zação das premissas utilitárias impostas sobre “o mundo da vida”; que impediram a via dialógica intercultural emancipatória da América Latina através do processo de espoliação secular erigido secularmente sobre a região.

Este processo remonta a dominação ibérica, passando pela dominação inglesa an-tilhana; e estadunidense da América do Norte, que suprimiu todos os marcos revolucio-nários que tentaram se erigir contra a dominação colonial30.

29 Cf. DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Tradução de: Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 217.30 Vide a guerra do Paraguai no século XIX, a repressão dos movimentos sociais no Brasil (Caba-nagem, Canudos, Contestado, etc), a guerra do Chaco, na década de 30 do século XX, a revolta dos Gaúchos na argentina no século XIX, no governo de Mitre, a política de matança das experiências nacionalistas da América Central nos anos 30, por multinacionais americanas como, a United Fruit e novamente nos anos 80, a políticas do Evil Empire de Reagan sobre os Sandinistas. Anterior-mente, a escravidão negra, os mais de 70 milhões de índios mortos desde a invasão da América. A derrubada do governo Chileno de Allende, promovido pela International Telephone and Telegrath, as ditaduras militares latino-americanas mantidas sob o gerenciamento norte-americano. As polí-ticas neoliberais de Carlos Salinas de Gortari, Ernesto Zedillo, Carlos Menen, Alberto Fugimori, Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso, nos anos 90 que privatizaram o patri-mônio estatal, energético, mineral e natural, no caso do Brasil, o setor telefônico, elétrico, a Vale do Rio Doce, a CSN, a Belgo Mineira, a Aço Minas, a maioria dos Bancos de Fomento estaduais, estabeleceram avultosas concessões de Pedágio para inescrupulosas empresas estrangeiras, e hoje as políticas ainda se materializam com o combate aos movimentos sociais organizados como os Sem-Terra, os Zapatista e os governos nacional-populares de Hugo Chávez, Rafael Corrêa, Evo Moralez, conforme estampado na capa na reacionária revista Veja do mês de março de 2008, da editora Abril. Cf.: RAMPINELLI, Waldir José. A história: uma arma de dominação, p. 23-48, in: RAMPINELLI, Waldir José (org). Florianópolis: Insular, 2003; GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 45ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005; BANDEIRA, Luiz Alberto Mo-niz. Formação do Império Americano. Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. 2ª edi-ção. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2006; RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo:

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina64

A racionalidade instrumental colonial imposta sobre a base de genocídios etnoci-das sem escala comparativa no plano da constituição da modernidade, explorando rique-zas como o pau-brasil, açúcar, o café, o ouro, os diamantes, a prata, o cobre, a bauxita, o manganês, o café, o zinco, os povos indígenas, os africanos trazidos em navios negreiros e os imigrantes integrados as plantations.

Hoje, a busca do domínio energético geopolítico, se volta para o Petróleo, o “ouro negro” tão visado pelas tentativas de privatização da década de 90, e que sabemos ser insustentável do ponto de vista ambiental e geopolítico, assim como sobre a água de rios e aquíferos, a biodiversidade.

Hoje a nova monocultura do bioetanol com seus efeitos sociais e ecossistêmicos entrópicos edificam a visualização da troca ecológica desigual e do Mito do Desenvolvi-mento Sustentável despertado em Estocolmo em 1972.

A troca ecológica desigual realizada no plano internacional entre Norte e Sul cria uma relação em que a falha metabólica entre Capital e Natureza se acentua e complemen-tarmente a existente entre Capital e Trabalho, pois os países beneficiados por esta troca se tornam sintrópicos sendo consumidores da energia e matéria produzida nos países periféricos; exportando entropia para os países que recebem os investimentos operados pela externalização da poluição, dos resíduos e do extrativismo orientado para os centros consumidores imperiais mundiais.31

Os canaviais de São Paulo, a expansão da fronteira da Soja no Cerrado e no Cen-tro-oeste; e na região norte ocasionando novos holocaustos ambientais com a grilagem e assassinato de posseiros e indígenas, por madeireiros, fazendeiros e pecuaristas.

Este processo foi demonstrado no episódio da Raposa Serra do Sol32; na flexibi-lização do Código Florestal; e nas propostas de emenda constitucional –PEC–215/2000, que pretende alterar o art. 231 da Constituição de 1988, que visa retirar do Executivo e deixar para o legislativo a prerrogativa da demarcação de terras indígenas, assediadas pela Agroindústria e pelas mineradoras, sempre insaciáveis e clamando pela liberdade plena para o saque.

Não há a mínima preocupação, com a formação de novos etnocídios contra os povos indígenas, tudo baseado nos velhos preconceitos eurocêntricos e na busca de lucros

Companhia das Letras, 2007; BIONDI, Aloysio. O Brasil privatizado. Um balanço do desmonte do Estado. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999. 48 p; DUSSEL, Enrique. Enrique. De Medellín a Puebla uma Década de Sangue e Esperança: de Sucre à crise relativa do Neofa-ciscismo – 1973-1977; tradução: Luis João Gaio. São Paulo: Edições Loyola, 1982, MUÑOZ, Luis. Cooperativismo e Direito. Identidade Latino-Americana das Cooperativas Populares. Universidade Federal do Paraná: Curitiba, 2008.31 MONTIBELLER-FILHO, Gilberto. O Mito do desenvolvimento sustentável. Meio am-biente e custos sociais no moderno sistema produtor de mercadorias. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008.32 VEPPO BURGARDT, Victor Hugo. Embates Políticos na Fronteira Setentrional do Bra-sil: A difícil digestão da Raposa Serra Sol. São Paulo/Jundiái, Paco Editorial, 2011.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 65

desmesurados pelas oligarquias rurais do país; e por empresas estrangeiras exportadoras de soja, minérios, carne e madeira, com o apoio conveniente da mídia monopólica patro-cinada pela publicidade ligada a estes grandes grupos.

A nova faceta do colonialismo, que hoje designamos por injustiça e racismo am-biental, demarcada pela falta de alteridade antropológica incapaz de ver a sabedoria epis-temológica da cosmologia dos povos indígenas em sua relação de reciprocidade com a natureza.

Esta ideologia conservadora se funda na inevitabilidade do choque cultural, de forma que a cultura mais forte deve prevalecer em detrimento dos direitos dos diferentes, das minorias, isto é aplicado entre nações com empreendimento de guerras preventivas; e também entre grupos culturais, étnicos, utilizando a diferença cultural como estereótipo33 legitimador da violência e da dominação dos grupos minoritários, aí os mesmos grupos, que privatizam o patrimônio público brasileiro; forjam um discurso nacionalista contra os indígenas.

Esta modelagem societal capitalista eurocêntrica é incapaz de valorizar algo situ-ado fora da esfera da troca, como o mosaico de um país sóciobiodiverso como o nosso, no plano cultural, linguístico, com mais de 100 grupos linguístico na Amazônia; e 200 no Brasil inteiro.

A desvalorização dos saberes etnobotânicos e da epistemologia do sul através da rejeição dos saberes locais, por não terem validação pregressa do etnocentrismo religioso, do sócio darwinismo colonialista; ou hoje, do universalismo científico da monocultura dos saberes eurocêntrica de acordo com Boaventura de Sousa Santos34, que nega a verdade local dos indígenas, dos povos da floresta, dos quilombolas. Inclusive, oculta sua existên-cia pela invisibilidade social ditada pelo encobertamento, vigente desde as encomiendas e bandeiras de apressamento até o desrespeito contemporâneo com a identidade cultural dos povos indígenas e das suas terras. O processo de aniquilamento físico, cultural e espi-ritual perpassa o ocultamento, o encobrimento cultural e epistemológico efetuado desde as invasões europeias.

A busca de vetores simbólicos não antropocêntricos é vista como superstição, já que para os indígenas o homem pertence a terra, e não o contrário; como a visão da modernidade eurocêntrica da propriedade privada sustenta. A visão deles para o reino botânico e zoológico é também demarcada por uma tradição não antropocêntrica de es-piritualização e sacralização do ambiente; e de sociedades contra a autoridade hierárquica

33 Respeitando o relativismo razoável e o anacronismo historiográfico, tais estereótipos no pas-sado colonial estavam calcados no estranhamento das práticas da antropofagia, poligamia, aborto, infanticídio, liberdade sexual e socialização coletivista sem Rei, fé e lei, ou seja, sem os valores da sociedade europeia, ver: COLAÇO, Thaís Luzia. Incapacidade Indígena. Tutela religiosa e viola-ção do direito guarani nas missões jesuíticas. Curitiba: Juruá, 2000.34 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006 (Para um novo senso comum, v. 4).

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina66

estatal de acordo com Pierre Clastres35, as famosas sociedades contra o Estado, então quem tem a ensinar e quem tem a aprender; ou melhor, porque o bloqueio do diálogo inter-cultural?

4. Para uma contextualização do direito cooperativo e do direito relativo ao terceiro setor formando marcos balizadores do pluralismo jurídico neoliberal gerando a necessidade de diferenciação do modelo comunitário participativo

O atrelamento das cooperativas ao espectro da regulação neoliberal, que determina a formação de uma sociedade civil moldada pelo príncipe mercado sob o domínio dos seus intelectuais coletivos privatizadores incluindo a mídia monopólica neoliberal.

O uso do disfarce latente no ideário da responsabilidade social e ambiental do empresariado, a formação de redes, em que as cooperativas dissipam o ideal da sua auto-nomia coletiva e da sua independência das redes empresariais tornando-se meros meca-nismos de legitimação publicitária e social destes agentes mercatórios.

Na medida, em que dentro do mercado capitalista atrelam-se aos propósitos da legitimação dos players privilegiados do mercado neoliberal ligados ao terceiro setor e afas-tados da formação de uma economia alternativa ao capitalismo, popular e solidária, o cooperativismo tradicional afasta-se de qualquer ideal pluralista e emancipatório.

Forma-se o marketing social empresarial atento a promoção de processos comuni-tários de participação social subordinada, através do envolvimento “voluntário” de habi-tantes de comunidades como fornecedores baratos de mão-de-obra e de matérias-primas para a indústria de cosmético, por exemplo.

O capitalismo sempre catalisa um processo de super-subordinação, inclusive com a apropriação do tempo livre para a descoberta de novas habilidades anteriormente des-conhecidas, assim, a lógica do moinho satânico capitalista polanyiano continuará domi-nante36 dentro das práticas enganosas do capitalismo verde, novo disfarce utilizador do

35 Cf. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: ERCA, 1990.36 Ora, numa sociedade agrícola, tais condições não surgiram naturalmente – elas teriam que ser criadas. O fato de terem sido criadas gradualmente de maneira alguma afeta a natureza surpreen-dente das mudanças envolvidas. A transformação implica numa mudança da motivação da ação por parte dos membros da sociedade: a motivação do lucro passa a substituir a motivação da subsistên-cia. Todas transações se transformam em transações monetárias e estas, por sua vez, exigem que seja introduzido um meio de intercâmbio em cada articulação da vida industrial. Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa e, qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda. É isto o que significa o simples termo “sis-tema de mercado” pelo qual designamos o padrão institucional descrito. Mas a peculiaridade mais surpreendente do sistema repousa no fato de que, uma vez estabelecido, tem que se lhe permitir funcionar sem qualquer interferência externa. Os lucros não são mais garantidos e o mercador tem que auferir seus lucros no mercado. Os preços devem ter a liberdade de se auto-regularem. É justa-mente esse sistema auto-regulável de mercados o que queremos dizer com economia de mercado,

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 67

rótulo embutido como marca das práticas sustentáveis do mundo empresarial, sem querer satanizar seus agentes aprisionados a mentalidade do moinho satânico acima descrito:

O investimento e a inserção na comunidade, incentivando o desenvolvimento social com o intuito de criar mais identidade e justiça, constituem uma vantagem competitiva e um diferencial para a empresa. Com o desenvolvimento do trabalho voluntário pelas empresas, é possível observar progressos nas atitudes de seus trabalhadores. Estes tornam-se pessoas mais humildes, dispostas a ouvir o próximo e ajudá-lo, tornam-se mais animados e mais criativos, valorizando sobremaneira a sua realidade, podendo a empresa detectar novas habilidades anteriormente desconhecidas37.

O discurso da terceira via, consubstanciado na ideologia do terceiro setor parece atraente, por sinalizar para uma utopia pragmática centrada na própria economia capita-lista globalizada neoliberal:

[334]A utopia e o projeto possível , racional, com a colaboração da ciência e da técnica, fruto da discursividade democrático-intersubjetiva, não é então: a) a utopia impossível do anarquista, b) nem tampouco a utopia do sistema vigente, c) nem uma idéia meramente reguladora e transcendental (como a comunidade de comunicação ideal da Ética do transcendental (como a comunidade de comunicação ideal da Ética do Discurso). É uma utopia que passou pela prova da factibilidade a partir do horizonte, das exigências ético-materiais e moral-formais. Neste último, aspecto, a utopia da mesma forma que as alternativas em todos os níveis, deve ser alcançada mediante consensualidade da comunidade crítica no descobrimento das alternativas concretas factíveis, com o uso de técnicas, ciências, peritos críticos etc., para que as alternativas ética e moralmente sejam possíveis empiricamente. Aplica-se aqui o princípio crítico ético de factibilidade transformadora. A utopia se faz projeto possível e, posteriormente, programa empírico.38

Nestas condições, a subjetividade e a saúde dos trabalhadores, no seu meio am-biente do trabalho parecem mais do que drenadas pelos processos de assédio moral, pelas novas patologias laborais, como a depressão, suicídio, etc.

Neste contexto, predatório, a principal concorrência está difusa entre os próprios trabalhadores devido ao gerenciamento das técnicas organizacionais desdobradas do pa-

In: POLANYI, Karl. A Grande Transformação. As origens da nossa época. Tradução de Fanny Wrobel, Revisão Técnica: Ricardo Benzaquen de Araújo. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 58.37 CAMARGOS, Ana Amélia Mascarenhas. Direito do Trabalho no Terceiro Setor. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, p. 60.38 DUSSEL, 2000, op. cit., p. 477.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina68

drão toyotista cooptadoras da subjetividade dos trabalhadores, adensadas que estão pela aceleração do processo de produção, por novas tecnologias como a internet, o celular, etc.

Este novo processo é chamado por alguns de fluxo tênsil39, talvez a explicação esteja mais próxima, a novas formas de extração da mais valia relativa, agora realizadas de forma mais sutil, já que estão naturalizadas pela nova ideologia patronal hegemônica, que está difusa e impregnada todos os tecidos sócio-comunitários da sociedade do espetáculo, em um processo de fragmentação laboral emergente do emprego das novas tecnologias convergindo para a sociedade global do entretenimento, do espaço narcisista do indivi-dualismo privado, que é o único espaço societal compatível com as formas de produção advindas do padrão criado pelo modelo neoliberal orientado pelo consumo40, a ideologia é alimentada pela esfera circulacionista informacional.

Para uma maior inteligibilidade da esfera jurídica cooperativa situando-a neste con-texto amplo é necessário estabelecer quais pontos são utilizados para defini-las como sociedades cooperativas, preceitos retirados dos quadros da própria Aliança Cooperativa Internacional: a) tratar-se de uma entidade com dupla natureza: é ao mesmo tempo uma sociedade de pessoas e uma empresa econômica; b) apóia-se na ajuda mútua dos sócios;

39 O toyotismo teria inaugurado um novo tipo de manejo da produção caracterizado pela pilo-tagem pelo fim, definida conceitualmente como fluxo tensionado, caracterizado por um fluxo in-formacional descendente. Tal conceito generalizado a toda a cadeia de produção significa que cada posto de trabalho é cliente daquele logo acima, o qual, na incerteza do que lhe será demandado, não constitui mais estoques como no fluxo fordiano. Basta estar em condições de entregar à ju-sante, no momento certo (just in time) e segundo a quantidade demandada, os produtos ou serviços necessários. Historicamente, na Toyota – que é a inventora desse sistema – cada posto de trabalho era prevenido por um ticket (um kanbam) do pedido à jusante. Donde um duplo fluxo: matéria, de cima para baixo da cadeia (com uma ausência ou uma quase ausência de estoque comercial), e in-formacional, de baixo para cima. É preciso assinalar que, de todo modo, há um fluxo informacional descendente, qual seja: o da planificação das matérias-primas e das disponibilidades dos meios para tornar a produção possível. O fluxo informacional puxado é que determina a produção, in: DU-RAND, Jean Pierre. A refundação do trabalho no fluxo tensionado. Tradução de Leonardo Gomes Mello e Silva. In: Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. v. 15, n. 1 (abril de 2003). São Paulo: USP, FFLCH, 1989. p. 143.40 Essa nova objetivação social está refletida na pouca representatividade das organizações sindi-cais, em que o trabalhador diante desse novo contexto de risco de desemprego passa a se identificar mais facilmente com o empregador, seu parceiro na luta e disputa pelo consumidor e, portanto responsável pela sua sobrevivência dentro das estruturas competitivas do mercado. Desta forma, como parceiros, devem canalizar seus esforços mútuos para a cooperação voltada a derrotar os seus competidores comuns. Os próprios sindicalistas aderem a esses modelos de cooptação e se transformam em agentes de gestão assimiladoras visando à cooperação e à facilitação da estratégia empresarial, In: COUTINHO, Aldacy Rachid. Direito do Trabalho: A passagem de um regime despótico para um regime hegemônico, p. 18. In: WALDRAFF, Célio; Coutinho, Aldacy R. (Orgs.) Direito do Trabalho & Direito Processual do Trabalho: temas atuais. Curitiba: Juruá, 1999, p. 19.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 69

c) possui um objetivo comum e predeterminado de afastar o intermediário e propiciar o crescimento econômico e a melhoria da condição de seus membros, os quais possuem na união a razão de sua força; d) visa prestar serviços aos próprios associados41.

O espectro legal do cooperativismo está centrado na Lei cooperativa que é a lei 5764/7142 parcialmente alterada pela lei 6981, de 30 de março de 198243, que hoje rege a política nacional do cooperativismo.

Desta forma, a lei foi constituída no quadro do período militar, que visava forta-lecer o cooperativismo agrário44 suportado por grandes proprietários, a lei não foi proje-tada em um contexto de participação comunitária ou de movimentos sociais, mas em um período refratário as demandas sociais sob os anos de chumbo da ditadura civil-militar brasileira.

A dinâmica formal do tratamento jurídico do cooperativismo está também expres-sa, no Código Civil de 2002, que instituiu a indivisibilidade do fundo de reserva visando fortalecer o patrimônio da cooperativa para os credores através do art. 1094, ampliando a previsão do art. 28, I da lei cooperativa, que estabelecia, o fundo para a garantia da sol-vência de eventuais passivos, ou mesmo, para a realização de investimentos nas melhorias das atividades da cooperativa, com a formação do fundo com o valor mínimo de 10% das sobras líquidas, sendo captadas pela dedução de um pequeno percentual do retorno a quem tem direito cada cooperado45, ou seja, o tratamento jurídico é voltado para a incor-poração destas sociedades pessoais para as práticas de mercado e comércio.

A responsabilidade dos cooperados, no artigo 1095, que pode ser limitada ao valor de suas cotas do capital social ou ilimitada, sendo que em ambos os casos, a responsabili-dade será subsidiaria, nos termos do art. 13 da Lei 5764/71, do Cooperativismo46.

Talvez o ponto vital das modificações introduzidas pelo novo código civil esteja no II do art. 1094, que diz que: são características da sociedade cooperativa: II - concurso

41 LIMA NETO, Arnor. Cooperativas de Trabalho. Curitiba: Juruá, 2004, p. 135.42 No Brasil o conceito legal de cooperativa está no art. 4º da Lei 5764/71, de 16 de dezembro de 1971: “As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados”. Cf. LIMA NETO, Arnor, op. cit., p. 134.43 Ibid., p. 135.44 Porém, segundo o sociólogo João Elmo Schneider, o cooperativismo, ao longo dos anos, confinou-se especialmente no setor primário, tendo se relegado à integração produção-consumo, ou seja, as cooperativas de consumo pioneiramente sedimentadas nos centros urbanos tinham a clara função de baratear a aquisição de produtos alimentícios, no entanto, sucumbiram ao poderio das grandes redes de supermercados nascidas com o mercado consumidor de massas sedimentado ao longo da industrialização e a modernização capitalista do país principalmente com a internacio-nalização da economia nos anos 70. Cf. SCHNEIDER, João Elmo. “O cooperativismo agrícola na dinâmica social do desenvolvimento periférico dependente: o caso brasileiro,” In: Cooperativas agrícolas e capitalismo no Brasil. Loureiro, Maria Rita (Org.). São Paulo: Cortez, 1981, p. 14.45 CAMARGOS, 2008, op. cit., p. 176.46 Ibid., p. 177.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina70

de sócios em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade, sem limitação de número máximo, pois eliminou o óbice da constituição das cooperativas por 20 membros, o que era próprio da lei criada sob o viés da Lei 5764/71 feita no bojo do in-centivo do setor primário como empresa rural ou latifúndio extensivo, um pequeno passo na democratização incipiente ainda totalmente metabolizada pelo espectro do capital.

Este é o contexto de dominação racional-legal expresso na racionalização legal procedimental evidenciado pelos dispositivos legais acima retratados, partes integrantes da tecnocracia normativa que estabelece o modelo abstrato de regulação legal, necessário a racionalização formal capitalista.

Outra questão refere-se ao contexto material, social e cultural em que estas organi-zações emergem: Desta forma, considera-se essencial, mais uma vez, utilizar a máxima de que o rótulo jurídico nivelador, mais confunde, do que identifica, no caso das cooperati-vas; daí a necessidade do estudo meticuloso do suporte fático:

O rótulo jurídico confunde pois, mais do que identifica, o que é cooperativismo. Sobretudo se quiser distinguir o cooperativismo conservador do renovador. O cooperativismo dos grandes daquele dos pequenos. O cooperativismo dos latifundiários daquele dos sem-terra. O cooperativismo capitalista, do de perfil socialista. (...) A prática efetiva e não a mera etiqueta jurídica é o critério identificador da associação cooperativa, a qual pressupõe as seguintes características: propriedade, gestão e repartição cooperativas. Essas características, e não o registro junto aos “órgãos competentes”, são os reais indicadores de uma prática cooperativista 47.

O cooperativismo tradicional remete ao espectro formal, não transformador, a sua visão é a da interligação com as redes capitalistas convencionais constituindo-se em uma forma de arregimentação da escala de redes empresariais de grande porte sustentadas pelo aporte legal convencional48, que se difere completamente do pluralismo jurídico emancipatório idenficado com a proposta transformadora da autêntica economia solidá-ria; que busca a transformação social através da práxis reconhecedora da alteridade do ser humano que edifica a formação ética de cooperativas, associações, entidades comunitárias motivadas, pelo conduto material do solidarismo, arregimentando um direito pluralista comunitário e participativo, dito como informal apenas dentro do plano do convenciona-lismo legal burguês.

47 RIOS, Gilvando Sá Leitão. O que é cooperativismo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 61.48 O óbice a autogestão torna-se desta forma evidente: Por exemplo, a “Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB” defende que “o cooperado, através de sua participação ativa, direcione as atividades da coope-rativa para os interesses que lhes dizem respeito”. Por outro lado, estabelece que “o sistema, através da coordenação nacional, definirá as diretrizes que embasarão a execução da auto-gestão [sic], In: Crúzio, Helnon de Oliveira. “Por que as cooperativas agropecuárias e agroindustriais brasileiras estão falindo?” Revista de Administração de Empresas. V. 39, n. 2, abr./Jun. 1999, p. 21.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 71

A exemplificação de tal dilema transparece pela homogeneização, embora esta não seja clara para a maioria das pessoas integrantes destes movimentos, que buscam apenas a difícil sobrevivência cotidiana, a preservação ou construção de uma identidade através de empreendimentos focados na sua existência no mundo das necessidades49 dentro de um meio social periférico matizado pela concentração de renda:

Uma nota ideologica queremos exteriorizar. O movimento cooperativista é, muitas vezes, associado à idéia anticapitalista, como uma forma de precedência à sociedade capitalista ou comunista. Não ingressaremos nessa seara, principalmente porque, se a doutrina cooperativista, muitas vezes, traz tal conotação, não se pode afirmar que os cooperativistas, na prática, busquem tal finalidade ideológica. E podemos exemplificar isso por intermédio do movimento cooperativista que mais se desenvolveu no Brasil ao longo do período que antecedeu à Constituição Federal de 1988, o cooperativismo agrícola, cujos membros, fazendeiros, constituem uma classe reconhecidamente conservadora. E mais, as sociedades cooperativas desenvolvem-se muitos em países notoriamente capitalistas, como a Inglaterra e os EUA. Ao largo de toda discussão filosófica que cerca o tema, afirmamos que nossa análise restringir-se-á a aspectos normativos, tratados com neutralidade enquanto objetos de outras áreas do conhecimento científico.50

A declaração dos princípios cooperativos de Rochdale, pela doutrina do coopera-tivismo jurídico tradicional demonstra, a desconexão entre o verniz jurídico e a contextu-alização histórica.

Assim são proclamados os princípios emergentes do modelo de evolução princi-piológica de Rochdale51 como o princípio da adesão livre, o controle democrático pelos sócios, a participação econômica dos sócios, autonomia e independência, educação, trei-namento e informação, cooperação entre cooperativas52.

49 As possibilidades e motivações no interior de cada empreendimento de Economia Popular são diversas, e não se deve querer transformar uma ideologia totalizante (o capitalismo) com outra (o solidarismo). Há que buscar valores neste movimento que permitam uma ampla identificação das ocorrências, para aglomerá-las e, somente então, tentar construir uma nova força política, in: MUÑOZ, 2008, op. cit., p. 19.50 BECHO, Renato Lopes. Tributação das cooperativas. 2. ed. São Paulo: Dialética, 1999, p. 83.51 22º) Lei 8.949. de 09-12-1994, acrescentou parágrafo único ao art. 442 da CLT, para declarar a inexistência de vínculo empregatício entre as cooperativas e seus associados e entre estes e os tomadores de serviços daquelas. Cf. MAUAD, Marcelo. Cooperativas de trabalho sua relação com o Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1999, p. 36.52 Cf. ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de & Braga, Ricardo Peake (coord.)- Cooperativas à luz do Código Civil-São Paulo: Quartier Latin, 2006, pp. 214-215.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina72

Na prática evidencia-se o uso das cooperativas, para estruturar práticas neo-es-cravistas, de subcontratação, nas malhas da terceirização, ou próximas do assalariamento convencional; questões que são negligenciadas para que se possa ceder apoio às premissas neoliberais de ampliação do lucro por práticas neoliberais induzidas por falsas coopera-tivas ou pelo cooperativismo mantido por grandes proprietários rurais cristalizadores do agronegócio centrado na monocultura capitalista.

Dentro desta orientação uma série de legislações cooperativas da América Latina têm se adaptado ao contexto social para exprimir um apoio ao cooperativismo popular autêntico53, tendo em vista as dificuldades do transplante dos marcos principiológicos cooperativos situados no molde cultural eurocêntrico de Rochdale para o contexto espe-cífico das comunidades latino-americanas54:

No caso das cooperativas populares tendo em vista sua formação comunitária, familiar ou cultural, como regra seus integrantes fazem parte de um grupo restrito e bem determinado por relações pessoais. Não se pode imaginar que uma cooperativa familiar possa ser obrigada a aceitar indivíduos estranhos ao seu núcleo. Exemplificativamente, também não é razoável imaginar artesãs que trabalhem por prazer de convívio, com relações de décadas, obrigadas a aceitar o ingresso de novas mulheres, sem laços afetivos com o grupo.55

Outro ponto fundamental, a ser discutido na questão do cooperativismo tradi-cional conservador e nas organizações sociais do terceiro setor como um todo é o do reposicionamento do poder estatal, de maneira que os serviços essenciais, deste migrem para a órbita de um pluralismo jurídico policêntrico neoliberal infrajurídico, dentro do espectro amplo do terceiro setor, que gera o marco regulatório legal de desconstrução plena do Estado Social.

Neste caso ocorre, a quase total delegação da prestação destes serviços sociais públicos, para as entidades constituintes do terceiro setor, como Fundações, OSCIPS, Organizações sociais, cooperativas, etc,.

Não se nega, o possível e bem-vindo, papel suplementar destas instituições, mas sim, a total substituição, das políticas públicas estatais, por estas entidades captadoras dos fundos públicos, com a privatização do planejamento estatal, por este modelo delegati-vo, que dentro de sua configuração conservadora neoliberal terá por objetivo a coopta-

53 Uma conceituação abrangente e materializadora de um modelo social de cooperativismo pode ser extraído de Arnor Lima Neto: “Identificando-se as cooperativas como instrumento de desen-volvimento econômico e meio eficaz de promoção humana, elas se constituem ainda como fórmula capaz de gerar e manter postos de trabalho que dignifiquem e valorizem o trabalhador, repelindo-se expressamente a sua utilização na medida em que de alguma forma sirvam para furtar a aplicação da legislação de modo a violar direitos trabalhistas”, in: LIMA NETO, 2004, op. cit., p. 15954 MUNOZ, 2008, op. cit., p. 33.55 Ibid., p. 33.

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 73

ção, competição e combate do autêntico pluralismo jurídico comunitário participativo emergente, dos sujeitos coletivos plurais da sociedade civil, aqui, interpretados enquanto movimentos sociais compromissados com a transformação sócio-econômica profunda e contrária ao espectro das políticas neoliberais:

Ao contrário do ideário do terceiro setor que proclama o Estado prestador de serviços como antidemocrático e o Estado neoliberal que apenas exerce a regulação como democrático, opinamos que um Estado pode ser radicalmente democrático apenas buscando um engajamento da sociedade civil na discussão e constituição de políticas públicas sem, necessariamente, utilizar-se do chamado terceiro setor para atendimento das demandas de responsabilidade direta do Estado. Ou seja, um Estado pode ser substancialmente democrático, conforme lição já esplanada de Celso Antônio Bandeira de Mello, sem necessariamente privatizar os seus serviços públicos, principalmente os sociais, às entidades sem fins lucrativos, ou mesmo realizar a atividade de fomento junto ao terceiro setor.56

Esta visão, de subvenção neoliberal da terceira via sustentada na ideologia do pú-blico não estatal está evidenciada na contratualização neoliberal das políticas públicas, pelas reformas de Estado da América Latina, iniciadas durante, a governança neoliberal, de Bresser Perereira, a síntese da sua configuração jurídica se dava pela prestação de servi-ços sociais por organizações sociais regidas por contratos de gestão mediante subvenções sociais do Estado, dentro de mais, um modelo de pluralismo jurídico policêntrico infra-jurídico neoliberal:

Então a figura do contrato de gestão ocupa lugar de destaque na estratégia administrativa preocupada em alterar o perfil do Estado. A relação entre núcleo estratégico do Estado e demais setores deixa de ser disciplinada pela lei, na qual impera uma relação de mando, de subordinação, e passa a ser disciplinada pelo contrato, no qual impera uma relação de coordenação, de cooperação, sendo que, por intermédio do contrato de gestão, o núcleo estratégico do setor do Estado apresenta aos demais núcleos os objetivos que devem ser cumpridos.57

Tendo em vista a contextualização singularizadora dos processos de regulação neoliberal, sobre o cooperativismo tradicional do setor primário ou de cooperativas de trabalho arregimentadoras de mão-de-obra; e o pluralismo jurídico mercatório neoliberal,

56 VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 146.57 ROCHA, Sílvio Ferreira da Rocha. Terceiro setor. 2ª Ed. Revista e aumentada. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 48.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina74

assim como das experiências do cooperativismo autêntico popular dentro da busca de um pluralismo jurídico comunitário participativo de cunho emancipatório libertador partimos para as considerações finais.

Conclusão

O tema do pluralismo jurídico deve se conectar, com as propostas de transformações sociais possíveis no atual cenário da globalização, dentro da busca de uma globalização alternativa, basista, pluralista e pós-colonialista.

O fatalismo de uma via única e inexorável do processo de internacionalização neo-liberal já foi parcialmente rompida, por novos projetos manifestos na Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua.

Embora estes processos não tenham ainda consolidado uma via pluralista total-mente libertária e emancipatória dentro de um projeto utópico pós-colonial latino-ame-ricano, introduziram a expectativa de um constitucionalismo latino-americano que cede espaço para os povos indígenas, outros grupos marginalizados e a própria natureza como sujeitos coletivos que expressam este pluralismo societal.

O período áureo do neoliberalismo parece ter perdido temporariamente intensida-de em nossa região; excluindo totalmente países como Colômbia e Paraguai imersos neste universo globalitário.

As propostas de reconstrução do mundo econômico e jurídico se evidenciam, po-rém se limitam pela forma jurídica ainda controlada pelo capitalismo de Estado, algo distante da emancipação preconizada nos Fóruns Sociais Mundiais que expressa um novo internacionalismo emancipatório insurgente.

A democratização ética possibilitada pela autogestão das formas de produção da economia popular e solidária, dentre as quais se incluem o cooperativismo popular au-têntico preocupado com a produção e o consumo éticos e materialmente sustentáveis, tornam-se meios viáveis para alcançar uma sociedade baseada no paradigma de gestão democrática e partilhada do ambiental e do social, a partir dos grupos sociais excluídos, sem terra, sem teto, indígenas, quilombolas, trabalhadores, etc.

A ligação desta nova economia com o pluralismo dialógico de movimentos sociais campesinos, comunidades indígenas, quilombolas, povos da floresta permitem pensar na possibilidade de emergência de uma nova ética de libertação capaz de ir além da civiliza-ção capitalista; e seu viés reificado, fetichista de acumulação da propriedade privada e de militarização e criminalização dos movimentos sociais representativos da população mar-ginalizada pelo eurocêntrismo, colonialismo, etnocentrismo e racismo esboçados como marcas culturais indeléveis pela civilização capitalista colonial invasora, imposta aos nati-vos, escravos e aos trabalhadores.

Porém, o mundo econômico não pode ser transformado, sem uma proposta de mudança no plano jurídico, cuja democratização passa pela reconfiguração do plano da

O pluralismo jurídico comunitário participativo e economia solidária 75

estatalidade e pelo anúncio de um novo direito comunitário forjado pelo cotidiano dos povos de nossa região e do mundo, silenciados pelo poder econômico e pelas formas culturais eurocêntricas edificadoras da servidão e do extermínio.

A democratização da “esfera pública”, melhor seria dizer das práticas comunitárias pluralistas emancipatórias insurgentes, pode ser atingida pelo pluralismo jurídico comu-nitário participativo, em que os novos sujeitos coletivos plurais e mesmo os movimentos sociais tradicionais configurarão um direito calcado no ideário da democratização direta e participativa orientada pelo controle sócio-jurídico comprometido com a justiça social e ambiental; possibilitadora da efetividade de novas formas sociais, jurídicas e epistemo-lógicas voltadas para uma consolidação não antropocêntrica dos direitos humanos rom-pendo com a cultura jurídica dogmática, conservadora e elitista própria de nossa tradição sócio-histórica forjada pelo modelo colonialista eurocêntrico e etnocêntrico, e pelas novas formas de gestão neoliberal multilaterais neocoloniais sequestradoras do tempo e das riquezas de nossa região.

Esta proposta conjunta se pauta por um novo plano de alteridade ético-material que se chocará com a cultura político-jurídica do bloco histórico hegemônico conservador performado nas últimas décadas por um neocolonialismo que busca sempre criar um mo-nismo jurídico do Estado Mínimo na área social; e máximo na esfera repressiva, exposto pelas políticas impostas pelo multilateralismo, preocupado unicamente com o comércio e a segurança jurídica estabelecida em prol de investimentos efetivados pelas transnacionais, que encontra o seu corolário máximo contemporâneo, no Velho Continente abduzido pelo neoliberalismo com seu sacerdócio multilateral a serviço do sistema financeiro e da geopolítica militarizada pelos EUA, ONU e OTAN.

Esta sociabilidade vigiada, delega apenas uma participação residual tímida e tute-lada da população em relação aos processos sociais de controle político e jurídico, que pode ser superada por modelos coletivistas, solidários e comunitários de gestão social, econômica e cultural capazes de organizar demandas e constituir formas “institucionais” democratizadas, e acessíveis a práticas comunitárias plurais capazes de consolidar uma esfera dialógica e participativa de gestão dos povos e não de corporações privatizadoras.

Os novos mundos possíveis poderão constituir novas formas utópicas que em um plano de compreensão e transformação da complexidade poderão sedimentar pela edificação do Princípio Esperança, a conjugação de novas formas econômicas e jurídicas plurais, a caminho do plano utopístico da autogestão jurídica e econômica, gerando a autonomia coletiva de grupos, até hoje vitimados pela exploração colonialista e neocolo-nialista do capital, sem incorrer nos vícios do neoliberalismo com suas reformas visando um Estado mínimo para as oligarquias beneficiadas pela financeirização econômica.

Referências

ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de & Braga, Ricardo Peake (coord.) Cooperativas à luz do Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

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PLURALISMO JURÍDICO E O DIREITO INDÍGENA NA AMÉRICA LATINA: UMA PROPOSTA DE EMENDA

CONSTITUCIONAL NO BRASILThais Luzia Colaço1

Introdução

O presente artigo2 trata da existência de fato de um pluralismo jurídico na América Lati-na, reconhecido ou não pelos estados, por meio da manifestação do direito indígena, que mesmo recebendo forte interferência cultural ao longo dos anos, sobreviveu no âmbito das populações remanescentes, o qual deve ser respeitado e reconhecido pelos estados latino-americanos para manutenção da identidade cultural, dignidade e autodeterminação dos povos indígenas sob a perspectiva do pluralismo jurídico.

Define o que é o direito indígena consuetudinário e o que significa pluralismo ju-rídico. Se refere ao reconhecimento constitucional do direito indígena pelos países latino-americanos, sob o prisma do pluralismo jurídico. Faz menção aos problemas que surgiram no confronto entre os interesses dos estados com a aplicação desta legislação que concede a jurisdição indígena.

Faz uma análise do reconhecimento do direito indígena no Brasil, da ausência na Constituição Federal de 1988 da afirmação de um estado plurinacional, sem estabelcer um estado pluralista jurídico, respeitando o direito e a jurisdição indígena. Apresentando uma proposta de emenda constitucional com o intuito de aprimamento e atualização destes direitos conforme o que já vem acontecendo em alguns países latino-americanos.

Formula uma proposta de emenda à Constituição da República Federativa do Bra-sil com relação aos direitos indígenas, acompanhando as novas tendências da América Latina no que se refere ao reconhecimento do pluralismo jurídico e ao direito indígena.

1 Pós-Doutora em Direitos Indígenas. Doutora em Direito. Mestre em História. Graduada em História e Direito. Professora de Direito (Graduação e Pós-Graduação) da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica/GPAJU da UFSC.2 Este trabalho é fruto de parte do estágio de pós-doutorado no exterior em Direito (com bolsa de pesquisa financiada pela CAPES), na Universidade de Sevilha, sob a supervisão do Dr. Barto-lomé Clavero Salvador, cujo objetivo foi desenvolver pesquisa na área da Antropologia Jurídica, de Direito Comparado, dos Direitos Indígenas, dando continuidade ao projeto “Direitos Indígenas no Âmbito Latino-Americano sob o Olhar da Antropologia Jurídica”.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina80

1. O pluralismo jurídico e o direito indígena

Na América Latina o pluralismo jurídico sempre existiu mediante a manifestação do direi-to indígena desde a época colonial até os nossos dias, sendo aceito ou não pelo estado.

Porém, desde o primeiro contato os europeus não entenderam e não respeitaram as diferenças entre o direito ocidental e o direito consuetudinário dos povos indígenas, fundamentado, basicamente na responsabilidade coletiva, no sistema da reciprocidade e da solidariedade, priorizando os interesses coletivos sobre os individuais. Isso vai aparecer como algo antagônico, totalmente diverso da sociedade burguesa individualista ocidental.3

Entende-se o direito consuetudinário por um conjunto de normas e regras de comportamento e convivência social que colaboram para a integridade de uma determi-nada sociedade, inclusive com a manutenção da ordem e a solução dos conflitos internos, contando com um sistema de sanções para quem violar as regras. A origem destas normas e regras que lhes dão legitimidade ante a população e que lhes mantêm como um sistema coerente na maioria das comunidades indígenas está no “sistema de parentesco, nas con-cepções religiosas e no vínculo social da comunidade com a terra”.4

As normas dos direitos indígenas podem ser verificadas quando: determinada con-duta é reiterada; existe pressão social para que haja permanência desta conduta; há sanção contra indivíduo que tenha atitude contrária a esta conduta; há convicção de que aquela conduta deve ser seguida e que a mesma deve servir de modelo para todos.5

O direito dos povos indígenas não está codificado em nenhum lugar; não é unifi-cado, pois seria praticamente impossível falar de um só direito diante da diversidade de grupos étnicos indígenas no continente latino-americano. Algumas legislações nacionais fazem menção aos “usos e costumes” das populações indígenas, mas normalmente não são definidos em códigos e leis e ignorados na aplicação da lei.6

O direito indígena difere do sistema jurídico estatal, é “múltiplo, complexo e his-tórico” e varia conforme os padrões culturais de cada etnia, esta diversidade deve ser reconhecida pelas “novas definições do direito positivo [...] assim como de seus órgãos aplicadores dos ditos sistemas de direitos.”7

Preservar e manter o direito consuetudinário indígena é muito importante, e se-gundo Stavenhagen “constitui um dos elementos de preservação e reprodução das cultu-

3 COLAÇO, Thais Luzia. “Incapacidade” indígena: tutela religiosa e violação do direito gua-rani nas missões jesuíticas. Curitiba: Juruá, 2000. p.124 STAVENHAGEN, Rodolfo. Derecho indígena y derechos humanos en América Latina. México: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1988. p. 99.5 LÁPOZ BÁRCENAS, Francisco. Autonomía y derechos indígenas en México. México: CONACULTA, 2002. p. 46.6 STAVENHAGEN, op. cit., loc. cit.7 DURAND ALCÁNTARA, Carlos H. La costumbre jurídica como sistema de derecho. In: DURAND ALCÁNTARA, Carlos H.; et al. (Coord.). Hacia una fundamentación teórica de la costumbre jurídica índia. México: Universidad Chapingo, 2000. p. 18.

Pluralismo jurídico e o direito indígena na América Latina 81

ras indígenas no continente. Pelo contrário, seu desaparecimento, contribui, por sua vez, a assimilação e ao etnocídio dos povos indígenas.”8

Se reconhecendo os direitos políticos e a competência das autoridades indígenas para “administrar a justiça por meio de seus sistemas normativos próprios ao direito in-dígena,” também se está reconhecendo os seus próprios sistemas jurídicos.9 As organiza-ções e movimentos indígenas equatorianos definem o seu direito valorizando-o perante o sistema jurídico estatal:

Para nós os índios, o Direito indígena é um direito vivo, dinâmico, não escrito, no qual através do seu conjunto de normas regula os mais diversos aspectos e condutas de convívio comunitário. A diferença do que sucede com a legislação oficial, a legislação indígena é conhecida por todo o povo, é dizer, existe uma socialização do conhecimento do sistema legal, uma participação direta na administração da justiça, nos sistemas de reabilitação, que garantem o conviver harmônico.10

O direito positivo provem de leis escritas e de uma autoridade constituída pelo Estado; e o direito consuetudinário é um conjunto de costumes conhecidos e aceitos por toda a comunidade, independente da interferência do Estado. O direito consuetudinário indígena tem um caráter coletivista, deriva da visão de mundo de que o homem não é o centro do universo e faz parte da natureza juntamente com os demais seres vivos, e seus valores são transmitidos por gerações. A missão deste direito é manter a harmonia entre todos os elementos ou forças.

O direito indígena possui regras e procedimentos próprios que por intermédio das suas autoridades regulam as suas comunidades conforme os seus valores, necessidades e visão de mundo. A sua justiça busca a paz e a harmonia social, a integração e a coesão do grupo, a reabilitação e a reinserção à sociedade da pessoa que cometeu o delito, a repara-ção da vítima, a reconciliação das partes. É célere, é eficiente, é gratuita, é oral, é justa, não castiga o culpado com a privação da liberdade para que o indivíduo que cometeu o ato ilícito possa reparar o dano que causou.

O pluralismo jurídico foi uma situação concreta na América Latina desde as ori-gens até os dias de hoje, antes da colonização já existia uma diversidade de sistemas de direito devida à diversidade étnica na região, durante o período colonial e com a indepen-dência e a formação dos estados nacionais, esta região foi marcada pela polarização: de um lado o direito oficial, fundamentado numa só cultura, a europeia; e de outro lado uma

8 CABEDO MALLOL, Vicente. Constitucionalismo y derecho indígena en América Lati-na. Valencia: Editorial LA UPV, 2004. p. 54.9 LÁPOZ BÁRCENAS, 2002, op. cit.10 CONAIE apud CABEDO MALLOL, Id., p. 48.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina82

sociedade juridicamente pluralista, devido à presença de povos indígenas e de comunida-des afro-americanas.

A partir do século XVI a América subitamente passa a fazer do mundo ocidental, quando foram criados os estados modernos sob o ideal de “um poder soberano, único, uma sociedade homogênea, composta de indivíduos submetidos a um só regime jurídico e pelo mesmo com iguais direitos para todos”. No qual “todos cediam parte de sua liber-dade a favor do Estado que se formava em troca de determinados direitos fundamentais”, tais como “ a vida, a igualdade, a liberdade e a segurança jurídica”.11

Os estados latino-americanos usaram de modelo o direito europeu moderno, que representava o produto de uma sociedade homogênea, a nação, com um único sistema jurídico aplicável a todos os cidadãos, criado e executado pelo estado. Assim, as formas de resolução de conflitos utilizadas pelos indígenas, o seu direito consuetudinário, era con-siderado um costume que deveria ser combatido para que eles assimilassem a sociedade nacional.12

No entanto, tal ideal não correspondeu com a realidade, pois a maioria dos estados ainda não são compostos por uma única nação, e sim por várias nações, diversos povos, muitas etnias. Os estados nacionais trazem consigo desde a sua formação uma contradição entre o poder estatal, com a imposição da unidade e da uniformidade, contra a diversidade e a pluralidade dos povos que a compõe e lutam pela manutenção da sua identidade. A solução que os estados encontraram para resolver este problema variou de acordo com a época e o lugar, na maioria das vezes efetivou-se pela imposição e de forma violenta. 13

As constituições de meados do século XIX ignoram os povos indígenas, suas reali-dades e aspirações, não reconhecendo sua autodeterminação, suas comunidades e formas de governo, nem aceitando a existência de seus territórios independentes, usurpando suas ter-ras e riquezas naturais, e não honrando os tratados anteriores com as nações indígenas.14

Desta forma, a “negação do direito do colonizado começa pela afirmação do direi-to do colonizador; é de um direito coletivo por um direito individual”. Porém, ainda “se admite um direito coletivo, público, da instituição política, que é poder, o estado, que faz parte da cultura constitucional.”15

11 LÁPOZ BÁRCENAS, Id. p. 33.12 CÓNDOR CHUQUIRUNA, Eddie. (Coord.). Estado de la relación entre justicia indígena y justicia estatal en los países andinos: estudio de casos en Colombia, Perú, Ecuador y Bolivia. Lima: Comisión Andina de Juristas, 2009.13 Alguns optaram pelo extermínio, como fizeram nos Estados Unidos com relação às nações indígenas; ou reduziram a guetos as populações sobreviventes ao genocídio nos Estados Unidos, Canadá e na Europa os judeus durante a Segunda Guerra; a deportação do território como aconte-ceu no período do stalinismo na União Soviética; durante a política de integração forçada da cultura dominante na América Latina durante o século XX. Cf. Lapóz Bárcenaz, Ibid., p. 34.14 CLAVERO, Bartolomé. Geografía jurídica de América Latina: pueblos indígenas entre cons-tituiciones mestizas. México: Siglo Veintiuno, 2008. p. 23, 26.15 CLAVERO, Bartolomé. Derecho indígena y cultura constitucional en América. Mexico: Siglo Veintiuno, 1994. p. 21, 27.

Pluralismo jurídico e o direito indígena na América Latina 83

2. O reconhecimento do direito indígena e do pluralismo jurídico nas novas constituições latino-americanas

Na última década do século XX e início do século XXI, aparece a perspectiva pluralista. As reformas constitucionais progressistas dos países andinos reconhecem a diversidade cultural, os direitos coletivos dos povos indígenas a autodeterminação e a jurisdição in-dígena.

O pluralismo jurídico “se refere à coexistência de sistemas jurídicos diversos dentro de um mesmo campo social”, buscando “uma correta e diligente administração da justiça de acordo com a realidade cultural de quem a demanda”. Assim, “a pluriculturalidade ou diversidade cultural não é outra coisa que o reconhecimento jurídico expresso num país onde convivem distintos povos.” 16

Teoricamente o pluralismo jurídico17 busca resolver o problema do monismo ju-rídico, o princípio de que existe um único sistema de direito para todos18, influenciado pelo modelo positivista ocidental, que rege o estado moderno uninacional e monocultural e seu poder normativo. “Ele inferioriza e suprime as diferenças, estabelecendo uma só forma de estar, ser, saber, e viver” sendo o fundamento “para a manutenção e reprodução da modernidade/colonialidade”.

Neste contexto, atualmente cada vez mais se aceita a existência de práticas de sis-temas de direitos de justiças e autoridades que não correspondem ao modelo do direito positivista ocidental. O reconhecimento do direito consuetudinário indígena nas constituições latino-americanas ou nos tratados e convênios internacionais abriu a pos-

16 MASAPANTA GALLEGOS, Christian. El derecho indígena en el contexto constitucional ecuatoriano: entre la exigibilidad de derechos y el reconocimiento del pluralismo jurídico. In: ESPI-NOSA GALLGOS-ANDA, Carlos; CAICEDO TAIPA, Danilo. (Edit.). Derechos ancestrales: justicia en contextos plurinacionales. Quito: V&M Gráficas, 2009. p. 414, 416.17 O pluralismo jurídico é a coexistência de mais de um sistema jurídico no mesmo espaço terri-torial. Inicialmente os estudos sobre o mesmo se deram na década de setenta, mais voltado para as sociedades industrializadas. O que tem levado alguns autores a considerar diversos “pluralismos”, como: a) Pluralismo em sociedades que vivem em situação colonial. b) Pluralismo dentro da “For-mação Social Capitalista”. c) Pluralismo com presença de várias etnias ou povos. d) Pluralismo em sociedades cuja complexidade permite a coexistência de submundos e/ou sub-culturas. e) Pluralis-mo em períodos de transição. Cf. Cabedo Mallol, Ibid., p. 11-12.18 Wolkmer propõe um pluralismo jurídico comunitário-participativo, legitimado por novos su-jeitos coletivos, implementado por um sistema democrático e descentralizado, num espaço público participativo, “o desenvolvimento pedagógico para uma ética concreta da alteridade e a consoli-dação de processos conducentes a uma racionalidade emancipatória”. Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Alfa Omega. 2001. p. xvi-xxi

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina84

sibilidade legítima da existência de um pluralismo jurídico, em termos de igualdade em diversas ordens normativas.19

Ao reconhecer o pluralismo jurídico as constituições latino-americanas reconhe-cem “os sistemas jurídicos indígenas” significando o direito ao próprio direito, que é a livre determinação, a considerar o direito consuetudinário indígena como um sistema jurídico e sua inter-relação, articulação e coordenação com o direito estatal.”20

O ideal seria que as constituições reconheçam as autoridades indígenas com seu próprio direito, “em seu marco a faculdade de exercer funções de justiça, aplicando nor-mas e procedimentos singulares para a solução dos conflitos internos, de conformida-de com seus costumes o direito consuetudinário”. No entanto, surge a problemática de “como resolver a tensão existente entre diversidade e unidade, entre projetos econômicos diferentes, entre respeito étnico e direitos humanos”.21

3. O reconhecimento do pluralismo jurídico e do direito indígena perante o estado

Ainda hoje, constitucionalmente “o espaço indígena é uma zona de sombras”, no qual os antropólogos se mostram mais acessíveis do que os juristas. Desprezando as caracte-rísticas culturais, o “direito segue com suas presunções individualistas e universalistas.” A cultura constitucional, continua valorizando o “indivíduo às expensas da comunidade, e da destruição deste em benefício do estado.”22

Existe uma contradição com relação às propostas do estado referentes ao reconhe-cimento dos direitos indígenas e o diálogo com estes povos, pois o estado continua tra-tando “de buscar formas de negociação (de força) e ceder em reformas jurídicas que não alterem o atual estado de direito, ou seja, fazer trocas para que nada mude e se mantenha o status quo.” Ou seja, se mantêm “o estado de dominação e exploração sobre os povos indígenas, sistema que persistiu desde a conquista.”23

19 COLAÇO, Thais Luzia; DAMAZIO, Eloise da Silveira Petter. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: FUNJAB, 2012. p. 107.20 CABEDO MALLOL, Ibid., p. 88-9.21 FLORES GIMÉNEZ, Fernando. Acerca de la constitucionalización y funcionamiento de la justicia indígena. In: GIRAUDO, Laura. (Ed.). Derechos, costumbres y jurisdicciones indíge-nas en la América Latina contemporânea. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucio-nales, 2008. p. 282, 285.22 CLAVERO, 1994, Id. p. 115, 155.23 RENTERÍA, Miguel Ánguel. El derecho de los pueblos índios versus derecho del Estado. In: DURAND ALCÁNTARA, Carlos H.; et al. (Coord.). Hacia una fundamentación teórica de la costumbre jurídica índia. México: Universidad Chapingo, 2000. p. 80.

Pluralismo jurídico e o direito indígena na América Latina 85

Walsh24 adverte que a aceitação oficial de mais de um direito não garante que o direito positivo estatal não se sobreponha aos demais e a sua superioridade fique eviden-ciada, chamando isto de “pluralismo jurídico subordinado”, tratando-se de um reconhe-cimento inferior ou “especial” com relação ao sistema nacional, sem questionar efetiva-mente as relações coloniais. 25

Na relação do direito indígena com o direito estatal “se combinam resistência e adaptação mútuas (um sincretismo jurídico)”. A aplicação da “lei e do costume por parte dos povos indígenas. [...] segundo sua própria conveniência. [...] Diferem a lógica e a racio-nalidade os sistemas jurídicos indígenas e estatal”. O acesso a justiça estatal é dificultosa, pois a administração de justiça muitas vezes está longe das comunidades indígenas , que pode ser corrupta e que é custosa.26

Surge o problema de articulação, coordenação e harmonização do sistema jurídico nacional com o reconhecimento do direito indígena, com a implantação da jurisdição indí-gena, através do respeito da diversidade étnica e cultural, que terá seus limites na violação dos direitos humanos por parte das autoridades indígenas, e cada país deverá ter o seu órgão responsável por esta função.27

Com referência ao confronto, “a principal conseqüência está na criminalização das práticas judiciais dos povos indígenas”, na função jurisdicional que penaliza os procedi-mentos das culturas jurídicas indígenas. O conflito das “definições político-ideológico de cidadania”, que traz embates “permanentes entre direitos individuais e direitos coletivos, soberania política estatal e autonomia dos povos indígenas, e graus assimétricos de reco-nhecimento normativo da livre determinação dos povos indígenas.”28

A possibilidade de se reconhecer o “Direito indígena como autêntico Direito traz problemas singulares” que “carecem de respostas claras e, todavia menos, universalmente válidas”. A identidade destes povos também se manifesta na “especialidade do Direito Indígena que deriva, entre outras coisas, de sua conduta do direito consuetudinário, tradi-cional, conservado e respeitado por uma comunidade ou um povo que o percebe como ordem própria”. A consideração pelas novas constituições latino-americanas “como Di-reito vigente e aplicável”, reconhece a “sua importância não só como elemento integrante

24 WALSH, Catherine. Interculturalidad, estado, sociedade: luchas (de)coloniales de nuestra épo-ca. Quito – Equador: Universidad Andina Simón Bolívar/Ediciones Abya-Ayala, 2009. p. 173-175.25 “[...] tanto o discurso dos direitos humanos, como dos direitos indígenas e do pluralismo jurídico têm múltiplas faces e significados, tanto podem ser defendidos a partir de uma pretensa universalidade do conhecimento, como também forma de resistência, por meio dos saberes locais e pluriversais.” Cf. COLAÇO; DAMAZIO, ibid. p. 109. 26 CABEDO MALLOL, Ibid., p. 77, 79, 282, 283.27 Ibid., p. 284.28 BELTRÃO, Jane Felipe; OLIVEIRA, Assis da Costa. Constitucionalismo cultural e povos indígenas: outra cidadania é possível? Anais do XVIII Congresso do CONPEDI. São Paulo, 2009. p. 10977.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina86

da própria cultura e distinta de uma comunidade” mas também como um componente que consolida, e como um instrumento de preservação desta mesma comunidade.29

Nos diversos estados latino-americanos a jurisdição indígena está em processo de reconhecimento e de adaptação. Mas de acordo com Giménez, existem alguns elementos básicos que são válidos para todos, como os que estão descritos na jurisprudência colom-biana, tais como:

1) a possibilidade de que existam autoridades judiciais próprias dos povos indígenas; 2) a autoridade destes de estabelecer normas e procedimentos próprios; 3) a sujeição das ditas jurisdição e normas a Constituição e a lei; 4) a competência do legislador para determinar a forma de coordenação da jurisdição indígena com o sistema judicial nacional.30

Perante o conflito entre o reconhecimento dos direitos humanos indígenas que re-quer do estado uma tutela correspondente, e “o princípio da diversidade étnica e cultural, que obriga o poder público a preservar o direito a diferença e a manutenção da própria idiossincrasia do grupo humano aborígene”, devem ser preservados “os direitos coletivos de determinados grupos humanos residentes em seu território”, sendo interpretadas “as garantias individuais dentro de um enfoque mais coletivo e social, com uma dimensão supra-individual distinta da operada na cultura ocidental”. Mantendo a tolerância, o diá-logo intercultural e o “consenso entre o universal e o particular (a cosmovisão ocidental e oficial, e a indígena)”.31

Vários motivos fazem com que os governos dos países não aceitem integralmente o sistema jurídico dos povos indígenas:

Sem dúvida, uma ordem jurídica estatal ainda está longe de integrar a ordem jurídica interna dos diferentes povos que conformam seu mosaico demográfico. O assunto é reconhecer plenamente esse direito alternativo, isto é, das ordens e sistemas jurídicos não positivos como parte formal estatal. Tão simples que parece, não é de todo, pois os governos dos países com presença étnica temem as prováveis contradições que uma ordem jurídica consuetudinária possa chegar a ter com a ordem jurídica estatal. [...] se teme a concessão de concessão de certas formas de autonomia [...] avançar na obtenção de posições políticas com seus respectivos efeitos no social e no econômico. [...] Queira ou não, é

29 AHUMADA RUIZ, Marian. Derecho y constitucionalismo democrático: uma mirada crítica. In: GIRAUDO, Laura. (Ed.). Derechos, costumbres y jurisdicciones indígenas en la América Latina contemporânea. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008. p. 233-234.30 FLORES GIMÉNEZ, Ibid., p. 290.31 Ibid., p. 206-208.

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uma diminuição do poder do governo, pois é este que tutela os povos étnicos em sua própria visão de como regulá-los e controlá-los.32

4. O reconhecimento do direito indígena no Brasil

No Brasil, a política indigenista integracionista e assimilacionista vigorou até a Constitui-ção de 1988, porém é feita menção ao direito indígena consuetudinário no Estatuto do Índio, Lei 6.001 de 1973, legislação ainda em vigor, antiga e desatualizada.

Com relação ao âmbito civil, se respeita costumes e tradições (suas relações de fa-mília, ordem de sucessão, regime de propriedade, e em geral os negócios entre os índios), no entanto aos índios integrados se aplica a legislação comum. Assim como, todos os indígenas podem optar pela aplicação do direito do estado, conforme a Convenção 107 da OIT.

Referente à legislação penal há a possibilidade de respeito ao direito consuetudiná-rio por parte do estado, podendo exercer sua própria jurisdição quando tratar-se de delito de pequeno porte, desde que os castigos aplicados pelos líderes indígenas não tenham “caráter cruel e infamante”, proibida em qualquer situação a pena de morte.

Quando o julgamento for para a esfera do estado, o Código Penal Brasileiro prevê uma pena atenuada de acordo com o grau de integração, e dentro do possível a pena deve-rá ser cumprida em semiliberdade, o mais próximo da habitação do condenado em órgão de assistência do condenado, conforme os artigos 56 e 57 da Lei N. 6.001/73.

Com relação à responsabilidade penal, a legislação atual determina que os índios devem ser julgados conforme sua cultura, e o ato criminoso cometido por eles deve ser analisado sob a perspectiva do direito conforme a sua cultura. O índio que praticar crime em virtude de seus valores culturais será isento de pena, ou se for capaz de compreender a sociedade “não índia” será responsabilizado como qualquer outro cidadão brasileiro.

Hoje, os indígenas têm direito a terem intérpretes em sua própria língua nos in-quéritos e processos penais. A nova proposta do projeto do Estatuto das Sociedades In-dígenas de 1991, passa a exigir um laudo antropológico pelo juiz, para que avalie o modo como um ato criminoso é encarado de acordo com a cultura de quem o praticou. O laudo já é pedido em alguns casos, mas não é uma exigência legal.

Atualmente os juízes não seguem uma regra, o que tem evidenciado o grande nú-mero de demanda de ações judiciais pelos índios por produção de laudos periciais para garantir os direitos socioculturais, evitando decisões “baseadas em uma visão etnocêntrica

32 CHACÓN HERNÁNDEZ, David. Pueblos indígenas: de la integración política a la integra-ción jurídica. In: DURAND ALCÁNTARA, Carlos H.; et al. (Coord.). Hacia una fundamenta-ción teórica de la costumbre jurídica índia. México: Universidad Chapingo, 2000. p. 92.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina88

que toma as próprias categorias ocidentais de compreensão do mundo como parâmetro de julgamento para todos os demais contextos sociais e culturais”.33

Os juristas normalmente não tinham na sua formação o conhecimento da diversi-dade cultural,34 “pela redução do Direito à lei e pela consideração do costume enquanto fonte terciária do Direito, de eficácia limitada”.35

Apesar do Art. 231 da Constituição Brasileira de 1998, referir-se ao respeito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições indígenas, ainda não reconhece legitimamente o direito consuetudinário indígena dos diversos grupos étnicos brasileiros, sendo insuficiente para fundamentar as bases de um pluralismo jurídico respeitável pelo estado, pois não faz referência ao direito e à jurisdição indígena.36

Sendo necessário que “tal reconhecimento do Direito indígena seja explícito e de que se esclareça ao mesmo texto constitucional, por sua vez, que também se reconhece o direito dos povos indígenas a exercer sua própria jurisdição fundada neste Direito.”37

Barié refere-se a complexidade de tratar da justiça indígena e a possibilidade de se conceber constitucionalmente o direito indígena como um direito positivo:

Posto que a noção de justiça indígena é um assunto sumamente complexo, caberia estabelecer a escala constitucional ao acoplamento entre o direito positivo brasileiro e o direito consuetudinário, tal como o recomenda, a Convenção 169 da OIT em seus artigos 8, 9 e 10, [...] Algo parecido ocorre com o direito de dar-se suas próprias leis internas (autonomia), faculdade que a nova Constituição tampouco lhes concede.[...] limita o reconhecimento dos elementos autogestão dos indígenas a um âmbito de hábitos e práticas; a capacidade de definir estes costumes e transferi-las da oralidade a escrita, sem embargo, ficará em mãos de especialistas brancos (antropólogos); a Constituição brasileira não concebe o direito indígena como um direito propriamente positivo.38

Cabe ressaltar que a realidade brasileira quanto aos povos indígenas que é bem diferente dos demais países latino-americanos, quantitativamente tem uma pequena popu-lação, equivalente a 0,47 % da população brasileira, cerca de 896,9 mil pessoas; no entanto,

33 CARREIRA, Eliane Amorim. Pluralismo jurídico. Laudos antropológicos: contextos e pers-pectivas. Ministério Público Federal: Brasília, 2008.34 Acreditamos que aos poucos esta postura será modificada com a obrigatoriedade da introdu-ção do conteúdo de Antropologia Jurídica nos currículos dos cursos de graduação em Direito. 35 CARREIRA, Eliane Amorim; ARAúJO, Ana Valéria et. ali. (Org.) Povos indígenas e a lei dos “brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, 2006. 36 Atualmente os debates estão mais centrados na questão do reconhecimento e demarcação das terras indígenas.37 CABEDO MALLOL, Ibid., p. 280.38 BARIÉ GREGOR, Cletus. Pueblos indígenas y derechos constitucionales en América Latina: um panorama. México: Instituto Indigenista Interamericano, 2000. p. 202, 203.

Pluralismo jurídico e o direito indígena na América Latina 89

possuí a maior diversidade cultural, 305 etnias que falam 274 idiomas reconhecidos39, sendo que ainda existem grupos isoladas ou semi-isoladas do convívio com a sociedade nacional e com outros grupos indígenas.40 Cada grupo étnico tem a sua forma de organi-zação social e sua maneira própria de materializar o seu direito à autodeterminação.

Conclusão

Concluindo este trabalho, fundamentados na legislação indigenista internacional, nas no-vas constituições e na realidade latino-americana da aplicação destes direitos, verificamos de que maneira o reconhecimento do direito indígena, sob a égide do pluralismo jurídico, poderá ser incorporado à Constitucional Brasileira, atualizando-a e aprimorando-a.

O direito consuetudinário indígena não poderá ser codificado porque não é unifi-cado, a sua positivação é praticamente impossível devido à diversidade de sistemas jurídi-cos indígenas existentes que varia conforme os padrões culturais de cada etnia.

Deve-se evitar a falta de preparo dos operadores do direito pelo preconceito e pelo desconhecimento do direito consuetudinário indígena. A própria legislação deve prever a obrigatoriedade da inclusão na formação dos juristas de disciplinas referentes ao direito indígena, e a reeducação do aparato burocrático do estado quanto ao assunto.

Garantir o reconhecimento desta pluralidade jurídica legalmente perante a consti-tuição por meio de uma emenda constitucional, com a criação de uma de legislação com-plementar, que deverá determinar os mecanismos de coordenação, cooperação e comple-mentação entre estas jurisdições, elaborada por uma comissão composta por antropólo-gos, juristas e a maioria por representantes dos diversos povos indígenas que vivem em território brasileiro, que normatize a sua operacionalização.

Reconhecer a jurisdição indígena em igualdade hierárquica com a justiça ordinária, possibilitando que a mesma seja exercida por suas autoridades, aplicando seus princípios, valores, normas e procedimentos, proibindo o duplo julgamento, pela jurisdição indígena e pela jurisdição ordinária da mesma infração.

Permitir a escolha dos indígenas a qual jurisdição querem estar submetidos, a ordinária ou a indígena.

39 Estima-se que antes da chegada dos portugueses, habitavam o atual território brasileiro cerca de 5.600.000 pessoas que falavam aproximadamente 1.300 línguas. (FUNAI). Atualmente, den-tre os 305 povos, as etnias mais populosas são: Tikúna (46 mil), Guarani Kaiowá (43,4 mil), Kain-gang (37,4 mil), Makuxí (28,9 mil), Terena (28,8 mil) e Tenetehara (24,4 mil). Vivendo em zo-nas rurais 63,8%, e em zonas urbanas 36,2%. Os 896,9 mil habitantes estão distribuídos por re-gião da seguinte forma: Norte 38,2%, Nordeste 25,9%, Centro-Oeste 16%, Sudeste 11,1% e Sul 8,8%. Tendo 505 terras reconhecidas, proporcionalmente a 12,5% do território brasilei-ro. Cf. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo de 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatist ica/população/censo2010/caracetrist icas _gerais_indigenas >. Acesso em: 14/03/2013.40 IBGE, Ibid.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina90

Assegurar o isolamento das comunidades isoladas ou semi-isoladas para que não tenham contato com a sociedade nacional, respeitando a sua vontade, não interferindo na sua forma de organização social e no seu direito consuetudinário.

Promover um debate intercultural quanto à questão da submissão da justiça indí-gena à legislação interna, à Constituição e à legislação internacional quanto aos direitos fundamentais e à universalidade dos direitos humanos.

A Constituição Federal de 1988 em seus “Princípios Fundamentais” não faz re-ferência ao estado plurinacional, nem ao pluralismo jurídico, e dispõe do Capítulo VIII - “Dos Índios”, que possui dois artigos que tratam na sua maioria sobre as terras indígenas e a exploração de seus recursos naturais, mas não explicita o reconhecimento do direito indígena sob a perspectiva do pluralismo jurídico.

Assim, fazemos a seguinte proposta41 de alteração no texto constitucional dos arti-gos 1º. e 231º., sendo que a sua regulamentação siga as orientações acima mencionadas:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito Plurinacional e tem como fundamentos: [...]V - o pluralismo político e jurídico. [...]Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, direito costumeiro e jurisdição, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. É garantido o zelo e a proteção dos grupos indígenas isolados e semi-isolados para manutenção de seu direito consuetudinário e a sua autodeterminação.[...] § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras sem a realização da consulta e seu consentimento salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

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41 As propostas de alteração estão em negrito e sublinhadas.

Pluralismo jurídico e o direito indígena na América Latina 91

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PARTE IICONSTITUCIONALISMO, CRÍTICA JURÍDICA

Y FILOSOFÍA DE LA LIBERACIÓN

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PLURALISMO JURÍDICO, MOVIMENTOS SOCIAIS EPROCESSOS DE LUTAS DESDE AMÉRICA LATINA

Antonio Carlos Wolkmer1

Introdução

Primeiramente há que realçar que uma cultura jurídica antiformalista, descolonizadora e pluralista, fundada nos valores expressos da participação da sociedade e nas reivindicações da comunidade, está necessariamente vinculada aos critérios de outra legitimidade. Tal condição passa pela emergência de novos sujeitos sociais, de suas necessidades, reivindi-cações e lutas por novos direitos. Por conseguinte, é fundamental destacar, na presente contemporaneidade, as formas plurais de estratégicas de produção e aplicação do Direito, porém, desde um direito construído a partir da sociedade.

Antes de tudo, para se constituir uma cultura político-jurídica mais democrática, marcada pelo pluralismo, pela descolonização e pela liberação, faz-se necessário, refletir e forjar um pensamento crítico, construído a partir da práxis das sociedades emergentes, capaz não somente de viabilizar novos conceitos, categorias, representações e instituições sociais, como também repensar as fontes do direito, tomando em conta os critérios da pluralidade e interculturalidade. Assim, inicialmente há que discorrer sobre a construção de um conhecimento crítico, como estratégia contra-hegemônica, para combater a cul-tura globalizada, neoliberal, eminentemente tecno-formalista e colonizadora. Discute-se a questão da razão de se pensar a crítica em geral e o papel pedagógico de uma teoria crítica específica, no contexto latino-americano, onde se vive a chamada crise da moder-nidade monocultural e capitalista. Como se justifica buscar um pensamento crítico que leve a instrumentalizar formas de conscientização, resistência e emancipação? No segundo

1 Professor Titular da Pós-graduação em Direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Cata-rina-Brasil). Doutor em Direito. Tem participado, como professor colaborador, de eventos acadê-micos na UNAM e no Mestrado em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade San Luis Potosí (México), no Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de Oñati (Espanha), no ILSA, nas Universidades de Rosario e Nacional de Colombia (Bogotá, Colômbia), na Pós-Gradu-ação em Antropología do Direito, da Universidade de Chile, Faculdades de Direito da Universidade de Buenos Aires e Univ. de la Plata (Argentina). Desde 2000, é professor convidado do Curso de Doutorado em Direitos Humanos na Universidade Pablo de Olavide (Sevilha-Espanha). Autor de diversos livros, dentre os quais: Pluralismo Jurídico – Fundamentos de una Nueva Cultura del Derecho. Sevilla: MAD, 2006: ____. Introducción al Pensamiento Jurídico Crítico. 2ed. Bogo-tá: ILSA; México: Facultad de Derecho de la UASLP, 2006; Historia de las Ideas Juridicas: una sintesis.México: Porrúa, 2006.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina96

momento,destaca-se a importância da crítica liberadora para o contexto de uma filosofia política e jurídica em termos da América Latina. Qual é o sentido, presentemente, de uma filosofia crítica descolonizadora, na política e no Direito? Como se justifica isso. Importa ressaltar que toda a construção crítica no campo da Política e do Direito deve buscar, sem dúvida, o diagnóstico e a superação das patologias que cercam os destituídos, as vítimas, os núcleos subalternos e os excluídos. Além disso, a concepção da filosofia crítica no Direito vem buscar mais do que nunca a defesa dos princípios da vida humana com dignidade e com justiça. Sem isso, não há como falar em filosofia transformadora ou em qualquer outra forma de produção epistemológica. Tudo é devaneio e mitificação. O fundamento essencial de todo e qualquer pensar racional é a vida humana e sua plena realização. Por último, observando a resposta do que seja um pensamento crítico, quais seriam os pressupostos de legitimação para este paradigma crítico descolonizador no Di-reito. Ora, a questão está em avançar em torno de dois eixos nucleares. A importância e o resgate do sujeito na história, bem como seu processo de luta pela justa satisfação de suas necessidades. É o sujeito histórico como sujeito coletivo subalterno, representado pelos movimentos sociais, pelos corpos intermediários e pelas diversos atores como as popu-lações indígenas, os afrodescendentes, camponeses e a multiplicidade de minorias. É a retomada do sujeito diante de filosofias que negam o sujeito, que entendem que a solução é o livre mercado ou o Estado. Cabe apostar e repensar uma episteme jurídica liberadora a partir do sujeito em luta. E o sujeito subalterno e excluído que busca a satisfação justa das suas necessidades em um outro modo de vida, e por uma convivência, que hoje se chama, na cosmovisão andina, o “buen vivir”.

1. Horizontes da modernidade jurídica capitalista, sujeitos emergentes em luta e novas epistemes

Para fazer frente a hegemonia globalizadora do capital e dos processos universalistas do mundo ocidental, é necessário lutar por um projeto social e político emancipatório, capaz de reordenar as relações tradicionais entre o Estado e a sociedade civil, entre o universalis-mo ético e o relativismo cultural, entre a razão prática e a filosofia do sujeito, entre as for-mas convencionais de legalidade e experiências não formais de jurisdição. Reescrever um novo modo de vida, estimula a inserção cultural para outras modalidades de convivência interculturais, de relações sociais e regulamentações das práticas emergentes e constituin-tes por lutas sociais. Então o cenário não estará no Estado, nem no mercado, mas sim na sociedade civil e na força do poder comunitário, enquanto novo espaço de convivência, de efetivação da participação, da pluralidade e da interculturalidade. Em sua capacidade geradora, o poder comunitário proporciona aos horizontes institucionais novos valores interculturais, novos procedimentos plurais de prática política e de acesso à justiça, pro-jetando novos atores sociais, como fonte de legitimação do espaço sociopolítico e da constituição emergente de direitos. Assim, diante do surgimento de novas formas de do-

Pluralismo juridico, movimentos sociais e processos de lutas desde America Latina 97

minação e exclusão, produzidas pela globalização do capital e pelo neoliberalismo, que vem afetando substancialmente práticas sociais, formas de representação, de legitimação e de modelos de conhecimento, impõe-se repensar, politicamente o poder da comunidade, o retorno dos sujeitos históricos em luta e a produção alternativa de juridicidade, com base no viés da pluralidade das fontes. Certamente que a constituição de uma cultura jurídica antiformalista e antidogmática , fundada nos valores do poder comunitário e pluralista, está necessariamente vinculada aos critérios também de uma nova legitimidade, de uma legitimidade desde baixo.

Para essa construção de um novo espaço público a partir da força comunitária, como introduzir o discurso conscientizador e liberador da crítica? O discurso crítico des-colonial se justifica nesse mundo universalista do conhecimento e do capital, em que a dis-cussão se faz com relação aos postulados da modernidade, aos seus déficits e promessas não cumpridas2. Pois bem, ganha força o debate sobre o significado e as consequências da Modernidade e sua suposta crise. Mas, o que é Modernidade? Há muitos sentidos. Dir-se-ia que, para além de ser uma representação espacial e temporal da cultura ocidental a partir do século XVII, implica ser um fluxo histórico de tempo; como também pode ser interpretada como uma forma de organização social e política que expressa valores que se universalizaram. Mais atentamente, qual a modernidade que se está projetando. Trata-se da Modernidade eurocêntrica, monocultural, estatista; a Modernidade sistêmica que sufo-cou o mundo da vida. É necessário um projeto de sociedade que permita a reconstituição da vida e da solidariedade e da compreensão intercultural em um novo projeto epistêmico, ético e político.

Diversos pensadores vêm problematizando tais questões, dentre os quais Boaven-tura de S. Santos, para quem, nas últimas décadas, vive-se uma transição paradigmática. Em tal contexto, abre-se o espaço, nessa discussão e nesse vazio epistemológico, para o questionamento e o fracasso das grandes narrativas e dos grandes discursos.

Mas como fica toda essa montagem cultural de cunho eurocêntrico? A cultura moderna centrada hegemonicamente na Europa? Qual sua repercussão em termos de pensar e formular uma episteme crítica, como expressão de transgressão e de ruptura, que venha como produção e dos periféricos dos países pós-coloniais, e que não venha mais unicamente do norte hegemônico e sim do sul marginalizado? É nesse sentido que se coloca a presente proposta, na perspectiva do Sul global. Tenta-se construir uma proposta epistemológica descolonizadora, a partir da realidade histórica periférica latino-americana. De uma estrutura histórica de dependência, que busca a afirmação da própria identidade nacional. Não se está renegando a autoridade dos grandes princípios da tradição, mas se está insurgindo, academicamente, contra esse mimetismo cultural colonizador. Veja-se que a referência na área do Direito, da Filosofia, da Sociologia é sempre das fontes teóricas alienígenas eurocêntricas.

2 Ver, nesse sentido: SANTOS, Boaventura de S. Crítica da Razão Indolente. Contra o des-perdício da Experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2000.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina98

Por que não buscar fontes e fundamentos que trabalham o direito a partir do periférico, do excluído, da realidade concreta? Dito isso, introduziu-se a noção da crítica descolonizadora como instrumental teórico-prático, da crítica como resistência e trans-formação.

2. A função da crítica como conscientização para uma prática política liberadora

Mas, a expressão crítica é dúbia e ampla, tem muitos significados; de qualquer modo, a crí-tica emerge como elaboração instrumental dinâmica, transpõe os limites naturais das teo-rias tradicionais, não se atendo apenas a descrever o que está estabelecido ou a contemplar os fenômenos sociais e reais. Reconhece-se que a crítica pode revelar o esclarecimento, como assinalava Paulo Freire, “aquele conhecimento que não é pragmático, mas que existe num contínuo processo de fazer-se a si próprio”.3 Como um processo histórico, a crítica está identificada ao utópico, ao desmitificador e ao liberador. Entendida a crítica como instrumental pedagógico de conscientização, descolonização e de libertação, a questão que se coloca é: como viabilizá-la na inserção da trajetória de nossas sociedades como as de América Latina?

O desafio está em buscar processos de conhecimento que partam do periférico, do subalterno e da experiência das regiões excluídas e subordinadas ao globalismo neoliberal. Na verdade, recordando Boaventura de S. Santos, um pensamento contra-hegemônico de resistência e emancipação4 que surge de sujeitos negados, transforma-se em manifesta-ções aptas a instrumentalizar a força de uma crítica inconformista e transgressora, no sen-tido de contribuir na desconstrução de velhas práticas colonizadoras de saber e de poder dominantes. A crítica como saber e como prática da libertação deve demonstrar até que ponto os sujeitos estão codificados e moldados pelos determinismos históricos, que nem sempre estão cientes das implicações hegemônicas, das dissimulações opressoras, das fa-lácias ilusórias do mundo objetivo real. O pensamento crítico tem a função pedagógica de provocar a consciência e a ação dos sujeitos sociais em luta, que sofrem as injustiças por parte dos setores dominantes, dos grupos privilegiados e das formas institucionalizadas de violência e de poder, tanto do poder global quanto do poder local.

Certamente que a crítica, como dimensão epistemológica e prática política, tem papel pedagógico transformador, à medida que se torna o instrumental operante ade-quado ao esclarecimento, à resistência e à liberação, respondendo aos interesses e as ne-cessidades de todos aqueles que sofrem qualquer forma de discriminação, exploração e exclusão. De igual modo, para se constituir uma nova cultura marcada pelo pluralismo e pela interculturalidade, há que se por com muita clareza as categorias críticas emergentes

3 FREYRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 6ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1978.4 SANTOS, Boaventura de s. “Poderá o Direito ser Emancipatório?” Revista Crítica de Ciên-cias Sociais. Coimbra, nº 65, maio 2003, p.27.

Pluralismo juridico, movimentos sociais e processos de lutas desde America Latina 99

e descolonizadoras, seja como forma de destruição da dominação, seja como instrumento pedagógico da liberação. Algumas fontes seriam essenciais nesse processo, como: onde encontrar elementos para se pensar e para se construir um discurso crítico? Na práxis social do cotidiano, ou seja, na práxis concreta, fundada na historicidade das estruturas sociais secularmente dependentes e negadas. Uma vez definido o entendimento da crítica, o seu papel pedagógico e a sua importância, caminha-se, agora, para a instrumentalização da crítica, baseada na práxis social concreta e sua inserção no âmbito do Direito.

3. A inserção da crítica e dos sujeitos coletivos em luta na liberação do direito e da política

Primeiramente há de se reconhecer a repercussão de paradigmas no campo da política, pois não há mudanças no Direito e na administração da Justiça, sem haver primeiro uma mudança na sociedade. Não há uma verdadeira mudança do paradigma jurídico a partir tão somente da dimensão institucional e da legislação escrita positiva (de cima para baixo). As mudanças paradigmáticas se dão a partir da sociedade civil e dos movimentos sociais, do poder comunitário comprometido, engajado e participativo, que vai interferir através de processos de resistência no campo jurídico e político. Urge fazer essa ponte metodoló-gica entre a crítica teórica descolonizadora e a prática atual do Direito.

Uma teoria crítica liberadora da política assume, segundo Enrique Dussel, a res-ponsabilidade por instrumentalizar a razão e a justificativa de se lutar contra “a não-ver-dade, a não-validez, a não-eficácia, da norma, da ação, ou da ordem política vigente e in-justa, desde a perspectiva específica da vítima e do excluído”.5 Assim, a filosofia crítica da política revela-se um completo diagnóstico, uma práxis transformadora das patologias do instituído e das diversas formas de negatividade: a miséria, a marginalização, a exclusão, a negação da cidadania. O ponto de partida do paradigma crítico da política é, para Dussel, a negatividade do mundo da vida, “fator determinante para que a ordem política vigente inviabilize a reprodução da vida e a participação legítima, democrática, dos oprimidos do processo de globalização”.6

No paradigma da política crítica liberadora deve-se, além de comprometer-se com os sujeitos subalternos excluídos, buscar organizar a prática política dos movimentos so-ciais em suas diversidades (indígenas, afrodescendentes, camponeses, minorias racionais) e contribuir para edificar alternativas para o sistema político, jurídico, econômico, ecológi-co e educativo. A verdade da teoria política crítica dentro de uma perspectiva intercultural e pluralista, que ultrapassa o nihilismo e o individualismo crítico pós-modernista, pauta-se por estratégias crítico-emancipadoras, desencadeando lutas descolonizadoras em diferen-tes frentes de libertação. Dos excluídos, das etnias discriminadas, dos sexos oprimidos,

5 DUSSEL, Enrique. Hacia una Filosofia Política Crítica. Bilbao: Desclée de Brouwer,200l.p.54.6 Idem, p. 58-59.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina100

dos velhos descartados, das crianças exploradas, dos povos ignorados e, das culturas ani-quiladas. Em suma, um paradigma crítico liberadora da política deve transgredir as fron-teiras do que é hegemônico, assumindo compromisso com a prática política do “outro”, contribuindo para implementar estruturas políticas justas e legítimas, mediante novas nor-mas, leis, ações e instituições políticas. Uma vez feitas essas considerações, destacando a importância de uma teoria política crítica liberadora, cabe o direcionamento para o que vem a ser um paradigma crítico e descolonizador do Direito.

É imprescindível ter, como ponto de partida para a reflexão sobre Direito e Justiça, a inclusão do paradigma da vida humana. Na óptica das premissas norteadoras da alteri-dade, adverte-se sobre a imperatividade da vida humana para a construção de uma rea-lidade social justa, que venha receber “a dignidade negada da vida íntima do oprimido ou excluído”.7 Diante dos grandes paradigmas da tradição ocidental, como ser, conhecer, saber e comunicar, apresentam-se, na transposição da totalidade excludente e na dimensão agora da exterioridade libertadora, elementos críticos e descolonizadoras de um projeto político centrado no outro, base para repensar o Direito e o Pluralismo Jurídico. Há de se considerar, portanto, que o Direito tem sua raiz no ser humano. Sem dúvida, é o outro o que dará sempre a pauta de uma busca histórica do ser real, dos direitos humanos, da justiça e do “buen vivir”. Mas, particularmente, a juridicidade moderna, por ser exclu-dente, formalista e desumanizadora, será superada por uma episteme crítica e emancipa-dor que encontra sentido na luta do povo por Justiça, quando o outro seja reconhecido dignamente em sua identidade, em sua diversidade e em sua dimensão intercultural, como chama a atenção Catherine Walsh.

A libertação legitima-se como expressão da luta descolonizadora por direitos, e das lutas sociais, de onde nascem os direitos. Ao relacionar a libertação com Justiça e Direitos, deixa-se claro que falar em libertação é apostar numa determinada concepção de Justiça, cuja opção sejam as populações carentes e que no processo social operam como vítimas do universo hegemônico capitalista e globalizado. Isso explica porque o conceito de Jus-tiça se torna tão importante na América Latina; mais precisamente, a justiça reclamada pelos coletivos marginalizados e pelos pobres excluídos de direitos revela-se fonte mais autêntica de toda a luta social contra situações de exploração. O direito á vida e à liberda-de, entendidos como individuais e coletivos, moldam o espaço necessário, a partir do qual a dignidade humana é desenvolvida nos contextos de adversidade, miséria e dominação.

Portanto, uma episteme crítica e descolonizadora forjado na denúncia e na luta dos próprios grupos oprimidos e subalternos e subalterno oprimidos, contra as falsas legitimidades e as falácias opressoras do formalismo legalista da sociedade massificadora, serve de substrato para uma autêntica e compromissada filosofia política da alteridade, reflexo de uma sociedade intercultural e pluralista. Essa filosofia jurídica da alteri-dade, incorporando as necessidades fundamentais, como liberdade, justiça, vida digna e direitos humanos, possibilita a descoberta de um novo sujeito social um sujeito

7 DUSSEL. Op.cit., p. 59.

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subalterno, emergente. Um direito que fala e legitima, acima de tudo, a dignidade do outro, que respeita e protege. O Direito direcionado para a libertação deixa de legitimar e asse-gurar o interesse de sociabilidades dominantes para transformar-se num movimento vivo de humanização e da descolonização de nossa sociedade, da sociedade latino-americana como um todo, com suas diversidades e identidades. Daí a importância, de uma teoria crítica liberadora, fundado em um projeto epistêmico intercultural e pluralista, que faça um diagnóstico das patologias do momento e expresse mais do que nunca, uma proposta teórico-prática, uma concepção crítica do Direito compromissado com as transforma-ções, e principalmente, com os princípios básicos da vida humana com a plena realização de um “buen vivir”.

Conclusão

Os novos sujeitos sociais que entram em cena e a reinvenção de suas necessidades es-senciais justificam o aparecimento de “novas” modalidades de direitos que desafiam e questionam profundamente a dogmática jurídica tradicional, seus institutos formais e suas modalidades convencionais de tutela. A par dos direitos absolutos e específicos de cada época, subsistem direitos relativos, que nascem em qualquer momento enquanto neces-sidades fundamentais, exigências valorativas ou condições emergências de vida. Assim, o surgimento e a existência dos chamados “novos” direitos referentes às dimensões indi-viduais, coletivas, meta-individuais, bioéticas e virtuais, em verdade, são demandas contí-nuas da própria coletividade e das representações de seus sujeitos sociais frente às novas carências humanas e às crescentes prioridades impostas institucionalmente. Em suma, urge transpor o modelo jurídico individualista, técnico-formal e dogmático, avançando, desafiadoramente, no sentido de criar novas figuras e novos instrumentos, fundados em procedimentos interdisciplinares e pluralistas, capazes recepcionar, garantir e materializar os “novos” direitos.

Referências

DUSSEL, Enrique. Hacia una Filosofia Política Crítica. Bilbao: Desclée de Brouwer,200l.p.54.FREYRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 6ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.SANTOS, Boaventura de S. Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício da Experiência.

São Paulo: Cortez Editora, 2000._________. “Poderá o Direito ser Emancipatório?” Revista Crítica de Ciências Sociais. Coim-

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Quito: Abya Yala/ICCI, 2012.

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EL CONSTITUCIONALISMO EN AMÉRICA LATINA DESDEUNA PERSPECTIVA HISTÓRICA CRÍTICA DEL DERECHO

Daniel Sandoval Cervantes1

Introducción

La presente ponencia tiene como objetivo proponer un aparato crítico para estar en con-diciones de analizar y explicar los horizontes y las limitaciones de las nuevas constitucio-nes de Nuestra América. La intención final de estos esfuerzos es potenciar los horizontes transformadores que se expresan en ellos y que han sido producto de la lucha social y de los procesos políticos que fueron básicos para su existencia. La importancia de estos esfuerzos reside en la situación política actual existente en Bolivia y Ecuador, principal-mente, pero también en Venezuela, países en que las nuevas constituciones no han hecho desaparecer los conflictos y las contradicciones de clase inherentes al sistema capitalista, lo que hace necesario reexaminar el papel de las constituciones y sus posibilidades trans-formadoras.

Se aborda el tema desde la Crítica Jurídica y, dentro de ella, desde una perspectiva histórica, desde la historia social. Por la extensión del trabajo resulta imposible abarcar todos los temas, razón por la cual, en esta ocasión, me limitaré a exponer los principios básicos de la metodología crítica propuesta.

1. Crítica jurídica e historia social

Para iniciar cualquier explicación, crítica o no, en torno del derecho y su papel en la construcción y reproducción de las ciencias sociales, resulta necesario partir tanto de un concepto de derecho –para estipular lo que se entenderá por éste–, así como también de los conceptos y categorías de análisis desde los cuales se empleará dicho concepto para explicar un problema o una realidad concreta. Para el presente trabajo, propongo utilizar los aportes teóricos y metodológicos de dos grandes corrientes del pensamiento: la Crítica Jurídica y la Historia social.

1 Doctor por el Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades de la Universidad Nacional Autónoma de México, miembro del proyecto de investigación PAPIIT IN300414-3 Modernidad y derecho en América Latina: acumulación capitalista, desarrollo, natura-leza y movimientos sociales contrahegemónicos; miembro del Grupo de Trabajo CLACSO “Crítica Jurídica Latinoamericana: Movimientos sociales y procesos emancipatorios”. Editor de la revista Crítica jurídica. Revista latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho.

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Por un lado, la metodología crítica del derecho que se propone para analizar el tema de las nuevas constituciones no parte de la nada, sino que retoma y utiliza los con-ceptos y categorías de análisis ya desarrollados y afianzados por la Crítica jurídica a lo lar-go de las últimas décadas. Específicamente retomaré de ella el concepto del derecho como discurso y las categorías que distinguen el sentido deóntico y el sentido ideológico del derecho. Estos conceptos y distinciones son imprescindibles para estar en condiciones de comprender al derecho como parte de las relaciones sociales, desde las cuales se forma y sobre las cuales tiene efectos. Comprender la complejidad social del fenómeno jurídico.

Esta misma complejidad del derecho denota la tendencia interdisciplinaria de la Crítica Jurídica, si bien, son de lo más variado los conocimientos producidos en otros campos disciplinares que pueden ser útiles para ella –como la sociología, la ciencia política y la antropología–, en nuestro caso recurriremos a la utilización de conceptos provenien-tes de una disciplina a la cual la crítica jurídica no suele recurrir, se trata de la historia. En particular recurriremos a una de las principales corrientes críticas de la historiografía con-temporánea: la historia social. Ésta retoma la postura teórica y política del materialismo histórico para aproximarse a la comprensión de nuestras sociedades desde una perspectiva de totalidad. Para nuestro trabajo retomaremos el concepto de larga duración, también la idea misma de la historia y la realidad social como una totalidad.

Así, en primera instancia estipulamos que comprendemos el derecho como un discurso, pero uno con características peculiares que determinan su especificidad. En pri-mera instancia, el discurso del derecho es prescriptivo, es decir, no tiene como objetivo comunicar una mera descripción de un estado de cosas, sino ordenar –prescribir– con-ductas humanas. En segundo lugar, es un discurso autorizado, lo que significa que para que sea considerado como discurso del derecho, como un discurso normativo jurídico, tanto su forma de producción como su sentido debe coincidir con las formas y los senti-dos autorizados por las normas superiores. Por último, es un discurso que coactivo, que amenaza con la violencia, o, mejor dicho, que organiza la violencia, a diferencia de otros discursos que también pueden ser normativos e incluso autorizados –como podría ser el moral y el religioso, por ejemplo–, el derecho ejerce la violencia física y lo hace de una manera organizada y centralizada.2

Ahora bien, de este concepto estipulativo de lo que se entenderá por derecho sobresale la idea misma de percibir al derecho como un discurso y la relación entre éste y la organización de la violencia física. Desde nuestra perspectiva, y con la intención de comprender el punto metodológico desde el cual se parte, es necesario, a estas alturas del trabajo, explicar la forma en que se construye y se produce el sentido del derecho y, de esta forma, explicar el papel que el discurso del derecho, como organizador de la violencia física en las sociedades contemporáneas. Además de ello, entender al derecho como un discurso que forma parte y tiene efectos en las relaciones sociales.

2 CORREAS, Oscar. Teoría del derecho. México, Fontamara: 2004, p. 45.

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La primera distinción útil es aquella que se estipula entre discurso del derecho, como aquel que expresa, entre otras cosas, normas jurídicas, y discurso jurídico, el cual es un discurso que habla sobre el primero, es un discurso sobre las normas jurídicas. Por otro lado, también es importante señalar la diferencia entre el sentido deóntico del derecho, aquel que se construye a través de la modalización deóntica de las conductas, permitién-dolas, prohibiéndolas o haciéndolas obligatorias, y el sentido ideológico del discurso del derecho, el cual no contiene una modalización deóntica de la conductas, pero sí tiene un papel determinante en la interiorización del orden jurídico, de las normas jurídicas, como algo debido, reproduce la conducta de obediencia al derecho y, con ello, al orden social que las normas jurídicas intentar reproducir a través de la regulación de las conductas.3

El sentido del derecho es uno que se construye socialmente, a partir de las rela-ciones de fuerza existentes en una sociedad, esto significa que en su producción tienen efecto los distintos intereses de clase, antagónicos e irreductibles entre sí, desde los cuales los distintos sujetos y colectivos luchan por interpretar y utilizar las normas jurídicas. De esta manera, el derecho, en cualquier sociedad, se produce en medio de los conflictos sociales existentes, en las sociedades capitalistas, como las nuestras, estos conflictos, con sus diferentes grados de intensidad, se entienden bajo el concepto de lucha de clases. De tal forma que el sentido del derecho es siempre, también, la expresión de la correlación de fuerzas de la sociedad.4

Es así como entendemos al derecho como un efecto de la lucha de clases y, por tan-to, como producto de las relaciones sociales en medio de las cuales ésta se desarrolla. Sin embargo, el derecho no solamente es un efecto de esta lucha, sino que también es un ins-trumento. De manera que explicamos, también, al derecho como un instrumento de clase. Instrumento en el sentido de que, de conformidad con su complejidad y la construcción social de su sentido, el derecho puede ser interpretado y utilizado tanto para defender, si bien con diferentes posibilidades de éxito, tanto los intereses de la clase dominante como los de las clases subalternas. En este sentido, el derecho es un campo de la lucha de clases, un campo de disputa.5

3 “Llamaremos sentido deóntico del discurso del derecho al sentido que se puede encontrar en los enunciados del discurso del derecho, mediante el análisis de los mismos a la luz de cualesquiera de los tres operadores deónticos. Cuando un enunciado puede ser reducido a la forma canónica, entonces decimos que es una norma, cualquiera sea su redacción. El sentido de un enunciado re-ducido a su forma canónica será, para nosotros, su sentido deóntico; el dado por la modalización deóntica de la descripción de la conducta. Desde luego, la identificación del sentido deóntico de un enunciado expresado en lenguaje común sólo aparece en el análisis que precisamente es la tarea del jurista”. Cf. CORREAS, Oscar. Crítica a la ideología jurídica. Ensayo sociosemiológico, México, UNAM-CEIICH, Ediciones Coyoacán, 2005, pp. 147-148. En el mismo libro, en las páginas 148 a 150, se explica el sentido ideológico.4 CORREAS, 2005, op. cit., pp. 113-114; CORREAS, 2004, op. cit., p. 24.5 Ibid.

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Así, el derecho, el discurso del derecho, constituye una parte importante para la reproducción de las relaciones sociales, la complejidad en la producción e interpretación del sentido del derecho, como causa y como efecto en la lucha de clases, la explicamos a partir de considerarlo como un campo de disputa, es decir, como un discurso por cuya determinación de sentido se disputa en la vida cotidiana desde subjetividades políticas antagónicas. Ahora bien, para continuar hay que recordar que esta disputa por el sentido del derecho no se desarrolla en condiciones de equidad, sino que se encuentra atravesada por las desigualdades y marginaciones inherentes a las sociedades capitalistas, es decir, aquellas divididas en clases.

En este sentido, hay que explicar la contradicción existente en las utilizaciones e interpretaciones del derecho, atravesadas por el choque entre subjetividades e intencio-nalidades políticas determinadas, en buen grado, por los intereses y la posición de clases irreductiblemente antagónicas. De esta condición se deriva la posibilidad de un uso del discurso del derecho para la dominación y la construcción de la hegemonía del sistema capitalista, es decir, la producción y aplicación de un derecho que reproduzca y profun-dice las desigualdades y las condiciones explotación del régimen capitalista. Sin embargo, por otro lado, también la posibilidad de que se utilice el derecho para hacer avanzar los intereses de las clases subalternas, de los sujetos y las colectividades marginadas del de-sarrollo capitalista y a costa de quienes éste es posible; es decir, de una manera contra-hegemónica.

Mi hipótesis personal es que, si bien el derecho, por llamarlo de alguna manera, estatal, es producto de este choque y esta lucha por la utilización del derecho, en realidad estaríamos hablando de formas irremediablemente antagónicas de pensar, interpretar y utilizar el derecho, las cuales se enfrentan en la lucha de clases, resultando una de ellas la victoriosa y la que, con sus mediaciones, impone el sentido dominante del discurso del derecho y así está en mejores condiciones de reproducir el sistema de dominación y ex-plotación que le resulta favorable.

Ahora bien, para poder pensar en la realidad concreta estas categorías, es decir, para estar en condiciones de explicar alguna situación o algún problema específico de nuestras sociedades a partir de los conceptos de la Crítica Jurídica anteriormente aludi-dos, me parece oportuno retomar un par de conceptos que provienen del materialismo histórico, de las corrientes de pensamiento historiográfico comprometidas con la trans-formación social.

La primera cuestión es el carácter desmitificador de la historia con perspectiva ma-terialista. Así pues, retomar una perspectiva histórica tiene la intención de comprender el pasado para poder explicar el presente y para estar en condiciones de construir un futuro más justo. En este sentido, es importante recalcar que se tomará un concepto de historia atrapado en la legitimación de la situación actual, por medio de la glorificación de los mi-tos de origen de las sociedades capitalistas, sino, precisamente con la intención contrario, desmitificar la historia del derecho para comprenderlo, a cabalidad, como un campo de

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disputa.6 A estas alturas de mi investigación serían dos grandes conceptos: el primero la percepción de la historia como totalidad; la segunda, el concepto de larga duración.

En cuanto a la historia como totalidad, está concepción comparte con la Crítica Jurídica su tendencia interdisciplinaria, por medio de la cual se explica la historia, no solamente desde la biografía política de los grandes personajes, o bien, desde los aconte-cimientos económicos o tecnológicos más importantes de una sociedad y una época, sino que se comprende que las relaciones sociales no se presentan en la realidad divididas por disciplina, sino que, por el contrario, estas divisiones son distinciones analíticas que per-miten comprender un aspecto específico de dichas relaciones y, por tanto, de la sociedad en que vivimos.

De aquí se desprenden dos cuestiones de gran importancia para comprender el papel que tiene el derecho y, sobre todo, el uso de su discurso, en la reproducción de las relaciones de dominación y en su transformación. Por un lado, la idea de que no hay, en la realidad concreta, tal cosa como un fenómeno “jurídico” o “económico” que se presente de forma aislada, sino que, por el contrario, hay un aspecto de los fenómenos sociales que se puede analizar desde una perspectiva jurídica o económica, pero, tanto una como otra perspectiva intentan explicar un mismo fenómeno, altamente complejo. En este sentido es que podemos comprender que las relaciones sociales algo que se construye por medio de varios circuitos de poder que, aunque distinguibles analíticamente, constituyen un mismo sistema de dominación. Así, la historia nos ayuda a explicar lo social desde una perspecti-va, que si bien puede adoptar una perspectiva disciplinar principal, no disocia los distintos aspectos de lo social, sino que intenta reconstruir su compleja relación.7

Por otro lado, para analizar estos circuitos de poder y reconstruir la totalidad social, la historia crítica se basa, no tanto en las biografías de los grandes personajes, ni en la bús-

6 Hobsbawm, Eric J. El historiador entre la búsqueda de lo universal y la búsqueda de la identi-dad. Historia social, no. 25, La obra de un historiador: E.J. Hobsbawm (1996), pp. 81-90. Publi-cado orginalmente en la revista Diógenes, 168 (1994). 7 “I think that contemporary Marxist economists are right to note that “in Capital. . . Marx repeatedly uses the concept of the circuit of capital to characterise the structure of the capitalist economy” –and, more than that, of capitalist society more generally. But historical materialism (as assumed as hypothesis by Marx, and as subsequently developed in our practice) must be concerned with other “circuits” also: the circuits of power, of the reproduction of ideology, etc., and these belong to a different logic and to other categories. Moreover, historical analysis does not allow for static contemplation of “circuits”, but is immersed in moments when all systems go and every circuit sparks across the other. So that Engels is in this sense wrong; it is not true that he and Marx “neglected the formal side –the way in which these notions come about— for the sake of the con-tent”. It was, rather, the over-development of the formal side, in the “anti-structure” of Political Economy, which in its genesis and form was derived from a bourgeois construction, and which confined the real historical content into impermissible and unpassable forms.”, THOMPSON, E. P. Marxism and History. In: The essential E.P. Thompson, edited by THOMPSON, Dorothy. The New Press, New York, 2001, p. 474; BRAUDEL, Fernand. Historia y sociología. In: La Historia y las Ciencias Sociales, Alianza Editorial, Madrid, 1999, pp. 107-128.

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queda del sentido literal de los textos producidos en una época, sino, en la forma en que los hechos, las interpretaciones de los hechos, sirven para explicar las transformaciones sociales. En este contexto, para la Crítica jurídica, la historia social ofrece una metodología histórica que intenta explicar lo social no desde la cómo una época se percibe a sí misma, sobre todo, desde la perspectiva de la clase dominante. En este sentido, tiende a ser una historia desde abajo, la cual intenta reconstruir la perspectiva de las clases subalternas y, sobre todo, explicar las condiciones materiales e ideológicas de las transformaciones sociales.8

En este sentido, para la historia social, uno de los objetivos más importantes es el de explicar las condiciones del cambio o la transformaciones de las relaciones sociales, lo cual, interesa al presente, no porque, a partir de dichas explicaciones se pueda prede-cir el futuro, sino porque, por medio de estas compresiones es posible evaluar, desde la comprensión del pasado, la situación presente para pensar las alternativas posibles hacia el futuro. Al menos de una manera más sólida que desde una perspectiva ahistórica.9

En este sentido, explicar desde la historia social el derecho, implica, por tanto, intentar comprender su papel dentro de la totalidad que son las relaciones sociales, por un lado, sin perder de vista la especificidad jurídica de éstas, pero, por el otro, sin dejar de pensar dicha especificidad dentro del contexto social en que emerge y en el cual adquiere un sentido concreto. Para efectos de la presente investigación, lo anterior es importante para no deshistorizar las explicaciones de la crítica jurídica del derecho realmente exis-tente, para disociar las normas jurídicas de las relaciones sociales y la lucha de clases en medio de la cual son producidas y en las cuales adquieren un sentido, una aplicación y tienen efectos en la correlación de fuerzas. Utilizar los conceptos para pensar críticamente al derecho realmente existente y no para justificarlo.

Por otro lado, tenemos el concepto de larga duración, entendida como la meto-dología que permite identificar aquellos fenómenos que permiten explicar lo social más allá de las comprensiones coyunturales, más allá de los grandes acontecimientos con sus rupturas aparentes, indagar sobre las condiciones de existencia de los sistemas de domina-ción, como el capitalista, que se presentan a lo largo de periodos de tiempos seculares. Es decir, sin demeritar la importancia de las transformaciones coyunturales en la conforma-ción de las relaciones sociales y su impacto para cambiar o limitar un régimen de domina-ción, el capitalista; lo cierto es que analizar estas transformaciones desde una perspectiva puramente coyuntural corre el riesgo de concebir la historia de nuestras sociedades de una manera tergiversada, encontrando rupturas sistémicas ahí en donde solamente existen reacomodos o transformaciones en las condiciones y en las maneras desde las cuales la re-producción del sistema de dominación capitalista es posible. Una perspectiva ingenua, aun

8 THOMPSON, E.P. History from Below. In: The essential E.P. Thompson. op. cit., pp. 481-489.9 Hobsbawm, Eric, Sobre la historia, trad. Jordi Beltrán y Josefina Ruiz, Crítica (Grijalbo Monda-dori, S.A.), Barcelona, 1998, pp. 24-31, 38-50.

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cuando optimista, de la realidad y de la historia social, si bien puede resultar reconfortante no es un instrumento útil para la transformación radical de la sociedad.10

La idea de recurrir al concepto de larga duración, para los objetivos del presente trabajo, reside en el interés de demostrar que entre el derecho moderno, el derecho estatal de la modernidad, y el régimen de dominación capitalista existe una relación que, más allá de las coyunturas que marcan la incorporación de nuevos derecho, por ejemplo, los derechos sociales constitucionalizados durante el siglo XX y que dieron pie a lo que se ha llamado como estado social o estado bienestar. Es decir, que el estado social de derecho no implicó, en ninguno de los casos en que existió, bajo cualquier modalidad o intensidad, una ruptura con el capitalismo, sino que, por el contrario, posibilitó su adecuación y su re-producción en condiciones de correlación de fuerzas en las cuales ésta parecía peligrar.11

Lo anterior implica una toma de postura frente al papel que tienen los derechos sociales, y, en general, todos los derechos constitucionales o humanos que parecen des-bordar la lógica de los derechos de libertad individuales clásicos del liberalismo político. Intentándolos ver más allá de la ideología liberal-capitalista de considerarlos como con-trapoder, de una manera lineal y ahistórica. La cual define el papel social de los derechos humanos desde una mirada ahistórica y, pretendidamente, apolítica. De suerte que, al final de cuentas, termina construyendo un concepto de derechos humanos legitimador de las relaciones sociales existentes, y reacio a las transformaciones sociales estructurales. Ter-mina construyendo un mito en torno a los derechos humanos.12

Todo ello, sin dejar de reconocer que estos derechos sociales son el resultado de la lucha de las clases subalternas por lograr mejores condiciones materiales de vida, razón por la cual no son, nunca, derechos concedidos, sino derechos arrancados al capital, así como también reconociendo que, de ser eficaces desde la subjetividad política subalterna desde la cual se plantea su emergencia como reivindicaciones políticas y jurídicas, estos derechos son, en el fondo, contrarios o limitantes de la reproducción salvaje de la explo-tación capitalista.

Planteo que es necesario tener en cuenta el papel ideológico, de interiorización y legitimación de las relaciones de dominación capitalista, que han tenido dichos derechos en momentos cruciales de la historia de nuestro país, México, y de nuestra región. Es ne-cesario comprender la complejidad de considerarlos, como a todo derecho, un campo de disputa y un instrumento de clase cuyo sentido se disputa no solamente en los procesos de constitucionalización sino en cada proceso de interpretación y aplicación.

10 BRAUDEL, Fernand. La larga duración. In: La Historia y las Ciencias Sociales. Alianza Editorial, Madrid, 1999, pp. 60 y ss.11 Un análisis similar a este, lo planteo en mi tesis de doctorado, intentando retomar las preguntas planteadas en Marx, Karl, Sobre la cuestión judía. Consultado en: < http://www.hojaderuta.org/imagenes/lacuestionjudiamarx.pdf >. El día 26 de marzo de 2013: 11:45 a.m., pp. 8-30.12 Cf. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoría del garantismo penal. Prólogo Norberto Bobbio. Madrid, Trotta, 2000, p. 906-917, 933-935.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina110

En este sentido, es importante volver a la distinción entre sentido deóntico y senti-do ideológico del derecho, ahora desde una perspectiva de la historia crítica del derecho y centrándonos, específicamente en los derechos humanos. Si bien, los derechos humanos, cuando son constitucionalizados, sobre todo, cuando este proceso es producto de la lucha social, contienen un sentido deóntico que, aparentemente, expresa, en forma de norma jurídica, las reivindicaciones de los movimientos sociales. Lo cierto es que también con-tiene un sentido ideológico que, de no existir una transformación radical en las relaciones sociales y una ruptura con el sistema dominante, termina por reproducir el sentido de orden y de obediencia, necesario para la reproducción de dicho sistema.13

De manera que planteamos que analizar el texto normativo que contiene o que constitucionaliza los derechos humanos, no resulta ser lo fundamental a la hora de enten-derlos desde una perspectiva crítica. Al contrario, de manera muy similar a lo que sucede con la historia social, lo importante es comprender las relaciones de fuerza, las relaciones sociales, desde las cuales se constitucionalizan y desde las cuales los sujetos, con posicio-nes de clases irreductiblemente antagónicas dentro del régimen capitalista, interpretan y utilizan dichos textos y tratan de definir sus contenidos aplicables a la vida concreta. De especial relevancia es explicar los procesos políticos que subyacen a los procesos cons-tituyentes, así como la disputa por las interpretaciones de dichos derechos durante los primeros años de vigencia de los textos constitucionales, con el fin de comprender la ideología que existe detrás de su consolidación e institucionalización.

En esta línea de argumentación, específicamente, en cuanto a los derechos sociales, si bien se puede decir que contienen un sentido deóntico, que, deshitorizado, parece con-tradecir la lógica de la explotación capitalista, presentándose así, en la teoría jurídica do-minante, como un conjunto de medios contrarios al ejercicio del poder arbitrario –aquel que genera desigualdades injustas. Lo cierto es que, además de dicho sentido deóntico contiene un sentido ideológico cuyo efecto, en la larga duración, consiste en naturalizar las desigualdades inherentes al capital, principalmente la concentración de los medios de producción y la distinción entre quién está en condiciones de mandar y quiénes en las de, simplemente, obedecer.

Para comprender la eficacia de este sentido ideológico de los derechos sociales es necesario recurrir a la interpretación crítica de la historia del derecho, para comprender de manera no lineal, sino consciente de la lucha de clases a través de la cual se disputa, entre muchas otras cosas, el sentido del derecho. En un primer sentido, para comprender las relaciones de fuerzas en medio de las cuales se han constitucionalizado dichos derechos, comprender la ideología dominante que le ha dado su sentido en los textos constituciona-les y, sobre todo, los efectos de dichos derechos en la consolidación y transformación de los regímenes capitalistas.

13 Véase la obra precursora de este enfoque: CORREAS, Oscar. Acerca de los derechos huma-nos. Apuntes para un ensayo, México, UNAM-CEIICH, Ediciones Coyoacán, 2003.

El constitucionalismo en AL desde una perspectiva histórica crítica del derecho 111

En un segundo término, es importante para comprender la inefectividad de dichos derechos, común a todas nuestras sociedades, no como un resultado de malas decisiones gubernamentales, o, simplemente, de la maldad de los burócratas encargados de concretar dichos derechos, sino desde una perspectiva estructural que emerge de constatar que, a pesar de su progresivo desarrollo en el discurso del derecho, los derechos sociales no son una realidad para la mayor parte de la población y que, sin embargo, han tenido un papel destacado en la contención y represión de la lucha de las clases subalternas. En México, sin duda, el derecho del trabajo y el derecho agrario fueron piezas claves en la consoli-dación del proyecto capitalista, sin, que, en la larga duración, hayan mejorado de manera permanente y estable las condiciones de vida –social, económica y política– de las clases sociales subalternas.14

Una de las tareas principales de la historia social del derecho resulta en explicar la aparente paradoja que se presenta cuando se piensa a los derechos humanos como una especie de contrapoder con un desarrollo progresivo e indetenible, dentro de sociedades cada vez más desiguales. Nuestra postura se opone a pensar esta desigualdad como pro-ducto de la ineficacia de los derechos humanos y, sobre todo, suponer que es a partir de su simple eficacia que la transformación social, la superación del capitalismo, provendría. Al contrario, la hipótesis consiste en pensar el papel del sentido ideológico de los derechos humanos en la consolidación y profundización del régimen capitalista. Al menos para nuestra región.

2. Procesos políticos, constituciones, derechos y desarrollo en la América Latina contemporánea

Ahora, si bien es cierto que las políticas neoliberales se impusieron de manera constante en nuestra región durante las dos últimas décadas del siglo XX, profundizando la relación entre capitalismo, desarrollo y derecho; lo cierto es que esta relación no se actualiza de ma-nera homogénea en Nuestra América, pues, como lo veremos, han existido movimientos sociales que la han cuestionado y, sobre todo en Bolivia, Ecuador y Venezuela, estos cues-tionamientos, aún con sus asegunes, han logrado modificar o transformar esta relación e incrementar la posibilidad tanto de cuestionar el modelo de desarrollo como replantear la manera en que el derecho lo articula y promueve.

La historia social de nuestra región demuestra que ni el capitalismo, ni las políticas que se conocen específicamente como “neoliberales” han podido construir una hege-monía total, pues, ante y contra ellos han existido siempre resistencias y movilizaciones sociales que, en alguna medida, también han recurrido a la interpretación y utilización del discurso del derecho, si bien desde una subjetividad política distinta a aquella desde la

14 Véase SANDOVAL CERVANTES, Daniel. Apuntes para una crítica de la epistemología del derecho contemporáneo. Tesis doctoral. México, División de Estudios de Posgrado de la Facultad de Derecho, Universidad Nacional Autónoma de México, 2013.

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cual lo hacen las clases dominantes. En este sentido, la historia del capitalismo en nuestra región es también la historia de la resistencia ante éste.15

Durante la década de los noventa del siglo XX se vivieron, a lo largo de toda nues-tra región, movilizaciones sociales que, partiendo de los intereses de algunos sectores de las clases subalternas, resistieron los embates del capitalismo a partir de formas distintas, y antagónicas con respecto a aquéllas promovidas por el capitalismo. De esta manera, inclusive en aquellos en los cuales las políticas neoliberales se impusieron con mayor fuer-za, tuvieron movilizaciones sociales importantes en resistencia con aquel modelo, así el ejemplo de México, pero también el de Brasil y Argentina.16

Las resistencias en dichos países tuvieron distintos grados de impacto en la trans-formación de las políticas públicas, en el caso de México, se intensificaron las políticas neoliberales, a pesar de que la resistencia no ha cesado; en Brasil también, aunque por un espacio de tiempo se llegó a pensar que otra forma de políticas públicas era posible; y, en Argentina, a pesar de que la lucha social logró derribar varios gobiernos claramente iden-tificados con las políticas neoliberales, lo cierto es que los gobierno de Néstor y Cristina Kirchner, lo único que han promovido es un capitalismo “en serio”, un capitalismo con un poco más de inclusión social, pero igualmente injusto.

Sin embargo, en ninguno de estos países se lograron cambios sustanciales, ni en el concepto de desarrollo, ni en el modelo de acumulación ni, tampoco, en el sistema jurídico. Al contrario de estos casos, en tres países de nuestra región, Venezuela, Ecuador y Bolivia, la articulación de los movimientos sociales impulsó procesos políticos que fue-ron un factor central en la emergencia de procesos constituyentes y, posteriormente, en la promulgación de textos constitucionales que, sobre todo al inicio, ofrecían horizontes para pensar una transformación más profunda, por ejemplo que incluían derechos de los pueblos indígenas, derechos de la naturaleza, el derecho de la soberanía alimentaria, la in-tensificación de los derechos sociales y de sus formas de garantización, así como también la inclusión de nuevas formas de democracia.17

No obstante, como veíamos en el apartado anterior, en el tema de los derechos constitucionales lo central no es, precisamente, analizar los contenidos semánticos de los textos constitucionales, desde una perspectiva que pierda de vista que, cualquiera que sea el sentido que se le otorgue al discurso del derecho, éste se construye socialmente, es de-cir, a partir de la lucha de clases, de la disputa por su interpretación, por la posibilidad de designar qué es lo que se debe entender por derecho. Al menos en las sociedades dividas

15 ZAVALETA, René. Problemas de la determinación dependiente y la forma primordial. ZA-VALETA Mercado, René. El estado en América Latina, La Paz, Los amigos del libro, 2009, pp. 133-135.16 BORÓN, Atilio. Crisis de las democracias y movimientos sociales en América Latina: notas para una discusión. In: OSAL (Observatorio Social de América Latina), año VII, no. 20, Con-sejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires, 2006, pp. 289-299.17 NOGUERA FERNÁNDEZ, Albert. Los derechos sociales en las nuevas constituciones latinoamericanas. Valencia, Tirant Lo Blanch, 2010, pp. 159-169.

El constitucionalismo en AL desde una perspectiva histórica crítica del derecho 113

en clases. Nuestra hipótesis es que, a pesar de las transformaciones constitucionales, sin duda de gran importancia, en Bolivia, Ecuador y Venezuela, estos países siguen siendo capitalista, si bien, un capitalismo, quizá, menos predatorio que el neoliberal. Para expli-car, entonces, el papel que los derechos sociales de las nuevas constituciones juegan en la reproducción del sistema dominante o en la transformación estructural, es necesario analizar, o al menos brindar herramientas plausibles para hacerlo, el contexto social en que se constitucionalizan y se interpretan estos derechos en la vida cotidiana, principal-mente, en los primeros años de vigencia, que son los años de su institucionalización. Es decir, explicar los derechos humanos desde las relaciones de fuerza a partir de las cuales adquieren un sentido concreto, para comprender, desde una postura crítica, cuáles son sus interpretaciones y cuál su papel en la lucha de clases.

Lo anterior es importante no para desacredita la importancia de la inclusión de nuevos derechos en las constituciones, sino, por el contrario, porque, precisamente, la apertura de estos horizontes, si bien geográficamente localizados en solamente tres países, ha renovado la esperanza en la posibilidad de transformación de quienes consideramos que el sistema capitalista es inherentemente injusto y debe ser superado, es que resulta necesario analizar estos procesos políticos desde una perspectiva crítica e histórica, con el fin de comprender la correlación de fuerzas existente en la actualidad y, sobre todo, poder explicar si la promulgación de los nuevos textos constitucionales y, sobre todo, la interpre-tación y desarrollo de sus contenidos, mantienen la línea transformacional y de superación del capitalismo. En todo caso para analizar de una manera más adecuada, cuáles son las limitaciones de estas nuevas constituciones, cuáles los obstáculos de los procesos políti-cos y sociales que buscan la transformación. En este sentido, un análisis crítico no tiene la pretensión de negar la importancia de estos cambios, sino, por el contrario, potenciar y profundizar los horizontes de transformación radical que han abierto.

En cuanto al análisis histórico, su función se encuentra, precisamente, en el con-cepto de larga duración y en el de totalidad, este análisis se pregunta, a partir de su carácter interdisciplinario, si las modificaciones en los textos constitucionales significan una trans-formación de las relaciones sociales, en términos de los conceptos de la Crítica jurídica, la pregunta equivale a indagar si se ha transformado no solamente el sentido deóntico de las normas jurídicas, sino, principalmente, la ideología y las relaciones sociales que pro-mueven y que ayudan a reproducir. Es decir, si las transformaciones en los textos consti-tucionales implican o facilitan una transformación en las relaciones sociales dominantes y, sobre todo, en la relación entre estado y sociedad civil.

Por otro lado, la historia social del derecho también sería útil para ayudarnos a comprender si estas transformaciones de lo jurídico, estas nuevas constituciones, su in-terpretación y su aplicación, así como el desarrollo de la legalidad secundaria, son parte de una transformación estructural en la larga duración que lleve a un sistema distinto al capitalista, o bien, es parte de una adecuación del sistema capitalista a condiciones de correlación de fuerzas en las cuales debe modificar, por necesidad para su propia subsis-

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina114

tencia, la manera en que se impone y se legitima, pues, de otra forma, corre el riesgo de ser terminado.

Sin duda, este tipo de explicación de los procesos constituyentes recientes de nues-tra región resulta de importancia, pues, en todos ellos, los procesos políticos que llevaron las nuevas constituciones, fueron, en realidad, el campo de enfrentamiento entre clases y, también, entre fracciones de clases.18 En los tres casos, se cuestionó de manera profunda la manera en que la clase dominante ejercía su poder y reproducía el régimen de domi-nación capitalista. Sin embargo, a pesar de que, hasta el día de hoy, es difícil tener expli-caciones concluyentes de los procesos, parece que, tanto en Bolivia, como en Ecuador y Venezuela, el capitalismo y los intereses antagónicos de clase inherentes a dicho régimen, sigue existiendo y, por tanto, es importante explicar y repensar dichas constituciones, no tanto como un punto final en los procesos de transformación radical y estructural necesa-rios para nuestra región, sino como etapas de transición hacia nuevas formas de lucha por dicha transformación. Adelantar algunas ideas y explicaciones que puedan ser útiles para ello fue la intención principal del presente trabajo.

Conclusiones

A pesar de su importancia en la vida social, el constitucionalismo raras veces es abordado desde una perspectiva crítica e interdisciplinaria. Esta situación ha comenzado a cambiar, en buena medida, debido a los procesos políticos que, en Venezuela, Bolivia y Ecuador, desembocaron en nuevas constituciones, cuyos textos incluían derechos y formas de or-ganización política que trastocan el orden constitucional dominante. Estas constituciones han renovado el interés de la Crítica Jurídica en el derecho constitucional, pero también, han despertado el interés de otras disciplinas en explicar su papel en la reproducción de las relaciones sociales.

Además de ello, las nuevas constituciones, mejor dicho los procesos políticos des-de los cuales emergen, ha suscitado un interés político y académico para comprender cuál

18 Véase, por ejemplo, para el caso de Bolivia: PEÑARANDA U., Raúl. Del conflicto al diá-logo. Memorias del acuerdo constitucional. Crónica del proceso constituyente, La Paz, Funda-ción para la Democracia Multipartidaria/FES-Ildis, Marzo 2009; PAZ PATIÑO, Sarela. Una mi-rada retrospectiva sobre la asamblea constituyente en Bolivia. RIPS (Revista de Investigacio-nes Políticas y Sociológicas), vol. 6, nº 2, 2007. pp. 161-176. Disponível em: < www.redalyc. org/articulo.oa?id=38060210 >. Acesso em 14 nov. 2014; ESCÁRZAGA, Fabiola. Las comu-nidades interculturales y la política agraria del gobierno de Evo Morales. In: MAKARAN, Gaya (coord.). Perfil de Bolivia (1940-2009), México, UNAM-Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe, 2011. Para el caso de Ecuador: RAMÍREZ GALLEGOS, Franklin. Fragmenta-ción, reflujo y desconcierto. Movimientos sociales y cambio político en el Ecuador (2000-2010). OSAL 28, Noviembre 2010, CLACSO, Buenos Aires; HERNÁNDEZ E., Virgilio y Buendía G., Fernando. Ecuador: avances y desafíos de Alianza PAÍS. In: Nueva Sociedad, no. 234, julio-agosto, 2011.

El constitucionalismo en AL desde una perspectiva histórica crítica del derecho 115

puede ser el papel del derecho, del constitucional específicamente, en la transformación social. Sin duda, estos procesos políticos abrieron horizontes de transformación que re-novaron la esperanza de muchas personas en la posibilidad de una transformación social estructural.

Sin embargo, estos procesos no han estado exentos de obstáculos y de contra-dicciones, razón por la cual se hacen necesarios análisis críticos los cuáles, partiendo de la premisa de la necesidad de la transformación estructural de la sociedad, expliquen los obstáculos, las contradicciones, las limitaciones y, en general, las condiciones de estos procesos para poder comprender los alcances de sus horizontes transformacionales y, así, poder profundizarlos.

La historia social del derecho, como un campo de la Crítica jurídica, ofrece un marco teórico que ayuda a explicar y comprender todas estas cuestiones, sin perder una perspectiva general crítica, crítica radical del capitalismo y del papel que el derecho moder-no tiene en su reproducción y legitimación, así como también una postura que observe las posibilidades, no solamente de utilizar de forma alternativa el derecho moderno existente, sino de pensar en un derecho antagónicamente opuesto a éste, el cual favorezca la repro-ducción de relaciones sociales no capitalistas.

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FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO, CRÍTICA JURÍDICA E PLURALISMO: UMA JUSTIFICAÇÃO FILOSÓFICA DESCOLONIAL

Celso Luiz Ludwig1

Introdução

O tema sugere muitas possibilidades de compreensão e encaminhamento.Nesse largo horizonte da filosofia, faço um recorte metodológico e epistemológico

na direção da filosofia da libertação e também partir de possível classificação paradigmática da filosofia. Essa breve indicação tem o objetivo restrito de permitir o sentido das expres-sões “filosofia da libertação”, “filosofia transmoderna”, “filosofia pós-colonial”, “filosofia da alteridade”, “filosofia da exterioridade”, “filosofia analética”, situadas de algum modo no recorte específico da reflexão filosófica do chamado giro des-colonial.

A premissa indicativa inicial é da existência de uma lógica da totalidade na filosofia produzida em poucos países do Norte, inadequada em alguma medida para os países periféricos e semi-periféricos do Sul, tendo em vista a redução da alteridade e da diversidade à mesmidade e à unidade. Trata-se do império de um monismo filosófico que deslegitima o plura-lismo. A tese é a da necessidade de um pluralismo filosófico como alternativa para as alternativas, como alternativa para a alteridade ou para as alteridades. E nessa condição, ver o sentido da construção e da produção do pluralismo filosófico e seu sentido para o pluralismo jurídico, na ótica do já anunciado giro descolonial.

A divisão paradigmática da filosofia2 já nos mostra os paradigmas do ser, da cons-ciência, da linguagem (Habermas) e da vida (Dussel). Vida concreta de cada sujeito como modo de realidade –ou paradigma da vida concreta– é o paradigma da filosofia da libertação. Parte do sujeito vivente. Nesse quadro da filosofia, a demarcação teórica do nosso tema –o pluralis-mo e a filosofia– indica uma argumentação que será paradigmática, e a escolha recai sobre o paradigma do sujeito vivente. Com tal demarcação teórica, que leva em conta o projeto de mundo que está em jogo, o horizonte é o da transmodernidade, particularmente proposto pelo pensamento contra-hegemônico e pelas filosofias de libertação ou descoloniais. O que se intenta é a possibilidade da crítica da totalidade a partir da exterioridade, da crítica colonial desde

1 Professor de Filosofia do Direito da UFPR e da Uninter. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Membro fundador do Instituto de Filosofia da Libertação (IFIL), em Curitiba/PR. Autor do livro: Para uma Filosofia Jurídica da Libertação. Paradigmas da Filosofia, Fi-losofia da Libertação e Direito Alternativo. Florianópolis: Conceito, 2006.2 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. P. 21-22.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina118

a descolonialidade. E para além da possibilidade, está em questão a necessidade de tal crítica. Questão que abre espaço para a reflexão filosófica na linha de um giro epistemológico desco-lonial, uma das condições de possibilidade de justificação filosófica do pluralismo emancipatório e da filosofia da libertação.

1. A Filosofia da Libertação

1.1. As categorias da totalidade e da exterioridade

A categoria da totalidade pode ser compreendida a partir de diferentes filosofias. Por conta disso, o importante é compreender o movimento que ocorre entre unidade e multiplicida-de. Habermas3 chama a atenção para a seguinte dinâmica da filosofia:

Unidade e multiplicidade, foi desde o início, o tema mais importante da metafísica. Esta pretende deduzir tudo a partir de uma unidade; desde Platão ela se apresenta, em suas manifestações mais marcantes, como doutrina da unidade do todo; a teoria tem como alvo o uno na condição de origem e fundamento do todo.

E na lógica dos paradigmas o tema da unidade e da multiplicidade é colocado de modo diferente de acordo com o paradigma em jogo - ontológico, mentalista, linguístico,4 ou vivente (Dussel).

Na análise crítica feita por Enrique Dussel, a unidade aparece como fundamento. Ela pode se apresentar na condição de ser, de sujeito ou de sentido para a multiplicidade; ou, na condição de não-ser, de não-sujeito ou de não-sentido da multiplicidade, sempre segundo a dinâmica do paradigma envolvido. O alvo da teoria é sempre o uno como origem e fundamento do todo, na constatação de Habermas.5 Esse movimento também ocorre na filosofia do direito. O fundamento do Direito, na condição de realização do justo, foi estabelecido nos mesmos moldes: como fysis cósmica, racionalidade divina (lei eterna), em última ratio, como razão natural antropocêntrica ou como norma pensada (Kelsen).6 A multiplicidade, em seu caminho de retorno, é deduzida da unidade. O uno se instala ou assume a condição de fundamento e origem da totalidade. Para além desse horizonte existe o não-ser, a barbárie, o não-sentido. O plural, o múltiplo, o diverso não se legitimam a partir de sua própria condição.

3 Ibid., p. 151.4 Ibid., p. 154.5 Ibid., p. 151-166.6 Norberto Bobbio (1989, p. 59) usa a expressão redutio ad unum ao falar do ordenamento jurídico e a necessidade de uma norma única no ápice do sistema.

Filosofia da libertação, crítica jurídica e pluralismo 119

A observação crítica de Enrique Dussel insiste em apontar a presença constante dessa mesma lógica, na história da filosofia ocidental. Isso leva à afirmação que caracteriza a filosofia geopolítica e ideologicamente:

A ontologia, o pensamento que exprime o ser - do sistema vigente e central -, é a ideologia das ideologias, é o fundamento das ideologias de império, do centro. A filosofia clássica de todos os tempos é o acabamento e a realização teórica da opressão prática das periferias. Por isso a filosofia, como o centro da hegemonia ideológica das classes dominantes, quando é filosofia da dominação, desempenha um papel essencial na história europeia. Pelo contrário, dificilmente se poderia encontrar em toda essa história o pensamento crítico que seja, de alguma forma, filosofia da libertação, enquanto se articula à formação ideológica das classes dominadas.7

Nessa ordem de ideias a reflexão filosófica leva a uma valorização central da cate-goria da totalidade, e consequentemente, à desvalorização da multiplicidade, e à negação da exterioridade (tudo aquilo que se encontra para além do horizonte da totalidade). Ocorre uma desvalorização ontológica, cognitiva, axiológica, ética, estética, epistemologia, her-menêutica, jurídica, cultural, social, e filosófica, enfim, de modos alternativos, múltiplos, plurais de ser, pensar, comunicar e viver. A partir dessa premissa, dossel afirma a necessi-dade de “destruição” do pensamento europeu, apontando sua lógica e seus limites, com a finalidade de proporcionar lugar ao novo, ao outro, ao diferente, ao distinto. Assim, é importante questionar o “pensar de centro”.

Para exemplificar sigo alguns passos dessa lógica na razão comunicativa. As for-mulações filosóficas de Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas, ao que se vê, conseguem a superação da subjetividade solipsista moderna.

Qual o objetivo de Karl-Otto Apel? Ele busca obter a fundamentação pragmático-trans-cendental e a fundamentação das normas situacionais na razão discursiva, por considerar que nela estão antecipadamente as exigências dos discurso que visam à formação do consensos nos afetados.8 Assim, as normas situacionais seriam sempre revisáveis, enquanto o princípio procedimental do discurso seria o único que conserva validade incondicional: aparece como um critério permanente, como ideia regulatória. E não ficaria, com isso, comprometida a autonomia da consciência, pois cada indivíduo pode e deve, em princípio, examinar, julgar, ponderar e até questionar todo e cada resultado fático, fruto de consenso, tendo como critério o consenso ideal.

7 DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação na América Latina. São Paulo: Loyola, 1977. p. 11-12.8 APEL, Karl-Otto e outros. Fundamentación de la ética y filosofia de la liberación. Méxi-co: Siglo Veintiuno, 1992. p. 23.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina120

Karl-Otto Apel insiste nessa condição dupla da existência de um a priori não-con-tingente do discurso argumentativo, e dos consenso situacionais. Assim, a teoria da ética discursiva tem duas partes: oferece uma fundamentação de um princípio formal (uni-versal) de procedimento; e uma fundamentação de consenso que se vincula às relações situacionais, no sentido de uma ética da responsabilidade histórica.

Os discurso reais estão vinculados às situações históricas, mas como tal, pela ênfase no princípio de Universalização, não se limitam aos envolvidos pelo uso da faculdade judi-cativa do homem comum.9 A resolução normativa deve contar com a ajuda do “saber dos experts”, isto é, há a necessidade de uma colaboração estreita entre a filosofia e as ciências empíricas.

Diante da questão posta, ainda que de modo sumário, como avaliar a proposta filosófica da razão comunicativa ante aos desafios de um pensar que pretende romper com a lógica da totalidade? Dussel avalia que o solipsismo moderno resta superado por Apel, pela passagem do “eu” ao “nós”. Porém, chama atenção para a possibilidade de o “nós” fechar-se, totalizar-se. E em consequência, numa “comunidade de comunicação real” excluir o argumento do outro, e portanto, reduzir-se a uma argumentação sobre “o Mesmo”. Por isso o essencial para uma filosofia da libertação não é o eu ou o nós, porém o tu, o outro da comunidade real.

Assim, embora necessária, a filosofia que afirma a “comunidade de comunicação”, o “nós” que supera a subjetividade moderna não é suficiente para o pensar latino-ame-ricano, pois não toma a categoria da exterioridade como ponto de partida. A exterioridade é a condição de possibilidade da argumentação como tal. Na argumentação séria é preciso supor que o outro tem uma nova razão, uma razão diferente ou distinta, e que pode colo-car em questão o consenso já alcançado.10

É nesse passo que se distinguem as duas éticas –a ética do discurso e a ética da alte-ridade–. O ponto de partida, ainda que apenas anunciado, é o outro silenciado e excluído e que está além da comunidade de comunicação. Haverá não participantes, afetados como efeito do argumentar, fato reconhecido por Apel. Trata-se do outro que a posteriori sofre os efeitos de um consenso do qual não foi parte. Mas há situações que interessam à crítica contra-hegemônica: é o caso de um a priori à própria argumentação. Interessa o outro como condição a priori de possibilidade de toda a argumentação, e portanto, de todo novo argumento. Trata-se do excluí-do, antes de ser afetado. Isso implica levar em conta as condições materiais de possibilidade ou impossibilidade de participar –deve-se levar em conta o poder efetivamente participar –. Nesse caso, é a não-comunicação– a incomunicabilidade (o não-ser) o ponto de partida. Na pe-riferia do mundo, e temos em conta de maneira especial, a periferia latino-americano, esse não é um tema apenas teórico, mas uma experiência fática que dura mais de meio milênio, marcado especificamente pelo processo de colonização.

9 Ibid., p. 30-31.10 DUSSEL, Enrique D. e outros. Fundamentación de la ética y filosofía de la liberación. México: Siglo Veintiuno, 1992. p. 76.

Filosofia da libertação, crítica jurídica e pluralismo 121

Nisso consiste, portanto, a consequência prática dessa exclusão da exterioridade. A exterioridade aparece como a contra-imagem da totalidade. E penso que essa categoria da exterioridade é fundamental para a legitimidade do pluralismo na perspectiva da alterida-de, mais especialmente para a ética da alteridade, na condição também de um dos susten-táculos de um pluralismo jurídico critico.

Muitos conceitos categoriais são úteis e necessários para “ir descobrindo” e ‘”cons-truindo” essa categoria de categorias, como a questão do método, a questão do funda-mento, a questão do sujeito insurgente, comunidade das vitimas, a práxis.

1.2. A exterioridade: a vida humana na condição de critério fonte

No ponto de partida aqui sugerido, o sujeito vivente constitui o critério fonte, condição de possibilidade de todo o mais. Esse critério –a vida humana– serve como referência de todo ato, norma, estrutura, sistema, subsistema, instituição etc. Assim, a premissa é que a vida humana em comunidade é o modo de realidade do sujeito. Em resumo, a vida humana concebida não como valor. Ela não é um horizonte ontológico, não é trabalho apenas, não é mera sobrevivência, não se esgota na cultura, não é condição de ser, não se esgota na consciência, não é condição de possibilidade da argumentação, não é só um direito, e não é condição de possibilidade, mas modo de realidade. Nesse sentido é precisamente fonte e con-teúdo de onde emana, inclusive, a racionalidade como momento do ser vivente humano.

Assim, a vida humana orienta as ações em geral, razão pela qual nenhum siste-ma ou subsistema (inclusive o subsistema direito) pode deixar de ter como referência o conteúdo o sujeito vivente. No plano mais concreto, o importante é a produção, reprodução e desenvolvimento da vida do sujeito. Condições essas que, se não forem levadas em conta, acarretam negações a aspectos da vida e no limite fatalmente levam à morte (negação do critério fonte e da condição de possibilidade). Trata-se da originária e genuína vulnerabilidade da vida do sujeito.

O momento da produção da vida humana se desdobra no mais diversos níveis da vida: desde os níveis vegetativo ou físico até as funções superiores da mente, esta na sua cons-ciência, autoconsciência, linguagem, valores, liberdade e assim por diante.

O momento da reprodução da vida humana, - ainda que se possa fazer menção ao ins-tante da autopoiese subjetiva abstratamente considerada -, é o momento das instituições e dos valores culturais, na condição de mediações necessárias e adequadas para a continui-dade da vida do sujeito que reproduz a si mesmo no fato de viver.

E por fim, importa o momento do desenvolvimento da vida humana no quadro das macro e microestruturas da sociedade. O desenvolvimento histórico deixou lugar para a construção do humano para além de um mero crescimento natural. Assim, o sistema que em sua reprodução impede o desenvolvimento humano deverá ter na razão crítica a exigência de sua transformação.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina122

Nesse contexto argumentativo, a vida humana –critério-fonte– não aparece propria-mente como um direito. Como no caso de ter “direito à vida”, por exemplo. Trata-se de um nível mais abstrato. Nesse sentido, a vida não é um direito, mas fonte de todos os direitos.

1.3. A manifestação do sujeito vivente –ou a insurgência das alternativas–

A afirmação acerca da existência maciça de vítimas em nosso mundo, a produção e pre-servação de sujeições históricas e culturais, no âmbito de uma lógica de redução da multi-plicidade à unidade, da pluralidade à unidade, impõe uma exigência crítica e ética desde um horizonte que ultrapasse analeticamente a totalidade dialética do debate entre moder-nidade e pós-modernidade. Pois, a exigência mencionada requer a conservação da vida onde ela está afirmada, e requer a afirmação da vida onde ela está negada, seja na ordem da produção, reprodução e desenvolvimento.

É no contexto desse giro transmoderno do pensamento que a categoria da exterioridade, na condição de categoria de categorias, tem importância fundamental, porque permite pensar as novas questões, ou pensar de maneira diferente questões já pensadas, agora para além do horizonte da hegemonia das teorias moderno ocidentais eurocêntricas. O passo seguinte se encaminha para o sujeito, ao grito do sujeito concreto, como modo de sua realidade, con-siderados os mundos impossíveis e os mundos possíveis. A insurgência das alternativas exige pensamentos alternativos, para além da totalidade hegemônica das teorias do Norte. O monismo da filosofia necessita de filosofias alternativas para as alternativas. A exigência do pluralismo se justifica pela necessidade de pensamento alternativo para as possíveis e reais alternativas. E a categoria da exterioridade pode orientar o sentido do pluralismo de pensamentos e de práticas.

Assim, a emancipação ou libertação encontram sua legitimidade crítica desde as negações de cada sujeito e de cada comunidade. Especialmente, de cada comunidade popular. E nesse plano, trata-se das negações sofridas pelo povo. Gramsci concebe a cate-goria “povo” como sendo o bloco social dos oprimidos numa nação explorada. Nas palavras de Dussel, o povo seria o bloco social dos oprimidos, de uma nação, por sua vez, também oprimida.11 O conceito de “bloco social” é adequada porque inclui a “classe”, e também os grupos que não são classe (etnias, tribos, minorias etc.) e as formas de dominação, cujo lugar pode tanto ser a exterioridade do sistema (sempre que há exclusão), quanto na totalidade do sistema (por haver subsunção). Nesse sentido o bloco social constitui-se no sujeito histórico, a partir da consciência popular (e não só consciência de classe), decisivo no projeto da transformação, orientado pela negação das negações. Nessa linha de reflexão, o sujei-to histórico insurgente é constituído pelas classes dominadas (classe operária-industrial,

11 DUSSEL, Reflexión pratica de filosofía de la liberación. Texto inédito apresentado no Foro de Filosofía de la Liberación, realizado na Universidad de Guadalajara, de 06 a 08 de maio de 1985, p. 18.

Filosofia da libertação, crítica jurídica e pluralismo 123

camponesa etc.), mas além disso, por todas as subjetividades que sofrem negações, ainda que não sejam classe capitalista, ou que exercem práticas de classe esporadicamente (mar-ginais, etnias, tribos e demais grupos que apresentam negações de vida). É o bloco social e histórico dos oprimidos. É na ótica do pluralismo jurídico, a comunidade das vítimas, legitimidade fundante dos novos sujeitos coletivos, no projeto comunitário-participativo, de produção de novos direitos.

Ao tratar de tema semelhante em outra oportunidade, escrevi12 sobre o assuntos o que segue transcrito: “nos países periféricos e semi-periféricos do sistema mundo, a categoria “povo” está intimamente ligada ao pobre ou às vitimas, à comunidade das vítimas. Povo, pobre, vítimas constituem o oprimido como oprimido, fato que resulta da subsunção ao sistema de dominação. No entanto, a dominação não elimina inteiramente a exteriorida-de. Ante a persistência da racionalidade negada –momento analético da dialética–, o opri-mido, enquanto outro, desdobra-se, em “oprimido como oprimido” (intratotalizado) e em “oprimido como exterioridade”. Tendo em vista essa distinção, abre-se o espaço analético. A exterioridade consiste na reserva real atual que cada sujeito como modo de realidade em sua vida em comunidade mantém através de um existir com alteridade, num sistema caracterizado pela dominação eticamente perversa, no saber epistemicida, na injustiça po-lítica, e assim por diante. A alteridade que se mantém viva, que é efetiva nas organizações e movimentos populares, na manifestação da cultura alternativa de resistência, é manifes-tação real da condição do oprimido como exterioridade. Portanto, além da totalidade do sistema, encontra-se a experiência da exterioridade das subjetividades afirmadas e negadas (oprimido como exterioridade e oprimido como oprimido), seja na ordem individual ou coletiva. As vítimas, os oprimidos, os pobres, a nação periférica (bem como todo afetado pela dominação nos mais diversos aspectos) têm realidade (“o não-ser é real”), “mais além” do horizonte da totalidade totalizada de cada sistema. O oprimido contém em sua vida (que é não-ser para a ontologia da totalidade), isto é, na sua subjetividade, na sua cultu-ra, na sua experiência, na sua compreensão, na sua práxis, no seu existir, exterioridade analética, que lhe permite descobrir-se como oprimido no sistema, mas também como diferente e distinto do sistema. Como o outro do sistema. Não fosse a exterioridade como afirmação analética (afirmação de sua dignidade, de sua liberdade, de sua cultura, de seus direitos, de seu trabalho - trabalho vivo, primeiro, e fonte de todo valor) estaria submerso, sem possibilidade de descobrir e produzir as alternativas que a realidade permite, sob o ponto de vista de como poderia ser, ou até deveria ser. Enfim, sem a exterioridade não teria a possibilidade de desejar e projetar a utopia. Ficaria sem a possibilidade de sonhar e produzir outro mundo factível. A exterioridade é, assim, a afirmação positiva e fonte axio-lógica da exigência de justiça. A negação da opressão inicia-se e é possível pela afirmação da exterioridade do outro (aqui as vítimas, nunca inteiramente subsumidas nos diferentes

12 LUDWIG, Celso Luiz. Filosofia e Pluralismo: uma justificação filosófica transmoderna ou des-colonial. In: WOLMER , Antonio Carlos e outros (orgs.). Pluralismo Jurídico: novos caminhos da contemporaneidade. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 117.

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aspectos da dominação). O caminho concreto de busca dessa alteridade pode dar-se pela práxis alternativa, desde a categoria filosófica da exterioridade, na condição de fonte inultra-passável da legítima necessidade e possibilidade de emancipação e de libertação.

2. A Filosofia da Libertação descolonial

A filosofia da libertação de cunho dusseliano, procura mostrar a contra-imagem da lógica da totalidade a partir do sentido de uma ética da alteridade a partir do outro, a partir da ex-terioridade. Enfim, mostra como ocorre o processo de subsunção da exterioridade (que é sempre também espacial, cultural e jurídica) à totalidade, e qual o sentido da exterioridade para o pensar que se situa fora (“mais além”) da lógica da totalidade.

O ponto de partida desse pensamento contra-hegemônico está no critério-fonte já mencionado: o princípio da produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada su-jeito como modo de realidade (2.2). Esse princípio é estabelecido na ordem da afirmação da vida, ponto de entrada da fundamentação. No entanto, por outro lado, está a impossibilidade de produção, reprodução e desenvolvimento da vida como modo de realidade. Trata-se agora, da esfera da negação da vida; ordem da impossibilidade do viver. Daí a necessidade ética da crítica e de um pensamento que dê conta da injustiça dessa impossibilidade. Uma filosofia ético crítica que mostra a legitimidade da necessária transformação da vida negada, a partir da exigência ética da comunidade das vitimas. Uma ética da alteridade, desde a negati-vidade. A dinâmica agora é outra: desde o não viver ou não poder viver ao dever ou poder viver. Uma ética da alteridade que serve de referência e que permita vislumbrar a possibi-lidade de justificar ações, sistemas, subsistemas que permitam viver e viver melhor.

Portanto, a factibilidade disso implica em poder romper com obstáculos que re-sidem no próprio pensamento filosófico que chamamos de lógica da totalidade, para assim abrir espaço ao giro epistemológico filosófico descolonial.13

Os limites a superar, dados os desafios atuais no contexto de um mundo globa-lizado, mas ao mesmo tempo marcado pela impossibilidade de viver de muitos, seriam os do helenocentrismo, do ocidentalismo, do eurocentrismo, e por fim, o quarto limite a superar é o do colonialismo filosófico –o colonialismo teórico ou mental– o que exige, exatamente, o giro epistemológico descolonial, superação que é uma das condições para a superação do monismo tanto filosófico como quanto jurídico. Exige uma libertação da filosofia e uma filosofia de libertação descolonial.

Conclusão

No contexto da filosofia da libertação, em especial na vertente dusseliana, e tendo presen-tes algumas das categorias e premissas até agora lançadas, e tendo em vista algumas das

13 Dussel apresenta algumas das limitações que devem ser superadas para a elaboração de um Politica da Libertação (2007, p. 11-13).

Filosofia da libertação, crítica jurídica e pluralismo 125

breves justificações expostas, entendo que o campo jurídico necessariamente deve estar atravessado pela racionalidade crítica, porém, racionalidade critica libertadora descolonial, tendo sempre em conta o contexto das reais negatividades existentes. E dada a complexidade mui-to própria dessa situação nos atuais tempos de globalização e exclusão, o desafio deve ser assumido com atenção, (1o.) no nível dos princípios universais e abstratos; (2o.) no nível parti-cular das mediações sistêmicas; e (3o.) no nível da ação concreta, para sugerir um esboço desse encaminhamento, na condição de uma filosofia jurídica de libertação descolonial, tendo em conta a especificidade da dinâmica da transformação do direito frente aos novos direitos e frente às fontes plurais de juridicidade, produzidas pela intensa práxis dos mais diversos agentes.

A impossibilidade de viver em algum nível –viver dignamente–, que se revela nega-tivamente em algum aspecto material da vida, ou em muitos aspectos, mostra igualmente uma negatividade formal, porque produzida pelo direito ou porque não prevista pelo sistema do direito vigente. A critica jurídica de libertação descolonial torna-se necessária, a partir do momento negativo que descobre a injustiça (na positividade do sistema), agora, portanto, desde a negatividade formal (algum aspecto material da vida é negado formalmente). Assim, o conceito de justiça e sua exigência surgem desde o conceito de injustiça (Hinkelammert). A injustiça está ou pode estar nos mais diversos aspectos de negação da vida concreta dos sujeitos. Na contra-imagem, a exigência de justiça surge, portanto, da negatividade. Negar a diversidade cultural, por exemplo, implica em perpetrar uma injustiça. A negatividade referida provem de diverso lugares, sendo que a negatividade jurídica, é certamente, uma dessas importantes determinações. Negação que está, portanto, na esfera dos direitos –dos direitos negados–, negação no campo jurídico. Dois são os aspectos a serem ressalta-dos. De uma parte, essa negatividade é efeito da perversidade da lógica global do sistema mundo nesse momento histórico, por outra, no entanto, é efeito específico da lógica de cada subsistema: efeitos negativos do subsistema jurídico.

No campo ético e jurídico a transformação crítica do sistema requer um conceito de justiça –desde a injustiça da negatividade–, o que é possível historicamente nos momentos em que a necessidade de afirmação da vida é produzida conduzida pela comunidade das vitimas. A práxis efetiva das vítimas é decisiva para a transformação. E se muitas são as mediações necessárias, uma das mediações específicas é a do direito, que neste caso, tem o sentido de possibilitar o exercício efetivo de incorporação de novos direitos.

Para isso, a práxis comunitária é decisiva para a concretização de uma cultura do pluralismo, em especial do pluralismo jurídico emancipatório e de libertação. Não se pode deixar de levar em conta o paradigma societal que está em jogo. No mundo do capitalismo globalizado a lógica mais geral desse sistema (e sua irracionalidade) não pode ser esquecida –em especial toda perversidade que resulta da mais-valia do processo de produção–, e tam-bém o amplo contexto da luta de classe não pode ser negligenciado. No entanto, também é importante a participação da sociedade civil nesse projeto comunitário-participativo de emancipação e libertação. Assim, os novos agentes e sujeitos históricos que mostram uma nova forma de fazer política, que descobrem novos espaços, e um novo modo de atuar

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nos espaços, sejam tradicionais ou não, tendo como finalidade a defesa de direitos huma-nos já reconhecidos como tais, ou que atuam na produção de novos direitos humanos, até a defesa do trabalho e de direitos do trabalho, de proteção à natureza, de necessidades muitos específicas, de interesses locais, e também globais. Enfim, são pautas das comuni-dades que se auto-organizam também em ONGs, voluntariados, terceiro setor, economia solidária, em redes, cooperativas, clubes de troca, grupos de reflexão, novas escolas de formação, grupos de cidadania e pressão, diversos movimentos sociais (os movimentos indígenas, os quilombolas, os novos movimentos sexistas, os movimentos negros, grupos ecológicos, os “sem-terra”, os “sem-casa”, os “sem-direitos” e outros), produzindo redes de solidariedade nacionais, regionais e internacionais, como em geral a fenomenologia do assunto permite identificar.

Nessa fenomenologia pode-se notar que a atuação anti-hegemônica plural –são frentes as mais diversas– terá que ser vista e compreendida como ação superadora da globalização atual hegemônica, que produz novas e contínuas formas de dominação, de opressão e de exclusão. A renovação e persistência dessa situação desafia a capacidade criadora, inovadora da comunidade das vítimas, em especial a dos pobres e excluídos, mas desde a condição de sujeitos viventes comunitários, condição na qual a falta, a privação, enfim a negação de vida necessita e exige transformações. Portanto, essa mudança de compreensão na ordem da filosofia que faz a reflexão desde a comunidade das vítimas em suas frentes de libertação, hoje se atualiza como desafio para a busca de expectativas de uma vida possível e melhor, mas a partir da condição de sujeito vivente, que quer, pode e deve viver, na condição de outro do sistema, tendo na categoria da exterioridade, o critério fonte de justiça, e mo-tivo objetivo para legitimamente enfrentar a lógica e a práxis perversas que produzem as comunidade de vítimas, ainda que não intencionais.

A percepção dessa situação para além da aparência do existente, e portanto, num ir avançando ao nível estrutural mais profundo (da totalidade até encontrar a exterioridade) é não só um desafio, mas uma exigência para todos nós.

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FILOSOFÍA DE LA LIBERACIÓN, PLURALIDAD CULTURAL Y DERECHOS HUMANOS

Alejandro Rosillo Martínez1

Introducción

La pluralidad cultural en relación con los derechos humanos es un tema conflictivo, pues filosóficamente se ha concebido como un choque entre el universalismo y el relativismo; es decir, se discute dentro de la dicotomía universal-particular. En términos generales se afirma que asumir la validez de los derechos humanos significa reconocer una ética uni-versal, válida para todo ser humano en cualquier tiempo y lugar, donde los “países desa-rrollados” son la punta de lanza en el proceso de su implementación. No obstante, lo que se puede constatar en sentido contrario es el uso que de los derechos humanos realizan pueblos y culturas diversas al Occidente hegemónico, donde se suelen apropiar de ellos y resignificarlos desde sus propias comovisiones, espiritualidades y condiciones vitales.

Ahora bien, el fundamento de los derechos humanos es uno de los temas donde se muestra con claridad la dicotomía arriba descrita; tanto las corrientes iuspositivistas como iusnaturalistas suelen pasar por alto el hecho de la pluralidad cultural. En consecuencia, invisibilizan o desconocen las maneras en que diversos pueblos y culturas resignifican de-rechos humanos desde sus propias corporalidades. Esto ocasiona que de raíz la teoría y la praxis de derechos humanos, desde una ubicación geopolítica, se encuentren divorciadas. Los iusfilósofos continúan defendiendo fundamentaciones de derechos humanos que no corresponden con la riqueza de las prácticas de los diversos pueblos. De ahí surge la tarea de ensayar una fundamentación que sea capaz de asumir una ubicación geopolítica. Para lo cual, tomamos como referente la Filosofía de la Liberación pues varios de sus con-ceptos y categorías pueden colaborar en una fundamentación de derechos humanos que supere el monoculturalismo.

En este artículo trataremos de delinear algunas líneas de reflexión sobre dicha fun-damentación. En un primer momento, ampliaremos las formas en que las fundamenta-ciones hegemónicas de derechos humanos niegan o soslayan el pluralismo cultural; en un

1 Profesor de tiempo completo de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de San Luis Potosí. Coordenador de la Maestria en Derechos Humanos de la Facultad de Derecho de la UASLP. Autor de diversos libros, a destacar: Liberación y Justicia Social. CENEJUS: Aguasca-lientes; San Luis Potosí: Maestria Derechos Humanos, 2012; La Tradición Hispanoamericana de Derechos Humanos. Quito: Corte Constitucional del Ecuador, 2012. Correo-e: [email protected]

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina130

segundo momento, estableceremos los tres pilares que consideramos pueden conformar una fundamentación a partir del pensamiento latinoamericano de la liberación.

1. Fundamentaciones de derechos humanos y negación del pluralismo cultural

Podemos señalar que las fundamentaciones de derechos humanos corren el riesgo de caer en el dogmatismo, en el pensamiento débil, en el reduccionismo y en el etnocentrismo.2 De estos riesgos dos están estrechamente vinculados con la imposibilidad de generar una interculturalidad de los derechos humanos: el dogmatismo y el etnocentrismo.

Una fundamentación de derechos humanos es dogmática cuando pretende encon-trar un fundamento absoluto. Se establece un tipo de fundamento que al ser una razón tan evidente ninguna persona puede estar excusada en reconocerla; una vez establecido no puede posteriormente discutirse y quien se rebela a él queda, por ese hecho, excluido de la comunidad de los sujetos racionales. Esa postura niega la diversidad y la pluralidad cultural, pues al considerar que se tiene un acceso privilegiado al conocimiento del funda-mento de derechos humanos, entonces aquellos que se oponen han de ser considerados irracionales y, por lo tanto, criminales. Un ejemplo claro de esto es el discurso racionalista e iusnaturalista de Ginés de Sepúlveda: teniendo como referencia lo que él consideraba el contenido de la naturaleza humana (claro reflejo de la cultura eurocristiana del siglo XVI) calificaba a las prácticas culturales de los pueblos indios como reprochables y esto era la base para justificar la guerra justa contra ellos.3 También lo encontramos en John Locke quien en su Segundo tratado del gobierno civil señala que los derechos naturales son evidentes para la mente humana; en quien transgrede la ley natural no rige la ley de la razón y por lo tanto él mismo se excluye de la comunidad de seres racionales; como consecuencia es despojado de los derechos naturales que son atribuidos a quienes efectivamente poseen “condición humana”.4

El otro problema de las fundamentaciones dominantes de derechos humanos es el etnocentrismo. Como señala Senent, “[u]no de los problemas teóricos con que nos encontramos al tratar la cuestión de los derechos humanos es que se señala que estos representan una institución etnocéntrica, y precisando aun más, se denuncia que son una institución eurocéntrica”.5 Para superar esta situación, la fundamentación de derechos humanos debe posibilitar el diálogo intercultural para mostrar que la experiencia de lucha

2 Cf. SENENT, Juan Antonio. Problemas fundamentales de los derechos humanos desde el horizonte de la praxis. Valencia: Trant lo Blanch, 2007. pp. 48-58.3 Para un estudio al respecto, véase: ROSILLO MARTÍNEZ, Alejandro. Los inicios de la tra-dición iberoamericana de derechos humanos. San Luis Potosí: UASLP-CENEJUS, 2011.4 Cf. LOCKE, John. Segundo tratado del gobierno civil. Trad. Cristina Piña, Losada, Buenos Aires, 2004, nos. 8-10, pp. 12-13. Más adelante, al abordar la crítica a la ideologización de los dere-chos humanos profundizaremos sobre esta visión de Locke.5 SENENT DE FRUTOS, op. cit., p. 56.

Filosofía de la liberación, pluralidad cultural y derechos humanos 131

por la dignidad humana, y el uso de instituciones políticas y jurídicas para protegerla, no son postulados exclusivos de Occidente. De lo contrario, la fuerza crítica del discurso de derechos humanos se ve disminuida en realidades periféricas, ajenas total o parcialmente a la tradición eurocéntrica, y se vuelven ideologizaciones e instrumentos que justifican la opresión de las clases dominantes –que suelen ser funcionales a y simpatizar con los inte-reses de las potencias del Norte– sobre las clases pobres y populares.

El etnocentrismo de la fundamentación de derechos humanos puede expresarse de diversas maneras; dos destacables son el “modelo historicista” y el “modelo monocul-tural”. Entendemos por modelo historicista aquel que “encadena” la reflexión de derechos humanos a los acontecimientos históricos concretos en que se generaron por primera vez los órdenes jurídicos que los positivizaron de manera expresa, y descalifica a priori cual-quier praxis o discurso que vaya más allá o se contraponga a los presupuestos que dieron origen a dichos acontecimientos. Son aquellas posturas que, más allá de aceptar la matriz histórica, consideran que sólo desde los postulados teóricos originarios es que puede ha-blarse de derechos humanos; es decir, si una teoría, reflexión o praxis –sea en lo jurídico, en lo político o en lo ético– no asume los valores de la Modernidad hegemónica entonces no se puede estar hablando de derechos humanos. Con lo cual, derechos humanos queda aprisionado a un solo tipo de organización política, a una sola clase de reflexión iusfilo-sófica, y a un solo tipo de praxis político-jurídica. Cualquier intento contemporáneo de repensar derechos humanos fuera de esas coordenadas, es descalificado como impreciso o inadecuado por utilizar “herramientas” ajenas al momento histórico en donde se gene-raron derechos humanos.6

Por su parte, el modelo monocultural está compuesto por aquellas teorías que defienden como insuperable el paradigma eurocéntrico de derechos humanos, tanto en su reflexión ética como jurídica. Es decir, fuera de las coordenadas de la ética ilustrada –que defiende el individualismo– y del estado moderno, no se puede hablar de derechos huma-

6 Por ejemplo, Gregorio Peces-Barba, al analizar el reduccionismo “en la reconstrucción del Derecho Natural Clásico”, señala: “Situar en ese campo, ajeno a la cultura jurídica en que apareció, la idea de los derechos humanos a partir del tránsito a la modernidad, exige unos equilibrios difíciles de compartir”. Y continúa: “Buscar los derechos en el ajuste de las situaciones, de las relaciones concretas, donde aflora ‘id quod iustum est’, lo que es justo, es intentar construir una teoría de los derechos de espaldas a la realidad histórica de la cultura jurídica en la que nacieron. Ollero pre-tende un imposible: un reduccionismo iusnaturalista de los derechos humanos con instrumentos premodernos” (PECES-BARBA, Gregorio. Curso de derechos fundamentales. Teoría general, Universidad Carlos III de Madrid. Madrid: BOE, 1999, p. 47). Sin prejuzgar sobre si es correcta o no la teoría concreta criticada por el autor, lo que consideramos un modelo de etnocentrismo es descalificar las posturas que intentan repensar derechos humanos sin utilizar los instrumentos iusfilosóficos “de la cultura jurídica en la que nacieron”. Es decir, con el paso de la historia, y el cambio de las circunstancias sociales, derechos humanos pueden y deben ser repensados con el uso de las categorías filosóficas más pertinente para responder a la realidad, y es probable que nos topemos con la necesidad de renunciar al uso de categorías “de la cultura jurídica donde nacieron los derechos”.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina132

nos.7 Si seguimos a Boaventura de Sousa Santos, este modelo provoca un desperdicio de la experiencia y responde al uso de una razón metonímica y una razón proléptica.8 Este tipo de modelo hace imposible que derechos humanos pueda ser un discurso generado y aceptado por otras culturas para la defensa de la dignidad humana, y los coloca en la peligrosa situación de convertirse en un instrumento de ideologización que justifique la imposición de una cultura en perjuicio y destrucción de otras.

No obstante, quienes sostienen el etnocentrismo de los derechos humanos podrían argumentar el carácter universal de ellos –y, en consecuencia, su transculturalidad– y que si no se acepta su eurocentrismo entonces los pueblos están en libertad de crear otras instituciones y reflexiones que no deberían asumirse como derechos humanos. Ante estas posturas, se debe fortalecer la necesidad de superar el etnocentrismo. Por un lado, no se desea negar la universalidad de derechos humanos y, por lo tanto, se debe buscar una fun-damentación que permita el acceso a ellos a todas las culturas desde su propia dinámica, pues de lo contrario, el puro hecho de la imposición cultural es ya una violación a la dig-nidad humana; con lo cual, estaríamos ante un proceso de implantación de derechos hu-manos que estaría violentando lo que se supondría que desea proteger. Por otro lado, ante la expansión colonial y neocolonial de Occidente, sea a través de las armas, las ideologías (incluyendo las religiones, por supuesto) o el mercado, el discurso de derechos humanos ha llegado a una “altura procesal histórica” que lo ha convertido en el principal discurso de legitimidad política, no sólo de los estados, sino también de las acciones populares desde abajo y del quehacer de las instancias internacionales. En este contexto, es evidente que las luchas populares por la dignidad humana, basadas en otras tradiciones culturales distintas a la occidental, suelen utilizar un proceso de “traducción”9 para expresar sus pretensio-nes y sus formas de satisfacer sus necesidades de vida como “derechos humanos”. Para esto, en parte, es necesaria una fundamentación que permita dicha traducción.

7 Por ejemplo, un texto de Peces-Barba que refleja este reduccionismo monocultural: “La uni-versalidad de los valores occidentales, expresión de la modernidad, o son discutidos, alterados o disueltos desde dentro, o son sustituidos por otros valores alternativos que vienen de otras culturas, antes silenciosas o desconocidas, que exaltan la nación, la religión, el poder, la privacidad, pero no son integrados en otra propuesta unitaria, sino por una multiplicidad de líneas, que expresan un caos cultural, que apenas se disimula con la respetable noción de pluralismo o pluralidad” (PECES-BARBA, Gregorio. Ética, poder y derecho. México: Fontamara, 2000, p. 16).8 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Hacia una sociología de las ausencias y una sociología de las emergencias. In: El milenio huérfano. Ensayos para una nueva cultura política. Madrid: Trotta, 2005, pp. 151-192.9 La idea del proceso de “traducción” entre culturas es propuesto por Boaventura de Sousa Santos, utilizando la “hermenéutica diatópica” (Cf. SANTOS, op. cit., pp. 180-187). Más adelante, al hablar de la compresión compleja de derechos humanos, ampliaremos este punto.

Filosofía de la liberación, pluralidad cultural y derechos humanos 133

2. Hacia una fundamentación liberadora de derechos humanos

El tema de lo intercultural y los derechos humanos ha estado potencialmente presente en el pensamiento de la liberación. Una muestra es un artículo de Ignacio Ellacuría escrito a petición de una revista francesa, donde se le plantea la relación de los derechos humanos con las luchas de los pueblos indígenas. Su respuesta la realizó dentro del marco de análisis que le daban las categorías “mayorías populares” y “realidad histórica” pero enriquecidas con el contenido intercultural. En efecto, propone la construcción de una “teoría revolu-cionaria de los derechos humanos” que parta de las luchas de las mayorías populares por transformar y que dé más de sí la realidad histórica, con el fin de superar las situaciónes de injusticia.

En este contexto, Ellacuría comprende a los pueblos indígenas como parte de esas mayorías populares, pero añade la cuestión intercultural. De ahí que establezca la necesi-dad de la autonomía indígena, como parte de un derecho a la insurrección o revolución, en los siguientes términos:

Una de las formas típicas de esta injustica es la de la heterodeterminación, la de ser forzados a determinar la existencia individual y colectiva por lo que otras quieren. De ahí que el derecho de insurrección se pueda afirmar positivamente como derecho de autodeterminación, pero de autodeterminación sobre todo de quienes han sido forzados secularmente a heterodeterminarse, los secularmente hterodeterminados.10

Reconoce la importancia de no desperdiciar la experiencia histórica de los pueblos indígenas para poder reconstruir las luchas por la dignidad humana y lograr generar una nueva comprensión de los derechos humanos. En concreto, señala:

Desde luego la realidad indígena ofrece una perspectiva peculiar para la reconstrucción de un mundo nuevo y para la invención de un nuevo sistema histórico de derechos, porque a su condición de mayorías oprimidas añade la peculiaridad de una tradición que puede poner en tela de juicio derechos que ideologizadamente se aceptan como derechos humanos universales o naturales. No sólo en su misma existencia muestran la verdad de lo que es la doctrina y la práctica de los derechos humanos sino que en su autodeterminación insurreccional podrían construir una nueva constelación de valores. Inyectarles a través del esquema de los derechos humanos el esquema axiológico y el estilo de vida de la civilización occidental puede ser una gran injusticia y es, desde

10 ELLACURÍA, Ignacio. Respuesta a CETRAL [Mayorías oprimidas, reivindicaciones indígenas en Centroamérica y el problema de los derechos humanos]. In: SENENT, Juan Antonio (Ed.). La lucha por la justicia. Selección de textos de Ignacio Ellacuría (1969-1989). Bilbao: Universidad de Deusto, 2012, p. 296.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina134

luego, un radical empobrecimiento de lo que puede dar de sí el hombre y la humanidad en sus múltiples y diferenciadas realizaciones históricas.

Siguiendo esta línea, sostenemos que a partir de la Filosofía de la Liberación (FL) se puede proponer un camino para una fundamentación de derechos humanos que asuma la interculturalidad. En efecto, podemos establecer tres líneas generales de fundamenta-ción de derechos humanos, estrechamente ligadas entre sí. Ninguna de ellas cabe, de for-ma estricta y precisa, dentro de las corrientes iuspositivistas, iusnaturalistas o iusrealistas. Probablemente, como veremos, pudieran ser clasificadas como producto del diálogo entre las iusnaturalistas y las iusrealistas, o como una construcción entre iuspositivismo y ius-realismo; o, finalmente, como una síntesis de las tres posturas. Como sea, lo cierto es que intentar clasificar a estas vías de fundamentación dentro de cualquiera de dichas clases es una metodología poco adecuada, pues ellas están estrechamente ligadas a las elaboracio-nes iusfilosóficas del centro mundial, y responden de una u otra forma a la consolidación del estado moderno y de su ciudadanía desde esa ubicación geopolítica, mientras que la FL se comprende como un pensamiento geopolíticamente ubicado desde la periferia.

La anterior postura no significa una defensa del relativismo, sino de una compre-sión de la inteligencia humana donde la verdad no está dada sino que se va construyen-do. Como señala Dussel, la FL “trata entonces de tomar en serio al espacio, al espacio geopolítico. No es lo mismo nacer en el Polo Norte o en Chiapas que en New York”.11 Por tanto, su fundamentación de derechos humanos busca más, como veremos, la cons-trucción no de ciudadanos burgueses de un estado moderno sino de personas, pueblos y comunidades que, ante la exclusión de que son víctimas, se empoderan para llegar a ser sujetos de su propia historia. No obstante, tampoco se trata de despreciar los aportes que a la fundamentación de derechos realizan las iusfilosofías del centro hegemónico, sino de subsumirlas críticamente desde la realidad del Tercer Mundo.

Ante los cuestionamientos sobre la tarea de fundamentar derechos humanos, po-demos decir que si no se hace se corre el riesgo de invisibilizar sus matrices históricas, y se pierde así una instancia crítica. Con esto, la no-fundamentación tendría un efecto semejante a las fundamentaciones dogmáticas: a los derechos humanos ya reconocidos se les hipostasiaría, desvinculándolos de la praxis humana y colocándolos en un ámbito ahis-tórico; pero aún así, seguirían teniendo una directa repercusión en los procesos políticos concretos de los pueblos. Se impondrían contenidos normativos y criterios de legitimidad política ajenos a los procesos históricos de cada pueblo, y así derechos humanos termina-rían siendo instrumentos de ideologización que justificarían la dominación y la opresión de unos países sobre otros, de unas clases sociales sobre otras, o de unos grupos sobre otros. Sin fundamentación, “derechos humanos” es presa fácil de la falacia desarrollista y se vuelven instrumentos ideologizados de opresión. De aquí se desprende otra razón más del porqué fundamentar derechos humanos: construir una instancia crítica que sirva para verificar en la realidad cómo ciertos “derechos humanos” contribuyen o no con los pro-

11 DUSSEL, Enrique. Filosofía de la liberación. Bogotá: Nueva América, 1996, p. 14.

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cesos de liberación de las personas y los pueblos. Si bien la fundamentación no puede ser la única instancia crítica, puede ser una de gran importancia, si se evita caer en los riesgos ya comentados sobre la negación de la pluralidad cultural.

La fundamentación de derechos humanos que proponemos se basa en tres pilares, estrechamente vinculada con los procesos de subjetivización de los excluidos y las vícti-mas: la alteridad, la praxis y la vida.

3. La alteridad

La FL, aún cuando es crítica de la Modernidad, no renuncia a la subjetividad. Para los procesos de liberación es importante que la víctima, el pobre y el oprimido se constituyan en sujetos de su propia historia. Sin embargo, la FL no fundamenta derechos humanos en el sujeto abstracto de la Modernidad, ni en el individuo egoísta que sólo busca su propio interés. La autonomía del sujeto no es sinónimo de la subjetividad moderna que inicia los procesos de derechos humanos. Esto porque el sujeto abstracto de la Modernidad se constituye como una Totalidad excluyente, no abierta a la proximidad, ni a la exterioridad del Otro. Además, como señala Hinkelammert, la moderna sociedad occidental más que antropocéntrica es mercadocéntrica12; ha colocado el mercado como un supuesto orden natural, y la legitimidad y validez de las instituciones están en función de que permitan el libre desenvolvimiento de las leyes de mercado. Por eso, la visión del sujeto y de la subjeti-vidad de la Modernidad, iniciada con Descartes, terminó ligándose al dominio de la natu-raleza y de la realidad social a través del capitalismo. Se trata de una concepción egocentrista del ser humano, que sacraliza al individuo como propietario que fomenta la enajenación y mercantilización de todas las facetas de la vida humana. Reducir la dimensión subjetiva del ser humano a la subjetividad individualista de la Modernidad hegemónica significa promo-ver un desperdicio de la experiencia. Desde otras culturas, la subjetividad se ha construido de manera distinta, y en diversas ocasiones de forma comunitaria.

Por eso, la subjetividad debe constituirse en el encuentro con el otro. Como es bien sabido, es Enrique Dussel quien, partiendo de la filosofía de Emmanuel Levinás, ha introducido la alteridad como un elemento fundamental de la FL. Por eso, se habla de una FL concebida como una metafísica de la alteridad o una filosofía de la alteridad ética.13 A partir de ahí, se trataría de constituir subjetividades de personas y de pueblos; es decir, tanto subjetividades personales como subjetividades colectivas.

Del conjunto de categorías que Dussel aporta a la FL, algunas de ellas tienen rela-ción con una fundamentación de derechos humanos desde la alteridad y, además, autores

12 Cf. HINKELARMMERT, Franz. El sujeto y la ley. El retorno del sujeto reprimido. Heredia de Costa Rica: EUNA, 2005.13 Cf. GARCÍA RUIZ, Pedro Enrique. Filosofía de la liberación. Una aproximación al pensa-miento de Enrique Dussel. México: Dríada, 2003, pp. 171-202; SALAMANCA, Antonio. Yo soy guardián mundial de mi hermano. Hacia la universalización ética de la opción por el pobre des-de el pensamiento de K.O. Apel, E. Dussel y X. Zubiri. Frankfurt: IKO, 2003, pp. 65-70.

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juristas cercanos a los movimientos de liberación las han tomado en cuenta para la cons-trucción de su pensamiento jurídico.14 Estas categorías son la proximidad, la totalidad, las mediaciones, la libertad situada, la exterioridad y la enajenación.

a) Proximidad: Dussel señala que la experiencia griega o indoeuropea y la moder-na privilegiaron la relación ser humano–naturaleza.15 Comprendieron el ser como luz o como cogito, lo que conlleva definir el ámbito del mundo y lo político como lo visto, lo dominado, lo controlado. En cambio, si se privilegia la relación ser humano-ser humano (la especialidad y lo político), se puede dar un discurso filosófico con otro origen. En efec-to, se trata de comenzar desde la proximidad, distinguiéndola de la proxemia.16 Praxis es acortar distancia; es un obrar hacia el otro como otro. Es una acción que no se acerca a las cosas, sino al otro en cuanto otro; por eso es un aproximarse y no una proxemia. De ahí que pueda hablarse de diversas proximidades (originaria, histórica, metafísica)17. Ante esta equivocidad de la proximidad histórica, Dussel habla de la proximidad inequívoca, que es la que se da ante el rostro del oprimido, de la víctima, del que es exterior a todo sistema. Es la proximidad ante el que clama justicia, al que invoca responsabilidad. La proximidad inequívoca es la que se establece con el que necesita servicio, porque es débil, miserable, necesitado. De ahí que la proximidad es la raíz de la praxis y desde donde parte toda res-ponsabilidad por el otro, y en concreto con el otro víctima del sistema.

b) Totalidad: La totalidad es la manera cómo las cosas se presentan al ser humano. La proximidad, el cara-a-cara del ser humano con el ser humano, deja irremediablemente lugar a la lejanía. Entonces el ser humano se acerca a los entes, a las cosas, a los objetos; las cosas-sentido, los entes, nos enfrentan en una multiplicidad casi indefinida. No obstante, esto se da en una totalidad, en un sistema, que los comprende y los unifica. Los entes, seña-la Dussel, no nos rodean de manera caótica sino que forman parte de un mundo, que es una totalidad instrumental de sentido. Es el horizonte cotidiano en el cual vivimos.18

c) Mediaciones: Las mediaciones no son otra cosa que aquello que empuñamos para alcanzar el objetivo final de la acción. La proximidad es la inmediatez del cara-a-cara con el otro; la totalidad es el conjunto de los entes en cuanto tal: en cuanto sistema. Las me-diaciones posibilitan el acercarse a la inmediatez y permanecer en ella, constituyen en sus partes funcionales a la totalidad.19

d) Libertad situada: Las cosas y entes que constituyen su entorno son mediaciones, posibilidades. Cuando el ser humano obra, lo hace por un proyecto. Ese proyecto deter-mina las posibilidades, las mediaciones para su realización. Es decir, la persona está asedia-da por decisiones que debe tomar, y caminos que se abren y se cierran. Este estar abierto

14 Cf. DE LA TORRE RANGEL, Jesús Antonio. Apuntes para una introducción filosófica al derecho. México: Porrúa, 2007, pp. 139-159. 15 Cf. DUSSEL, 1996, op. cit., p. 29.16 Ibid., p. 30.17 Ibid., pp. 31-35.18 Ibid., p. 37.19 Ibid., p. 45.

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al deber de continuamente determinarse por esta o aquella posibilidad; el estar algunas veces desconcertado y no saber cuál elegir; el poder elegir lo mismo y no elegir nada; la capacidad o poder sobre las mediaciones, se denomina, según Dussel, la libertad. En efec-to, el ser humano se realiza por determinaciones electivas. Elegir libremente no consiste en poder determinar absolutamente las mediaciones desde una indeterminación absoluta (sería la libertad infinita, radical). Tampoco el ser humano está totalmente determinado, condicionado; es libre y al mismo tiempo históricamente determinado. La mediación es posibilidad para una libertad. La cosa es ente porque siendo interpretado en su sentido y estimado en su valor es por último elegido y postergado en vista del proyecto.

e) Exterioridad: Dussel afirma que esta es la categoría más importante para la FL, y que posibilita realizar un discurso nuevo. Es decir, la exterioridad es una categoría que marca la diferencia de la FL con las filosofías del centro que usan también las categorías arriba descritas. Posibilita un discurso nuevo porque hace viable fijarse en la realidad de los pueblos periféricos: “Es la novedad de nuestros pueblos lo que se debe reflejar como novedad filosófica y no a la inversa”.20 La exterioridad parte del hecho de que en el con-junto de todos los entes, sobresale uno, distinto a todos los demás: el rostro de los otros seres humanos. Alejados de la proximidad, consumidos por la proxemia –donde aun el rostro hu-mano es asumido como una cosa-sentido, como un ente más–, la presencia de este rostro nos recuerda la necesidad de aquélla. El ser humano como ente es parte de la totalidad, de los sistemas, pero la emergencia de su rostro nos vuelve a enfrentar a la proximidad; es cuando el otro se nos revela en toda su exterioridad.21

f) Alienación: La alienación se da cuando se le niega al otro su calidad de otro. La totalidad, el sistema, tiende a totalizarse, a autocentrarse; busca eternizar su estructura presente y a devorar intrasistémicamente a toda exterioridad posible.22 Entonces para el sistema el otro aparece como algo diferente, que pone en peligro la unidad de “lo mismo”. En efecto, al otro en tiempo de peligro se le transforma gracias a la ideologización en “el enemigo”.

Las categorías expuestas arriba, propias de la FL desarrollada por Dussel y, en parte, por Scannone, nos posibilitan establecer un fundamento de derechos humanos desde la alteridad, desde el encuentro con el otro. A diferencia de los fundamentos hege-mónicos de derechos humanos basados en una subjetividad del individuo, que finalmente son parte de la totalidad, del sistema dominante, la FL propone un fundamento en la alteridad, desde una subjetividad abierta al otro y no cerrada en la mismidad. En este contexto, la subjetividad moderna es parte de la totalidad que sólo reconoce derechos a los mismos23, no al inequívocamente otro, al que por la totalidad es considerado extraño,

20 Ibid., p. 55.21 Ibid., p. 56.22 Ibid., p. 70.23 Esos mismos, esos que reafirman la mismidad del sistema, son los que concretizan al ser humano abstracto, a ese ser humano que se considera “sujeto universal de derechos”, es decir, el varón, blanco, burgués, adinerado, occidental, etc.

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ajeno y hasta peligroso al sistema. A ese otro, al contrario, aunque exija la satisfacción de las mismas necesidades que los mismos, es catalogado de delincuente; por eso, se cri-minalizan la protesta y las luchas sociales y las praxis de liberación se reprimen (ellas son finalmente los medios en que los otros emergen para romper la alienación a la que son sometidos). En efecto, la fundamentación de derechos humanos efectuada sólo desde el individuo carga con algunos de los reduccionismos que comentamos; está marcada por el reduccionismo monocultural e historicista. Derechos humanos fundamentados desde el sujeto abstracto fácilmente se convierte en herramienta de enajenación, y son parte de lo que Dussel describe en el siguiente texto: “Vestida de nobles virtudes nietzscheanas, guerreras, saludables, blancas y rubias como los arios, Europa se lanza sobre la periferia, sobre la exterioridad geopolítica; sobre las mujeres de otros varones; sobre sus hijos; sobre sus dioses. En nombre del ser, del mundo humano, de la civilización, aniquila la alteridad de otros hombres, de otras culturas, de otras eróticas, de otras religiones. Incorpora así aquellos hombres o, de otra manera, despliega violentamente las fronteras de su mundo hasta incluir a otros pueblos en su ámbito controlado.”24

Sin negar la subjetividad como elemento de una fundamentación de derechos hu-manos, es imprescindible abrirla a la pluriculturalidad y a las luchas históricas llevadas a cabo por los diversos pueblos oprimidos del planeta; se trataría de un sujeto inter-subjetivo, comunitario, que sea el sujeto de derechos humanos como praxis de liberación. Es lo que propone la FL a partir de una metafísica de la alteridad, que se concretiza en comprender a la ética, a la responsabilidad por el otro, como el inicio de toda filosofía. Esta ética es una ética de la solidaridad que tiene sus consecuencias para la construcción de una juridicidad alternativa, generada desde las luchas sociales.25

La ética de la alteridad busca una apertura del sujeto que sea capaz de comprender lo nuevo de la historia que se construye desde la exterioridad. “El punto de partida es la víctima, el Otro, pero no simplemente como otra ‘persona-igual’ en la comunidad argu-mentativa, sino ética e inevitablemente (apodícticamente) como Otro en algún aspecto ne-gado-oprimido (principium oppressionis) y afectado-excluido (principium exclusiones).”26 Desde el otro como otro –el pobre, el oprimido, la víctima–, que es libertad incondicionada por cuanto se desprecia su exterioridad considerándola nada (como incultura, analfabetismo, barbarie, primitivismo, incivilización), es como surge en la historia lo nuevo. Por ello todo sistema futuro realmente resultante de una revolución subversiva en su sentido metafísico es analógica: semejante en algo a la anterior totalidad, pero realmente distinto.

24 DUSSEL, 1996, op. cit., p. 69.25 WOLKMER, Antonio Carlos. Bases éticas para una juridicidad alternativa. In: Jesús Antonio de la Torre Rangel (Coord.), Derecho alternativo y crítica jurídica. México: UAA-ITESO-Po-rrúa, 2002, pp. 179-180.26 DUSSEL, Enrique. Ética de la liberación. En la edad de la globalización y de la exclusión. Madrid: Trotta, 1998. p. 417.

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Todo lo anterior se realiza, se hace realidad, cuando alguien dice, por ejemplo, “¡[t]engo hambre, necesito alimento!”.27 El hambre del pobre es consecuencia de un sistema injusto, y en su situación de víctima no tiene lugar dentro del sistema. No tiene lugar por ser negatividad, por sufrir falta-de, por ser no-ente en el mundo. Pero fundamentalmente está fuera porque saciar estructuralmente el hambre del pobre es cambiar radicalmente el sistema. En efecto, derechos humanos fundamentados desde la alteridad han de compren-derse en herramientas de lucha de quienes son víctimas del sistema, y por eso, más que elementos conservadores del sistema han de ser subversivos, transformadores, revolucio-narios. El cara-a-cara con el otro inequívoco obliga a repensar constantemente derechos humanos, pues los derechos del otro no son parte del sistema.28

Este encuentro con el otro, el cara-a-cara, queda complementado y llevado más allá, con el pensamiento de la liberación de Franz Hinkelammert. Este autor habla del retorno del sujeto, pero no del sujeto metafísico, sino del sujeto viviente, corporal, en cuanto ho-rizonte filosófico para una crítica radical de la globalización neoliberal. Como habíamos dicho, este autor señala que la sociedad moderna occidental más que antropocéntrica es mercadocéntrica.

El concepto de sujeto surge en la relación sujeto-objeto, en la filosofía de Descar-tes. El sujeto es visto como instancia que se relaciona con el objeto, es decir, la res cogitans frente a la res extensa. Es un sujeto del pensamiento que se enfrenta al mundo de los ob-jetos. Para él todo es objeto, tanto la corporalidad del otro como la propia corporalidad. Por eso, Hinkelammert señala que es un sujeto trascedental, que desde un punto de vista externo a la corporalidad del mundo juzga sobre éste como mundo objetivo, del que no se considera parte sino sólo juez.29 Su existencia se sostiene solamente en su autorrefle-xión sobre sí mismo, y por eso no tiene corporalidad ni tampoco, en consecuencia, tiene sentidos.30

Pero no queda ahí la noción de este sujeto epistemológico, pues es a la vez un individuo poseedor; es el individuo que se dirige al mundo para dominar y poseer; al pensar el mundo corporal como objeto, en la relación sujeto-objeto se entiende como poseedor del mundo. Lo más grave es que la negación del sujeto trascendental realizado por la postmodernidad no ha significado una recuperación de una subjetividad liberadora e intercomunitaria; al contrario, ha fortalecido al sujeto actuante como individuo pro-pietario; al respecto, señala Hinkelammert: “Pero esta negación del sujeto trascendental no ha afectado al individuo poseedor, que es su contrapartida. De hecho ha sustituido el sujeto pensante por el sujeto actuante, que es un individuo propietario y calculador de sus intereses. Sigue interpretando todo el mundo corporal como objeto de acción, pero se ve a sí mismo más bien como una sustancia calculadora, que se mueve en un mundo de puros objetos, y calcula su posibilidad de acceder a este mundo consumiéndolo y acumula

27 Ibid., p. 524.28 DUSSEL, 1996, op. cit., p. 59.29 HINKELAMMERT, 2005, op. cit., p. 485.30 DUSSEL, 1998, op. cit., p. 515.

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como propiedad partes crecientes de él. Para este sujeto calculante, el propio cuerpo sigue siendo un objeto igual como lo es el mundo exterior. No tiene cuerpo, para calcular su acción sobre cuerpos, que es su objeto. Este sujeto calculante es el individuo, que no se ve molestado por la negativa al sujeto trascendental”.31

Una fundamentación de derechos humanos desde el sujeto trascendental, o desde su negación postmoderna, termina siendo funcional para los intereses del sujeto calculan-te. Los derechos humanos se reducen a los “derechos” necesarios para acceder “al mundo consumiéndolo” y acumular propiedades. Paradójicamente, el sujeto actuante verá en los otros a objetos, pues la sociedad del mercado lo conduce a “[t]ransformar todo en objeto, inclusive a sí mismo, [y esto] es presentado ahora como libertad y salvación”.32 Entonces los bienes protegidos por los derechos humanos no son satisfactores para la producción y reproducción de vida, sino meros objetos para ser consumidos. En cambio, la FL propone recuperar al ser humano como se hace presente en la realidad, como ser corporal, como sujeto viviente frente a otros que también se hacen presentes como seres corporales y sujetos vivientes; es una relación de cuerpo a cuerpo, de cara-a-cara. La pregunta clave de este sujeto no es “si existo” sino “puedo seguir existiendo”. Se trata de responderse por las condiciones de posibilidad de vivir cómo ser corporal, como ser viviente.

La demanda de la recuperación del sujeto, de la vida humana concreta, de la vida para todos, en las instituciones sociales y en las construcciones culturales, es la demanda más urgente del mundo de hoy, según Hinkelammert. Para esto, derechos humanos es, sin duda, una herramienta importante, pero fundamentado en un sujeto inter-subjetivo. Y esto tiene que ver con la vuelta, en palabras de nuestro autor, al sujeto reprimido y al bien común.

4. La praxis

La FL no se comprende sólo como una ética de la alteridad, sino también puede enten-derse como una filosofía de la praxis. Diversos autores –por ejemplo, Ellacuría, Dussel y Hinkelammert– abordan en su reflexión las diversas formas de praxis. De una u otra forma, buscan encontrar sus características para poder considerarla como una praxis de liberación. Si bien parten del análisis de la praxis humana en general, coinciden en señalar que no toda praxis es liberadora, sino que existen unas opresoras, homicidas y alienantes. En este sentido, derechos humanos como realidad histórica está afectada por esta ambiva-lencia de la praxis; derechos humanos bien pueden ser instrumentos de ideologizaciones funcionales a prácticas opresoras o herramientas para la liberación. Fundamentar dere-chos humanos desde la praxis significa encontrar un fundamento sociopolítico; se trata de entenderlos como herramientas de las praxis de liberación.

Ellacuría aborda la praxis desde el análisis de los elementos y dinamismos que integran la realidad histórica que van desde la materialidad hasta la dimensión personal, y

31 HINKELAMMERT, 2005, op. cit., pp. 486-487.32 Ibid., p. 487.

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desde el individuo hasta el cuerpo social. Como señala Antonio González, la praxis hu-mana “en cuanto apropiación y transmisión tradente de posibilidades es la categoría más apropiada para comprender la originalidad de lo histórico”.33 En diversos escritos, tanto en los de carácter político, filosófico como teológico, Ellacuría utiliza el concepto praxis, y en variadas ocasiones lo hace de manera adjetivada; así se encuentran conceptos como praxis histórica, praxis social, praxis política, etc. Es un concepto utilizado por este autor como parte de su diálogo con el marxismo, aunque con una importante fundamentación en el pensamiento de Xavier Zubiri.

Para Ellacuría, por su carácter transformador, la praxis es el ámbito donde con mayor claridad se expresa la interacción entre el ser humano y el mundo, pues en ella las relaciones no son siempre unidireccionales sino respectivamente codeterminantes. A tra-vés de la praxis se muestra el poder creativo del ser humano. Este poder “está en estrecha relación con el grado de libertad que vaya alcanzado [el ser humano] dentro del proceso histórico”.34 Si bien todo tipo de actividad humana transformadora está incluido en la reflexión filosófica de la praxis humana, pues ella incluye todas las formas del quehacer humano, tanto especulativas, educativas, técnicas, religiosas, etc., Ellacuría pone énfasis en las praxis históricas de liberación, es decir, en aquellas que actúan como productoras de estructuras nuevas más humanizantes. En sentido semejante, Dussel señala que la praxis de liberación “es la acción posible que transforma la realidad (subjetiva y social) teniendo como última referencia siempre a alguna víctima o comunidad de víctimas”.35

El proceso práxico de liberación, ya en el ámbito ético y político, es principalmente dialéctico –aunque no exclusivamente– en cuanto busca negar la negación de los seres humanos, y se avance afirmando lo positivo. Un proceso que se da dentro del dinamismo histórico de la posibilitación y capacitación, por lo cual no existe ninguna garantía de triunfo. Ya se ha dicho que la realidad histórica puede ser principio de humanización y de personalización, pero también puede ser de opresión y alienación. Esto porque “la praxis histórica no es reducible ni a las leyes del mundo natural ni a los saltos dialécticos de al-gún presunto espíritu”.36 A diferencia de lo que puede suceder con posturas idealistas o mecanicistas de la historia, el mal y la injusticia en la historia no pueden ser legitimados ni justificados como unas necesidades lógicas en el desarrollo de una teleología o como partes de un devenir forzoso de la historia. Más bien el mal histórico es un límite real que se presenta como un desafío a la praxis de liberación.

La liberación es, entonces, un proceso a través del cual el ser humano va ejerciendo su libertad, y va haciéndose cada vez más libre gracias a su estructura de esencia abierta. “La liberación es, por lo pronto, un proceso. Un proceso que, en lo personal, es, funda-

33 GONZÁLEZ, Antonio. Prólogo. In: ELLACURÍA, Ignacio. Filosofía de la realidad histó-rica. San Salvador: UCA Editores, 1999, p. 11. 34 SAMOUR, Héctor. Filosofía y libertad. In: CARDENAL Rodolfo; SOBRINO, Jon (Coords.). Ignacio Ellacuría. Aquella libertad esclarecida. Santander: Sal Terrae, 1999, p. 110.35 DUSSEL, 1998, op. cit., p. 553.36 GONZÁLEZ, 1999, op. cit., p. 11.

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mentalmente, un proceso de conversión y que, en lo histórico, es un proceso de transfor-mación, cuando no de revolución”37.

La concepción de la praxis hasta ahora analizada tiene importantes consecuencias para la fundamentación de derechos humanos, si estos se asumen como momentos de la praxis histórica de liberación. En este contexto no sería viable, y carecería de sentido, un fundamento absoluto y dogmático, desde el que se proponga un tipo de “falacia de-sarrollista”. En efecto, deberán comprenderse derechos humanos desde su complejidad como momentos pertenecientes a las distintas fuerzas históricas; es decir, contemplarlos como momentos tanto jurídicos como ideológicos, sociales y políticos. Esto significaría asumir una concepción compleja de derechos humanos.

El comprender derechos humanos como momentos de la praxis histórica de libe-ración se constituye en un fundamento socio-histórico. Es decir, se trata de entender la praxis de liberación de los nuevos sujetos socio-históricos como fundamento de derechos humanos. En cierta forma, el análisis crítico que realiza Helio Gallardo tiene relación con nuestro tema. Este autor señala que el fundamento de derechos humanos no es filosófico sino sociológico; éste debe entenderse como matriz, y por tanto se constituye por la for-mación social moderna que contiene tensiones, conflictos y desgarramientos. Es decir, el fundamento se encuentra en la sociedad civil, en su dinámica emergente liberadora, en sus movimientos y movilizaciones sociales contestatarios.38

El fundamento de derechos humanos tendría entonces como motor la lucha so-cial en matrices sociohistóricas; así, Gallardo afirma que “[d]esde el punto de vista de su práctica, el fundamento de derechos humanos se encuentra, ostensiblemente, en sociedades civiles emergentes, es decir en movimientos y movilizaciones sociales que alcanzan inciden-cia política y cultural (configuran o renuevan un ethos o sensibilidad) y, por ello, pueden institucionalizar jurídicamente y con eficacia sus reclamos”.39 Esta fundamentación so-ciohistórica es asumida por el pensamiento de la liberación pero no sólo desde el aspecto sociológico sino también desde el horizonte filosófico.

Ahora bien, la FL no sólo desarrolla la comprensión del sentido de la praxis sino también del sujeto de ella. De entrada, toda persona puede constituirse en sujeto de la praxis de liberación, ya sea en su calidad de víctima o por ser solidario con el oprimido, en cuanto realiza acciones, organiza instituciones o transforma sistemas para que las víctimas, los pobres y los oprimidos disfruten y ejerzan efectivamente derechos humanos.40 Pero el analogado principal del sujeto de la praxis de liberación es la víctima que adquiriendo consciencia de su situación, y en diálogo con otras víctimas, emprende acciones para dejar atrás, para superar, la situación que le niega las posibilidades de producir y reproducir su

37 ELLACURÍA, Ignacio. En torno al concepto y a la idea de liberación. In: Escritos Teológi-cos. Tomo I. San Salvador: UCA Editores, 2000, p. 640.38 Cf. GALLARDO, Helio. Teoría crítica: Matriz y posibilidad de derechos humanos. Murcia: DSR, 2008, p. 31. 39 Ibid., p. 44.40 DUSSEL, 1998, op. cit., p. 513.

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vida. En este sentido, Dussel afirma: “El sujeto de la praxis de liberación es el sujeto vivo, necesitado, natural, y por ello cultural, en último término la víctima, la comunidad de las víctimas y los a ella co-responsablemente articulados. El ‘lugar’ último, entonces, del discurso, del enunciado crítico, son las víctimas empíricas, cuyas vidas están en riesgo, descubiertas en el ‘diagrama’ del Poder por la razón estratégica”.41

El sujeto de la praxis de liberación supone no una mera subjetividad individual sino la ya mencionada inter-subjetividad. La intersubjetividad no significa la creación de un sujeto colectivo natural, pues esto conlleva finalmente a una sustantivización indebida; los sujetos socio-históricos son fluidos y fragmentarios, aparecen y desaparecen en coyuntu-ras bien determinadas, según las tramas sociales. Más bien significa el reconocimiento de la subjetividad de cada sujeto humano concreto, y de su encuentro con el otro, que tam-bién es sujeto, y que por sus cualidades de víctimas o solidario con ellas, se conforman en una comunidad de vida.42 Como señala Dussel, la intersubjetividad “se constituye a partir de una cierta comunidad de vida, desde una comunidad lingüística (como mundo de la vida comunicable), desde una cierta memoria colectiva de gestas de liberación, desde ne-cesidades y modos de consumo semejantes, desde una cultura con alguna tradición, desde proyectos históricos concretos a los que se aspira en esperanza solidaria”.43

Por su parte, Hinkelammert resalta el carácter procesual del hacerse sujeto que, para la FL, significa la vuelta –la recuperación– del sujeto reprimido: “…el ser humano como sujeto no es una instancia individual. La intersubjetividad es una condición para que el ser humano llegue a ser sujeto. Se sabe en una red, que incluye la misma naturaleza externa al ser humano: que viva el otro, es una condición de la propia vida”.44 El ser hu-mano para vivir requiere hacerse sujeto; la vida es un llamado a constituirse como sujeto. En efecto, el ser sujeto no es un antes, un a priori del proceso, sino que resulta del mismo proceso.45 Es decir, el “sujeto” no contiene un valor o una sustancia a priori, sino que depende del sentido negativo del sistema que lo hace víctima; lo que podría decirse es que ese sujeto buscará revertir su situación de víctima a través de la generación de un nuevo sistema. En efecto, para llegar a ser sujeto de la praxis de liberación es necesario efectuar una crítica autoconsciente del sistema que causa la victimización. Las víctimas han de caer en la cuenta de que no habían participado en el acuerdo originario del sistema –por utilizar expresiones de la ética del discurso– y, sobre todo, en que debido a dicho sistema no pueden producir, reproducir y desarrollar su vida.46

Habíamos señalado párrafos arriba que el proceso práxico de liberación es princi-palmente dialéctico, aunque no exclusivamente. En cuanto a derechos humanos, la praxis de liberación se constituye, en diversas ocasiones, por el enfrentamiento de un movimien-

41 Ibid., p. 525.42 GALLARDO, 2008, op. cit., p. 60.43 DUSSEL, 1998, op. cit., p. 525.44 HINKELAMMERT, 2005, op. cit., p. 495.45 Ibid., p. 496.46 Ibid., pp. 495-496.

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to social organizado de las víctimas y un sistema formal dominante. Se genera un conflicto ético, con consecuencias sociales y jurídicas, donde la comunidad de víctimas busca mo-dificar las tramas sociales para lograr una transferencia de poder con el fin de satisfacer sus necesidades de vida.47 Si la praxis de liberación se realiza por un sujeto inter-subjetivo, el principio normativo “crítico democrático” es parte de ella. La intersubjetividad en las luchas de liberación se basa en el consenso crítico de las víctimas. Un movimiento so-cial basado, por ejemplo, en las decisiones de “líderes” y que no se guía por la voluntad consensada de las víctimas, terminará reproduciendo el mismo sistema que excluye a las víctimas y esos “líderes” terminarán utilizando el poder de manera fetichizada. Por eso, la intersubjetividad tiene que ver con dicho principio, que Dussel define de la siguiente ma-nera: “El principio normativo crítico democrático apunta a promover el consenso crítico de las víctimas, por su participación real y en condiciones simétricas”.48 En efecto, al fun-damentar derechos humanos en la praxis de liberación, se comprende la importancia del consenso de las víctimas para que la lucha por “nuevos derechos” signifique la creación de un nuevo sistema, que incluye la participación de los que habían sido excluidos.

De lo anterior podemos concluir que el estado no es fundamento de derechos humanos; a lo más puede ser un instrumento, un conjunto de instituciones, para hacerlos efectivos. La praxis de liberación de los pueblos es un hecho más radical que la existencia y el funcionamiento del estado.49 Si se fundamenta derechos humanos en la praxis histórica de liberación se potencializa, siguiendo las categorías de Boaventura de Sousa Santos, el pilar emancipatorio de la Modernidad. En cambio, si se fundamentan en el estado, se po-tencializará a la larga uno de los pilares de control.50 Por tanto, recuperando lo mejor de la Modernidad, la FL ha de insistir que derechos humanos deben conservarse como parte del pilar emancipatorio fundamentándolos en las praxis de liberación.

Los derechos humanos tienen como uno de sus fundamentos la praxis histórica de liberación, en cuanto ésta se realiza por una comunidad de víctimas –que se constituye en un sujeto intersubjetivo– que busca, al ejercer el derecho a generar derechos, subvertir el sistema que le niega la satisfacción de necesidades para la producción y reproducción de vida, y dar paso a un nuevo sistema. Esto conlleva el colocar a la praxis como el hecho más radical, que antecede al estado o a la “naturaleza humana”, en cuanto a la búsqueda de fundamentos de derechos humanos. Es un fundamento no-dogmático, ni etnocéntrico, ni historicista; defiende la necesidad del sujeto, pero no del sujeto individual y abstracto de la Modernidad hegemónica, sino el sujeto intersubjetivo que se constituye a través de la voluntad de liberación de las víctimas reunidas y organizadas en comunidad.

47 GALLARDO, 2008, op. cit., p. 44; DUSSEL, 1998, op. cit., p. 541.48 DUSSEL, Enrique. Veinte tesis de política. México: Siglo XXI, 2006, p. 105.49 Cf. SALAMANCA, Antonio. Filosofía de la revolución. Filosofía para el socialismo en el siglo XXI. San Luis Potosí: UASLP-CEDH, 2008, pp. 28-34.50 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Sociología jurídica crítica. Para un nuevo sentido común en el derecho. Madrid: Trotta, Bogotá: ILSA, 2009, p. 31.

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5. La producción y reproducción de vida

La FL tiene como un tema central de su reflexión al “sujeto vivo”, y en conexión con él a la satisfacción de las necesidades para la vida. La recuperación del sujeto no sólo es referida a un sujeto intersubjetivo y a un sujeto de la praxis de liberación, sino también al sujeto como sujeto vivo, como un ser corporal, por el que la satisfacción de necesidades se constituye como un hecho radical. Esto no quiere decir que el sujeto intersubjetivo y el sujeto de la praxis queden relegados a un segundo sitio, otorgándole la primacía al sujeto vivo. No se trata de jerarquizar a los “sujetos”. Es decir, para que el sujeto de derechos humanos realmente sea tal, debe ser alternamente un sujeto vivo, intersubjetivo y práxi-co.51 La ausencia de cualquiera de ellos, o la ausencia total de sujeto, significaría que la fundamentación de derechos humanos caería en alguno de los riesgos analizados al inicio de esta sección.

En virtud al sujeto vivo, la fundamentación de derechos humanos se constituye como un referente crítico del sujeto de la praxis, encaminado a responder a la interpe-lación que las víctimas realizan a través del sujeto intersubjetivo. Es decir, si el sujeto de la praxis dirige su actuar para lograr una liberación integral, a través de la organización y el consenso de la comunidad de víctimas que transforma el sistema a través de “nuevos derechos”, la satisfacción de necesidades para la vida es el marco material de esa praxis, de esa organización y de ese consenso entre las víctimas: “El juicio de hecho crítico (desde el marco material de la ética) se enuncia como la posibilidad de la producción, reproducción y desarrollo de la vida de los sujetos reales del sistema, y como ‘medida’ o criterio de los fines del mismo: si la vida no es posible, la razón instrumental que se ejerce en hacerlo imposible es éticamente perversa”.52

El sujeto vivo evita que el sujeto de la praxis quede tan sólo en un sujeto pragmatista que aplica la razón instrumental en función del cálculo de utilidad. Esta es una forma de ejercer la razón que hace imposible la reproducción de vida, pues a la larga significa el suicidio. Hinkelammert señala que entre los siglos XIV al XVI, en los inicios de la Moder-nidad, la racionalidad medio-fin, que es la racionalidad concebida a partir del individuo y se caracteriza por ser la racionalidad económica hegemónica, se impone –o se pretende imponer– a la sociedad entera.53 Es una racionalidad que atenta contra la vida y niega derechos humanos, y por eso es “la irracionalidad de lo racionalizado, que es, a la vez la ineficiencia de la eficiencia.”54 A la eficiencia y la racionalidad económica se les conside-ran los aportes de la competitividad, y ambas son transformadas en los valores supremos. Esta competitividad borra de la conciencia el sentido de la realidad, pues provoca que se perciba como “realidad virtual”. El maíz o el trigo son producidos si son competitivos, no

51 Cf. HINKELAMMERT, Franz. Crítica de la razón utópica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2002. 52 Ibid., p. 523.53 Cf. HINKELAMMERT, 2005, op. cit., pp. 19-23.54 Ibid., p. 23.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina146

porque alimenten; una pieza de ropa no se fabrica, aunque caliente y dé abrigo, si su pro-ducción no es competitiva. Con esta realidad virtual, según la cual todo tiene su criterio en la competitividad, desaparece el valor de uso de las cosas. No obstante, esto se extiende a todas las facetas de la vida, incluyendo aquellas relacionadas con lo jurídico y derechos humanos. Una cultura humana que no produce competitividad tiene que desaparecer, y su desaparición podrá ser interpretada como un devenir natural de los acontecimientos y por el “ejercicio de la libertad” de sus miembros que optaron por dejar de utilizar, por ejem-plo, su lengua (es más competitivo hablar inglés que ñañú, por ejemplo); o, igualmente desde este criterio, se ha de considerar que las transformaciones sociales que no aumenten la competitividad no deben realizarse. El dominio de la competitividad no admite acciones frente a los efectos destructores que ella produce; es más, impide siquiera verlos. Significa la afirmación de la Totalidad y la negación del Otro; el encubrimiento del rostro de la víctima, quien lo es por su propia responsabilidad, por no ser “competitivo”. Por eso un sujeto práctico o actuante no es suficiente.

Contrario a la racionalidad medio-fin, Hinkelammert señala que la vida del actor no puede ser un fin, dado que no puede ser tratada como un fin en competencia con otros. Quien elige la muerte, elige la disolución de todos los fines posibles. La vida es la posibilidad de tener fines, y sin embargo, no es un fin. Por eso, si abordamos al actor como un ser vivo que se enfrenta a sus relaciones medio-fin, entonces lo miramos como sujeto. El actor, antes de ser actor, es sujeto humano; sólo se transforma en actor cuando ha decidido sobre el fin y calcula los medios, incluyendo en estos su propia actividad. La racionalidad reproductiva es la propia del sujeto vivo. Para poder enfocar esta racionali-dad, debemos asumir al actor más allá de sus relaciones medio-fin; percibirlo como sujeto y, por tanto, no como un fin sino condición de la posibilidad de los fines. El ser humano como sujeto vivo concibe fines y se refiere al conjunto de sus fines posibles. Pero no pue-de realizar todos los fines que bajo un cálculo medio-fin parecen posibles; por lo menos debe excluir aquellos fines cuya realización atenta contra su posibilidad de vivir. Si bien el sujeto determina sus fines, no puede desconocer la materialidad de la historia, como señala Ellacuría.55 De ahí que el sujeto esté “atado” al circuito natural de la vida humana que es condición de posibilidad de su propia vida.

El criterio de vida o muerte se convierte en el criterio en última instancia. La ra-cionalidad medio-fin pierde legitimidad en cada caso en el que ella entra en contradicción performativa con la racionalidad reproductiva; aquella racionalidad es una racionalidad subordinada a la vida. La irracionalidad de lo racionalizado no es otra cosa que la eviden-cia de esta contradicción performativa. Como señala Hinkelammert, “[ll]a racionalidad medio-fin aplasta la vida humana (y de la naturaleza), lo que evidencia su carácter poten-cialmente irracional.”56

55 Cf. ELLACURÍA, Ignacio. Filosofía de la realidad histórica. San Salvador: UCA Editores, 1999 pp. 55 y ss.56 HINKELAMMERT, 2005, op. cit., p. 49.

Filosofía de la liberación, pluralidad cultural y derechos humanos 147

La racionalidad del sujeto vivo se enfrenta a la pretensión de mostrar como racio-nales las acciones que producen muerte. Hinkelammert denuncia la desorientación del mercado y del pensamiento sobre él en relación con la racionalidad reproductiva. Ante el criterio del mercado todas las acciones medio-fin son igualmente racionales, aunque desde la racionalidad reproductiva sean destructoras. Por tanto, las actividades devasta-doras de la vida son promovidas por el mercado al igual que las actividades compatibles: “Cortar la rama del árbol sobre la que el actor se halla sentado, es tan racional como cortar cualquier otra”. Se genera entonces una tendencia inevitable del mercado hacia la destrucción en términos de la racionalidad reproductiva; se trata de la muerte tanto de los seres humanos como de la naturaleza: “Esta tendencia destructiva es la irracionalidad de lo racionalizado.”57 Ahora bien, esta tendencia a la destrucción no es necesariamente la finalidad de nadie, sino que resulta de la propia racionalidad medio-fin y por constituirse en una totalidad. El sistema coordinador de la división social del trabajo –el mercado– la hace surgir. Podrán tratarse de efectos externos para la racionalidad medio-fin, pero son indiscutiblemente internos para la vida y para la racionalidad reproductiva.

No obstante, cuando la racionalidad medio-fin pretende totalizarse, la racionalidad reproductiva no deja de existir y sigue haciéndose presente. Esta racionalidad no es una postura idealista, sino que responde a una exigencia material, al enfrentamiento del ser hu-mano con la materialidad de la realidad histórica; por tanto, se le asume para preservar la vida o se le soslaya para producir muerte. Cuando más se niega esta racionalidad, aumen-tan las situaciones que imposibilitan la satisfacción de necesidades, tales como el desem-pleo, la violencia, el subdesarrollo, la pauperización, etc. Entonces, como señala Hinke-lammert, estas insatisfacciones se hacen sentir como exigencias y protestas, pero además “donde no hay protesta posible, como en el caso de la naturaleza destruida, la ausencia de la racionalidad reproductiva se hace presente por las crisis ambientales. (…) Y donde la protesta social no es posible, la ausencia de racionalidad se hace sentir en las crisis de la convivencia, las migraciones, la descomposición social, el crimen y la corrupción”.58

De lo anterior se desprende la relación del sujeto vivo con el sujeto de la praxis de liberación. La praxis que busca la liberación integral ha de tener como momento material y objetivo la satisfacción de las necesidades de las víctimas; la transformación del sistema y la generación de una nueva institucionalidad deben de tener como objetivo posibilitar la vida y evitar la muerte.59

La toma de consciencia de la víctima para generar una comunidad y constituirse en una subjetividad emergente que genera “nuevos derechos” tiene como momento inicial el enfrentamiento ante la muerte. Si el aprendizaje de la razón medio-fin es descrito como un aprendizaje de prueba y error, en cambio, el aprendizaje de la racionalidad reproductiva es diferente. Señala Hinkelammert que es un aprendizaje que se enfrenta a la muerte para evitarla; busca evitar el derrumbe de todos los fines con la muerte. Se persigue afirmar la

57 Ibid., p. 53.58 Ibid., p. 57.59 HINKELAMMERT, 2002, op. cit., p. 338.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina148

vida y entonces el esfuerzo de evitar aquello que la amenace; se trata de un aprendizaje ne-gativo. La praxis de liberación surge, en este contexto, como consecuencia de la experien-cia, por parte de las víctimas, de las distorsiones que el mercado produce en la vida y en la naturaleza. Además, la afirmación de la vida no es un fin sino un proyecto: el conservarse como sujeto que puede tener fines. Es así como se genera una conciencia generadora de praxis de liberación: “Se trata de conservar la vida del actor, y no de realizar algún fin positivo mediante una gama de alternativas de la acción por probar. Este aprendizaje en la lógica de la racionalidad reproductiva se refiere a un futuro desconocido con la posibilidad del fracaso. De ahí que los valores implícitos de este aprendizaje son diferentes: de solida-ridad; de respeto a la vida propia y a la de los otros, incluyendo a la propia naturaleza; de cuidado y sabiduría. Son valores que relativizan la racionalidad medio-fin y la transforman en racionalidad secundaria. Su relativización es, asimismo, cuestión de vida y muerte”.60

Si bien la comunidad de víctimas toma conciencia y se organiza, generando un consenso para guiar su praxis (principio formal), éste debe tener como proyecto –y a la vez como límite– el desarrollo de la vida (principio material). El sujeto tiene un horizonte objetivo que es de vida y muerte.61 Si no contara con ese horizonte no sería un sujeto vivo; podría en cambio pretender ser un actor de la racionalidad medio-fin que no tiene como límite la vida y llega a generar, como hemos visto, el suicidio.

Quedarse únicamente con el criterio de la producción de vida, del sujeto vivo, como fundamento de derechos humanos correría el riesgo, entre otros, de terminar defendiendo un individualismo justificador de un egoísmo que afirmase un imperativo “sálvase quien pueda” o “viva quien pueda vivir”. Por eso es necesario completar este fundamento con el fundamento de la alteridad y de la praxis de liberación. En este sentido, Hinkelammert señala que “[e]l quererse salvar no es suficiente, si bien es condición necesaria. A partir de esta situación, toda relación humana tiene que ser reenfocada. No hay salida, excepto por un reconocimiento mutuo entre sujetos que, a partir de este reconocimiento, someten todo el circuito medio-fin a la satisfacción de sus necesidades. Si se parte de este recono-cimiento, es necesaria una solidaridad que sólo es posible si este la sustenta”.62 El sujeto se hace sujeto por la afirmación de su vida, pero esta subjetividad se complementa con la afirmación de la vida del otro.

El otro aparece con claridad en las crisis de los sistemas que causan muerte: “Surge así en y ante los sistemas, en los diagramas del Poder, en los lugares standard de enunciación, de pronto, por dichas situaciones críticas, el Otro que el sistema, el rostro del oprimido o excluido, la víctima no-intencional como efecto de la lógica performativa del todo formal racionalizado, mostrando su irracionalidad desde la vida negada de la víctima”.63

60 HINKELAMMERT, 2005, op. cit., p. 66-67.61 Cf. Ibid., p. 70.62 Ibid., pp. 68-69. 63 DUSSEL, 1998, op. cit., p. 523.

Filosofía de la liberación, pluralidad cultural y derechos humanos 149

Conclusión

A partir de los conceptos y categorías de la FL es posible construir un fundamento de derechos humanos basado en tres pilares: la alteridad, la praxis de liberación y la produc-ción de vida. Esta fundamentación busca superar el etnocentrismo y el monoculturalismo desde el que se ha conformado la mayoría de las fundamentaciones, que a la par niega el pluralismo cultural y rechaza la posibilidad de construcción intercultural de los derechos humanos.

Sin negar la subjetividad como elemento esencial de derechos humanos, la FL la abre a la pluralidad cultural y a las luchas históricas llevadas a cabo por los diversos pue-blos oprimidos del planeta; por eso, se trata de un sujeto inter-subjetivo, que desarrolla una praxis de liberación para juridificar las necesidades y acceder a los bienes para la produc-ción, reproducción y desarrollo de la vida. Para la FL, derechos humanos deben tener al criterio de vida o muerte como de última instancia. La racionalidad medio-fin pierde legi-timidad en cada caso en el que ella entra en contradicción performativa con la racionalidad reproductiva; aquella racionalidad es una racionalidad subordinada a la vida.

La fundamentación propuesta significa un retorno del sujeto, pero no del sujeto me-tafísico, sino del sujeto viviente, corporal, intersubjetivo y práxico, como un horizonte filosófico para una crítica de la globalización neoliberal. Es decir, la praxis se realiza por una comunidad de víctimas –que se constituye en un sujeto intersubjetivo– que busca, ejerciendo el derecho a generar derechos, subvertir el sistema que le niega la satisfacción de necesidades para la producción y reproducción de vida, y dar paso a un nuevo siste-ma. Por eso la praxis es un hecho más radical que el estado o la “naturaleza humana”, en cuanto a la búsqueda de fundamentos de derechos humanos. Rechaza el dogmatismo, el etnocéntrico y el historicismo, sino que defiende la necesidad del sujeto, pero no del sujeto individual y abstracto de la Modernidad hegemónica, sino el sujeto intersubjetivo que se constituye a través de la voluntad de liberación de las víctimas reunidas y organizadas en comunidad.

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PARTE IIIDESCOLONIZACIÓN E INTERCULTURALIDAD

153

TEORIA CRÍTICA E PLURALISMO: ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DE UMA NOVA

HERMENÊUTICA JURÍDICA LATINO-AMERICANAIvone Fernandes Morcilo Lixa1

Será necessário percorrer vários séculos para chegar à outra etapa da mesma história na qual o logos segue sendo o fator determinante sobre o que é e deve ser para aqueles que o possuem e para aqueles que o acatam

(Leopoldo Zea)

Introdução

Na segunda metade do século XX novos e difusos discursos no campo do Direito vão apontando a emergência de modelos teóricos inovadores autodenominados “críticos”, dentre os quais os chamados descoloniais. Na América Latina em geral e no Brasil em par-ticular, experiências e saberes, até então invisibilizados academicamente, mas, presentes nos movimentos populares, ganham espaço, sobretudo a partir da década de 80, surgindo então a discussão em torno dos temas: pós-colonialismo, decolonial e descolonial, surgem então categorias que se referem, em um primeiro momento, a uma atitude intelectual de reconhecimento do múltiplo e plural que constituem o conjunto da unidade histórica e política (semelhanças, experiências, frustrações e destino) da América Latina.

Somando-se a estes novos estudos, na primeira década do século XXI, com gover-nos progressistas, há um avanço em alguns países latino-americanos no campo da demo-cratização, das políticas sociais e da integração regional, o que veio a exigir novas respostas epistemológicas, sobretudo, no campo do direito. Neste marco, os governos populares do Brasil, Bolívia, Equador e Venezuela, foram implantando um novo paradigma constitu-cional a partir da plurinacionalidade, demodiversidade, e novos direitos vinculados a uma racionalidade reprodutiva da vida que expressamente manifesta o desejo descolonizador como conteúdo fundamental do projeto político em marcha nestas Nações. A complexi-dade deste contexto inédito aliado à tradição do pensamento crítico obriga a também ser repensada a hermenêutica jurídica enquanto campo específico relacionado a problemática dos fundamentos e critérios de legitimidade da compreensão do sentido da norma jurídica a partir de novos fundamentos epistemológicos descolonizados.

1 Pós Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC-SC); Doutora pela Univer-sidad Pablo de Olavide (Sevilla-Espanha); Mestre em Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina com pós doutoramento pela mesma Universidade; Professora, Pesquisadora e Extensionista da Universidade Regional de Blumenau (FURB-SC). Autora de livros, como: Her-menêutica & Direito. Uma Possibilidade Crítica. Curitiba: Juruá, 2003.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina154

Neste sentido, o presente estudo, partindo de um marco teórico jurídico crítico latino americano, pretende identificar e discutir os pressupostos e elementos hermenêuti-cos norteadores das práticas jurídicas plurais e complexas (latentes na conjuntura regional contemporânea), diferenciando-as das leituras tradicionais e seus arcabouços legitimado-res/colonizados, bem como obter novos substratos teóricos e categorias epistemológicas de sustentação. Trata-se de discutir e visibilizar um horizonte hermenêutico comprome-tido com a conscientização, emancipação e auto construção histórica e política que co-loca a questão hermenêutica em um espaço e dimensão distinta do que foi elaborado pela tradicional hermenêutica jurídica crítica. O campo hermenêutico, nesta perspectiva, torna-se um campo de aproximação e responsabilidades mútuas que rompe com a a lógica construída pelo saber colonizador e abre para ainda tornar possível a esperança no justo. As condições de possibilidade de compreensão é elaborada com o Outro e a partir deste Outro historicamente negado e silenciado.

1. Insurgência e crítica desde o Sul

A segunda metade do século XX, dominada pelo discurso de “vitória” do liberalismo, vive-se um novo momento de divisão política no sistema de dominação internacional. É inaugurado um longo período de disputa pela hegemonia política e econômica liberal en-tre o “velho” centro europeu e o “novo” norte-americano. Entretanto este modelo, pilar central da modernidade triunfante desde as Revoluções Burguesas, já nos primeiros anos do século XX havia começado a ser rechaçado pelas revoluções e levantes nacionalistas em distintos lugares do mundo em nome de uma modernidade libertária, representando uma “ameaça” concreta a este projeto universalizante.

A ideologia socialista, com repercussões na África e América Latina, sem defen-der uma oposição à modernidade tecnológica, acreditava que para serem cumpridas as promessas e esperanças preconizadas pela modernidade necessitava de libertação.2 Nos anos que se seguiram entre as guerras mundiais, a geocultura liberal, embora ameaçada, mantinha-se como estratégia não apenas de luta entre as potências pela hegemonia no sistema de dominação mundial, como também como elemento unificador do “mundo livre” contra o “mundo comunista”.

Porém, mesmo abalado, o “sistema-mundo” 3 moderno mantinha centralização ideológica nas áreas tradicionalmente definidoras da geocultura. As elites intelectuais la-

2 WALLERSTEIN, Immanuel. Após o liberalismo: em busca da reconstrução do mundo. Tra-dução de Ricardo Aníbal Rosenbush. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2002, p. 143.3 Immanuel Wallerstein na obra O Sistema Mundial Moderno desenvolve o conceito de sistema-mundo como um sistema em que existe uma divisão extensiva do trabalho. Esta divisão não é meramente funcional – isto é, ocupacional – mas geográfica. Quer dizer, a gama de tarefas econômicas não está distribuída uniformemente por todo sistema mundial.[...]na sua maior parte é função da organização social do trabalho, que aumenta e legitima a capacidade de certos grupos dentro do sistema explorarem o trabalho dos outros, isto é, receberem uma maior parte do excedente. (Vol. I – a agricultura capitalista e as origens da economia-mundo européia no século XVI – Tradução de Carlos Leite e outros, Porto: Ed. Afrontamento, 1990, p. 339). Compreende

Teoria crítica e pluralismo 155

tino americanas, desde a colonização do século XV viam-se como herdeiras europeia, como uma se representassem a “pequena Europa” do Sul. Elites que historicamente se beneficiaram da dominação capitalista e colonial e que mesmo após a independência con-tinuaram a exercer por suas próprias mãos, contra as classes e grupos sociais subordinados.4

A nova composição de forças da Guerra Fria acabou por conduzir os Estados Unidos da América para o centro da disputa de poder mundial, porém sem representar o mesmo elemento unificador como o tradicional eurocêntrico. O american life style não trazia identificação e alinhamento ideológico tão amplo para impor-se como centro do ideário liberal latino americano. Por outro lado, para o pensamento crítico de resistência anti imperialista e anticolonial, que até então encontravam no marxismo-leninismo a via revo-lucionária libertadora, após a Segunda Guerra Mundial episódios no “campo socialista”, começavam a levantar dúvidas sobre um horizonte de futuro socialista anticapitalista. A soma destes dois fatores fazia com que na América Latina, em particular, o momento fos-se de esvaziamento dos tradicionais modelos tanto progressistas como conservadores.

Uma soma de eventos levam intelectuais tradicionalmente ligados à militância de esquerda a desconfiar e mesmo a romper com a tradição socialista e comunista. A revolta operária de Berlin duramente reprimida, por exemplo, levou Brecht em 1953 a criticar aberta e ferozmente o Estado Socialista. Além das sangrentas repressões internas na Rús-sia e abuso de poder, que após a morte de Stalin, tornam-se públicas. O Massacre da Co-muna de Shangai em 1967, ordenada pelo próprio Mao, denunciava de forma temerária para os intelectuais socialistas os rumos futuros da Revolução Chinesa. Na sequência, tanques russos ocupam Praga em 1969 colocando fim ao que poderia ser uma experiência socialista democrática. Sem esquecer a revolta vitoriosa dos trabalhadores poloneses do Solidarnosc em 1976 e, finalmente, a caída do muro de Berlin em 1989.

Apesar desta sequencia de fatos e dos rompimentos políticos, trabalhadores e re-volucionários socialistas continuavam lutando pela esperança de um futuro libertador. Na década de 60 estes movimentos emancipatórios adquirem uma inédita dimensão. A luta passa a não ser somente pela libertação operária, mas a de seres humanos explorados e discriminados nas múltiplas formas de convivência social, incluindo mulheres, homose-xuais, jovens, indígenas, enfim, o momento era de luta pela libertação da subjetividade, do conhecimento, da cultura, da defesa do meio ambiente frente à depredação. Tratava-se, portanto, de libertar humanos da autoridade da “razão de Estado”.5

que o sistema-mundo moderno essencialmente capitalista e que por isto sobrevive a cinco séculos, criou economias-mundo divididas em estados de centro e periferia e também semi-periféricas, que num processo de expansão, tendem a aumentar as distâncias sociais e econômicas, distanciamento mascarado pelos avanços tecnológicos e homogeneizadas culturalmente para servir aos interesses dos grupos-chaves. 4 SOUSA SANTOS, Boaventura; MENESES, Paula Maria (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 19. 5 QUIJANO, Aníbal. El regresso del futuro y las cuestiones del conocimiento. Revista Hueso Húmero, nº 38, Peru: Francisco Campodónico Ed., abril de 2001, p.7

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina156

Era um tempo de luta pela ampliação e radicalização da democracia não apenas em relação ao Estado, mas também no cotidiano da convivência social, definindo-se, a partir de então, um novo imaginário crítico, mais global e radical. O Estado como centro articulador de poder vai cedendo espaço a novas formas de libertação até então margi-nais e periféricas. Este processo não passou despercebido por intelectuais, à exemplo de Immanuel Wallerstein. Desde sua perspectiva, esta novidade de mobilização era um claro sinal de que o sistema mundial moderno apresentava sinais de esgotamento. Um modelo que não mais encontrava prestígio por suas grandes narrativas e nem tampouco por seus defensores. Seguramente, por esta razão, Wallerstein considera o movimento de Paris de 1968 um marco para o fim de um ciclo que havia iniciado no século XVI. Confessa que a grande ênfase de 68 é porque, embora o liberalismo não tenha desaparecido, acabou perdendo seu papel ideológico definidor da geocultura do sistema-mundo.

[...] o movimento recolocou as questões que o triunfo do liberalismo, no século XIX, encerrara ou excluíra do centro debate público. A direta e a esquerda internacionais afastavam-se novamente do centro liberal. O novo conservadorismo era, em muitos sentidos, a ressurreição do velho conservadorismo da primeira metade do século XIX. Também a Nova Esquerda era, em muitos sentidos, o radicalismo do início do século XIX ressuscitado, que, é bom lembrar, naquela época ainda era simbolizado pelo termo “democracia”, do qual se apossariam depois ideólogos centristas.6

Os eventos sociais e políticos dos anos finais do século XX acabaram por frustrar as esperanças e ilusões tanto nas áreas centrais da modernidade como em sua periferia. Mas a derrota que começa a ser reconhecida não era somente política ou econômica, era também intelectual. Um vazio de futuro emancipador foi entregue tanto às vítimas do capitalismo como a seu tradicional centro articulador. Anunciava-se o final do projeto da modernidade e o sistema internacional passa a enfrentar uma grave e talvez irreversível crise moral e institucional. Sobretudo no centro eurocêntrico começa s ser forte um dis-curso difuso e complexo que denunciava o irreversível fim do projeto da modernidade.

Para autores como Willerstein, a tensão entre a modernidade tecnológica e liber-tadora desde 68 tornou-se explícita e irremediável. O autor, em seu pessimismo, vê no pós-modernismo, enquanto tentativa de superação da modernidade, uma clara evidência de esgotamento da própria modernidade. Pós-modernidade é uma forma de rejeitar a mo-dernidade tecnológica em nome da modernidade da libertação. Se ganhou tão grotesca denominação, é porque o pós-modernismo é confuso. Como doutrina anunciatória, ele é presciente, sem dúvida, porque de fato estamos caminhando para um outro sistema histórico.7 Sua angústia intelectual é anunciada desde uma perspectiva específica dos que sempre viveram ou até então pensavam viver no melhor dos mundos possíveis.

6 WALLERSTEIN, 2002, op. cit., p. 145.7 WALLERSTEIN, 2002, op. cit., p. 149.

Teoria crítica e pluralismo 157

O esvaziamento das imagens e discursos representativos da racionalidade moderna vai criando um complexo debate no qual são criadas novas rotulações. São tempos dos “pós”. Termos que significam tentativas de demonstrar situações às quais ou se defende, e se tenta promover, ou se rechaça. Mas, o que parece ser o ponto de convergência é o esgo-tamento das categorias da modernidade e das grandes utopias que serviram para construir o horizonte de futuro moderno, sendo a crítica à modernidade o ponto de partida para sua própria superação. É neste contexto que o discurso da pós modernidade ganha relevân-cia. A lógica da pós modernidade é auto concebida desde o Norte, carregando consigo a mesma concepção unilateral de mundo e de história que nega e oculta a colonialidade e, portanto, reproduz a ideia monotópica e universal da modernidade para a qual a diferença pós colonial é considerada passiva. Neste discurso o colonial permanece bárbaro, pagão, subdesenvolvido e incapaz que deve ser tutelado. Desconsidera que as condições históri-cas não são apenas “locais”, eurocêntricas.

A crise da Modernidade manifestada na Europa é simultaneamente pensada e vi-venciada em suas margens/fronteiras, na periferia colonial. Na crise há um duplo movi-mento: um movimento “local” no “interior” do sistema moderno que idealizou e tratou de colocar-se como centro do projeto da modernidade e um movimento em suas frontei-ras que os reinventa. Como lembra Dussel, compreender e encarar a modernidade com “novos olhares” exige colocar-se fora da Europa germano-latina e vê-la como observador externo (“comprometi-do”, evidentemente, mas não como “ponto zero” da observação).8

Como observador “externo” do eurocentrismo a Modernidade trouxe em si dois paradigmas, como afirma Dussel: a) um a partir do horizonte eurocêntrico, que entende a Modernidade como exclusivamente europeia que se constrói a partir da Idade Média, resultado de excepcionais “internas”, e se difunde por todo mundo como paradigma civi-lizatório, povoando também o mundo intelectual da periferia; b) um segundo que concebe a Modernidade como cultura do “centro” que incorpora e domina a Ameríndia, criando uma “periferia” crescente. Nesta última perspectiva, a Modernidade europeia não é um sistema independente autoiético, autoreferente, mas sim “centro” do sistema mundo. 9

Sob o olhar externo a Modernidade, seu desenvolvimento, crise e incluindo a Pós-Modernidade, desde sua origem não é fruto da acumulação e superioridade europeia, mas resultado também da conquista, colonização e integração do Sul. A Modernidade é fruto deste acontecimento e não sua causa.10 E é esta consciência autocêntrica que vai “racionalizando” a vida política, a economia, a subjetividade alienada e descorporificada, a razão solipsista sem comunidade, etc. Portanto, afirma Dussel:

8 DUSSEL, Enrique. Meditações Anticartesianas sobre a origem do antidiscurso filosófico da modernidade. In: SOUSA SANTOS, S. e MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p.343. 9 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. 4ª Ed. Pe-trópolis: Vozes, 2012, pp. 51-52.10 Ibid., pg. 52.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina158

A superação da modernidade significará considerar criticamente todas estas reduções simplificadoras produzidas desde suas origens –e não só algumas poucas como imagina Habermas–. A mais importante dessas reduções, ao lado da subjetividade solipsista sem comunidade, é a negação da corporalidade da dita subjetividade, a própria vida humana como última instância –à qual se ligam as críticas à Modernidade por parte de Marx, Nietzsche, Freud, Foucault, Lévinas [...]11

Por esta razão toda crítica à Modernidade e disputas intelectuais pós-modernas que não ultrapassam o horizonte eurocêntrico, que vê o “periférico” como expectador trata-se, no dizer de Dussel12, de uma falácia reducionista. Uma negação niilista conservadora. Os filósofos pós-modernos, com distintos discursos e considerações, embora reconhe-cendo e afirmando teoricamente a diferença, não refletem acerca das origens deste sistema para além da centralidade, são profundamente acríticos e, por isso, não têm possibilidade de tentar trazer qualquer alternativa (cultural, econômica, política, etc.) válida para as nações periféricas, nem para as grandes maiorias dos povos dominados excluídos do centro e/ou da periferia.13 Neste sentido, retomar o pensamento crítico a partir da atitude pós-colonial, mais que uma construção epistemológica é política e permanece na América Latina, seja nas serras como em Chia-pas, seja nas cidades como Fórum Social Mundial, ou nas universidades americanas e europeias.

Pós colonialismo relacionado a emergência de uma nova geopolítica do conheci-mento deve ser compreendido distintamente do pós-colonialismo enquanto luta de eman-cipação política das colônias europeias. Para Boaventura de Sousa Santos é um conjunto de práticas (predominantemente performativas) e de discursos que desconstroem a narrativa colonial, escrita pelo colonizador, e procuram substituí-las por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado.14 A diferença colonial cria uma condição única de, sob o ponto de vista do subalterno, oferece um novo horizonte crítico para as representações da crítica interna às narrativas modernas hegemônicas. É a superação do discurso linear que vai do moderno precoce ao moderno e ao moderno tardio ultrapassando as fronteiras internas –conflitos entre os império – e externas –conflitos nas representações– da própria modernidade.15

11 Ibid., p. 63 12 Ibid., p. 64.13 Ibid., pp. 64-65.14 SOUSA SANTOS, Boaventura de. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 233.15 MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subal-ternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 11

Teoria crítica e pluralismo 159

2. Resignificação hermenêutica e jurídica

No campo hermenêutico o “compreender” é resultado de condições definidas por um horizonte, um âmbito de “visão”, estabelecido por um agir histórico e questionador a partir da finitude do presente.

Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo que é visível a partir de um determinado ponto...ter horizonte significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver mais além disso.....A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição.16

Sob tal perspectiva, o presente é um universo de questionamentos e de superação de limites sendo a compreensão não um fenômeno que existe por si só e independente da historicidade, uma vez que, seu pressuposto é a interpelação daquele que está situado. A atitude hermenêutica é, portanto, uma tomada de consciência que pressupõe questiona-mentos. É algo mais do que a mera reprodução de conceitos ou concepções alheias. É um compreender o presente a partir das condições de sua superação.

Para Leopoldo Zea17 o ser humano é definido pela história e o que pode ser de-pende da tríplice dimensão histórica, ou seja, ao que dá sentido ao fato, ao que se faz e ao que se pode continuar fazendo. Segundo a dimensão vital adotada por este ser histórico e hermenêutico, a compreensão da história define escolhas: a afirmação e conservação do passado, a esperança no presente ou a mudança permanente no futuro.

Partindo de um horizonte e atitude hermenêutica de ampliação do presente com vistas a um futuro mais generoso é que se podem recuperar experiências do pensamento jurídico crítico brasileiro e latino americano para encontrar elementos a serem resgatados e reinventados pela hermenêutica jurídica crítica.

No Brasil a possibilidade de “visibilização” inovadora do direito nasceu de uma experiência coletiva no contexto dos anos 70, quando, um conjunto de eventos de nature-zas distintas, acabou por conduzir os juristas a um “espaço” de reflexão inédita: o espaço crítico. Naquele momento, pensadores do direito brasileiro vivenciaram esta experiência descobrindo fatalmente que, a representação reconhecida como “direito” tornava-se um estranho objeto que apenas servia para projetar a falsa idealização daquilo que um dia imaginou o que poderia ter sido.

16 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meuer. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 452. 17 Leopoldo Zea (1912-2004) é considerado o principal representante do grupo de pensadores mexicanos “americanistas”, pensa a filosofia mexicana a partir das condições e possibilidades latino americana buscando exprimir reflexivamente a autêntica identidade e a cultura deste continente. Desde a raiz e tradição ibérica e influenciado pelo cristianismo liderou o movimento acadêmico e ideológico pela resistência e independência contra a hegemonia cultural europeia.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina160

Desde então, de forma recorrente, a expressão “crise do direito” torna-se corrente. Mas um tipo de crise inédita que podemos chamar de crise espetacular: de um lado, o olhar da socieda-de à beira do terror de não ver refectida nenhuma imagem que reconheça como sua; do outro lado, o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho tornado estátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja, mas para que seja vigiado.18 Nos momentos de “crise” é quando se pode captar a fragilidade das representações, uma fragilidade que a coloca em risco da “queda”. O instante do desequilíbrio, do fim das certezas. Entretanto, o momento do desequilíbrio também é o de forçosamente olhar o “chão”, descobrindo o risco de misturar-se com a “terra”. Este é o instante da reinvenção. Quando é possível da “matéria” bruta renovada uma nova construção19, um esperado reinício.

No Brasil aquele foi o momento em que o movimento social tenta retomar os ideais democráticos que os “anos de chumbo” da ditadura militar havia destroçado. Mo-mento de vingança da história que não poderia ser desperdiçado20. Na segunda metade do século XX o Brasil passou por transformações tão rápidas quanto brutais. Se é certo que não há uma teleologia na história e sua trajetória pode ser continuamente criada e recriada quando novas condições parecem apontar a possibilidade de outro direcionamento, as últimas décadas do século XX foi um destes imperdíveis momentos.

No Brasil e na América Latina “ventos” inovadores chegam por volta da década de 80 com o engajamento de juristas progressistas e comprometidos com a superação dos obstáculos políticos que impediam a construção e efetivação da democracia. Este movi-mento de renovação do pensamento jurídico recebe a adesão de pensadores brasileiros em inúmeras faculdades de direito que acabaram por serem pioneiros de uma pedago-gia jurídica emancipadora. As perspectivas epistemológicas, apesar de múltiplas, tinham como ponto em comum a defesa do rompimento com o positivismo legalista e revelando o caráter dominador e centralizador do direito hegemônico.21

A Teoria Crítica Latino Americana trouxe consigo o impacto do questionamento do papel ideológico do direito na medida em que, diferentemente da concepção moderna de ciência, coloca no interior da discussão jurídica as contradições e ambiguidades ineren-

18 SOUSA SANTOS, Boaventura. A crítica à razão indolente. Vol. I, São Paulo: Cortez, 2002, p. 48 19Metáfora semelhante é utilizada por Boaventura de Sousa Santos para significar o sentido da “crise” como momento inovador. 20 A expressão A Vingança da História é utilizada como título para obra de Emir Sader (São Paulo: Boitempo, 2003) que reflete acerca do contexto político brasileiro dos finais do século XX que teriam levado a eleição de do presidente Lula, um ex-sindicalista, de origem popular e vinculado a um partido construído no momento de transição democrática e sempre rechaçado pelas elites do país. Sua análise parte do pressuposto que a dinâmica da história e a historicidade humana são inseparáveis e possuem como um dos elos o processo permanente de construção e reconstrução a partir da luta concreta cotidiana. 21 São inúmeros os pensadores do direito relacionados ao pensamento jurídico crítico, mas a verdadeira arqueologia epistemológica feita por Antonio Carlos Wolkmer na obra Introdução ao pen-samento jurídico crítico, lembra com acuidade nomes e trajetórias que merecem ser registradas.

Teoria crítica e pluralismo 161

tes ao direito moderno, buscando tomar o direito como instrumento não de manutenção da ordem estabelecida, mas a possibilidade de emancipação do sujeito histórico tradi-cionalmente submerso em determinada normatividade repressora, mas também discutir e redefinir o processo de constituição do discurso legal mitificado e dominante.22 Mostrava-se assim um horizonte inovador, mas que trazia consigo, a necessidade de rompimentos e abandonos teóricos.

Foi exatamente neste contexto que a hermenêutica jurídica ganha um novo status na discussão jurídica. Entretanto esta não é uma novidade. Nos momentos agudos de transição a questão hermenêutica ganha relevância. Mais do que nunca é necessário com-preender a partir de novas categorias uma realidade também inovadora. A complexidade desta nova problemática, qual seja, descobrir o “lugar” da hermenêutica numa lógica ju-rídica emancipadora fez com que fosse instaurada uma discussão que assumiu distintos caminhos a partir de distintas matrizes.

3. Novo constitucionalismo, nova hermenêutica e pluralismo jurídico

Nas primeiras décadas do século XXI, em meio a discussão plural e descolonizadoras, chegam ao poder em vários países latino americanos, governos progressistas que avan-çaram no campo da democratização, políticas sociais e integração regional. Neste marco, os governos populares da Bolívia, Equador e Venezuela em especial, foram implantando um novo paradigma constitucional a partir da plurinacionalidade, demodiversidade, novos direitos vinculados a uma racionalidade reprodutiva da vida que expressamente deseja a vontade descolonizadora como conteúdo fundamental do projeto político em marcha nestas nações.23

No Brasil, em particular, entrada no novo século, embora não triunfal, foi feita sob a égide da democracia aliada a esperança –nunca perdida– de reafirmação de cidadania. É neste contexto que o sistema judiciário internamente assumiu o papel inédito de asse-gurar não apenas o conjunto de direitos fundamentais duramente conquistados, mas o de também manter a estabilidade política numa historicamente frágil ordem democrática. Revisando a história do direito brasileiro não é dificil perceber que este protagonismo é muito diferente do tradicionalmente assumido de servir de mero instrumento de conferir eficácia ao sistema normativo estabelecido por um poder político raramente comprometi-do com interesses populares e fortemente marcado pela herança colonial. Na trajetória de construção do Estado brasileiro o judiciário esteve mais ocupado em cumprir seu papel controlador e reprodutor dos interesses das elites e organizar-se institucionalmente como aparato burocrático do poder. Ao bem da verdade, o judiciário não foi alvo de atenção nem das elites nem das forças progressistas, talvez porque nunca representou obstáculo

22 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2001. p. 18 23 MÉDICI, Alejandro. La constitucionalización horizontal: teoria constitucional y giro deco-lonial. San Luis de Potosí: Universidad Autónoma de San Luis Potosí, 2012, p. 56

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina162

para aquelas, tampouco fonte de justiça social para estas, mas acabou em finais do século XX assumindo um papel político do qual não pode mais renunciar.

Com esta realidade na América Latina em geral e no Brasil em particular, torna-se urgente a tarefa de tradução das múltiplas compreensões de mundo e dentre as quais jurí-dica. E é neste sentido que não cabe uma hermenêutica jurídica nos moldes tradicionais. São campos distintos que se tocam –o estatal e o social– em que mundos normativos, práticas e saberes dialogam, se desentendem e interagem tornando possível reconhecer os pontos de contato entre a tradição moderna ocidental e os saberes leigos. As duas zo-nas de contacto constitutivas da modernidade ocidental são a zona epistemológica, onde se confrontam a ciência moderna e os saberes leigos, tradicionais, dos camponeses, e a zona colonial, onde se defrontam o colonizador e o colonizado. São duas zonas caracterizadas pela extrema disparidade entre as realidades em contacto e pela extrema desigualdade das relações de poder entre elas.24 A tarefa hermenêutica como tradução retoma o sentido mais original do termo,mas a partir de uma perspectiva inovadora que traduz saberes nem sempre convergentes.

Como as práticas sociais de compreensão e solução de conflitos é mais retórica e argumentativa são grandes os desafios a serem enfrentados pelos juristas de profissão. Boaventura de Sousa Santos sugere uma hermenêutica diatópica que em síntese consiste em buscar os topois –lugares comuns que constituem o consenso básico e torna possível o dissenso argumentativo– presentes na argumentação, que é normalmente assentada em postulados, axiomas, regras e concepções aceitas por todos. O trabalho de tradução não dispõe à partida de topoi, por que os topoi que estão disponíveis são os que são próprios de um dado saber ou de uma dada cultura.25 O trabalho consiste em, sem que se tenha um ponto de partida, reco-nhecer os topoi que cada prática expressa como forma argumentativa. É um trabalho exigente, sem seguros contra riscos e sempre à beira de colapsar. A capacidade de construir topoi é uma das marcas mais distintas da qualidade do intelectual ou sage cosmopolita.26 São dificuldades que se impõe e devem ser superadas pela prática do reconhecimento e da oportunidade de dar voz ao outro, mesmo ao que não quer fazer uso dela, do que permanece em silêncio.

Já Walter Mignolo fala de uma hermenêutica pluritópica27 como parte da resis-tência à semiose colonial, porque a colonialidade do poder pressupõe a diferença colonial como sua condição de possibilidade e como aquilo que legitima o subalterno do conhecimento e a subjugação dos povos.28 Considerando a construção do pensamento hermenêutico jurídico brasileiro, na linha de pensamento da descolonização e na inclusão dos múltiplos atores sociais no pro-cesso de construção do saber jurídico, sua perspectiva é monotópica, ou seja, é edificada sob a perspectiva de um único sujeito cognoscente – o jurista de profissão – e com uma posição de quem fala de um lugar virtual uma terra-de-ninguém universal, como chama Mignolo. A intenção de sua hermenêutica é apagar a concepção de que interpretar é des-

24 SOUSA SANTOS, 2006, op. cit. p.130 25 Ibid., p. 133.26 Ibid. 27 MIGNOLO, 2003, op. cit. p. 37.28 Ibid., p. 40.

Teoria crítica e pluralismo 163

crever a realidade a partir de seu horizonte compreensivo. O objetivo é apagar a distinção entre o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido, entre o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido, entre um objeto “híbrido” (o limite como aquilo que é conhecido) e um “puro” sujeito disciplinar ou interdisci-plinar (o conhecedor) não contaminado pelas questões limiares que descreve.29 Uma hermenêutica que assume-se como dialógica que numa perspectiva pedagógica emancipatória, caminha para a conscientização e auto construção.

A redemocratização aliada a um constitucionalismo construído nas matrizes eu-ropeias que consagram direitos fundamentais – conquistados ao longo de um processo histórico específico -, em terras brasileiras tem sido uma proposta desacompanhada de políticas públicas e sociais capazes de conferir eficácia e efetividade à nova ordem, ainda com agravante de existirem fortes resistências entre juristas herdeiros de uma lógica car-tesiana ainda reféns do ultrapassado paradigma formal legalista de direito. Sem medo de errar, pode-se afirmar que aí está uma das razões centrais para compreender o por que de passados quase vinte anos de Constituição Democrática ainda o Brasil é um país em que os princípios democráticos fazem parte de uma mera intencionalidade nem sempre ou raramente contemplada. Para se ter uma idéia, o princípio constitucional da ampla defesa ficou quase quinze anos sem ser aplicado nos interrogatórios judiciais, sem que a doutrina e a jurisprudência – com raríssimas exceções – tivesse reivindicado a aplicação direta da Constituição.30 Evidentemente sem esquecer que ainda o “peso da balança” pende para um “lado”.

É indo em direção a uma lógica plural e emancipadora que é possível falar-se em reconhecer o mundo social como mundo de possibilidade compreensiva e, portanto, fonte de uma nova racionalidade hermenêutica. Trata-se de uma perspectiva pluralista de direito que reconhece múltiplos espaços de fontes normativas, apesar de na maioria das vezes, como lembra Antonio Carlos Wolkmer31 é informal e difusa. O pluralismo é uma fonte de inúmeras possibilidades de regulação. Para Antonio Carlos Wolkmer

O pluralismo enquanto concepção “filosófica” se opõe ao unitarismo determinista do materialismo e do idealismo modernos,pois advoga a independência e a inter-relação entre realidades e princípios diversos. Parte-se do princípio de que existem muitas fontes ou fatores causais para explicar não só os fenômenos naturais e cosmológicos, mas, igualmente, as condições de historicidade que cercam a vida humana. A compreensão filosófica do pluralismo reconhece que a vida humana é constituída por seres, objetos, valores, verdades, interesses e aspirações marcadas pela essência da diversidade, fragmentação, circunstancialidade, temporalidade, fluidez e conflituosidade.[...]

29 Ibid., p. 42.30 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursi-vas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 15531 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamento de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Editora Alfa Omega, 1994, p. 155.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina164

O pluralismo, enquanto “multiplicidade dos possíveis”, provém não só da extensão dos conteúdos ideológicos, dos horizontes sociais e econômicos, mas, sobretudo, das situações de vida e da diversidade das culturas.32

Conclusão

Numa perspectiva pluralista de direito é possível ampliar o espaço jurídico para além do estatal articulando saberes, práticas e ações coletivas inovadora até então pouco re-conhecida. Uma prática cujo espaço de investigação é inesgotável para a hermenêutica. Identificar os elementos comuns nas traduções das múltiplas realidades – a jurídica e a coletivamente criada - para encontrar o comum, o ponto inicial para a tradução é uma tarefa que não cabe numa teoria hermenêutica tradicional.

Referências

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Alfa Omega, 1994.

32 Ibid., p. 158

165

DESCOLONIZAÇÃO JURÍDICA NOS ANDES1

Rosembert Ariza Santamaría2

Introdução

América Latina é o céu e o inferno dos modernos, aqui tudo é possível e nada é possí-vel, afirma Nestor García Canclini, e acrescentaríamos, o princípio e o fim de todas as experiências institucionais do Ocidente. Um território particularmente estratégico e que novamente retoma particular relevância no sistema mundo3 capitalista, uma vez que os recursos naturais estratégicos estão concentrados neste lugar da geografia ocidental.

Os povos desta parte do planeta durante séculos calaram e silenciosamente resis-tiram aos embates do modelo global, todavia, nas últimas três décadas, em alguns países, deram-se as condições para transformar o Estado e o poder judicial, fato que não é alheio à leitura teórica e que desde dito lugar se aborda na seguinte análise, com as evidentes limitações que ainda marcam o tema.

Abordaremos em primeiro lugar o Estado Boliviano e sua tarefa descolonizadora junto ao trajeto e reflexões que estas transformações suscitam ao modificar as estruturas do velho Estado. E em segundo revisaremos a compreensão descolonizadora que se vem gestando no Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia (TCPB) e as críticas e limi-tações que alguns setores acadêmicos formulam acerca da descolonização jurídica.

1 Tradução do espanhol feita por Débora Ferrazzo (mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina).2 Advogado, Doutor em Sociologia, Professor Associado do Departamento de Sociologia da Universidade Nacional da Colômbia, Diretor da pesquisa “Constitucionalismo Andino e Estado de direito. Encruzilhadas do Estado constitucional”. Membro do Prujula-Clacso, Relaju e da Rede de constitu-cionalismo democrático latino-americano, Docente em diversas universidades latino-americanas, e defensor dos direitos dos povos indígenas e comunidades étnicas. Autor do livro: El Derecho Profano. Justicia indígena, justicia informal y otras maneras de realizar lo justo. Bogotá: Universi-dad Externado de Colombia, 2010.3 Immanuel Wallerstein foi o primeiro a falar da análise de sistemas – mundo. Definido como: “Um sistema mundial, é um sistema social que possui limites, estruturas, grupos, membros, regras de legitimação e coerência. Sua vida resulta das forças conflitivas que o mantém unido por tensão e o desagregam à medida que cada grupo busca eternamente remodelá-lo para seu benefício”. A respeito do capitalismo, o autor adverte que a característica principal deste sistema-mundo é o que conseguiu subsistir por mais de 500 anos, como nenhum outro na história.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina166

1. Descolonizar a sociedade, descolonizar o Estado

Os processos atuais que tem se desenvolvido dentro do Estado boliviano são o resultado de históricas e constantes lutas dos movimentos sociais, dos povos e dos habitantes deste país, pela reivindicação de sua própria identidade. Como consequência destas lutas, e com o fundamento na nova constituição boliviana, nasce o valor estrutural e fundamental da Bolívia, a descolonização; processo no qual a sociedade boliviana busca reivindicar seu imaginário coletivo, sua cultura, suas formas de compreender o mundo.

É pertinente esclarecer de pronto, que a menção à descolonização na Carta Política Boliviana implica diretamente ao Estado, frente à dita descolonização, com a pretensão de melhorar as formas pelas quais este se relaciona com a sociedade, e assim, fixar um horizonte de pensamento coerente com seu contexto dentro das novas expressões de estatalidade.

Os desenvolvimentos da categoria descolonização estão profundamente ligados ao processo de uma nação, como a boliviana, que enfrenta o jugo do colonialismo e que pretende subverter a cultura imposta, a economia e o imaginário coletivo dominante. De maneira limitada, se considera que os processos descolonizadores iniciaram-se no final do século XVIII e início do século XIX – falando desde o contexto latino-americano. Estes processos estão encarnados nas lutas históricas que pugnam pelo reconhecimento do autogoverno e da criação de um modelo próprio de Estado.

Observando-se o ocorrido nos últimos séculos na América Latina, pode-se cons-tatar a persistência da colonização. Ainda assim, muitos afirmam que a colonização ter-minou com a saída da Espanha e Portugal dos países latino-americanos. Bolívia, com uma das nações mais ricas em diversidade cultural no nosso continente não partilha de tal afirmação, pois suas cosmovisões e cultura tem se mantido em permanente luta frente aqueles que as querem incorporar e aculturar conforme o modelo hegemônico.

Com a entrada no século XXI, as lutas por este ideário coletivo tem iniciado pro-cesso emancipatório através da descolonização, reivindicando os imaginários próprios, e reconstruindo o ser andino da sociedade boliviana. Mas, porque descolonizar? Perguntam os que acreditam que o Estado republicano superou o colonialismo.

É evidente que, desde o início dos processos de independência na América Lati-na, tem se imposto um modelo de Estado que tem sido patrocinado e executado pelos que ostentam o poder, legitimando mais uma vez o modelo eurocêntrico. Este modelo imposto desde cima4 tem levado à reafirmação de uma colonização incessante em todo o nosso continente.

A isto corresponde a nova Constituição Boliviana: a exercer um novo tipo de inde-pendência dentro de todos e cada um dos campos de produção do estatal –e de maneira

4 Retomando a afirmação de Boaventura de Sousa, onde assinala que o Estado moderno foi imposto desde cima pelos que acreditam que “descolonizaram” a latino-américa.

Descolonização jurídica nos Andes 167

permanente– a realizar uma transformação desde o intercultural como caminho de possi-bilidade para o novo Estado e o atual Estado em transição.

A colonização na Bolívia –simultânea ou contemporânea, como aduz Boaventu-ra–, é devida à permanente relutância em observar como se entende o moderno e o atual e o que permanentemente tem-se visto como ideal dentro do mundo. Para o Ocidente, as práticas locais dentro de uma comunidade –como a indígena, para citar um exemplo– sempre serão vistas como atrasadas, ou seja, de fato são simultâneas ao século XXI, mas não são contemporâneas por não partilhar das crenças próprias do resto das nações em todos os referenciais hegemônicos. Então, o tempo tornou-se linear e quem decide o que é moderno e pertinente para a sociedade é, naturalmente, a matriz ocidental.

[...] os que estão à frente estão em progresso, são avançados, enquanto todos os outros são atrasados. É por isto que países menos desenvolvidos não podem ser nunca, em nada, mais desenvolvidos que os desenvolvidos, porque a lógica da seta do tempo impede esta possibilidade.5

Todo o exposto permite inferir que a ideia atual de Estado na Bolívia está ligada ao reconhecimento de distintas epistemes, sem ignorar que o colonialismo do século XXI se mantém ligado a processos de dominação geográfica – que na realidade hoje são evidentes – para impedir a percepção de que os processos de imposições históricas conduzem os povos ancestrais e originários a abdicar seus saberes, sua cultura, seu sistema legal e cada um dos elementos que os constituem como sociedade.

2. A marcha da descolonização

Com a vigência da nova constituição se empreende a descolonização, e assim, a reativação dos princípios básicos originários da sociedade boliviana. O processo boliviano não se circunscreve no âmbito jurídico-legal, é também uma perspectiva sociológica e antropo-lógica das dívidas que ao longo dos anos têm mantido um sistema capitalista excludente, um Estado neoliberal e uma cultura consumista.

As permanentes lutas que se têm travado nos últimos anos para alcançar uma nova forma de compreender o Estado, seu povo e a relação de uns com outros, em geral, tem se enraizado somente nos movimentos antissistêmicos. Tal situação tem ficado aquém na aplicação prática, abrindo cada vez mais a lacuna entre a teoria e a práxis, já que a afirmação da criação de movimentos antissistêmicos se limita a uma crítica contra o exis-tente, esquecendo-se da aprendizagem que pode trazer a Bolívia como forma efetiva de encontrar uma alternativa ao existente e que não é mais que a identificação e utilização do próprio em um diálogo com o externo.

5 SOUSA, Boaventura de Sousa. La reinvención del Estado y el Estado plurinacional. Santa cruz de la Sierra, 2007, p. 16. Tradução livre da tradutora.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina168

É por isto que o texto constitucional traz e explicita a descolonização como um dos valores importantes para a construção do novo Estado. Portanto, as competências das diferentes entidades estatais sempre deverão ser regidas por parâmetros determinados, que estão plasmados como princípios delimitadores dentro da Carta Política e que são básicos para conseguir alcançar o diálogo intercultural requerido para a ação efetiva de uma outra forma de Estado.

Considera-se descolonização como um princípio aplicável às servidoras e servidores públicos, que permite estabelecer “as políticas públicas que devem estar desenhadas com base nos valores, princípios, conhecimentos e práticas do povo boliviano: pelo que as ações das servidoras e servidores públicos devem estar orientadas a preservar, desenvolver, proteger, difundir a diversidade cultural com o diálogo intercultural e plurilíngue”. Ou seja, as políticas públicas devem justamente estar delineadas com base nos valores e princípios: dignidade, solidariedade, reciprocidade, harmonia, ética, igualdade, transparência, honestidade e responsabilidade, além de contar com os conhecimentos e práticas do povo boliviano. Portanto, as tarefas das servidoras e servidores públicos deveriam estar orientadas para a preservação, proteção e difusão da diversidade cultural que é a base da interculturalidade.6

Ainda que a nova constituição tenha sido construída dentro de uma assembleia constituinte, não se pode esquecer de que ela é resultado do pensamento de múltiplos saberes e identidades, o que conduz a que dentre as persecuções mais importantes do Estado, esteja o êxito em determinar o aplicável a cada população e, desta maneira, o êxito em encontrar princípios básicos que sejam determinantes dentro das relações efetivas que se desenvolvem e se desenvolverão nos anos posteriores à aplicação da Carta Política.

Conforme assinalado, existem duas maneiras de compreender o processo atual de descolonização na Bolívia: uma é a que busca a reconstrução da cultura originária, que resultou nas múltiplas mobilizações que tem engendrado a constituição atual e que até certo ponto podem sentir-se desiludidas referentemente à descolonização, enquanto a ou-tra forma é a materialização de outro Estado, é a que consegue aceitar a nova constituição como um avanço importante para a refundação do Estado e que dará as bases para vários pontos que são básicos e que ajudarão a reconstruir desde pilares sólidos a sociedade boliviana, como são a educação –concretamente, outro conhecimento–; um sentido con-textualizado do poder público –nova compreensão do público– e uma sociedade “outra” descolonizada que participa efetivamente do pacto político do Estado em construção.

Neste sentido, a descolonização, entendida como a superação dos elementos coloniais que negam as formas organizativas sociais originárias e o respeito

6 CHOQUE CAPUMA, Efren. La justicia originaria campesina. Revista Red jurídica. El talante del constitucionalismo en américa Latina. Nº 2 La paz, Bolivia, 2013. Tradução livre da tradutora.

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à diferença, está enquadrada em um contexto distinto. Aqui, nação e Estado bolivianos não são antagônicos em relação ao projeto de resgate das orientações e práticas centrais do pensamento dos povos indígenas. Além disto, as lutas destes não poderiam [...] reduzir-se simplesmente ao confronto com lógicas e dispositivos de domínio, mas sim, teriam que entender-se também com o aproveitamento dos espaços e das oportunidades oferecidas por algumas conjunturas políticas no país, em favor da obtenção de direitos das culturas originárias. Este ponto é interessante, porque a descolonização é proposta já em termos legais e constitucionais.7

Então, deve-se perceber que as novas implicações que conduzem a um novo en-tendimento, na verdade, são as bases não somente de algumas práticas jurídicas, eventu-almente adotadas no momento de dirimir conflitos, mas sim, de todo o conhecimento, tanto do povo, como de cada um dos setores do Estado. Exemplo disto é visível na criação do Vice-Ministério para descolonização na Bolívia; demonstrando a importância de reinterpretar o que serve e não serve no ocidente, de criar uma nova epistemologia in-tercultural, já que tudo não se determina em esquecer e abandonar o que já foi aprendido, mas sim, tomar o bom e utilizá-lo para alcançar uma progressividade palpável em âmbitos nacionais reais.

Base de toda esta transformação são os documentos constituintes bolivianos, que em comum, expressão um sentido do plural baseado na descolonização. Sentido expressa-do claramente no art. 9.1 da Constituição Política do Estado que estabelece a construção da sociedade plural, cimentada na Descolonização a partir da consolidação das identida-des Plurinacionais, que, entenda-se, está vinculado não somente a uma identidade indi-vidual, mas também, essencialmente ao caráter Plurinacional. Ou seja, as nações e povos indígenas originários campesinos, já não são somente “reconhecidos”, “revalorizados”, “incorporados”, agora são “Estado Plurinacional”, superando a concepção de Estado-nação (Estado sem nações e/ou nacionalidades sem Estado).

A refundação do Estado ou sua transição a outra forma de Estado é a tarefa cen-tral e mais decisiva que tem o Executivo boliviano, as contradições que se derem com a proposta pré-constituinte e com as demandas históricas de “outro” Estado, sem dúvida definirão a fase atual do Estado de Direito na região e sua desconfiguração ou sua nova relegitimação depende de todos, e não somente dos bolivianos, avançarem nesta tarefa.

E, tal como afirmou a própria Assembleia Constituinte Boliviana, o Estado pluri-nacional é o modelo de organização política para a descolonização de nações e povos que reafirmem, recuperem e fortaleçam a autonomia territorial indígena.

7 CHAVEZ, Patricia. Cómo pensar la descolonización en un marco de interculturalidad. In: Des-colonización en Bolivia: cuatro ejes para comprender el cambio. Bolívia: Vice-Presidência do Es-tado/Presidência da Assembleia Legislativa Plurinacional, 2010. P. 24. Tradução livre da tradutora.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina170

3. Descolonizar o direito

A pergunta descolonizar o direito é possível? É uma pergunta recorrente aos que enfrentam esta reflexão. Talvez sejam úteis algumas noções teóricas já trabalhadas com a advertência da falta de reflexão sobre a descolonização jurídica no mundo do direito. Para isto, o mais pertinente resulta ser o giro decolonial. Uma proposta que vem fazendo carreira no “pensa-mento de frontera” das ciências sociais e cujos fundamentos guardam uma estreita relação com “a busca de perspectivas de conhecer o eurocêntrico (que na latino-américa) tem uma longa e valiosa tradição”.8 Uma breve genealogia que sem dúvida revela os diferentes momentos da história latino-americana, e ao mesmo tempo, a preocupação por encontrar as “múltiplas formas em que opera o poder e elaborar propostas para transformas estas realidades marcadas pela ‘ferida colonial’”.9

Onde precisamente assume força a proposta do giro decolonial, definido por Mig-nolo como

a abertura e a liberdade do pensamento e de formas de vida (economias –outras; teorias políticas– outras) a limpeza da colonialidade do ser e do saber; o desprendimento do encantamento da retórica da modernidade, de seu imaginário imperial articulado na retórica da democracia. 10

Além disto, Mignolo diz que o giro decolonial também pode ser entendido como um giro epistêmico decolonial, que basicamente tem como razão de ser e objetivo a decolonialidade do poder (ou seja, da matriz colonial do poder), que Aníbal Quijano, em um artigo pio-neito no qual se resume a plataforma do projeto modernidade/colonialidade, descreve da seguinte forma:

A crítica do paradigma europeu de racionalidade/modernidade é indispensável. Mas ainda: urgente. Mas é duvidoso que o caminho consista na negação simples de todas as suas categorias; na dissolução da realidade no discurso; na pura negação da ideia e da perspectiva de totalidade do conhecimento. Longe disto, é necessário desprender-se das vinculações da racionalidade-modernidade com a colonialidade, em primeiro ligar, e em definitivo com todo poder não constituído na decisão livre de gentes livres. É a instrumentalização da razão pelo poder colonial, em primeiro lugar, o que produziu paradigmas distorcidos

8 LANDER. E. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires, Clacso: 1993, p. 13.9 RESTREPO. Eduardo; ROJAS, Axel. A. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestio-namientos. Popayán, Colômbia: 2010, p. 20.10 MIGNOLO. W. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto y un caso. Tabula Rasa, núm. 8, jan./jun. 2008, pp. 243-281, p. 253. Grifo no original. Tradução livre da tradutora.

Descolonização jurídica nos Andes 171

de conhecimento e abortou as promessas libertadoras da modernidade. A alternativa, em consequência, é clara: a destruição da colonialidade do poder mundial.11

A partir destas duas definições, que expressam as ideias básicas do que trata a pro-posta giro decolonial, vale a pena aportar um elemento a mais em seus elementos constituti-vos e desta maneira expor que a estrutura triangular da colonialidade: Colonialidade do poder, Colonialidade do saber e Colonialidade do ser, estaria abordada no estudo da descolonização do direito desde o seguinte referente com um elemento primordial no mundo jurídico:

Colonialidade do poder jurídico.1. Colonialidade do saber jurídico.2. Colonialidade do ser jurídico, e 2. Colonialidade do fazer jurídico3.

Um aspecto que não podemos deixar de mencionar frente ao giro decolonial como proposta de enfoque, resulta de sua maneira particular de problematizar sobre as mes-mas variáveis que definem o colonialismo. Isto é, basear sua discussão sobre os mesmo autores, as mesmas categorias e os mesmos princípios “científicos” que se pretende “de-colonizar”. O que em um dado momento (e sem prejuízo do rigor dos “decoloniais”), faz com que esta seja uma proposta que ainda se encontra muito ligada à acadêmica, ao texto, ao autor (à crítica ao pensamento moderno) e, todavia, não oferece um marco analítico independente, ou em um sentido mais amplo: “descolonizado”.

Com esta advertência, a perspectiva da descolonização jurídica, ou do direito, não deixa para trás este aspecto, que se constitui em um questionamento permanente a estes exercícios de reflexão. Apesar do valor que se reconhece ao giro decolonial, é ele precisa-mente que convida à reflexão conjunta na latino-américa sobre o legado da colonialidade e suas possíveis implicações na maneira como se enfrentam as questões do direito e do mundo jurídico nesta região do planeta.

A descolonização da chamada Colonialidade do poder jurídico está suscitada no caso da Bolívia e, em menor medida, no Equador pela ideia do Estado plurinacional, em-bora as abordagens do processo constituinte boliviano, sua consagração na carta política e os desenhos do órgão judicial plurinacional ofereçam bases para identificar a Colonialida-de do fazer jurídico e considerar-se um fazer de descolonização do direito, esta condição de possibilidade se dá desde as tarefas que desenvolve a própria unidade de descoloniza-ção jurídica e o Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia.

Todo o exposto pode-se materializar em uma proposta que está em marcha no Tri-bunal Constitucional Plurinacional da Bolívia e que se apresenta na sequência, como uma via para iniciar a descolonizar o direito desde a colonialidade do fazer jurídico.

11 QUIJANO apud MIGNOLO, Ibid. p. 250-251. Tradução livre da tradutora.

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4. Pluralismo descolonizante

O caminho para consolidar um pluralismo descolonizante começa pela realização de um Bloco Intercultural Jurídico (BIJ), pela tradução intercultural e pelo informe próprio da justiça própria. Estes três fazeres constituem a base para uma reflexão prática descoloni-zadora que coloque questionamento o colonialismo do fazer jurídico.

O BIJ é entendido como uma harmonização entre as normas internacionais, a constituição e as normas próprias dos povos, comunidades indígenas e afrodescendentes. É um apoio intercultural descolonizador entendido como um conjunto de normas legis-lativas que permite uma dupla entrada para determinar a competência da Jurisdição Es-pecial Indígena: o autorreconhecimento dos indígenas, e em segundo lugar a prerrogativa dos povos de fazer justiça, com isto se fornece uma integralidade básica para consolidar o respeito e proteção dos direitos coletivos dos povos indígenas, o respeito e proteção dos direitos individuais das pessoas indígenas. Com isto, a pessoa indígena pode acessar a jurisdição com tranquilidade com o fim de obter pronta, específica e efetiva justiça.

O fundamento reside na necessidade dos povos indígenas de que seu direito não seja violado, e do sistema judicial em geral de que não se paralise o serviço de justiça, de modo que a proteção da jurisdição indígena protege o interesse geral e as normas interna-cionais junto às de direito próprio ajustadas em harmonia com a ideia de descolonização jurídica e não subordinação de uma ordem jurídica a outra ordem.

O BIJ contempla então um exercício de construção dos tratados internacionais, a Constituição vigente, a legislação nacional indígena e, claro, a lei de origem ou o chamado, direito próprio.

A forma de materializar o BIJ é sem dúvida a tradução intercultural, que se fará caso a caso, como a entende Boaventura de Sousa Santos12, um mecanismo de tradução intercultural que permite interpretar a Constituição e o Direito Internacional dos Direitos Humanos em termos interculturais. Em outros termos, os próprios direitos fundamentais devem ser submetidos à interpretação intercultural. Os valores plasmados nestes direitos devem ser respeitados, mas as atuações concretas que os respeitam ou que os violam, não sendo eticamente neutras, podem ser objeto de interpretações opostas, conforme as normas culturais das que se parta.

E o relatório de justiça própria, ao estilo dos realizados pela Unidade de desco-lonização do Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia, com uma conformação intercultural e o procedimento que nestes dois anos realiza esta unidade.

O que se desenvolveu pela Unidade de Descolonização, oferece três elementos inovadores: o primeiro é que a perícia intercultural não é realizada por cientistas, ou cien-tistas sociais, mas sim por um grupo de especialistas e conhecedores de diferentes siste-

12 SANTOS, Boaventura de Sousa; EXENI RODRÍGUEZ, José Luis (org.). Justicia indígena, plurinacionalidad e interculturalidad en Bolívia. 2 ed. Quito: Fundación Rosa Luxemburgo, 2013. p.147

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mas de direito; o segundo é que de tal processo participa a comunidade étinica envolvida e o terceiro é que sua validade não depende do método jurídico, mas sim da legitimidade sociocultural.

O alcance deste procedimento da Unidade de Descolonização pode ser constatado no Relatório da Comunidade Indígena Chiquitana Altamira – La Porfia, no Município de Concepción, Província Ñuflo de Chavez, Departamento de Santa Cruz, datado de novembro de 2013.

O primeiro item do relatório trata do seguinte: se efetivamente a referida comuni-dade conta com um sistema de administração de Justiça Indígena. Se a resposta é afirma-tiva, se deve questionar sobre o modo de organização de seu sistema de administração de Justiça Indígena.

O segundo item do mesmo relatório se intitula: informe sobre se o exercício da jurisdição por parte das nações e povos indígenas lhes resulta obrigatória, se ocorrem os pressupostos do art. 191.II da Constituição Política do Estado, ou se a mesma pode ser renunciável e, neste caso, especificar em que situações; e o terceiro item do relatório a ser observado nesta análise: de maneira geral e teórica, informe sobre como percebe-se o inter-relacionamento e o diálogo entre os sistemas de justiça e o Estado Plurinacional da Bolívia.

Com relação ao segundo item, eis o que o relatório assinala: na comunidade indíge-na originária de Altamira o exercício da jurisdição indígena originário campesina se aplica dentro da jurisdição territorial, nos âmbitos de vigência pessoal, material e territorial, conforme estabelece o art. 191, II da CPE e a Lei nº 073, Lei de Deslinde Jurisdicional. Para as autoridades e membros da comunidade de Altamira, a aplicação da Justiça Indíge-na Originária Campesina não é obrigatória; em outros termos, não implica em obrigação para os membros da comunidade o cumprimento do que estabelece o artigo mencionado. Desde sempre as comunidades têm praticado e aplicado, desde seus ancestrais, as formas de resolução de conflitos. Pelo que, as normas mencionadas não são uma opção a parte, mas sim, estão fundadas conforme seus usos e costumes. Referente a isto, assinalam o seguinte: “nós sempre temos resolvido nossos problemas em função dos usos e costumes, para nós, ainda que não conheçamos muito o que diz a Lei de Deslinde, em parte é o que nós fazemos e sempre temos resolvido nossos problemas em função dos usos e costumes”. Por isto, a comunidade de Altamira antes das reformas estruturais que mudaram a relação de Estado – povos indígenas, em Altamira as famílias têm mantido suas formas de resolução de conflitos baseados em sua cosmovisão própria.

Com relação ao item três, se diz o seguinte: sobre o inter-relacionamento e diálogo entre a Justiça Indígena Originária Campesina e a Justiça Ordinária, dentro do Estado Plurinacional da Bolívia; se adverte que os habitantes de Altamira não veem uma relação nem mecanismos de cooperação e coordenação entre ambas as justiças. Contrariamente, desconhecem as funções e atribuições da Justiça Ordinária, consideram como uma instân-cia superior à sua própria justiça. Segundo as autoridades e membros da comunidade de

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Altamira assinalam “[...] nós, como autoridades de Altamira, quase não recorremos às autoridades da justiça ordinária [...] somente pelos conflitos que temos com a família do senhor Carlos Bailaba, mas antes não tínhamos conflitos semelhantes”. Em diversas passagens da intervenção das autoridades de Altamira, estas assinalam que seu sistema de justiça não esta em condições de resolver conflitos maiores.

A razão por que recorrem à Justiça Constitucional, segundo as autoridades e mem-bros da comunidade de Altamira, é conseguir paralisar os constantes abusos e afrontas contra a comunidade de Altamira por parte de Carlos Bailaba e sua família, que tem pro-tagonizado uma série de agressões de caráter verbal, ou ausência nas reuniões, rejeição às autoridades com prejuízo para toda a comunidade.

O projeto de desenvolvimento apoiado pelo programa Pró-Terra é um dos fatores de conflito que opôs os membros da comunidade de Altamira e a família de Carlos Bai-laba Mangarí. As tentativas de solução do conflito realizadas na própria comunidade não alcançaram uma solução favorável para o conflito, situação pela qual, ou pelo fracasso de uma solução na própria comunidade, as autoridades e membros da comunidade de Alta-mira recorreram à Justiça Constitucional para encontrar uma solução favorável a todas as famílias que compõe a comunidade de Altamira.13

Nas conclusões, o relatório estabelece o seguinte: conforme indicado nos conteú-dos do referido documento, a comunidade somente tem conhecimento da forma como suas autoridades administram justiça, já que também, a própria comunidade é responsável pelas sanções determinadas em assembleia comunitária; neste sentido, existe uma percep-ção positiva das bases ou membros da comunidade, acerca do papel de suas autoridades, sempre e quando trata-se de assuntos de sua competência; neste caso, as decisões são tomadas em assembleia comunitária. A comunidade de Altamira tem dois tipos de reu-nião: a assembleia comunitária ordinária, que é realizada uma vez por mês, e a assembleia comunitária extraordinária, convocada em casos emergenciais. Com relação à promotoria, justiça ordinária, constitucional, são entidades cujo papel ou função a comunidade desco-nhece; portanto, desconhecem se estas são eficazes ou ineficazes (em diversas passagens da reunião, foi referido que a promotoria somente foi conhecida por conta do conflito que a comunidade tem com a família de José Bailaba).

Este relatório contribui com a decisão que o Tribunal Constitucional Plurinacional toma a respeito da matéria submetida ao seu conhecimento e, sem dúvida, avança em relação ao que o modelo jurídico conhecia até então em termos de perícia cultural.

Os elementos aportados pela própria comunidade adquirem relevância em um sis-tema que procura avançar à interculturalidade e não ater-se ao mero “formalismo”.

13 Relatório da Unidade de Descolonização, p. 35.

Descolonização jurídica nos Andes 175

Conclusão

Em comum na América Latina temos um alto déficit pluralista e isto implica em distintos desenvolvimentos da pluralidade jurídica nos países da região.

As diferenças atuais saltam aos olhos: o Chile aparece como caso paradigmático do lento avanço formal e pouco reconhecimento constitucional do pluralismo. Por outro lado, no Equador e na Bolívia as novas Constituições parecem garantir os direitos nelas incluídos como resultado da emergência de um “pluralismo desde baixo”, que tem resul-tado efetivos em termos de reconhecimento dos direitos dos setores marginalizados e excluídos, especialmente, os povos indígenas. Aqui a questão central é o desafio de como articular eficazmente o mandato constitucional com o ordenamento jurídico vigente ou por reconfigurar-se.

Uma doutrina orientada por sistemas jurídicos plurais deve percorrer a rota que propõe o constitucionalismo boliviano, que é a da interculturalidade. Nesta proposta, há diversas contribuições a serem revisadas para alcançar um avanço comum neste momento crucial na Latino-américa.

[...] a partir da concepção do pluralismo jurídico como elemento fundante do Estado, o modelo de Estado se estrutura sobre as bases de direitos individuais e também direitos com incidência coletiva, mas que isto, a concepção do pluralismo jurídico e da interculturalidade, configuram o traçado de valores plurais norteadores que visam consolidar o viver bem, deste modo e ao abrigo da estrutura axiomática da interculturalidade plasmada no Preâmbulo da Constituição, que assegura que os valores supremos se complementem em uma sociedade plural e irradiem seus conteúdos por todos os atos da vida social, incluídos aqueles procedimentos ou decisões emanadas dos povos e nações indígenas originários campesinos.14

Mas, novamente, o Tribunal Constitucional Plurinacional vai mais além do que qualquer Estado na América Latina ao destacar de maneira categórica o seguinte:

[...] é importante estabelecer que o pluralismo jurídico produz como efeito no modelo de Estado, a consagração de um pluralismo de fontes jurídicas, aspecto que implica na superação do Estado monista; deste modo, em reconhecimento a este aspecto, tem-se que a ordem jurídica vigente no Estado Plurinacional da Bolívia está conformada por dois elementos essenciais: 1) A Constituição como fonte primeira e direta de direito; 2) as normas e procedimentos das

14 BOLÍVIA. Tribunal Constitucional Plurinacional. Resolução 1422/2012. <http://www.tcp-bolivia.bo/tcp/sites/all/modulostcp/busqueda/buscador/Nbuscadoresoluciones.php >. Acesso em: 20 ago. 2014. Tradução livre da tradutora.

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nações e povos indígenas originário campesinos, também como fonte direta de direito.15

Sem dúvida alguma, esta é a ruptura mais significativa feita pelo Tribunal Plurina-cional com base na constituição boliviana e que faz com que efetivamente se possibilite um pluralismo intercultural, expresso na Resolução que reconhece explicitamente como fonte de direito as normas e procedimentos das nações e povos originários campesinos, em termos concretos, isto é o mais avançado em matéria de pluralismo que tem alcançado na América Latina e muitos Estados estão longe de compreender que um exercício de interculturalidade obriga a romper a clássica ideia das fontes de direito e incluir outros sistemas jurídicos.

E nesta mesma Resolução, 1422/2012, conclui o Tribunal Boliviano: [...] o teste do paradigma do viver bem, utilizará o método jurídico da ponderação intercultural, a qual, orientada pelos valores plurais supremos antes descritos, deverá comparar os fins perseguidos pela decisão em relação aos meios empregados, para assim, verificar a harmonia dos fins e meios adotados na decisão com os valores plurais supremos descritos precedentemente, evitando assim, uma discordância com os postulados da Constituição axiomática. 16

A Constituição boliviana, além do já assinalado, tem traçado um sistema de con-trole de constitucionalidade plural, pois não somente se exerce o controle sobre normas formais, mas também sobre as normas das nações e povos indígenas originário campe-sinos, além de conhecer os conflitos de competências entre as diferentes jurisdições e de revisar as decisões pronunciadas pela jurisdição indígena originário campesina quando se considere que estas normas são lesivas a todos os direitos fundamentais e garantias constitucionais.

Estas prerrogativas foram introduzidas na atual Constituição Política do Estado em razão do reconhecimento expresso aos direitos dos povos indígenas originário cam-pesinos, à igualdade hierárquica de sistemas jurídicos e jurisdições; porém, mais que isto, deve-se considerar que a Lei Fundamental foi resultado de um processo dialógico no qual interviram os diferentes setores populares bolivianos e, é claro, também as nações e po-vos indígenas originário campesinos, que tiveram um protagonismo na consolidação do Estado Plurinacional.

E não se pode deixar de mencionar a constitucionalidade do primeiro estatuto autonômico que se fez na declaração constitucional plurinacional 0009/2013, em Sucre, no dia 27 de junho de 2013, na qual o item III.2, sobre a natureza, alcance e acesso à au-tonomia indígena, assinala:

15 BOLÍVIA. Tribunal constitucional plurinacional. Ibid. Tradução livre da tradutora.16 BOLÍVIA. Tribunal constitucional plurinacional. Ibid. Tradução livre da tradutora.

Descolonização jurídica nos Andes 177

A autonomia indígena originário campesina adquire características singulares e próprias, posto que é a manifestação institucional de uma realidade indígena por longo tempo postergada e privada do acesso ao poder político formal, adquirindo por esta razão, um caráter emancipatório e libertador.17

E acrescenta o Tribunal que se constitui, como reza o preâmbulo constitucional, num componente substancial do processo de construção de uma nova estatalidade ba-seada na pluralidade “[...] econômica, social, jurídica, política e cultural dos habitantes desta terra” e em livre determinação das nações e povos indígenas originário campesinos como uma forma de reconhecimento a sua existência pré-colonial e o domínio ancestral sobre seus territórios, reconhecendo-lhes, no marco da unidade do Estado, seu direito à autonomia, ao autogoverno, à sua cultura, ao reconhecimento de suas instituições e à consolidação de suas entidades territoriais, conforme esta Constituição e a lei, como se expressa textualmente no art. 2 da Constituição.

Este reconhecimento demonstra o alcance da pluralidade na Bolívia e sua mate-rialização. Como destacado até aqui, pode-se pensar que outro direito é possível e que o caminho da descolonização jurídica está em marcha.

Nós, a quem chamam indígenas, herdeiros de uma cultura milenar, agora em qualidade de “objetos” da ciência, erguemos a voz para fazermos escutar que somos “sujeitos” com pensamento próprio, sentimento próprio, uma visão de vida própria, normas próprias, procedimentos de aplicação próprios; então, como pretendem que compreendamos a aplicação de normas e tratados de organizações supranacionais, que somente pretendem benefício econômico em detrimento das nações e povos indígenas, a cuja organização e funcionamento ninguém parece fazer referência, em detrimento dos costumes e tradições do advêm de milhares de anos, cujo alcance e compreensão estão afastados do conhecimento racional positivado do constitucionalismo; há quem agora pretenda nos ensinar, a partir da teoria constitucional, a prática constitucional, ou seja, “desde a norma até a vida”, sem entender que a lógica dos povos e “nações indígenas originárias campesinas”, parte de um atuar inverso, “desde a vida até à norma” 18, desde a prática constitucional à teorização constitucional. 19

17 BOLÍVIA. Tribunal Constitucional Plurinacional. Declaração Cons-titucional Plurinacional 0009/2013. Disponível em: < http://www.tcp bolivia.bo/ >. Acesso em: 20 ago. 2014. Tradução livre da tradutora.18 Expressão originalmente utilizada: “desde la corbata al poncho” e “desde el poncho a la corbata”.19 Gualberto Cusi Mamani. Magistrado do Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia. Tra-dução livre.

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DESCOLONIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMONUMA PERSPECTIVA ECOSSOCIALISTA INDO-AMERICANA

E. Emiliano Maldonado Bravo1

“Não queremos, certamente, que o socialismo seja na América decalque e cópia. Deve ser criação heróica. Temos de dar vida, com nossa própria realidade, nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Eis uma missão digna de uma geração nova.” 2

Introdução

Este trabalho pretende debater os processos constituintes ocorridos na última década em Nuestra América3. Em busca disso, serão utilizadas as proposições das correntes teóricas descoloniais e ecossocialistas, no intuito de superar as correntes do marxismo ortodo-xo de viés eurocêntrico e desenvolvimentista, a fim de realizar uma análise crítica dos processos constituintes boliviano e equatoriano, investigando como algumas das pautas jurídico-políticas dos movimentos sociais contra-hegemônicos indígenas e camponeses, foram incorporadas às novas Constituições.

Assim, retrataremos a influência das lutas dessas organizações populares nas mu-danças incorporadas às novas Constituições. Contudo, tendo em vista o momento atual da investigação, pretende-se apresentar apenas o início de uma revisão bibliográfica de caráter qualitativo vinculada à essas temática. Ou seja, abordaremos as particularidades desses processos constituintes a partir dos elementos trazidos pela filosofia da libertação e o giro descolonial de Enrique Dussel, o marxismo de Mariátegui e o ecossocialismo de Michel Löwy, no intuito de contribuir no longo caminho a ser percorrido para a constru-ção de Ecossocialismo Indoamericano plasmado numa Epistemologia do Sul, que fortale-ça reflexões comprometidas com as transformações sociopolíticas da América Latina.

Resumidamente, pode-se afirmar que da análise dos novos textos constitucionais

1 Mestre e doutorando em Teoria, Filosofia e História do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Unisinos. Advogado Popu-lar. Membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP) e do Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE). Conselheiro da Região Sul do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Contato: [email protected] 2 MARIATÉGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano: ensaios escolhidos. Se-leção e Introdução de Michel Löwy; trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 120.3 MARTÍ, José. Nuestra América. 3ª ed. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2005.

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equatoriano e boliviano emerge a possibilidade de um processo de ruptura significativa com a tradição jurídica moderna e com o caráter elitista da cultura constitucional latino-americana, sobretudo no que se refere à participação social dos povos indígenas, assim como sobre a influência marcante das suas pautas e perspectivas contra-hegemônicas na elaboração dos respectivos textos constitucionais desses países.

Assim, pretende-se vincular as reflexões dessas correntes teóricas aos aspectos transformadores observados nas lutas sociais ocorridas durante os últimos anos, dando maior atenção aquelas que podem ter promovido rupturas com a tradição jurídico-política da modernidade.

1. A perspectiva do giro descolonial e a libertação

No presente estudo analisaremos os processos constituintes equatoriano e boliviano sob o prisma das proposições teóricas de Enrique Dussel, Mariátegui e Michel Löwy, pois entendemos que esses três autores tem caracterizado e projetado uma releitura sumamente criativa e heterodoxa do pensamento político marxiano, fincada na necessidade de transformação das realidades sociais concretas e nas especificidades histórico-culturais da formação capitalista no continente latino-americano .

Neste primeiro momento, pretendemos incluir em nossa reflexão a perspectiva epistemológica do giro descolonial proposto por Enrique Dussel, pois suas premissas são indispensáveis para superar os limites dos marcos eurocêntricos e poder compreender as lutas e reivindicações dos movimentos sociais indígenas e camponeses.

Pois bem, para iniciar essa temática necessitamos ter em mente a relação umbilical entre modernidade - colonialidade e a formação capitalista nos países subalternos. Essa relação constituinte do sistema capitalista atual, tem como premissa, portanto, o reconhecimento de que assim como a luta de classes o racismo também é um eixo estrutural da nossa ordem social. O Racismo, portanto, marcou historicamente os povos latino-americanos e africanos, pois significou o genocídio físico, material e espiritual de uma diversidade de cosmovisões e modelos de organização alternativos ao vigente na atualidade e, principalmente, direta e indiretamente o extermínio de milhões de seres humanos.

No plano econômico, significou o saque incansável das nossas riquezas naturais através da superexploração do trabalho, seja escravocrata e/ou servil de grandes massas populacionais subjugadas aos interesses de uma pequena classe de proprietários. Permitiu, também, o processo de acumulação primitiva do capital, na qual a exploração, em especial, de minérios e matérias primas sustentou a formação dos países “desenvolvidos” anglo-americanos e parte dos países europeus.

Partindo dessa premissa, a proposta descolonial entende como marco histórico dessa nova época (modernidade) a chegada à América, “Des-coberta” que “en-cobriu” a cultura e existência dos “Outros” aqui presentes, os quais foram genericamente denominados de Índios e aniquilados violentamente pelo sanguinário lucro das metrópoles. A partir desse

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momento, segundo Dussel, a Europa deixa de ser periferia do mundo oriental e torna-se o “centro” global da humanidade.4

Nesse sentido, para além do aspecto positivo que teria a Era Moderna, o giro descolonial desvela a existência de um verdadeiro “mito” que funda-se na “falácia desenvolvimentista” que gera o “eurocentrismo”. Esse conceito, assume a característica de uma categoria filosófica fundamental, pois explicita uma posição ontológica que compreende o modelo de desenvolvimento que historicamente foi seguido pela Europa deve ser o modelo a ser alcançado por toda a humanidade e suas respectivas culturas.5

No plano filosófico, tal característica pode ser observada, por exemplo, em dois dos pilares da ilustração filosófica; Kant e Hegel. Ambos, a sua maneira e com as respectivas diferenças, explicitam claramente a perspectiva eurocêntrica plasmada na modernidade, bem como seu racismo inerente, o qual destruiu violentamente a riqueza e diversidade sociocultural dos povos de suas colônias e a vasta gama de riquezas naturais aqui existentes. Portanto, deve-se explicitar o “mito moderno”, a fim de visualizar a face oculta da modernidade, qual seja, a irracionalidade da sua violência constitutiva para com as demais culturas.6

Descoberto o “mito moderno”, outra categoria deve ser observada, nos referimos à ideia de “Colonização do mundo da vida”, inserida e vista a partir do violento e sanguinário processo histórico de conquista da famigerada civilização ocidental europeia.7

A partir do resgate histórico do processo civilizatório, marcado, principalmente, por uma colonialidade expropriatória, implantado pelas metrópoles europeias na América Latina, o qual serviu de “motor” para o desenvolvimento econômico-político do sistema capitalista – torna-se indispensável repensar e interpretar esses processos a partir do con-texto e da história latino-americana.

Para isso, ao contrário do discurso hegemônico, que tende a mimetizar a linearida-de histórica da teoria jurídica liberal-conservadora e a sua visão estatalista da ampliação de

4 DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro; A origem do mito da modernidade: conferências de Frankfurt. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993, p. 15.5 Ibid., p. 24.6 Ibid., p.24.7 Sobre isso, o seguinte trecho é esclarecedor: Colonização (Kolonisierung) do mundo da vida (Lebenswelt) não é aqui uma metáfora. A palavra tem o sentido forte, histórico, real; (…) Era uma figura econômico-política. A América latina foi a primeira colônia da Europa Moderna (...)A colo-nização da vida cotidiana do índio, do escravo africano pouco depois, foi o primeiro processo “eu-ropeu” de “modernização”, de civilização, de “subsumir” (ou alienar) o Outro como “si-mesmo”; mas agora não mais como objeto de uma práxis guerreira, de violência pura – como no caso de Cortês contra os exercitos astecas ou de Pizarro contra os Incas –, e sim de uma práxis erótica, pedagógica, cultural, política econômica, quer dizer de domínio dos corpos pelo machismo sexual, da cultura, de tipos de trabalho, de instituições criadas por uma nova burocracia política, etc.. domi-nação do Outro. É o começo da domesticação, estruturação, colonização do “modo” como aquelas pessoas viviam e reproduziam sua vida humana. Ibid., pp. 53-54.

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direitos, entendemos que dois elementos são cruciais para um salto qualitativo no debate e nas reflexões sobre a atuação dos movimentos sociais latino-americanos na sua luta in-surgente por direitos, são eles: a “Descolonização” e a “Interculturalidade”.

O primeiro, como referimos anteriormente, seria a necessária superação do “euro-centrismo” e da “falácia desenvolvimentista”, os quais tem servido há mais de 500 anos para encobrir, por trás do lado emancipador da Modernidade, o mito sacrifical, violento e opressor do chamado: “processo civilizatório”.8

Em busca disso, antes de mais nada, é necessário superar a crença de que os mo-delos produzidos no Norte global são universais e adequados à nossa realidade e, assim, passar a construir alternativas a partir da história, dos saberes e das lutas promovidas pelo e no “Sul” do globo. Por isso, a descolonização é crucial para a interpretação dos proces-sos jurídico-políticos ocorridos na nossa região. Essa nova lente hermenêutica, portanto, é uma questão candente que deve ser suscitada por aqueles que buscam realizar pesquisas no campo do direito, da política e da sociologia de forma engajada na luta contra-hege-mônica ao sistema capitalista.

Enfim, chegamos ao segundo “elemento crucial” que deve ser incorporado ao debate, isto é, a Interculturalidade. Junto com Dussel9, de forma diversa à boa parte das correntes culturalistas e pós-modernas, entendemos que a dimensão econômica é constitutiva da dimensão cultural, não há como entender uma cultura, sem entender a sua economia-política. Isso, por outro lado, também não leva ao economicismo, que reduz todos os problemas à dimensão econômica.

Assim, será nesse espaço de diálogo intercultural, partindo de uma teoria mar-xiana contextual e concreta, preocupada com a historicidade cotidiana do povo pobre, índio, negro, quer dizer, uma teoria que colabore organicamente com o “bloco social dos oprimidos”10 que se poderá superar o paradigma jurídico-político moderno e fortalecer a construção, lenta e gradual, mas revolucionária de uma organização social alternativa ao capitalismo, melhor dizendo, socialista.

2. Socialismo indo-americano

Nesse perspectiva, interessa apresentar a proposta teórica do peruano José Carlos Mariátegui, considerado por muitos um dos primeiros pensadores a aplicar a teoria e o método marxista à realidade sul-americana, não simplesmente mimetizar interpretações eurocêntricas. Ou seja, a originalidade de Mariátegui está em utilizar o método marxiano

8 Ibid.9 Sobre isso, ver: DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e Interculturalidade. Interpretação des-de a filosofia da libertação, pp. 159-209. In: FORNET-BETANCOURT, RAÚL. Interculturalida-de: críticas, diálogos e perspectivas. Trad. Angela Tereza Sperb. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004.10 DUSSEL, 1993, op. cit. p. 159.

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e aplicá-lo à realidade e as peculiaridades do modelo econômico, social, político e cultural existente no continente.11

Entre os aspectos que interessam retomar da obra do marxista peruano são a sua crítica ao positivismo, ortodoxismo e desenvolvimentismo de certas vertentes economicistas do marxismo, em especial, o stalinismo que começava a hegemonizar os partidos comunistas no continente, buscando resgatar o caráter mítico e utópico necessária para pensar um projeto verdadeiramente revolucionário, isto é, socialista.

A crítica a ideia de progresso e o desenvolvimentismo plasmado pelo cientificismo economicista de setores da esquerda latino-americana continua atual e vigente. A perspectiva etapista do projeto dos partidos comunistas, que defendiam a necessidade de uma etapa de desenvolvimento capitalista e, por conseguinte, a necessidade de uma aliança com a(s) “burguesia nacional” para realizar primeiramente reformas democráticas e econômicas que possibilitem um processo de industrialização que “nos retire do atraso”, parece estar na ordem do dia dos partidos de esquerda que chegaram ao poder em nosso continente e que dia a dia vem implantando projetos desenvolvimentistas em aliança com setores da burguesia e das transnacionais que violam os direitos coletivos dos povos e comunidades tradicionais e que desrespeitam a legislação socioambiental, no escopo de maximizar os lucros do capital e extrair o que resta de minério e matérias primas em nosso solo e florestas, bem como ampliar a superexploração do trabalho.12

O Amauta13 criticou o desenvolvimentismo, enfatizou a necessidade de pensar um projeto revolucionário socialista para a América Latina e percebeu a riqueza e potencialidade das comunidades indígena-campesinas para uma transição que supere o capitalismo. Nessas comunidades (Ayllus) remanescentes do período incaico, que resistiram à implantação sanguinária da colônia e do capitalismo, há formas de organicidade riquíssimas em valores de solidariedade, justiça social, divisão igualitária do trabalho e propriedade comum da terra.14 Não se trata de um retorno ao passado, mas sim de a partir

11 Para Mariátegui: “O socialismo não é, certamente, uma doutrina indo-americana. Mas nenhu-ma doutrina, nenhum sistema contemporâneo não é nem pode sê-lo. E o socialismo, embora tenha nascido na Europa, tal como o capitalismo, tampouco é específica ou particularmente europeu. É um movimento mundial, a que não se subtrai nenhum dos países que se movem dentro da órbita da civilização ocidental. Esta civilização conduz, com uma força e com meios de nenhuma civilização dispôs, à universalidade. A Indo-América, nesta ordem mundial, pode e deve ter individualidade e estilo, mas não uma cultura nem um destino particulares”. MARIATÉGUI, 2005, op. cit. p. 120.12 Nesse tema, utilizamos os aportes da obra: MARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e Revolução. 4ª ed. Florianópolis: Insular, 2013.13 Na língua quéchua Amauta (Amawtay) significa sábio e/ou mestre, no período incaico eram os responsáveis por passar o conhecimento ancestral nas casas do saber. No caso específico, José Car-los Mariátegui, ficou conhecido por esse apelido, pois fundou e dirigiu a revista Amauta e tornou-se famoso nos círculos da intelectualidade e da política peruana pelo resgate da sabedoria incaica. 14 Sobre isso refere: “As comunidades baseiam-se na propriedade comum das terras em que vivem e cultivam e preservam, por pactos e por laços de consangüinidade que unem entre si as diversas famílias que formam o ayllu. (...) As terras comunais pertencem a todo o ayllu, ou seja, ao

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da realidade e riqueza desse tipo de organização comunal existente em boa parte dos países andinos instigar e promover modos de resistência e autodeterminação para efetivar uma verdadeira libertação que trilhe para a realização de um projeto econômico-político de caráter socialista.15

Nesse aspecto, Mariátegui demonstra que o movimento comunista mundial, deve reformular e adequar as suas interpretações sobre o papel do campesinato, porque não dizer “descolonizar-se”, para poder compreender e organizar adequadamente uma transição revolucionária na América Latina, ou seja, deve-se recolocar o problema indígena e perceber a sua importância em determinados países. Nesse sentido, não se trata de puro indigenismo, pelo contrário, trata-se de um Socialismo Indoamericano, situado concretamente na histórica formação econômico-política e nas peculiaridades sócio-culturais do nosso continente.16

Trata-se, portanto, de redimensionar o problema indígena para uma escala social e classista, isto é, a nova colocação consiste em procurar o problema indígena no problema da terra17, promovendo uma necessária e fundamental aliança proletária e camponesa, na qual a resistente cultura indígena potencializa e possibilita os processos de coletivização e solidariedade fundamentais à construção de uma sociedade comunista.

Questionar a visão ortodoxa que não reconhecia a importância crucial do campesinato-indígena num projeto revolucionário no continente, significa, portanto, pensá-lo de forma conexa à problemática concreta da origem e formação capitalista na América Latina. Recolocar a problemática indígena, unida à superação da divisão desigual do trabalho e da constituição da propriedade privada como alicerce das relações de produção (proprietário-trabalhador), significa, portanto, superar o latifúndio e sua relação exploratória de servidão, bem como, garantir e promover a existência de terras comunais, nais quais o coletivismo prevaleça e se aperfeiçoe gerando cooperativas de produção e

conjunto de famílias que formam a comunidade. (...)Mas o espírito coletivista do indígena não se revela apenas na existência das comunidades. O costume secular da minka subsiste nos territórios do Peru, da Bolívia, do Equador e do Chile (…) a população indígena incásica reúne condições tão favoráveis para que o comunismo agrário primitivo, subsistente em estruturas concretas em em um profundo espírito coletivista, se transforme, sob a hegemonia da classe proletária, em uma base mais sólida da sociedade coletivista pregada pelo comunismo marxista”. Ibid., pp 142-144.15 LÖWY, Michel (Org.). O Marxismo na América Latina. Trad. Claudia Schilling, Luis Carlos Borges. 2ª edição ampliada. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 112.16 Sobre isso, o Amauta refere: “(...) em relação à convergência ou articulação de “indigenismo” e socialismo, ninguém que considere o conteúdo e a essência das coisas pode surpreender-se. O socialismo ordena e define as reivindicações das massas, da classe trabalhadora. E, no Peru, as massas – a classe trabalhadora – são indígenas na proporção de quatro quintos. Nosso socialismo, pois, não seria peruano – sequer seria socialismo – se não se solidarizasse, primeiramente, com as reivindicações indígenas”. MARIATÉGUI, 2005, op. cit., p. 110.17 MARIATÉGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Trad: de Felipe José Lindoso. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular/Clacso, 2008, p. 61.

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formas de autogestão capazes de minar a organização hierarquizada e centralizada do Estado capitalista.

A dimensão crucial do problema da terra para a transformação da sociedade latino-americana e a superação do capitalismo na região está intimamente associada à questão indígena e ao resgate da instituição mais característica da sua civilização, a comunidade18, pois a práxis desse tipo de organicidade comunal existente a centenas de anos, comprova a hipótese comunista, isto é, a possibilidade que a humanidade tem de organizar a vida social, sem a exploração do trabalho e, sobretudo, sem a propriedade privada dos meios de produção, mas sim como na definição marxiana de uma comunidade de produtores livres associados.

Desse modo, buscar uma solução para o problema agrário, além de significar uma ruptura com o eixo central do sistema capitalista (propriedade privada dos meios de pro-dução), possibilita que os povos indígenas mantenham viva a sua cosmovisão andino-amazônica que possui outro tipo de relação com a natureza, significa também garantir que seus território não entrem na especulação do mercado imobiliário e permaneça or-ganizado de forma comunal, significa, portanto, romper com a perspectiva individualista capitalista e plasmar uma forma de organização social distinta.

No entanto, deve-se deixar claro que para Mariátegui essa possibilidade só viria através da organização política, ou seja, de uma aliança proletária-campesina-indígena, onde os povos indígenas seriam os verdadeiros protagonistas, pois nas suas palavras a Solução do problema do problema do Índio tem de ser uma solução social. Seus realizadores devem ser os próprios índios.19

3. Ecossocialismo

Esboçados os principais elementos teóricos que incorporamos do giro descolonial proposto por Enrique Dussel e do Socialismo Indoamericano da obra de Mariátegui a partir das quais inserimos a nossa interpretação sobre a realidade latino-americana, passemos ao terceiro autor que nos propomos a abordar, isto é, Michel Löwy. Nosso interesse em utilizar esse autor se dá porque, além dos aportes de Löwy sobre o pensamento do Amauta, o marxista franco-brasileiro é o responsável por fortalecer uma das tendências mais interessantes do pensamento marxiano atual, já que vem trabalhando a temática ecológica desde uma perspectiva crítica e comprometida com a luta de classes e a superação da ordem capitalista. Trata-se de uma vertente que se autodenomina ecossocialista, a qual nas palavras do referido autor é “(…) uma corrente de pensamento e de ação ecológica que faz suas aquisições fundamentais do marxismo – ao mesmo tempo que se livra das suas escórias produtivistas”.20

18 Ibid., 2005, p. 138.19 Idem, p. 88.20 LÖWY, Michael. Ecologia e Socialismo. São Paulo: Cortez, 2005, p. 47-48.

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Ou seja, ao mesmo tempo que é uma corrente crítica ao economicismo que hege-monizou o marxismo e que, por conseguinte, o dogmatizou e burocratizou, trata-se de uma vertente que considera: “A questão ecológica é, a meu ver, o grande desafio para uma renovação do pensamento marxista no início do século XXI. Tal questão exige do mar-xismo uma revisão crítica profunda da sua concepção tradicional de “forças produtivas”, bem como uma ruptura radical com a ideologia do progresso (...)”.21

Sob esse aspecto, Löwy menciona que Walter Benjamin foi um dos primeiros mar-xistas do século XX a se colocar esse tipo de questão, pois em diversos momentos ques-tionou a ideia de progresso ilimitado, o positivismo e a concepção que defendia a domina-ção da natureza e a necessidade de expansão das forças produtivas a qualquer custo, não observando que pela sua dinâmica expansionista, o capital põe em perigo ou destrói as suas próprias condições, a começar pelo meio ambiente natural.22

Desse modo, a corrente ecossocialista incorpora todo o desenvolvimento que as reflexões ecológicas tem realizado no último século para interpretar e verificar os limi-tes materiais do modelo capitalista e da civilização atual, a fim de permitir um projeto revolucionário radical e utópico que proponha uma nova civilização nos marcos de um socialismo ecológico.23

A conexão entre marxismo e ecologia, portanto, buscada pela corrente ecossocia-lista pretende explicitar a crise civilizatória vivida pela humanidade, fruto da ordem capi-talista, que põe em jogo a própria possibilidade de manutenção da vida no planeta. Sem cair em catastrofismos, pretende, também, mostrar a urgência e radicalidade de construir uma nova forma de organização socioeconômica, que rompa com a lógica do progresso imposta pelo ideologia positivista no sistema capitalista.

Outro aspecto fundamental da proposta ecossocialista consiste numa crítica ferre-nha ao modo de produção e de consumo dos países “desenvolvidos”, uma vez que ele se sustenta numa ilimitada acumulação do capital que necessita manter as desigualdades e a exploração entre os países do Norte e do Sul do globo, isto é, o american way of life jamais poderiam ser expandido para toda a população mundial, sob pena de simplesmente extin-guir a humanidade em alguns dias.

21 Ibid., p. 43.22 Ibid., pp. 43-44.23 Löwy menciona que essa corrente está longe de ser politicamente homogênea, mas a maioria dos seus representantes partilha de alguns temas comuns, nesse aspecto, vejamos o seguinte trecho: James O’Connor define como ecossocialistas as teorias e os movimentos que aspiram a subordinar o valor de troca ao valor de uso, organizando a produção em função das necessidades sociais e das exigências de proteção do meio ambiente. O seu objetivo, um socialismo ecológico, seria uma socie-dade ecologicamente racional fundada no controle democrático, na igualdade social, e na predomi-nância do valor de uso. Eu acrescentaria que tal sociedade supõe a propriedade coletiva dos meios de produção, um planejamento democrático que permita à sociedade definir os objetivos da produção e os investimentos, e uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas. Ibid., p. 48-49.

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Tal aspecto, contudo, jamais é visto como uma prova da necessidade que o sistema capitalista tem de manter os países da nossa região no paradigma da dependência e sub-desenvolvimento tão bem criticado pelos pela teoria marxista da dependência24 e pelos teóricos descoloniais, pois esse sistema é, necessariamente, fundado na manutenção e no agravamento da desigualdade gritante entre o Norte e o Sul. Contrapondo-se a isso o projeto ecossocialista visa uma redistribuição planetária da riqueza, e um desenvolvimento em comum dos recursos, graças a um novo paradigma produtivo.25

Diante disso, deve-se pensar um novo paradigma produtivo que revolucione e co-letivize o controle dos meios de produção alterando completamente a sua natureza, di-recionando a produção para a satisfação das necessidades básicas da população, ou seja, trata-se, portanto, de orientar a produção para a satisfação das necessidades autênticas, a começar por aquelas a que podemos chamar “bíblicas”: água, comida, roupas, moradia, etc.26

Além da crítica econômica e ecológica, a perspectiva ecossocialista possui, tam-bém, uma preocupação ética, pois defende um projeto utópico de transformação da reali-dade que rompe com a lógica econômica do mercado capitalista e se reconhece socialista, ou seja, o ecossocialismo defende: (…) uma mudança radical de paradigma, um novo modelo de civilização, em resumo, uma transformação revolucionária. Essa revolução se refere às relações de produ-ção – propriedade privada, a divisão do trabalho – mas também às forças produtivas.27

4. O ecossocialismo indo-americano e as lutas indígena e campesinas

Nos limites deste trabalho, apresentamos apenas o início de uma pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo vinculada à essas temática. No entanto, a fim de esboçar algumas aproximações com as teorizações realizadas e trazer alguma concretude, relataremos alguns acontecimentos históricos que consideramos importantes e que podem ser relacionados às perspectivas teóricas esboçadas alhures. Nos referimos as lutas dos movimentos indígena e campesinos bolivianos e equatorianos, em especial, a sua luta pela água e a sua defesa como bem comum da humanidade, que possibilitaram a incorporação e reconhecimento da cosmovisão andino-amazônica que ressalta uma nova relação entre o ser humano/natureza, bem como a luta por reconhecimento de Plurinacionalidade28, como forma de

24 Para um aprofundamento sobre o tema, ver: MARINI, 2013,. op. cit.25 Ibid., p. 74.26 Ibid., p. 57.27 Idem, p. 76.28 Nesse sentido, o economista e ex-presidente da Constituinte de Montecristi refere que: La plurinacionalidad no es sólo reconocimiento pasivo a la diversidad de pueblos y nacionalidades, es fundamentalmente una declaración pública del deseo de incorporar perspectivas diferentes com re-lación a la sociedad y a la Naturaleza. El Estado plurinacional coloca em la agenda no solamente la soberanía nacional sino incluye también la soberanía patrimonial. Es justo reconocer que han sido los pueblos indígenas y afroecuatorianos los que em mayor medidad han evitado la apropiación y destrucción de las riquezas de la naturaleza (…) desde una tradición democrática de no tolerancia

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ter soberania sobre seus território. Nesse aspecto, cumpre recordar que os processos constituintes ocorridos na Bo-

lívia e no Equador estão marcados pela intensificação das lutas e pautas anti-sistêmicas e/ou contra-hegemônicas dos movimentos sociais indígenas e camponeses desses países. Tal aspecto decorre, principalmente, da excessiva e violenta acumulação primitiva dos bens naturais e, por conseguinte, do capital, por parte de setores da burguesia nacional e dos conglomerados transnacionais, que nos últimos anos aprimoram a implementação do projeto econômico-político expropriatório neoliberal. Desse modo, as transformações levadas a cabo nos últimos anos nesses países são fruto de um elevado número de necessi-dades sociais insatisfeitas ao longo dos anos, decorrentes da ampliação das desigualdades sociais e de mecanismos de exclusão que propiciaram um ambiente de profunda instabili-dade sociopolítica nesses países. Esses fatores, no entanto, não são recentes, pois materia-lizam uma tradição política autoritária centenária típica do colonialismo e do capitalismo, marcada pelo genocídio, aculturação e pela expropriação territorial.

Portanto, os atuais processos constituintes latino-americanos devem ser observa-das no marco de uma superação de toda uma tradição jurídico-política colonial histo-ricamente marcada pela violência, exclusão e dominação de grupos populacionais, em especial, os povos originários dessas regiões. Diante disso, as lutas dos movimentos sociais indígenas e campesinos se constituem de um componente étnico-cultural de caráter anti-capitalista, ou seja, são profundamente transformador, que traz à tona um verdadeiro de-bate civilizacional, que pode ser observado, por exemplo, na incorporação da concepção ecologicamente sustentável e solidaria de Sumak Kawsay (buen vivir) dos povos indígenas, em oposição à perspectiva econômica exploratória e mercantilista de desenvolvimento, marcada pela ideia de progresso conformadora do sistema capitalista.29

Será a partir da perspectiva do Sumak Kawsay, por exemplo, que o debate e as lutas reivindicatórias dos movimentos indígenas e campesinos sobre os bens comuns da humanidade passa a ganhar centralidade através da sistematização de uma proposta alternativa concreta ao modelo de desenvolvimento capitalista. Das propostas dos movimentos indígenas e campesinos da Bolívia e Equador, as lutas desses povos em defesa

al abuso y a la corrupcción, las organizaciones que de tiempo em tiempo han salido a las calles a protestar contra los gobiernos neoliberales propusieron, y com éxito, definir el estado como pluri-nacional (…) El reconocimiento del Estado plurinacional es un paso importante, pero insuficiente, ahora toca contruirlo. ACOSTA, Alberto. Plurinacionalidad. Democracia en la Diversidad. Qui-to: Ediciones Abya-Yala. 2009, pp. 20-21.29 Las movilizaciones y rebeliones populares, especialmente desde el mundo indígena em Ecua-dor y Bolivia, asoman com la fragua de procesos históricos, culturales y sociales de larga data, conforman la base del Buen Vivir o sumak kawsay (kichwa) o suma qamaña (aymara). En esos países andinos estas propuestas revolucionarias cobraron fuerza em sus debates constituyentes y se plas-maron em sus contituciones, sin que por esto se cristalizen aún em políticas concretas. ACOSTA, Alberto. Buen Vivir – Sumak Kawsay. Una oportunidad para imaginar otros mundos. Quito: Edi-ciones Abya-Yala. 2012, p. 19.

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da Água parecem sintetizar as teorizações que se buscou abordar ao longo deste texto. Isso mesmo, a defesa do líquido vital, abundante em boa parte do nosso continente, no último século tornou-se uma das “mercadorias” mais disputadas no mercado capitalista mundial, pois além de ser elementar para a sobrevivência da humanidade é indispensável para garantir os ciclos produtivos de setores cruciais, como por exemplo, a exploração do petróleo, a mineração, as hidrelétricas, etc.

Nesse sentido, ao longo da década de 90 com a implantação do neoliberalismo e sua sede expropriatória e privatizante esse bem comum foi leiloado às transnacionais, as quais estão comprando inúmeras fontes desse liquido precioso. Será exatamente contra esses processos de mercantilização e privatização da água que se insurgirão os movimentos sociais, seja para defender as suas fontes, seja, para reverter os processos de privatização e ou até mesmo para denunciar a sua contaminação por parte de empresas internacionais.

Seja na Bolívia com a série de revoltas populares contra a privatização da água que foram intituladas de Guerra da Água de Cochabamba, como no Equador com as inúmeras manifestações e levantes contra as contaminações provocadas pelas transnacionais petrolíferas e buscando reverter os processos de privatização em curso no país, as lutas dos movimentos sociais contra-hegemônicos pautaram a insurgência de um novo direito, isto é, o direito humano fundamental à água. Será a partir dessas lutas concretas que, por exemplo, na Constituinte de Montecristi se conseguiu incorporar essa outra perspectiva sobre o liquido vital, visto e reconhecido como um bem comum da humanidade.30

Dentre os diversos aspectos transformadores observados, especialmente, no processo constituinte equatoriano, verifica-se também a inédita proteção dos direitos da natureza pela incorporação constitucional da cosmovisão indígena expressa na mítica Pachamama31. No caso Boliviano, mesmo que não tenha ocorrido um reconhecimento expresso dos direito da natureza no plano constitucional, diversos avanços legislativos podem ser observados, como por exemplo, a Ley de la Madre Tierra, a qual incorpora uma perspectiva diferente da relação entre ser humano/natureza, ou seja, que, em síntese, reconhece e garante a defesa dos bens comuns a partir dos marcos de uma ontologia distinta à da civilização ocidental.

30 Sobre essa conquista, Alberto Acosta refere que:Para conseguir este logro se contó com una alta participación y movilización de la sociedad. Essa presencia y esse aporte fueron sustantivos. Sin minimizar el trabajo de muchos asambleístas, cabe resaltar que la contribución de las organizaciones de la sociedad civil comprometidas desde hace muchos años com la defensa del agua, como Ecuarunari, Conaie, Foro de los Recursos Hídricos, entre outra, permitió consolidar una posición vigorosa. Sus aportes sirvieron incluso para la redac-ción misma de los textos constitucionales. ACOSTA, Alberto. Agua. Un derecho humano funda-mental. Quito: Ediciones Abya-Yala. 2010, pp. 14-15.31 Nesse sentido, o art. 71 da Constituição Equatoriana aduz: “Art. 71. La Naturaleza o Pachama-ma, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y El mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evoluti-vos”.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina192

Assim, esses processos constituintes retratam possíveis metamorfoses da tradição jurídico-política moderna, já que esta foi imposta durante o processo colonial de forma unilateral e violenta, sempre privilegiando a centralização do poder político e partindo de uma concepção jurídica monista, marcada pela necessidade de manter a exclusão de grandes setores da população, sobretudo, para manter os interesses de determinada classe em segurança. A confrontação da lógica monolítica homogeneizadora típica ao Estado-Nação, também, pode ser observada no reconhecimento constitucional da plurinacionalidade, única forma capaz de garantir a autodeterminação dos povos originário sobre seus territórios nos marcos das suas formas de organização sociopolítica.

Conclusão

Ao longo do presente texto, buscou-se aproximar as teorizações do giro descolonial; do socialismo indoamericano e do ecossocialismo, propostos respectivamente por Enrique Dussel, José Carlos Mariátegui e Michel Löwy com as experiências insurgentes ocorridas nos últimos anos na Abya Yala, especialmente, no Equador e na Bolívia.

O histórico dessas lutas sociais, em especial, aquelas marcadas pela a (re)definição do “controle” e “uso” dos bens comuns da humanidade, especialmente, as lutas em defesa da água promovidas pelas organizações indígenas e camponesas, ou seja, em defesa da Madre Tierra permitem vislumbrar as incidências das perspectivas dos movimentos sociais contra-hegemônicos desses países gerando proposições criativas para a cultura jurídico-política na região.

A relevância das transformações que vem ocorrendo a partir das lutas populares que levaram esses países a processos constituintes radicais e inéditos ainda não pode ser mensurada, mas já se pode verificar alterações significativas no âmbito das suas institucionalidades jurídico-políticas e das suas realidades socioeconômicas. Contudo, deve-se ter presente as armadilhas do sistema capitalista e os limites do modelo político estatal, pois a capacidade de regeneração das elites e dos setores conservadores podem bloquear o processo em curso e promover retrocessos nas conquistas recentes, tendo em vista as dificuldades e limites da implementação do projeto constitucional no interior da sociedade capitalista dependente latino-americana.

Nesse sentido, deve-se reconhecer e fortalecer a(s) potencialidade(s) desses processos insurgentes para a transformação sociopolítica da nossa região, sem perder de vista uma perspectiva crítica libertadora que contribua na construção de um ecossocialismo indoamericano que frutificará do avanço das lutas populares promovidas pelas organizações indígenas e campesinas.

Referências

ACOSTA, Alberto. Plurinacionalidad. Democracia en la Diversidad. Quito: Ediciones Abya-Yala. 2009.

Descolonização e constitucionalismo numa perspectiva ecossocialista indoamericana 193

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Ediciones Abya-Yala. 2012DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro; A origem do mito da modernidade:

conferências de Frankfurt. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e Interculturalidade. Interpretação desde a filosofia da li-

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LÖWY, Michael. Ecologia e Socialismo. São Paulo: Cortez, 2005.________. (Org.). O Marxismo na América Latina. Trad. Claudia Schilling, Luis Carlos Borges.

2ª edição ampliada. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. MARIATÉGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano: ensaios escolhidos. Seleção

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MARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e Revolução. 4ª ed. Florianópolis: Insular, 2013.MARTÍ, José. Nuestra América. 3ª ed. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2005.

195

O CONHECIMENTO JURÍDICO COLONIAL E O SUBALTERNO SILENCIADO: UM OLHAR PARA O PLURALISMO JURÍDICO

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger1

Introdução

O texto apresenta uma proposta, o desafio da construção de um novo discurso/pensa-mento decolonial e intercultural como ferramenta teórica capaz de permitir uma análise da produção dos conhecimentos jurídicos (não mais centrado em concepções epistemoló-gicas eurocêntricas), vinculando-os à colonialidade epistêmica, ou a uma hermenêutica de reprodução. Assim, os fundamentos e os pressupostos da cultura jurídica moderna, antro-pocêntrica e ocidental, podem ser devidamente questionados. Objetiva-se, nesse sentido, realizar uma abordagem intercultural e decolonial que passa pela análise da colonialidade epistêmica e da inserção do direito ocidental moderno como forma de colonialidade.

Tal direito vincula-se a uma concepção geográfica e historicamente localizada que se constituirá num modelo dominante para julgar e definir o que é ou não jurídico. A partir desse ponto neutro de observação todas as outras formas jurídicas se transformam em primitivas, subalternas, inadequadas ou são simplesmente silenciadas. Visa, também, a propor uma decolonialidade e interculturalidade epistemológica dos saberes político-jurídicos, o que possibilita uma redefinição e ressignificação da retórica emancipatória da modernidade, incluindo a análise de conceitos como democracia, direitos humanos e Estado, a partir de cosmologias e epistemologias do subalterno. Enfatiza o papel do plura-lismo jurídico dentro dessa lógica decolonial Apresenta ainda algumas experiências ligadas ao novo constitucionalismo latino-americano focado nas Cartas constitucionais da Bolívia e do Equador como tentativas de consolidação desse novo discurso decolonial.

1. A colonialidade epistêmica e a configuração da epistemologia (conhecimento) jurídica no Brasil

Segundo Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses2, a expressão Epistemologias do Sul é uma metáfora do sofrimento, da exclusão e do silenciamento de saberes, povos

1 Pós-doutora em Direito pela UFSC. Doutora em Direito pela UFPR. Professora dos cursos de Graduação e dos programas de Pós-Graduação (Mestrado) Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande. Professora do Curso de Graduação em Direito da Univer-sidade do Extremo Sul de Santa Catarina- UNESC. Membro do GPAJU - Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica da UFSC. Coordenadora do NUPEC-UNESC. 2 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa; Maria Paula Meneses (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina196

e culturas que, ao longo da história, foram dominados pelo capitalismo e colonialismo – colonialismo que imprimiu uma dinâmica histórica de dominação política e cultural submetendo à sua visão etnocêntrica o conhecimento do mundo, do sentido da vida e das práticas sociais. Percebe-se aí a afirmação de uma única ontologia, de uma epistemologia, de uma ética, de um modelo antropológico, de um pensamento único e sua imposição universal.

Muitos pensadores provenientes de diversas áreas refletiram e refletem sobre a colonização como um grande evento prolongado e de muitas rupturas, e não como uma etapa histórica já superada. A colonização não diz respeito apenas à administração colo-nial direta sobre determinadas áreas do mundo, mas refere-se a uma lógica de dominação, exploração e controle que inclui a dimensão do conhecimento e também do conhecimen-to jurídico, como ocorrido no Brasil. Nesse sentido, fala-se em colonialidade e não apenas de colonialismo. A palavra colonialidade3 é empregada para chamar atenção sobre o lado obscuro da modernidade, assim fala-se em modernidade/colonialidade.

A retórica da modernidade e suas ideias pretensamente universais (cristianismo, modernidade, Estado, democracia, mercado etc.) permitiram e permitem a perpetuação da lógica da colonialidade (dominação, controle, exploração, dispensabilidade de vidas humanas, subalternização do saberes dos povos colonizados, etc.)4. A colonialidade se sustentou e continua a se sustentar, portanto, a partir da construção do imaginário epistê-mico da universalidade. Em nome de uma pretensa racionalidade universal foi necessário o tráfico de escravos, a exploração dos indígenas e a expropriação de suas terras. Ou seja, a retórica positiva da modernidade justifica a lógica destrutiva da colonialidade e acentua o conceito de subalterno. Saber é poder. Essa afirmação resume nossa premissa. O saber é um dos pontos de sustentação da dominação, em todos os territórios das ati-vidades humanas. E, no processo atual da globalização, o domínio do saber tecnológico é simbolicamente o determinante das relações de poder. Tais relações foram construídas e constituíram saberes e conhecimentos diferenciados que definiram os dominantes e os dominados. Dominados esses que tiveram e têm seus conhecimentos subalternizados, inclusive no nosso foco de estudo que é o conhecimento tradicional do Direito.

3 Colonialidade é um conceito utilizado inicialmente por Quijano. Este termo é uma importante contribuição dos autores latino-americanos para a consolidação no âmbito acadêmico do pensa-mento de fronteira que surge a partir do anthropos. A palavra colonialidade (e não colonialismo) é utilizada para chamar atenção sobre as continuidades históricas entre os tempos coloniais e o tempo presente e também para assinalar que as relações coloniais de poder estão atravessadas pela dimensão epistêmica. Colonialidade é um conceito complexo (atua em vários níveis). Cf. DAMA-ZIO, Eloise Peter. Colonialidade e decolonialidade da (Anthropos) logia jurídica: da Univer-salidade a pluriversalidade epistêmica. Tese de Doutoramento. Programa de Pós-Graduação em Direto da Universidade Federal de santa Catarina, 2011. p. 55.4 MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de iden-tidade em política. Cadernos de Letras da UFF, Dossiê: Literatura, língua e identidade. Niterói, n. 34, 2008, 2008, p. 287-324.

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado 197

Segundo Figueredo5, a expressão “subalterno” começou a ser utilizada nos anos 1970, na Índia, como referência às pessoas colonizadas do subcontinente sul-asiático, e possibilitou um novo enfoque na história dos locais dominados, até então, observados apenas do ponto de vista dos colonizadores e seu poder hegemônico. Emergiria, assim, o nome “subalternidade”, que, de nome abstrato, teria seu sentido deslocado para certa concretude e visibilidade. Gayatri Chakravorty Spivak, no texto “Pode o subalterno fa-lar?”, também conhecida por seu empenho na questão da subalternidade, aponta para o termo “subalterno” não apenas como uma palavra clássica para o oprimido, mas como representação aos que não conseguem lugar em um contexto globalizante, capitalista, totalitário e excludente, no qual o “subalterno é sempre aquele que não pode falar, pois, se o fizer, já não o é”6.

Segundo a autora, a condição de subalternidade é a do silêncio, ou seja, o subalter-no7 carece necessariamente de um representante por sua própria condição de silenciado. Por um lado, observa-se a divisão internacional entre a sociedade capitalista regida pela lei imperialista e, por outro, a impossibilidade de representação daqueles que estão à margem ou em centros silenciados8. Figueredo9 assevera que, de acordo com Spivak10, escre-vemos como povos que tiveram a consciência formada como sujeitos coloniais e, negar isso, seria negar nossa história. É justamente nessa linha que Boaventura de Sousa San-tos e Maria Paula Meneses11, na obra “Epistemologias do Sul”, enfatizam que o mundo é um complexo mosaico multicultural. Todavia, ao longo da modernidade, a produção do conhecimento científico foi configurada por um único modelo epistemológico, como se o mundo fosse monocultural, o qual descontextualizou o conhecimento e impediu a emergência de outras formas de saber não redutíveis a esse paradigma. Assistiu-se, assim, a uma espécie de epistemicídio, ou seja, à destruição de algumas formas de saber locais, à inferiorização de outras, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do colonialismo, a

5 FIGUEIREDO, Carlos Vinícius da Silva. Estudos subalternos: uma introdução aos estudos subalternos. Revista Raído, Dourados, MS, v. 4, n. 7, jan./ jun. 2010. p. 84. 6 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeira; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. p. 12.7 O termo “subalterno” foi utilizado inicialmente por Gramsci (2002), para referir-se as classes subalternas, especialmente ao proletariado rural. Já os Subaltern Studies modificaram o significado de subalterno, ele é considerado como um sujeito histórico que responde também as categorias de gênero e etnicidade, não apenas de classe. Nesse sentido, o conceito “subalterno” é utilizado a partir da diferença colonial. O subalterno é identificado como o colonizado, ou com o sujeito colonial, não se trata de um ser passivo, um sujeito ausente, mas um sujeito ativo. Cf. Damázio, 2011, op. cit. p.47.8 SPIVAK, 2010, op. cit. p.149 Figueredo, 2000, op. cit. p. 87.10 SPIVAK, 2010, op. cit. p.14. 11 SANTOS; MENESES, 2010, op. cit., p. 49.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina198

riqueza de perspectivas presentes na diversidade cultural e nas multifacetadas visões do mundo por elas protagonizadas12.

2. O conhecimento jurídico e as vozes silenciadas do subalterno

Se “paradigma” significa exemplo, modelo, padrão a ser seguido, temos no Direito um “paradigma” epistemológico dominante centrado na objetividade, na reprodução, e aceito pelo chamado senso comum teórico dos juristas13, com fortes características coloniais e de subalternidade. O paradigma epistemológico tradicional (colonial), nesse sentido, concentra-se em torno dos valores e interpretações ligados a um tipo de conhecimento centrado na objetividade ou na relação construída entre sujeito e objeto. Assim, mesmo que o termo paradigma, introduzido por Thomas S. Kuhn na obra “Estrutura das Re-voluções Científicas”, de 1962, utilizado no estudo dos fenômenos científicos, encontre atualmente muitas críticas por suas limitações e ambiguidades, é uma das discussões mais importantes no que concerne ao conceito e à crise de paradigmas nas diversas áreas do conhecimento. O núcleo do pensamento desse autor tenta estabelecer a assertiva, afir-mando que o caráter normal de uma ciência está centrado na organização de cada campo de estudo do conhecimento científico sobre uma base de visões ou concepções globais do objeto estudado, que tanto vai inspirar a análise e a teoria como a própria pesquisa14.

Com essas palavras é possível vislumbrar que a escolha do termo “paradigma” su-gere alguns exemplos aceitos na prática científica real. Tais exemplos incluem, ao mesmo tempo, lei, teoria, aplicação e instrumentação, proporcionando dessa forma modelos dos quais brotam as tradições “coerentes” e específicas da pesquisa científica15. Nesse senti-do, a epistemologia, ou filosofia das ciências, caracteriza-se como um ramo da Filosofia que estuda a investigação científica e seu produto, o conhecimento científico. Até meio século atrás a epistemologia não era mais que um capítulo da teoria do conhecimento ou gnoseologia. Ainda não haviam surgido os problemas semânticos, ontológicos, axiológi-cos, éticos ou de qualquer outra natureza que se apresentam tanto no curso da investiga-ção científica como no da reflexão metacientífica. Predominavam, então, problemas tais

12 Ibid.13 Senso comum teórico dos juristas designa as condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do Direito. Trata-se de um neologismo proposto para que se possa contar com um conceito operacional que sirva para men-cionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas. Nas atividades cotidianas –teóricas, práticas e acadêmicas– os juristas encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de represen-tações, imagens, preconceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereóti-pos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação. Cf. WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, l994, v. I. p. 13.14 OLIVEIRA, Odete M. Relações internacionais: estudos de introdução. Curitiba: Juruá, 2001.15 PENNA, Antonio G. Introdução à epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado 199

como a natureza e o alcance do conhecimento científico –em oposição ao vulgar–, o da classificação das ciências e o da possibilidade de edificar a ciência indutivamente a partir de observações16.

Para Lalande17, a palavra inglesa epistemology é, com muita frequência, empregada (contrariamente à etimologia) para designar aquilo que em francês se denomina “teoria do conhecimento” ou “gnoseologia”. Epistemologia, gnoseologia, teoria do conhecimento ou mesmo metafísica do conhecimento constituem expressões equivalentes para efeito de se designar a reflexão sobre a natureza do conhecimento, suas formas, suas características, suas origens, seus limites, seus obstáculos e, sobretudo, sobre o tema da verdade18.

O significado de epistemologia como equivalente à filosofia das ciências foi perfei-tamente explicitado pelo Positivismo, que a definia como uma reflexão sobre os resulta-dos da ciência a fim de entendê-los e unificá-los como conhecimento sistematizado, pre-ciso, coerente e verdadeiro. Falar da filosofia das ciências é admitir para essa disciplina as características atribuídas a ela pela corrente positivista, o que nos leva a indagar se o termo “epistemologia” também supõe tais princípios. É importante ressaltar que as epistemo-logias normalmente partem de novas perspectivas e chegam a outras concepções sobre a ciência. Assim, a epistemologia tradicional, ou filosofia das ciências essencialmente positi-vista, passa por um processo de ruptura ou transformação em busca de novos princípios e tarefas a serem cumpridas. Essas novas tarefas devem ser adequadas ao pensamento cien-tífico contemporâneo, em contínua evolução. Esse aspecto torna a filosofia das ciências e/ou a epistemologia tradicional de características coloniais inadequadas para a constru-ção da cientificidade atual, significando que no passado tais sistemas conseguiam refletir a ciência de sua época, o que não acontece hoje, uma vez que as transformações sofridas pelo pensamento científico não foram acompanhadas pela epistemologia tradicional19.

Assim, se a epistemologia permite a reflexão, é importante destacar aqui os vários problemas que permeiam tal discussão quanto à natureza do conhecimento: o primeiro se ele tem sua origem a partir da relação sujeito/objeto; o segundo diz respeito à questão de seu valor e de suas possibilidades; o terceiro aponta para as formas por ele assumidas; o quarto centra-se na questão da verdade; o quinto volta-se para o problema de suas ori-gens; e, finalmente o sexto, ressalta o tipo de abordagem adotado em sua investigação20. O Direito é um fenômeno autônomo, cujo conhecimento é o objeto da ciência jurídica como atividade intelectual distinta da ética das ciências sociais. A autonomia da ciência jurídica requer que ela se liberte das contaminações ideológicas que, de forma mais ou me-

16 BUNGE, Mario. Epistemologia. Tradução de Cláudio Navarra. 2. ed. São Paulo: T. A. Quei-roz: Editora da USP, l987. 17 LALANDE, André. Vocabulares technique et critique de la philosophie. 10. ed. Paris: Presses universitaires de France, l968.18 PENNA, 2000, op. cit.19 BULCÃO, Marly. O racionalismo da ciência moderna: uma análise da epistemologia de Gaston Bachelard. 2. ed. Londrina:Editora da UEL, l999. 20 PENNA, 2000, op. cit.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina200

nos consciente, têm perturbado o estudo do Direito. Hans Kelsen foi um dos principais expoentes de um tipo de conhecimento que desconhecia as realidades outras, ou seja, de-senvolveu os seus trabalhos com o objetivo de delinear com precisão os exatos contornos do conhecimento jurídico no campo científico.

É importante salientar que o conceito de ciência do Direito influenciou e traçou os limites do conhecimento jurídico na contemporaneidade. Tal influência é que possibilita a discussão do que é ser científico para Kelsen: qual o conceito de ciência que ele utiliza e transfere para o campo do Direito, o significado do termo “pura”, uma vez que este trabalha com a ideia de uma ciência do Direito isenta de todos os elementos considerados por ele estranhos para o mundo do Direito, como a Sociologia, a Psicologia etc. Observou que sendo o Direito uma esfera específica não seria de bom alvitre transportar para a égide da ciência jurídica métodos válidos para outras ciências. Entendendo que o jurista deveria investigar o Direito mediante processos próprios ao seu estudo, esse autor concluiu que isso só seria possível se houvesse “pureza metódica”21. Então, com base no postulado kantiano de que “todo conhecimento é puro quando não se acha misturado com algo estranho que prejudique sua autonomia”22, e vendo-a ser diluída entre os conceitos de Psicologia, Biologia, da moral e da Teologia, Kelsen se propõe a dela eliminar todos os elementos que lesam a sua pureza e independência, ensejando levar a ciência do Direito às últimas consequências do Positivismo. Assim, a ciência jurídica pode ser caracterizada como uma ciência normativa à medida que toma seu objeto como norma e constitui-se numa atividade somente descritiva, ou seja, para Kelsen, a ciência é uma atividade que se esgota na descrição de leis postas – do Direito positivo. Nesse ponto, é possível entender o “jurídico” ou o “direito” não apenas pelo viés eurocêntrico e institucional, mas como um discurso que além de moderno também é colonial e, sendo assim, participava e parti-cipa da lógica colonialista, subalternizando saberes.

Nessa perspectiva, a contribuição de Edward Said23 é no sentido de que as consti-tuições dos saberes relacionavam-se com o colonialismo, não considerado como uma ex-periência que tinha sido finalizada, mas que continuava presente nas relações de conheci-mento, determinando a pretensa superioridade/inferioridade de certas pessoas e saberes. Nesse ponto, ressalta-se como o paradigma dominante de ciência vem monopolizando a produção do saber, e como tal fato produziu efeitos na ciência jurídica. A Teoria Pura do Direito é considerada como principal produto desse fenômeno. Assim, a crítica a essa con-cepção estrita de conhecimento, propugnando uma abertura epistemológica e metodoló-

21 DINIZ, Maria Helena. Ciência jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.22 KELSEN, Hans. A teoria pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 82.23 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado 201

gica da ciência jurídica, foi capaz de justificar a adoção do tudo vale de Paul Feyerabend24 ao Direito, com a finalidade de torná-lo mais adequado ao seu papel de realização de um projeto de sociedade25. Segundo Feyrabend, o predomínio dessa concepção de ciência não possui razões transcendentais ou uma justificação lógica insofismável, mas sim decorre, em verdade, de ser ele o que melhor atende aos ideais das classes que ocupam a centra-lidade do processo de globalização cultural, ou seja, os Estados capitalistas ocidentais desenvolvidos, sendo impostos por eles aos demais países26. De acordo com o autor, o predomínio dessa forma de produção de saberes também se justifica por haver a ciência moderna se tornado o que Thomas Kuhn27 chama de “ciência normal”, isto é, o modelo que, em regra, os novos cientistas aprendem muitas vezes sem maiores questionamen-tos de ordem epistemológica28. A produção científica restringe-se ao desenvolvimento das questões já levantadas pelos precursores, contribuindo para uma estabilização29. Mas, então, por que prevalece esse paradigma até o presente momento, ao menos numa pers-pectiva teórica? A resposta parece evidente, e já foi enunciada: a Teoria Pura permite que o Direito seja considerado uma ciência, de acordo com a concepção ainda dominante que se possui desse conceito. Claro, uma ciência de abrangência restrita, e talvez exatamente por isso uma ciência de forte influência dos discursos coloniais de construção da própria ciência do Direito.

3. As tentativas de ruptura: em busca de (discursos) conhecimento decolonial

O tópico anterior mostrou sucintamente que o modelo de ciência/conhecimento cons-truído por Hans Kelsen é o paradigma da ciência jurídica moderna. O fato, no entanto, não nos impede, neste momento, de fazermos uma análise crítica de sua estrutura e de suas implicações. Sabe-se que a tradição jurídica portuguesa, vinculada à concepção pa-trimonial de Estado, introduziu no Brasil um Estado deficitário e uma cultura jurídica excessivamente formalista. O Direito e o Judiciário na época colonial não construíram a ideia de cidadania. A igualdade jurídica foi sempre uma tentativa de igualdade formal, nunca material. As funções básicas da burocracia portuguesa no Brasil foram sempre fis-

24 FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Tradução Cezar Augusto Mortari. São Paulo: UNESP, 2007.25 MACHADO NETO, Antônio Luís. La teoría egológica. In: MACHADO NETO, Luis Anto-nio (Org). Fundamentación egológica de la teoría general del derecho. [S.I.: s.n.], [entre 1965 e 1977].26 Apud REIS NETO, José. Contra o monismo metodológico kelseniano. Revista eletrônica de metodologia aplicada ao Direito. Bahia: Faculdade de direito. Publicado em 25de janeiro, 2012.27 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 29.28 REIS NETO, 2012, op. cit.29 KUHN, 2007, op. cit.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina202

calizar e agir com rigor quando da sonegação de impostos, e representar a figura do Rei. O povo não detinha nenhuma importância, sendo que dele somente era exigido o profundo respeito pelo Monarca, fato que quando contrariado era punido severamente30. Deve-se ter presente que o Estado brasileiro não nasce das exigências do cidadão, e é a partir daí que se constrói no Brasil o conhecimento jurídico e nasce o conceito de subalterno. Segundo Boaventura de Sousa Santos na obra “O Discurso e o poder”, historicamente o Brasil é marcado pelo pluralismo de ângulo colonial, pois o direito oficial implantado foi o direito português, em específico as Ordenações. A relação entre o direito oficial e o direito tradicional da colônia foi de exclusão e não reconhecimento deste último. Não havia o reconhecimento de outro direito além do direito português. O direito que brotava das relações sociais existentes na colônia era ignorado pelo direito oficial português. A segunda expressão tem, de certa forma, ligação com a primeira. São os direitos dos povos indígenas que viviam no Brasil ao tempo da colonização31. Qualquer ideia de pluralidade foi totalmente desconsiderada pelo direito oficial português. Assim, o tipo de conheci-mento construído foi o monista, cuja concepção parte da ideia de que o Direito só existe na forma de um sistema único e universal. Para Jean Carbonnier:

O bien el sistema jurídico global toma en cuenta los fenómenos jurídicos descritos como constituyendo otro derecho… quedando la unidad restaurada por medio de este sistema global que asume el conjunto o bien los fenômenos del pretendido Derecho diferente quedan fuera, no integrados en el sistema, en estado salvaje, y no pueden ser calificados como auténtico Derecho, siendo considerados, todo lo más como sub-derecho32.

Percebe-se assim que uma visão monista do Direito pressupõe que um sistema jurídico existe quando as normas jurídicas são produto exclusivo do Estado. Todas as normas que estão fora do Direito estatal de visível influência colonial não podem ser consideradas como direito. Para que se possa avançar na tentativa de construção de um outro tipo de conhecimento/discurso decolonial, ou de questionamento crítico a respeito de alguns aspectos das ideias kelsenianas, no que concerne à construção da ciência do Direito/do conhecimento jurídico monista, faz-se necessário “abandonar” um pouco a perspectiva tradicional e, por meio de uma linguagem um tanto alheia aos métodos tradi-cionais, buscar compreender o agir dos juristas dentro dessa e de uma nova perspectiva epistemológica decolonial.

30 MALISKA, Marcos. Pluralismo Jurídico: notas para pensar o direito na atualidade. Trabalho de aula, 1997, p. 20-21.31 SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder. Ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1988.32 CARBONNIER, Jean, Sociologie juridique. Paris: Armand. Colin, 1972, p. 24.

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado 203

Segundo Reis33, há muitas questões que podem ser enfrentadas, como por exem-plo: “(...), o modelo da ciência moderna é o único capaz de produzir um conhecimento absolutamente verdadeiro? A resposta negativa se impõe, porque: a) existem conheci-mentos não científicos; b) existem conhecimentos científicos produzidos fora do para-digma moderno (conquanto os adeptos do modelo dominante possam negar-lhes cien-tificidade); c) o método moderno não consegue produzir verdades absolutas”. De fato, entendendo-se que o paradigma científico da modernidade não pode monopolizar a pro-dução do conhecimento, a Ciência do Direito deve abandonar as pretensões de pureza e objetividade, para abarcar de maneira mais ampla possível todos os elementos relati-vos à elaboração e implementação de um projeto de sociedade, este sim seu objetivo. Evidentemente, isso implica num intercâmbio com diversos ramos do saber, e também como assevera Linda T. Smith, uma antropóloga Maori34 da Nova Zelândia, trabalhar com a ideia de “descolonização de metodologias”. Descolonizar metodologias significa uma compreensão mais crítica dos pressupostos subjacentes, motivações e valores que moti-vam as práticas de investigação. Nesse sentido, concordamos com a autora ao defender-mos que os pesquisadores precisam criticar seu próprio �olhar�35.

Segundo Damazio36, diferente das metodologias clássicas de pesquisa científica, as metodologias decoloniais são pluralistas e se posicionam como uma ruptura desse tipo de pesquisa colonizadora que tem sido central para perpetuar a colonialidade em todos os seus aspectos. Há uma necessidade de produção de diferentes conhecimentos, que devem se originar a partir de distintas abordagens e conceitos. Autores como Michel Foucault, Edward Said e Walter Mignolo são exemplos dessas múltiplas perspectivas metodológicas.

Trata-se da possibilidade de ir além do discurso jurídico moderno/colonial e pen-sar condições outras do jurídico. Significa vivenciar o “direito” não como um sistema fe-chado de normas jurídicas pensado apenas a partir do “Estado”, tampouco defender que conceitos como democracia, justiça e direitos humanos sejam entidades únicas definidas e válidas para todo o planeta. Nessa linha, Eloise Peter Damázio assevera que

33 REIS NETO, 2012, op. cit.34 A população nativa da Nova Zelândia é designada como “Maori”.35 É importante para esta discussão o livro Decolonizing Methodologies de Linda T. Smith. A primeira parte da obra aborda a história da pesquisa ocidental e realiza uma crítica dos pressupos-tos culturais por trás das pesquisas sustentadas pela cultura dominante colonial. A autora analisa a relação entre conhecimento, pesquisa e imperialismo analisando as diferentes maneiras pelas quais o imperialismo está presente nas disciplinas científicas e nas metodologias. A segunda parte centra-se na definição de uma nova agenda de pesquisa indígena que busca recuperar o controle sobre suas maneiras de conhecer e ser, visando assim a uma práxis crítica para os povos ocidentais e não ocidentais. Cf. SMITH, Linda T. Decolonizing methodologies: research and indigenous peoples. London: Routledge. 1999.36 DAMAZIO, 2011, op. cit.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina204

[...] para podermos nos mover nesta direção, precisamos nos distanciar da universalidade epistêmica (e suas concepções de verdade, sujeito de conhecimento deslocalizado e neutro, tempo linear, progresso, bem como as relações binárias tradicionais do pensamento filosófico) e nos direcionarmos para pluriversalidade epistêmica. Esta diz respeito a uma outra visão de mundo pautada na geopolítica e na corpo-política do conhecimento. Nesse sentido, o fundamental é afirmar os saberes construídos a partir de distintos corpos em diferentes localizações. Representa, portanto, a entrada em cena do “outro”, do anthropos e de suas formas de conhecimento “outras” em um processo decolonial da própria “lógica” epistêmica que dá suporte à colonialidade37.

A entrada em cena do “outro” e de suas formas de conhecimento significa que por meio dos processos de decolonialidade epistêmica é possível buscar as reações e res-postas daqueles que tiveram seus saberes subalternizados (saberes em um sentido amplo, incluindo práticas, memórias, subjetividades, etc), os quais foram considerados primiti-vos, inferiores, arcaicos, etc. O que se pretende é a discussão ou mesmo a proposição de um pensamento jurídico “outro” que parta da emergência dos saberes jurídicos latino-americanos subalternizados e não da perspectiva jurídico-epistemológica eurocêntrica e colonial do conhecimento.

Para muitos pensadores jurídicos, tanto o direito como o Estado, por estarem vin-culados à tradição moderna, associados à razão, são considerados como soluções univer-sais que devem ser aplicadas em toda parte. As “leis do direito” são abordadas como “leis naturais” ou as “leis da natureza”. Isto é, confundem uma forma de direito com o direito. Sabe-se que o modelo atual de Estado é homogeneizador porque implica uma só nação, cultura, direito, exército e religião. Tal modelo predomina nas cabeças das elites, da cultura e até nas forças progressistas, que são ou podem ser aliadas nesse processo. Verifica-se então a importância em defender outro tipo de unidade na diversidade, que não seja sim-plesmente aceita, senão celebrada. A partir dessas reflexões, se propõe que o pensamento decolonial e a interculturalidade podem ser utilizados como ferramentas teóricas capazes de permitir uma análise da produção dos conhecimentos jurídicos, vinculando-os à colo-nialidade epistêmica.

Esta nova realidade em que o cidadão adquire a condição de participante de um outro tipo de conhecimento, prudente para uma vida decente, ou da consciência emergente da diversidade social e cultural, a existência de desequilíbrios, fatores de tensão, divergências de valores e posicionamentos culturais distintos, estão na base do surto de uma reflexão sobre a pedagogia intercultural, metodologia estritamente vocacionada para a compreensão da diferença, da aceitação do outro.

37 Ibid., p. 150.

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado 205

Para Trindade38, a consabida e pacífica crença na dimensão universal e genérica do homem, traduzida através de um mesmo suporte biofísico e pelo traço distintivo da racionalidade, vê-se subitamente posta em causa pela eclosão de uma pluralidade de sin-gularidades que configuram diferentes formas de pertença, de identificação para com os vários grupos sociais em que se insere. Para a autora:

Da procura da compreensão substantiva dos mecanismos, das formas, dos julgamentos de base, dos valores que presidem aos relacionamentos interpessoais, emergirá o ideário intercultural, cuja metodologia vem a suceder à visão algo formalista e mítica de entender as sociedades como eminentemente homogêneas, impermeáveis, imutáveis, centradas sobre si mesmas, fiéis depositárias do bem comum, das nações como expoentes emblemáticos do povo soberano. Foi este, afinal, o sonho dos que imaginaram as sociedades orgânicas como exemplos concretizáveis de uma adequada distribuição de funções e de poderes entre os vários elementos e instituições, garantindo, assim, a priori, uma previsibilidade dos objetivos a atingir e também dos comportamentos sociais expectados39.

Verifica-se, aqui, a presença do termo interculturalidade que pode ser usado para “significar e representar um processo e projeto político-social transformador”40. Para Walsh, a interculturalidade, nesse sentido, pode ser considerada como uma ferramenta conceitual central para construção de um pensamento decolonial. Primeiro porque está concebida e pensada desde a experiência vivida da colonialidade; segundo porque reflete um pensamento não baseado apenas nos legados eurocêntricos ou da modernidade e, terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma volta na geopolítica dominante do conhecimento que tem tido como centro dominante o norte41.

Segundo Damazio42, diferente do multiculturalismo oficial, no qual a diversidade se expressa em sua forma mais radical, por separatismos e etnocentrismos e, em sua for-ma liberal, por atitudes de aceitação e tolerância, a interculturalidade, como é entendida pelos grupos historicamente subalternizados, diz respeito a complexas relações, nego-ciações e intercâmbios culturais que emergem de espaços de fronteira. Trata-se de uma interação entre pessoas, conhecimentos, práticas, lógicas, racionalidades e princípios de vida diferentes. Uma interação que admite e que parte das assimetrias sociais, econômicas,

38 TRINDADE, Maria Beatriz Rocha. Perspectivas sociológicas da interculturalidade. In. Revista Análise Social. Vol. 28. Revista do Centro de Estudos das migrações e das relações interculturais da Universidade Aberta, 1993. p. 9.39 Ibid.40 WALSH, Catherine. Interculturalidad, estado, sociedade: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito-Equador: Universidade Andina Simón Bolívar/Ediciones Abya-Yala, 2009. p. 83.41 Ibid.42 DAMAZIO, 2011, op. cit.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina206

políticas e de poder e também das condições institucionais que limitam a possibilidade de que o “outro” possa ser considerado sujeito com capacidade de atuar43.

Assim, os fundamentos e os pressupostos da cultura jurídica moderna, antropo-cêntrica e ocidental, passam a ser devidamente questionados. A proposição da decolonia-lidade e da interculturalidade epistemológica dos saberes político-jurídicos, possibilitará uma redefinição e resignificação da retórica emancipatória da modernidade, incluindo a análise de conceitos como democracia, direitos humanos e Estado a partir de cosmologias e epistemologias do subalterno.

Segundo Damazio44, como parte de um sistema jurídico intercultural, é necessário incluir distintas maneiras de conceber e exercer os direitos. A interculturalização jurídi-ca, para Walsh45, não deixa de lado o pluralismo jurídico, mas aprofunda sua prática e compreensão. Requer que o sistema “uninacional” e sua lógica-razão jurídica também se pluralizem dentro de um marco de justiça que parta da realidade do país e não só do modelo do “direito moderno-universal-ocidental-individual”, modelo que, sem dúvida, é o que veio perpetuando a colonialidade46. Para esta autora:

Não entendemos a decolonialidade da (anthropos)logia jurídica como algo dado e um objetivo final, mas como um processo de desobediência epistêmica contínuo. Nesse sentido, consideramos que não é possível decolonizar instantaneamente todos os âmbitos da produção de saberes, principalmente o âmbito acadêmico, pois há muitas amarras eurocêntricas que não podem ser questionadas e modificadas de uma única vez (por exemplo, as normas para um trabalho acadêmico). Por isso, também, defendemos que o processo decolonial é lento. Entretanto, nossa tarefa enquanto pesquisadores é impulsioná-lo e pensá-lo a partir desta nova realidade que visualizamos não só na América Latina, mas no mundo todo. Assim o conhecimento jurídico não é então mais aquele de um objeto e de sua objetividade, como o era para os epistemólogos positivistas. A epistemologia se transforma em uma perspectiva de interação entre o objeto e o sujeito (não são mais separados sujeito e objeto), conhecimento de um novo projeto, a que chamamos de princípio da projetividade (relação harmônica). A partir desses dados podemos compreender a busca frenética por novos paradigmas, plurais, interculturais, decoloniais.47

43 WALSH, 2009, op. cit. p. 45.44 DAMAZIO, 2011, op. cit.45 WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y pluralismo jurídico. Palestra apresentada no Seminário Pluralismo Jurídico. Procuradoria do Estado/Ministério da Justiça. Brasília, 13-14 de abril de 2010.46 DAMAZIO, 2011, op. cit.47 DAMAZIO, 2011, op. cit., p. 179.

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado 207

O Brasil assim como em outros países da América Latina colonizados por euro-peus e que herdaram o modelo universalista, deixou à margem índios, negros, pobres, entre tantos outros que se tornaram vitimas de um Estado desigual em oportunidades e distribuição de renda. Apesar disso, é possível comemorar as mudanças e evoluções ocorridas nas três ultimas décadas e ter esperança num futuro próximo de menores ní-veis de pobreza e desigualdades, por isso a relevância do novo constitucionalismo latino-americano. Stuart Hall acrescenta:

Nos primórdios do desmantelamento dos antigos impérios, vários novos Estados-nação, multiétnicos e multiculturais, foram criados. Entretanto, estes continuam a refletir suas condições anteriores de existência sobre o colonialismo. Esses novos Estados são relativamente frágeis, do ponto de vista econômico e militar. Muitos não possuem uma sociedade civil desenvolvida. Permanecem dominados pelos imperativos dos primeiros movimentos nacionalistas de independência. Governam populações com uma variedade de tradições étnicas, culturais, ou religiosas. As culturas nativas, deslocadas, senão destruídas pelo colonialismo, não são inclusivas a ponto de fornecer a base para uma nova cultura nacional ou cívica. Somam-se a essas dificuldades a pobreza generalizada e o subdesenvolvimento, num contexto de desigualdade global que se aprofunda e de uma ordem mundial econômica neoliberal não regulamentada. Cada vez mais, as crises nessas sociedades assumem o caráter multicultural ou “etnicizado”48.

No aspecto jurídico, desenvolveu-se um sistema voltado para beneficiar os donos do poder, e não para criação de um sistema justo. O perfil ideológico do constitucionalis-mo político, enquanto sustentáculo teórico do Direito público do período pós-indepen-dência, traduziu não só o jogo dos valores institucionais dominantes e as diversificações de um momento singular da organização político-social, como expressou a junção notória de algumas diretrizes, como o liberalismo econômico, sem a intervenção do Estado, o dogma da livre iniciativa, a limitação do poder centralizador do governante, a concepção monista de Estado de Direito e a supremacia dos direitos individuais.49

O antigo colonialismo foi substituído por um sistema de poder assimétrico e glo-balizado, cujo caráter é pós-nacional e pós-imperial. Suas principais características são a desigualdade estrutural, dentro de um sistema desregulamentado de livre mercado e de

48 HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; Tra-dução Adelaine La Guardia Resende... [et all. - Belo Horizonte: EditoraUFMG; Brasilia: Represen-tação da UNESCO no Brasil, 2003, p. 56.49 HALL, 2003, op. cit., p. 57.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina208

livre fluxo de capital, dominado pelo Primeiro Mundo, e os programas de reajuste estru-tural, prevalecendo os interesses e modelos ocidentais de controle50.

Além do discurso da interculturalidade, a perspectiva da “descolonização” (do Es-tado, da sociedade) também entrou em evidência, principalmente na Bolívia e no Equa-dor, a partir da primeira década deste século (sofrendo influência inclusive dos estudos acadêmicos latino-americanos da decolonialidade, Quijano, Mignolo, etc.).

Na Bolívia as organizações camponesas, indígenas e originárias, no contexto da Assembleia Constituinte (que elaborou o texto aprovado em janeiro de 2009), articularam o discurso da descolonização a partir da proposta do “Estado plurinacional”51. O Estado plurinacional é considerado para esses movimentos e organizações com um modelo de organização que teria como função “descolonizar nações e povos indígenas originários, recuperar sua autonomia territorial, garantir o exercício pleno de todos os seus direitos como povos e exercer suas próprias formas de autogoverno”52.

Para concretizar o Estado plurinacional, um dos elementos fundamentais seria o direito à terra, ao território e aos recursos naturais, possibilitando acabar com o latifúndio e com a concentração de terras em poucas mãos, rompendo assim com o monopólio de controle dos recursos naturais em benefício de interesses privados. Da mesma forma, o Estado plurinacional “implica que os poderes públicos tenham representação direta dos povos e nações indígenas, originários e camponeses de acordo com suas normas e proce-dimentos próprios”53.

Seria, segundo Garcés54, um “Estado de consorciação onde as coletividades políti-cas opinam, expressam seu acordo e tomam decisões sobre as questões centrais do Esta-do.”. A ideia de que o Estado tem soberania única e absoluta sobre seu território é desfeita e, desse modo, possibilita-se o exercício do autogoverno (para dentro) e do cogoverno, em relação ao Estado central e com as outras entidades territoriais55.

Com relação ao Equador, a proposta da plurinacionalidade foi introduzida inicial-mente no final da década 1980 pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equa-dor (CONAIE) e amplamente discutida por essa organização durante os anos de 1990, mas com pouco entendimento e acolhida por parte da sociedade dominante “branco-mestiça”. As organizações indígenas, junto com vários intelectuais não indígenas, deixa-ram claro que a plurinacionalidade não implica numa política de isolamento ou separatis-mo, mas sim no reconhecimento de sua própria existência como povos e nacionalidades

50 HALL, 2003, op. cit., p. 57.51 GARCÉS, Fernando. Os esforços de construção descolonizada de um Estado plurinacional na Bolívia e os riscos de vestir o mesmo cavalheiro com um novo paletó. In: VERDUM, Ricardo (Org.). Povos indígenas. Constituições e reformas políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos socioeconômicos, 2009, p. 167-192. p. 175. 52 Ibid., p. 176.53 Ibid., p. 176.54 Ibid., p. 17655 Ibid., p. 176.

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado 209

no interior do Estado equatoriano, enfatizando que não existe uma só forma nacional, mas várias formas historicamente estabelecidas56.

A América Latina tende cada vez mais a se renovar no sentido pluralista, através de uma democracia que inclui o índio e o negro como personagens atuantes, construindo uma sociedade mais humana e mais próxima da igualdade econômica, social e cultural. As experiências tanto da Bolívia quanto do Equador demonstram os anseios da população latino-americana por uma nova ordem constitucional.

As novas Constituições trazem mudanças que abrangem não só a questão cultural e os direitos coletivos, mas os sistemas políticos e jurídicos. O objetivo é que um Estado que assista todos os seus cidadãos possa crescer com menos conflitos, que o respeito às diferenças e peculiaridades de cada grupo possa criar uma sociedade mais humana, e que os povos de cultura diferenciada, antes excluídos das sociedades nacionais, possam somar na luta por um meio ambiente saudável e uma sociedade inclusiva.

Nas palavras de Raquel Yrigoyen57, o chamado constitucionalismo pluralista de características decoloniais começou a ser desenvolvido em três ciclos:

Constitucionalismo multicultural (1982-1988), com a introdução do conceito de diversidade cultural e reconhecimento de direitos indígenas específicos;

Constitucionalismo pluricultural (1988-2005), com adoção do conceito de “nação multiétnica” e o desenvolvimento do pluralismo jurídico interno, sendo incorporados vários direitos indígenas ao catálogo de direitos fundamentais;

Constitucionalismo plurinacional (2005-2009), no contexto da aprovação da De-claração das Nações Unidas sobre o direito dos povos indígenas. Nesse ciclo há e houve a demanda pela criação do Estado plurinacional e de um pluralismo jurídico igualitário. Percebe-se por fim, segundo Damazio58, que os estudos pós-coloniais e decoloniais pos-sibilitam compreender os discursos jurídicos pretensamente universais como construções que surgem a partir das relações coloniais. Estes discursos, inevitavelmente, resultam na subalternização dos saberes que surgem a partir do “outro”, do anthropos. Trata-se, desta maneira, de uma perspectiva diferente de se entender o direito, pois permite que este seja pensado a partir de diferentes categorias e formas de conhecimento, inimagináveis para o direito eurocêntrico.

4. Um olhar para o pluralismo

Já o pluralismo como projeto emancipatório identifica-se com as práticas sociais insurgen-tes. Retorno ao pluralismo, tendo tais críticas em mente. Desde uma noção desenvolvida

56 WALSH, 2009, op. cit., p. 98.57 FAJARDO, Raquel Y. Pluralismo jurídico, derecho indígena e jurisdicción espe-cial en lós países andinos. Revista El Otro derecho, n.30. Variaciones sobre La justi-cia comunitária. Bogotá: ILSA, 2004. p. 171-196. Disponível em: <www.ilsa.org.co/ publicaciones/otroderecho.htm >. Acesso em: 17 de setembro de 2012.58 DAMAZIO, 2011, op. cit., p.58.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina210

por Antonio C. Wolkmer, de pluralismo jurídico como “projeto cultural pluralista e eman-cipatório que permite aduzir um ‘novo’ Direito –um Direito produzido pelo poder da co-munidade e não mais unicamente pelo Estado–”, em que “rompe-se com a configuração mítica de que o Direito emana tão-somente da norma cogente estatal, instaurando-se a idéia consensual do Direito como ‘acordo’, produto de necessidades, confrontos e reivin-dicações das forças sociais na arena política.” Enunciar as condições que servem como seus fundamentos– para diferenciar tal proposta de outras que afirmam o pluralismo (já que se poderia aventar um pluralismo de viés conservador)–, quais sejam, os de eficácia material e os fundamentos de efetividade formal. Os de eficácia material englobam o conteúdo, os elementos constitutivos; concretamente, está-se a falar da emergência dos novos sujei-tos coletivos e da satisfação das necessidades humanas fundamentais. Os novos sujeitos coletivos superam a concepção de sujeito individual erigida na modernidade. Ao mesmo tempo, retoma-se a noção de sujeito, com nova dimensão, apostando contrariamente à propugnada “morte do sujeito”. Cabe restringir ainda a noção, pois é nos novos movi-mentos sociais em âmbito político e sociológico que se visualiza o ator histórico de luta pela transformação por excelência. São eles, os movimentos, que buscarão a realização das necessidades humanas fundamentais, configuradas como o segundo elemento de efeti-vidade material. 59 Um complexo de necessidades é montado a partir da insurgência desses sujeitos coletivos. Importa compreendê-las não apenas como carências que precisam ser satisfeitas por questões de necessidade material, mas sim como uma construção histórico-contingencial, de atores que se encontram em um determinado espaço geopolítico, também temporalmente localizados.

Para que o direito possa descobrir a outridade latente na América Latina, e chegar a ser descolonizado, há um movimento dialético necessário no que diz respeito ao rompi-mento com modernidade; pois, enquanto uma mudança normativa pode permitir/revelar o estabelecimento de outras relações sociais de produção no espaço público – que não as capitalistas e colonizadas -, por sua vez é somente com uma mudança no sistema social dominante do espaço público, que é produzido e produz o direito, que se muda o modo de compreensão –ou a ideologia– que dá sentido e explica os textos jurídicos. Assim, para Almeida,

parece evidente, portanto, que o pluralismo jurídico desejado para o século XXI não poderá ser o pluralismo liberal das elites econômicas e do livre mercado defendido na primeira metade deste século, o qual está sendo rearticulado, mais recentemente, como uma nova estratégia de dominação dos países centrais avançados, a partir do chamado pluralismo jurídico multicultural. Logo, a discussão sobre que pluralismo jurídico pode transformar o direito latino-americano revela-se imperativa, principalmente, quando se pensa num

59 WOLKMER, Antonio C. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma Nova Cultura no direito. 3ed. Ver. E atualizado. São Paulo: alfa-Omega, 2001. p. 234-235.

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado 211

pluralismo jurídico, adaptado às contingências histórico periféricas da América Latina, dominada por uma tradição centralizadora, autoritária e dependente, que tenha por finalidade o rompimento com a colonialidade e dependência históricas do direito e do Estado, para o descobrimento do Outro.60

Por isso a importância de reconhecimento do Pluralismo Jurídico Comunitário-Par-ticipativo, já que com seus elementos de efetividade material e formal passando a atuar legi-timamente enquanto direito na América Latina, se abrem portas para, ao mesmo tempo, provocar uma mudança nas relações sociais travadas, e permitir que novos esquemas de compreensão, interpretação e atuação no mundo se façam aparentes no espaço público e possam resignificar. O rompimento com a colonialidade e dependência é condição, dessa forma, para uma transformação de fundo no direito moderno latino-americano, já que a estrutura de poder que é forjada pelo Estado como o espaço público por excelência tem sua base assentada na legitimidade deste mesmo direito que, sob o manto jurídico das Constituições e seus direitos fundamentais aparentes, se considera o único válido e eficaz. O padrão de poder que permite/autoriza determinadas relações sociais e impede/proibe outras se vale de uma práxis erótica, pedagógica, filosófica, econômica e jurídica que, en-cobrindo o Outro com violência, ou impõe o Mesmo, uma compreensão de mundo estrita –eurocêntrica– que permite sua exploração e dominação. O papel do direito, neste siste-ma, é não só ameaçar com a violência, senão que organizá-la para alcançar a legitimidade necessária para perpetuar tais relações opressoras, e o faz por meio do Estado de Direito. É justamente a larga duração do Estado-Nação moderno, que perpetua essas relações desiguais que fez com que a deslegitimação do direito moderno fosse respondida com luta política, em sentido amplo, isto é, uma luta que envolve aspectos sociais, culturais, simbologias, mentalidades e subjetividades.

Isso pode ser verificado a partir da análise das estratégias de luta ocorridas sobre-tudo neste início de século XXI, pois assentadas na interculturalidade61, permitiram que os Outros se reconhecessem entre si enquanto oprimidos e superexplorados e, assim, pudessem questionar a legitimidade do direito e o modelo de Estado opressor instalado, reivindicando o reconhecimento e incorporação de formas outras de organizar e (re)pro-duzir a vida em sociedade. De aqui já se pode inferir que o processo de luta, resistência e mobilização dos movimentos populares no século XXI, correspondeu à deslegitimação social deste direito moderno enquanto única representação das relações sociais existentes –sob a desigualdade encoberta– e enquanto força coatora, tendo como consequência a

60ALMEIDA, Marina Corrêa de. O novo constitucionalismo na América latina: o descobrimen-to do Outro pela via do Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo. Dissertação de Mestrado. Programa de pós Graduação em Direito da UFSC, 2013, p. 62.61 WALSH, Catherine. Interculturalidad, descolonización del Estado y del conocimiento. Buenos Aires: Del Signo. 2006.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina212

valorização do Pluralismo Jurídico que reconhece a importância de conquistar o espaço público participativamente.

Deslegitimando este direito e, assim, toda a estrutura estatal moderna, tornou-se possível garantir a soberania popular num novo processo constituinte deste espaço –ainda sob a denominação Estado–. A luta destes encobertos/silenciados/subalternizados his-toricamente revelou-se responsável pelo questionamento de todo o modelo jurídico as-sentado no sujeito de direito individual com autonomia de vontade racional e num direito uniformizado e, assim, deslegitimou o Estado de Direito moderno nos países analisados, a Bolívia e o Equador.

Nesse sentido, segundo Wolkmer é preciso

ressignificar outro modo de vida impulsiona a dimensão cultural por outras modalidades de experiência, de relações sociais e ordenações das práticas emergentes e instituintes. Em tal intento, a prioridade não estará no Estado-nacional e no Mercado, mas, presentemente, na força da sociedade como novo espaço comunitário de efetivação da pluralidade democrática, comprometida com a alteridade e com a diversidade cultural. Em sua capacidade geradora, o poder da instância societária proporciona, para os horizontes institucionais, valores culturais diferenciados, procedimentos distintos de prática política e de acesso à justiça, “novas definições de direitos, de identidades e autonomia”, projetando a força de sujeitos sociais como fonte de legitimação do locus sociopolítico e da constituição emergente de direitos que se pautam pela dignidade humana e pelo reconhecimento à diferença.62

Portanto, o reconhecimento da diversidade de formas jurídicas existente na so-ciedade –e dar-lhes a todas a denominação de direito– verificou-se como um processo necessário à descolonização do direito: seja porque se revelam práticas comunitárias e par-ticipativas da produção e aplicação de normas que organizam a vida em sociedade como iguais ao que poderia ser considerado “o” direito; seja porque, com esse descobrimento, é possível fazer escolhas –resistir, tencionar– ante uma infinidade de relações sociais Outras que assaram a se integrar/ ser visibilizadas no espaço público com autonomia.

É neste sentido que buscou-se demonstrar a importância do pluralismo jurídico comunitário-participativo como componente do Novo Constitucionalismo latino-ameri-cano de viés decolonial enquanto possibilidade para o descobrimento do Outro.

A inserção do reconhecimento do Pluralismo Jurídico de tipo comunitário e participa-tivo seria, assim a responsável por permitir, por meio de seus elementos de efetividade ma-terial e formal plasmados nos textos constitucionais, que ocorram mudanças substanciais

62 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e Interculturalidade. Re-vista Sequência. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC, vol. 27, n. 53, 2006. p. 114.

O conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado 213

para o constitucionalismo das sociedades pesquisadas e assim para suas formas de direito e Estado. Este representa a consciência do comunitário e sua utilização como estratégia de transformação –e na Plurinacionalidade– como significado da busca por participação autônoma no espaço social.

Conclusão

O novo constitucionalismo latino-americano promove uma ressignificação de conceitos como legitimidade e participação popular –direitos fundamentais da população–, de modo a incorporar as reivindicações de parcelas da população ou de grupos que foram subal-ternizados pelos discursos hegemônicos e sempre ficaram fora dos processos decisórios. Nosso objetivo ao longo deste trabalho foi defender uma ideia segundo a qual a episte-mologia tradicional (ou teoria do conhecimento) ou a epistemologia jurídica tradicional de características coloniais encontra-se em crise, originada na manutenção de um modelo de construção do conhecimento, ou de um fazer ciência que insiste em ser fechado, preciso, restrito, ou de preservar um tipo de conhecimento centrado na objetividade ou na relação construída entre sujeito-objeto, em que o primeiro somente reproduz o objeto dado e subalterniza saberes. Demonstramos que este tipo de construção epistemológica preci-sa ser revisto/redefinido, pois embora o chamado “senso comum teórico dos juristas” insista em preservá-lo, já vai longe o tempo em que estes podiam afirmar a existência de verdades transcendentais que descortinariam a trilha rumo à descoberta de um sentido estático, prévio, intrínseco aos preceitos jurídicos e, com isso, definir de modo inequívoco a subsunção da norma aplicável ao caso concreto.

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217

ETNOCENTRISMO JURÍDICO, COLONIALIDADE E DESCOLONIZAÇÃO

Isabella Cristina Lunelli1*

Introdução

A exposição que segue é fruto das reflexões proporcionadas pelo I Encontro Latino-Americano “Descolonização e Pluralismo Jurídico”, realizados em meados de Novem-bro de 2014 e, principalmente, pelos estudos e pesquisas realizadas no NEPE –Núcleo de Pesquisa e Práticas Emancipatórias– na Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer.

Em todos estes momentos, engajados em se pensar a superação da colonialida-de presente nas ciências jurídicas no contexto latino-americano, em “descolonizar-se”, compreendemos que o delineamento de características próprias de uma “outra” cultura jurídica, capaz de libertar de uma imposição colonizadora torna-se possível a partir da supressão de concepções atinentes ao Estado monocultural, monoétnico.

O pensar sobre a descolonização –esta ação libertadora sobre as esferas político-jurídicas delineadas pela cultura europeia– quando voltada ao Direito permite refletir so-bre o etnocentrismo presente na construção da história e do conhecimento jurídico, ainda mais quando percebemos a diversidade cultural presente. O objetivo deste trabalho é, portanto, relacionar colonialidade e etnocentrismo jurídico, de tal modo a refletir sobre a descolonização jurídica necessária sobre as heranças coloniais ainda presentes (e persis-tentes) no pensamento jurídico.

1. A modernidade como fenômeno cultural etnocêntrico

A noção de que a Modernidade é um termo polissêmico, impõe a conclusão de que esta admite muitas interpretações e conceituações.

Uma leitura “convencional” propõe a Modernidade a partir de uma sequência es-pacial-temporal relacionada a fenômenos exclusivamente intra-europeus entre os séculos XVI e XVIII.

1* Mestre e doutoranda em Teoria, Filosofia e História do Direito no curso de pós-graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC), especialista em Teoria Geral Direito, pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST), e Direito Administrati-vo, pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). [email protected]

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina218

A leitura Weberiana2, por sua vez, fundamenta a Modernidade como processo de racionalização da vida moderna, em que valores novos emergiram e ganharam universa-lidade. Tem-se aqui a compreensão de que a Modernidade não se limita a uma delimita-ção temporal –quantitativa de tempo– mas expande sua compreensão à um “fenômeno cultural que implica certas características específicas [...]”3, fundando um novo paradigma para compreensão da vida: a razão humana. Esta concepção de Modernidade - enquanto “uma emancipação, uma “saída” da imaturidade por um esforço da razão como processo crítico, que proporciona à humanidade um novo desenvolvimento do ser humano”4 – será tida como uma interpretação regional em que os marcos históricos para sua delimitação estarão relacionados à fenômenos intra-europeus.

Irrompendo com o instituído, a Modernidade, sob um aporte crítico e desde uma compreensão latino-americana, adquire outros contornos e outras definições. Uma com-preensão da Modernidade, desde uma contextualização geopolítica latino-americana, coloca-a indissociável à conquista da América. A partir do momento em que a cultura ocidental moderna projeta seu “modo de ser” ao mundo que se descobre diante de si; a América Latina não é então descoberta como algo diferente, como o outro, mas sim como um lugar onde A Europa se projeta a si mesmo.5 Este projeto de homogeneização cultural, inicialmente, contribuirá para “a própria prosperidade do empreendimento colo-nial, seja na etapa do saque de riquezas secularmente acumuladas, seja nas variadas formas posteriores de apropriação da produção mercantil”.6

A descoberta pelos interesses econômicos europeus da existência das terras ame-ricanas forneceu, portanto, as condições para a colonização/exploração e, consequente-mente, à projeção da Modernidade sobre o mundo, necessário à sua universalização. Por isso é que se torna corrente, desde uma compreensão econômica, a afirmação de que a Modernidade neste contexto projetou o próprio desenvolvimento do capitalismo mer-cantilista europeu.

Arturo Escobar expõe quatro formas de se caracterizar a Modernidade; sendo elas: historicamente, sociologicamente, culturalmente e filosoficamente.

Historicamente, situa as origens da Modernidade no espaço-tempo Europeu, con-solidando a episteme moderna com a Revolução Industrial, no século XVIII. Sociologi-camente, enfatiza suas instituições que a caracterizam, tal como o Estado Nação. Cultu-

2 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1985.3 WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma História das Ideias Jurídicas: da antiguidade à Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 106. 4 DUSSEL, Enrique. Europa, modernindade e eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colecci-ón Sur Sur, Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 28.5 DUSSEL, Enrique. 1492, el encubrimiento del Otro: Hacia el origen del “mito de la Moder-nidade”. La Paz: Plural editores, 1994. Colección Academia. N. 01, p. 35.6 RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe? Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasí-lia: UNB: 2010, p. 38.

Etnocentrismo jurídico, colonialidade e descolonização 219

ralmente, citando Habermas, compreende a Modernidade como um processo de raciona-lização do mundo-vida, seguida das noções de universalização e individualização, no qual “ordem e razão são vistos como o fundamento para a igualdade e liberdade, possibilitando assim a linguagem do direito”.7

Por fim, filosoficamente, a Modernidade caracteriza-se com a surgimento da noção de “homem”, sendo este elevado a fundamento de todo o conhecimento, distinto do divi-no e do natural; sendo a lógica do desenvolvimento, do progresso, crucial para a filosofia moderna.

Entretanto, chama a atenção para outra caracterização da Modernidade, aqui desde uma perspectiva antropocêntrica. Nesta, a Modernidade se dá como um “projeto cultural de ordenamento do mundo de acordo com princípios racionais desde a perspectiva da consciência eurocêntrica masculina” no qual não somente a alteridade é aniquilada, mas sobretudo “todas as culturas e sociedades do mundo são reduzidas a ser a manifestação da história e cultura europeia”.8

“A humanidade reduzida a um monólogo”9 como diria Aimé Cesaire, de tal modo ser possível afirmar que só há uma história e uma etnografia: a branca, pois “é o Ocidente que faz a etnografia dos outros, e não os outros que fazem a etnografia do Ocidente”10.

Desde o lócus de enunciação latino-americano –que em crítica à Modernidade de-lineada a partir de características eurocêntricas passa a se localizar no “exterior do sistema mundo moderno colonial”11– a Modernidade passa a ser compreendida como um pro-cesso histórico-político-social que o europeu se torna hegemônico sobre outros povos.

E isto se dará não somente ao mundializar sua cultura através da dominação colo-nial (e depois com o imperialismo), mas também ao impor uma compreensão da realidade homogeneizante em conformidade com sua forma de ver o mundo, estabelecendo a su-perioridade do Ocidente e estendendo-a sobre todos os seus domínios.

A gênese da cultura moderna, portanto, vem expressar a coesão histórica do seg-mento social, ao projetar tendenciosamente “formas de agir” e “modo de ser” que ma-tizam identidades culturais distintas. Projeta-se ao Novo Mundo uma identidade cultural moldada em interesses específicos de uma cultura e o resultado é a edificação de uma cul-tura “oficial” a todos, universal, resultando na imposição desta identidade cultural –social,

7 Tradução livre: “Orden y razón son vistos como el fundamento para la igualdad y la libertad, posibilitando así el lenguaje de los derechos.” ESCOBAR, Arturo. Mundos y conocimientos de otro mod: el programa de investigación de modernidad/colonialidade Latinoamericano. Tabula Rasa, Bogotá, n. 1, p. 51-86, 2003. Disponível em: < http://www.unc.edu/ãescobar/text/esp/escobar-tabula-rasa.pdf >. Acesso em: 17 jul. 2014, p. 56.8 Ibid., p. 56-57.9 CESAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Trad. Anísio Garcez Homem. Florianó-polis: Letras Contemporâneas, 2010, p.79.10 Ibid., p. 74.11 Ibid., p. 66.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina220

econômica, histórica– à todas as culturas e excluindo de seu campo de visão (e alcance) àqueles que não se enquadram nesta definição.

A homogeneização das manifestações da história e da cultura desde a perspectiva da consciência eurocêntrica resulta do silenciamento do “outro”, quando então o “eu” co-lonizador se impõe sobre o “outro” colonizado de forma tal que o resultado do encontro é a supressão cultural –e, inclusive, existencial– do outro.

A racionalidade da cultura ocidental moderna nos impõe uma visão do mundo onde o grupo do “eu” é tomado como centralidade e o “outro” é pensado e sentido atra-vés dos valores, modelos e definições do que é existência do europeu.12

Sobre esta concepção a antropologia denominou de etnocentrismo quando o “gru-po do “eu” faz, então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa”.13

Na busca de explicar o momento gerador do etnocentrismo, Rocha descreve que o “choque gerador do etnocentrismo nasce, talvez, na constatação das diferenças. [...]. A diferença é ameaçadora porque fere nossa própria identidade cultural”14.

E o caminho determinante sobre esta constatação é o silenciar, o encobrir, o negar qualquer significação histórica à cultura do outro, pois é justamente na “percepção do ou-tro enquanto primitivo, arcaico, bárbaro, tradicional, simples ou selvagem que o ocidente produziu a imagem e a reafirmação de si mesmo”15.

Esta sobreposição do “eu” será atribuído a um “excesso ontológico” e repercutirá na atualidade com a imposição de um padrão, matriz de poder, a colonialidade.

A colonialidade é responsável por incutir a existência de uma só forma de com-preender a realidade, monopolizada pelo pensamento ocidental, pelo eurocentrismo.16 Mignolo chamará esta única forma de ler a realidade como “privilégio epistémico” da Modernidade, e afirmará que “o privilégio epistêmico da Modernidade é o que gera e mantem a colonialidade do saber e do ser”.17

12 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 2007. Co-leção primeiros passos; n.º 124, p. 7-8.13 Ibid., p. 9.14 Ibid., p. 9.15 Tradução livre: “la percepción del otro en cuanto primitivo, arcaico, bárbaro, tradicional, simple o salvaje que Occidente produjo la imagen y la reafirmación de sí mesmo”. MELLINO, Miguel. La crítica poscolonial: descolonización, capitalismo y cosmopolitismo en los estudios poscoloniales. Buenos Aires: Paidós, s/d, p. 45-47.16 Walter Mignolo explica que, partilhando da concepção de Aníbal Quijano, eurocentrismo é definido, então, não em termos geográficos, mas epistêmicos e históricos, isto é, o controle do conhecimento e da subjetividade como instrumento de dominação. Trata-se da colonialidade do saber e do ser, respectivamente. MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina (la derecha, la izquierda y la opcion decolonial). Crítica y Emancipación, (2): 251-276, primer semestre, 2009.17 Tradução livre: “[...] el único “privilégio epistémico” es el de la Modernidad, [...]. El privilegio epistémico de la modernidade es el que genera y mantiene la colonialidade del saber y del ser”. MIGNOLO, op. cit., p. 260.

Etnocentrismo jurídico, colonialidade e descolonização 221

E, neste ínterim, de valores que se reproduz, o Antropólogo Darcy RIBEIRO, nos lembra que “[...], nossa herança hedionda, foi desde sempre e ainda é o racismo como arma principal do arsenal ideológico europeu de dominação colonial”18. Sobre esta ques-tão QUIJANO19 trata da raça como uma construção mental, uma categoria mental da modernidade, que expressa a experiência e legitima a dominação colonial, manifestando-se como elemento de colonialidade do padrão de poder capitalista, hoje, mundialmente hegemônico.

Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, Europa também concentrou baixo à sua hegemonia, o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento.20

Assim, se a colonização –enquanto relação política e econômica– consolida o pro-cesso modernizador e se a colonialidade instaura-se com a modernidade; certo é que o colonialismo precede à colonialidade, mas “a colonialidade sobrevive ao colonialismo” de tal forma que “respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente”.21

2. Colonialidade e racionalidade científica: síntese de um etnocentrismo jurídico

O sistema de dominação que se molda desde o colonialismo –inicialmente uma dominação política e econômica– e que perpetua com a colonialidade –dominação do conhecimento e da subjetividade– justificará a convicção de existência de uma realidade mono-cultural, projetando (leia-se impondo) seus valores “universalmente”.

A moderna cultura europeia ocidental experimentará enquanto fenômeno político a formação dos Estados Nacionais, estruturados a partir de ideais liberais- capitalistas, identificados à centralização política.

A emergência dos Estados Nacionais Modernos, enquanto elemento da organi-zação social humana, remete à criação de uma história que se constituiu sobre a negação da diversidade cultural existente em seus espaços geográficos; negando, assim, a própria

18 RIBEIRO, op. cit., p. 87.19 QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.20 Tradução livre: “En otros términos, como parte del nuevo patrón de poder mundial, Europa tam-bién concentró bajo su hegemonía el control de todas las formas de control de la subjetividad, de la cultura, y en especial del conocimiento, de la producción del conocimiento. QUIJANO, op. cit., p. 5.21 CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (ed.). El Giro Decolonial: reflexiones para uma diversidade epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Edito-res; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Comteporáneos y Pontíficia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 131.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina222

realidade social ao querer se constituir sobre uma sociedade homogênea, monocultural. Uma só nação, um só povo, em um só território, sob domínio de uma só soberania.

Sob o ideário de consolidar nações fortes, se implementaram políticas orientadas à assimilação dos “diferentes”, seja pela força das armas (as experiências de colonização em cinco continentes, como se deu no caso da América frente ao sistema espanhol, português, inglês, alemão; na África frente aos ingleses, franceses. Portugueses, etc.) ou pelos processos de aculturação implementado através dos sistemas educativos, religiosos e de comunicação. Tanto os Estados consolidados sob uma ideologia e filosofia individualista, como os Estados constituídos sobre bases comunitárias, deixaram à margem de suas histórias, a vida e história de milhões de seres humanos, povos que foram tipificados como “minorias étnicas”, “nativos”, “aborígenes” ou “indígenas”. Junto a estes povos ficaram à margem: conhecimentos, sabedoria, ciência, línguas, tradições, cuidado e respeito da natureza; vale dizer, ficou à margem parte da humanidade.22

Identificando-se com o poder colonial –e, obviamente, com uma forma de Estado própria da cultura e língua colonizadora– os Estados latino-americanos recém indepen-dentes se irrompem contra sua própria diversidade cultural, consolidando-se monocultu-ral e mono-ético mesmo sobre a resistência de povos e comunidades.

Resistências estas fortemente combatidas ante a clara supervalorização da herança cultural europeia que repudiava formas culturais com as quais não se identificava. Por isso é que a América Latina será determinante para a projeção universal da cultura europeia, reafirmando o etnocentrismo presente desde o colonialismo.

A hegemonia delineada a partir desta cultura, “associada à acumulação de conhe-cimentos, à uniformidade de padrões transmitidos e à racionalidade individualista”23 se

22 Tradução livre de “Bajo el ideário de consolidar naciones fuertes, se implementaron políticas orientadas a la asimilación de los “diferentes”, ya sea por la fuerza de las armas (las experiencias de colonización en los cinco continentes, como se dio en el caso de América frente al sistema español, portugués, inglés, alemán; en Africa frente a ingleses, francés, portugueses, etc.) o por los processos de aculturación implementado a través de sistemas educativos, religiosos y comunicacionales. Tanto los Estados consolidados bajo una ideología y filosofía individualista, como los Estados constitui-dos sobre bases comunitaristas, dejaron al margen de sus historias, la vida e historia de millones de seres humanos, pueblos que fueron tipificados como “minorías étnicas”, “nativos”, “aborígenes” o “indígenas”. Junto a éstos pueblos quedaron al margen: conocimientos, sabiduría, ciencia, lenguas, tradiciones, cuidado y respeto de la naturaleza; vale decir, quedó al margen parte de la humanidad.”. JIMENEZ, Luz. De la lucha a los derechos y de los derechos a la acción. In BERRAONDO, Mikel (coord.). La Declaración sobre los derechos de los pueblos indígenas. Punto y seguido. Bar-celona: alternativa Intercambio, 2008, p. 58.23 WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 17.

Etnocentrismo jurídico, colonialidade e descolonização 223

estenderá ao Direito, enquanto fenômeno jurídico, uma vez que este é elemento integran-te desta cultura.

É certo que a Modernidade, enquanto fenômeno cultural, conferirá igualmente uma delimitação qualitativa ao Direito, sendo responsável pelo delineamento de uma cul-tura jurídica que repercutirá na dominação de ideias decorrentes destes valores e ganhará a universalidade a partir do colonialismo, se mantendo então como instrumento de do-minação.

A importância do Estado, enquanto centralizador político perante a ordem norma-tiva moderna, será fundamental para determinar seu exercício de monopólio da produção de normas jurídicas. A ideologia tecno-formal do “centralismo legal”, característica do monismo jurídico estatal clássico tem sua historicidade ligada à visão racional do mundo, “permanentemente traduzida por processos de “estatalidade”, “unicidade”, “positivação” e “sistematização”. Construindo, assim, a máxima de que só é direito aquilo que provém do Estado e, nesta lógica, o Direito vira sinônimo de “Direito Estatal”.24

Outro dos valores incutidos na episteme colonizadora, responsável pela única forma de se ver a realidade, é a crença no desenvolvimento da humanidade através do progresso, do desenvolvimento. Um desenvolvimento que só será possível mediante a aplicação da racionalidade científica; pois para se determinar os rumos do progresso, para conhecer o que é melhor para a humanidade (a verdade), são necessários a utilização de métodos científicos. A validade científica é auferida pelos métodos “racionais” e o método científico é a única forma de conhecer a verdade, como diriam os positivistas.

A questão é que a racionalidade científica elevará o dogma de que a sociedade po-deria ser analisada da mesma forma que os fenômenos da natureza, aplicando às ciências sociais os mesmos paradigmas das ciências naturais, das teorias evolucionistas.

As teorias evolucionistas atrelaram-se à uma postura etnocêntrica e a identidade europeia-ocidental é alicerçada sobre a construção negativa do outro ao ponto de que a designação “povos não europeus” seja um contraponto à “civilização europeia”, levando a uma analogia de que os “outros” tratam-se de “povos não” civilizados.25

A desigualdade entre os seres humanos (europeus e não europeus) é constitutiva da própria modernidade e a racionalidade cientifica acentua-a ainda mais, a ponto de institucionalizar o “outro” como o bárbaro. Óbvio é, por todo o relatado, que a projeção de um modelo de progresso a ser seguido por toda a humanidade em nenhum momento dotaria os não europeus de racionalidade europeia, cientifica. Mesmo porque os não euro-peus “não participaram no desenvolvimento da ciência”26, sendo a ciência inventada pelo Ocidente e, portanto, “somente o Ocidente sabe pensar”.27

24 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma Nova cultura no direito. 3ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001. P. 60-61.25 BÔAS FILHO, Orlando Villas. A constituição do campo de análise da pesquisa da antro-pologia jurídica. Prisma Jurídico, São Paulo, v.6, p. 333-349, 2007.26 CESAIRE, op. cit., p. 50.27 CESAIRE, op. cit., p. 70.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina224

Ao instituir a barbárie, ao responsabilizar o bárbaro pelo colonialismo na medida em que são incapazes de assegurar o progresso e o desenvolvimento da civilização, prevê como necessário o conhecimento científico sobre o bárbaro. Assim, as teorias evolucionis-tas, sempre relacionadas ao pressuposto etnocêntrico de superioridade da sociedade oci-dental sobre as outras sociedades “não-ocidentais”, vincula-se ao estudo dos bárbaros, por meio da antropologia28, como instrumento de dominação – “conhecer para dominá-las”.

Aplicando estas concepções positivistas e evolucionistas, o antropólogo (e advo-gado, por um período de sua vida) Lewis Henry Morgan (1818-1881) elabora uma teoria de progresso da cultura humana. Ao distinguir os estados de evolução da humanidade, propõe como característica técnica ou de capacidade inventiva própria da civilização –e que dito isso é também um fato de distinção da selvageria e da barbárie– a invenção do alfabeto fonético, com o uso da escrita. Para Morgan, é a produção de registros literários, conjuntamente com o uso do alfabeto, que marca a passagem do status superior de bar-bárie para o “status de civilização”.

Neste contexto, por suas obras escritas no período de revolução industrial e ex-pansão imperialista, Morgan faz parte daqueles atribuídos a categoria de “fundadores” da antropologia jurídica no século XIX, passando a compreender a antropologia derivada da história do direito.

A considerar que a historiografia tradicional tratou de instrumentalizar o endeusa-mento da ordem jurídica, política e social dominante-eurocêntrica, pode-se concluir que os objetivos da criação desta historiografia seriam o de “relativizar e, consequentemente, desvalorizar a ordem social e jurídica pré-burguesa, apresentando-a como fundada na irra-cionalidade, no preconceito e na injustiça” e o de “realizar a apologia da luta da burguesia contra essa ordem ilegítima (Ancien Regime) e a favor da construção de um Direito e de uma sociedade ‘naturais’ e harmônicos, isto é, libertos da arbitrariedade e da historicidade anteriores”29.

Expressando uma tentativa de atender aos anseios científicos ocidentais-euro-cêntricos, a cultura jurídica centrada na legalidade, na segurança jurídica e no monismo jurídico,30 torna o Direito Estatal um discurso hermético, supostamente neutro, pautado em ficções como a do “legislador racional”, da completude do ordenamento, que legitima o caráter intrinsecamente justo, universal e autossuficiente do Direito.

Esta racionalização científica do Direito –então denominada dogmática jurídica– delineará uma teoria do direito livre de qualquer especulação extrajurídica –seja filosófica, ética ou política–. A pureza da doutrina devia a seu postulado metodológico fundamental, qual seja o de libertar a ciência jurídica de todos os aspectos que lhe são “alienígenas”; aproximando os seus resultados da objetividade e da exatidão. Desta forma, desvenci-

28 Ainda que este pensamento seja parte constituinte da antropologia enquanto ciência, resta ób-vio que hoje a antropologia não mais divide desta lógica. Embora não sendo objeto deste trabalho detalhar a evolução da antropologia, acreditamos ser necessária esta ressalva.29 HESPANHA apud WOLKMER, 2012, op. cit. p. 34.30 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. Op..cit., p. 26.

Etnocentrismo jurídico, colonialidade e descolonização 225

lharia o direito de elementos pertencentes as outras ciências como psicologia, sociologia, ética, teoria política, por exemplo. A norma jurídica, expressão desta ciência, aparecia assim recortada da realidade.

Trata-se, portanto, de uma teoria científica do direito, definindo a ciência jurídi-ca como campo de estudo cujo objeto são as normas jurídicas positivas, escritas, sendo portanto “[...], um dos traços marcantes do Direito moderno [...] está na íntima relação do Direito com o poder estatal e na sua identificação com a lei escrita”31 –ainda que o fundamento de validade da Constituição situe-se em outra norma não escrita, de caráter hipotético, suposta pelo pensamento jurídico–.

Esta norma hipotética, a “norma fundamental”, prescreverá o dever de obediência à autoridade, seja ela autoritária ou democrática e, por isso, será um dos fundamentos que transformará o direito em mero instrumento do poder político. Trata-se da instrumenta-lização do jurídico como significação dos interesses da burguesia e da dinâmica produtiva capitalista-ocidental.

3. A descolonização do direito: a alternativa decolonial ao pensamento ocidental

Sobre a dissimulação e sobre a farsa epistêmica intrínseca ao próprio conceito de moder-nidade e, sobretudo, a alienação causada por este discurso eurocêntrico –branco, burguês, capitalista, evolucionista, positivista e, hoje– hegemônico, Enrique Dussel32 parte da fi-losofia da libertação para revelar o que se esconde no mito da neutralidade do saber e da universalidade dos princípios da ciência positivista e evolucionista, qual ordena-se numa perspectiva linear, estática e conservadora.

Constituída por princípios formalistas, a historiografia tradicional dissimula os fa-tos históricos para adequá-los a valores desta cultura, a ponto de considerar que somente quando a Europa passa a interagir com o restante do mundo é que a história passa a ser reconhecida como “mundial”. E, nesta dialética, o mundo passa a ser contado a partir do pensamento europeu, da forma de ver do europeu-ocidental moderno33, enquanto expressão da universalidade que alcança a cultura eurocêntrica.

Não por menos, a escrita assume um papel fundamental no contar a história e no dizer a verdade. Mais do que ser uma mera fonte de transmissão de conhecimento, ela denota a própria existência de conhecimento. Um único conhecimento verdadeiro.

Tanto o é que a própria concepção de história começa com o surgimento da escrita e delimita, com a ausência desta, um passado “pré-histórico”, ou melhor “sem história”.

31 WOLKMER, 2006, op. cit. p. 109.32 DUSSEL, 2005, op. cit..33 Aqui apenas uma referência de que para o autor, a modernidade se constituiria em 1492 e que a conquista do México, por Henán Cortés permitirá uma nova visão mundial da Modernidade, na qual se fundará o mito eurocêntrico e desenvolvimentista. DUSSEL, 1994, op. cit. p. 22.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina226

Desmitificando a “dialética que a hipocrisia liberal oculta de nós”34, a “História” tratará de ser uma periodização (tempo) adotada por historiadores do século XIX a partir das fontes escritas europeias (espaço). A História do Direito, utilizará dos mesmos parâ-metros, levando a conclusão que o Direito é gestado desde a civilização europeia, a partir de suas fontes escritas.

A esta aludida divisão entre pré-história e história, deve-se aos ventos positivistas que pairaram sobre esta disciplina com o objetivo de transformá-la em uma ciência.

Enquanto ciência, a história somente alcançaria tal status quando se focasse na objetividade do método para análise dos fatos históricos, que por sua vez, só seria en-contrada nos documentos escritos. Para se chegar à verdade histórica objetiva seria in-dispensável a imparcialidade que se justificaria na análise descritiva do documento, sem aplicar quaisquer valorizações axiológicas. E o que resulta disto, sua validade científica, é que as análises objetivas e imparciais não seriam contestadas, pois os fatos se traduzem em verdades.

A submissão acrítica ao método –até mesmo porque a crítica se projetaria como uma manifestação parcial do historiador–, servindo para resgatar a “verdade histórica”, só seria aplicável para recuperar a história se a civilização dominasse a escrita.

A concepção positivista de história serviu para embasar o pensamento lógico de sucessão de etapas, fatos, em direção ao progresso; tornando-se claro que o paradigma civilizatório pairasse sobre a escrita e relegando à barbárie àqueles que não se pode coletar fatos, que não pode mensurar as etapas de seu progresso por um método objetivo.35

Ao pressupor que a escrita é a única forma de fazer história, de expressar-se em seus aspectos culturais, a tradição oral, por exemplo, passa a ser categorizada como “pré-histórica” fruto da barbárie, prévio à ciência:

O processo de conquista e colonização estabeleceu [...] uma relação assimétrica de poder. A verdade torna-se monopólio destes grupos de origem europeia, expressando-se através da escrita. Apesar de todas as transformações ocorridas na sociedade brasileira, nota-se a persistência de traços do pensamento colonial quando continua a atribuir-se status de verdade somente à documentos escritos em detrimento da tradição oral. Desse modo privilegia-se a forma de registro histórico proveniente de apenas um dos continentes em detrimento do aporte oriundo dos dois outros grupos formadores da nacionalidade.36

34 FANON. Frantz. Os condenados da terra. Prefácio de Jean-Paul Sartre e trad. de José Lau-rêncio de Melo. Rio de Janeiro: Editora Civilizações Brasileiras, 1968. Coleção Perspectivas do Homem. V. 42, p. 9.35 O que nos leva a refletir se, na concepção histórico-positivista, poderia se falar em progresso quando não há o domínio e uso da escrita?36 OLIVEIRA, João Pacheco de. Os Caxixós do Capão do Zezinho: Uma comunidade indígena distante de imagens da primitividade e do índio genérico. Relatório encaminhado à FUNAI – Fun-

Etnocentrismo jurídico, colonialidade e descolonização 227

É natural pensarmos que o Direito, assim como a história, fundamenta sua verda-de somente quando escrito. Sobre estas considerações, pensar sobre Descolonização do Direito, impõe um duplo desafio aos juristas formados na clássica racionalidade jurídico-positivista –ainda presente hegemonicamente nos cursos jurídicos–.

O primeiro desafio remete à noção de Direito atrelado a normas escritas, positi-vadas. Já mencionamos que a racionalidade da cultura ocidental nos impõe uma visão do mundo onde o grupo do “eu” é tomado como centralidade e o “outro” é pensado e sen-tido através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência, do que é história e do que é Direito.37

Ao reconhecer a escrita como única fonte de conhecimento, de tradição cultural da expressão jurídica, o antropólogo João Pacheco de Oliveira trata a escrita como um mau paradigma para o reconhecimento de direitos de povos e comunidades que resistiram, tal como os povos indígenas.38 E, tomado isto, o Direito do “outro” –se é que podemos no afã da ciência jurídica-positivista considerar “Direito” como aquele não escrito– “fica, nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível”39.

E, se a escrita é a única fonte de conhecimento, como é possível conhecer (e reco-nhecer) a história e (d)o Direito dos “outros”?

A verdade é que não se pode conhecer quando fixamo-nos nos termos científico-jurídico-positivista, pois não é possível racionalizar o Direito sem que este seja expresso de forma escrita, sem que seja imposto hierarquicamente por um poder político centrali-zador, sem que a observância da norma seja determinada por uma coação/sanção; como o é no Direito Estatal Positivo.

Não há “método” em se analisar isto; decorrendo que daí não haja cientificidade e, portanto, não interesse à ciência do Direito. Os juristas saem treinados a pensarem e construírem tão somente o Direito Estatal positivado, próprio da cultura que os informou (e formou); por isso que é evidente a dificuldade em pesquisar e compreender um “outro” Direito, uma outra racionalidade jurídica aquém da única forma de ler a realidade.

E o que se projeta disto são meras tipificações de práticas culturais distintas ao Di-reito positivado. Comum são pesquisas que intentem configurar práticas como expressão de Direito Civil, de Direito Penal, de Direito Comercial, sem que, em realidade, fossem equiparáveis. Esquecem-se de que “a cultura humana; o direito. As culturas humanas; os direitos”40 e que o Direito Estatal positivo se refere a tão somente um produto da socie-dade ao qual pertence, expressão do pensamento dominante.

dação Nacional do Índio em cumprimento do contrato de consultoria DGEP 30/2000. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2001, p. 14. 37 ROCHA, 2007, op. cit., p. 7-8.38 OLIVEIRA, 2001, op. cit., p. 13.39 Ibid, p. 9.40 SACCO, Rodolfo. Antropologia Jurídica: contribuição para uma macro-história do direito. Trad. Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 39.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina228

Cabe à antropologia jurídica reconhecer e estudar as outras formas de manifes-tações de “Direito”, mas como a exemplo da antropologia que superou as concepções evolucionistas, cabe à antropologia jurídica direcionar formas de se pensar outros “direi-tos” presentes na diferença cultural. Como expressa Mignolo, uma exterioridade episte-mológica ao privilégio epistêmico da Modernidade, pois se reduzimos à escrita as outras manifestações de “direito” não estaríamos projetando sua dominação?

Justamente esta diferença cultural que possibilitará uma nova perspectiva episte-mológica para além das categorias criadas e impostas pelo pensamento eurocêntrico, su-perando o enfoque dominante da Modernidade.41

O segundo desafio aos juristas refere-se à superação do etnocentrismo impregnado na sua própria subjetividade, a que nos referimos à necessidade de “descolonizar-se”.

O paradigma da integração, enquanto corrente de pensamento que dominou a antropologia até a primeira metade do século XIX, baseou-se nos estudos evolucionistas, defendendo a ideia de que a cultura desenvolvia-se de maneira mais ou menos uniforme, sendo aceitável supor que cada sociedade percorresse as mesmas etapas evolutivas. 42

Nesse sentido, transposta ao pensamento jurídico, caberia à legislação encaminhar os povos “não europeus” –que no contexto latino-americano vem a referir-se aos indí-genas– ao caminho seguro da civilização, ao estágio evolutivo superior, integrando-o à comunhão nacional.

Desde as políticas integracionistas e assimilacionistas praticadas pelos Estados So-beranos latino-americanos, muito se reinventou chegando, inclusive a revestir-se a atua-lidade não mais de uma forma “monocultural” –enquanto expressão de um único povo, de uma única nação–. O Estado passa a se revestir sob as formas plurinacionais, plurié-tnicos, falando-se inclusive na própria refundação do Estado “[...] como um modelo de Estado que reconheça a diversidade étnica, construindo espaços públicos e políticos de diálogo”43 no qual a diferença cultural não enseje mais um choque etnocêntrico de silen-ciamento e exclusão.

É o exemplo de países como Bolívia e Equador, que se reconhecem constitucional-mente –em seu Direito Estatal, portanto escrito– como Estados Plurinacionais e diante da diversidade cultural, reconhecem o pluralismo jurídico existente dentro do território estatal.

41 A diferença colonial “é um espaço epistemológico e político privilegiado” no qual a maioria dos teóricos europeus cegaram-se à diferença colonial e à implicada subalternização do conhecimento e das culturas. Dentre as noções chaves do programa de investigação de modernidade/colonialidade, Escobar apresenta uma distinção entre “diferença colonial” e “colonialidade global”, explicando, a partir da utilização dos conceitos por Mignolo, que “las cuales se refieren al conocimiento y dimensiones culturales del proceso de subalternización efectuado por la colonialidad del poder, la diferencia colonial resalta las diferencias culturales en las estructuras globales del poder”. ESCO-BAR, Arturo, op. cit., p. 62.42 BARRETO, Helder Girão. Direitos Indígenas: vetores constitucionais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 35-36.43 COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Elementos de Antropologia Jurídica. Florianópolis: Concei-to Editorial, 2008, p. 48.

Etnocentrismo jurídico, colonialidade e descolonização 229

Esta proposta recente, diante da história colonizadora quinhentista, inova profun-damente o imaginário teórico e marca a possibilidade de novos caminhos na formação de uma cultura jurídica própria latino-americana, que se reinventa à margem do etnocentris-mo jurídico latente sobre as heranças coloniais presentes.

Refletir sobre descolonização do Direito, sem dúvida alguma inicia-se com o reco-nhecimento de outras expressões culturais, principalmente, de outras expressões culturais jurídicas. Mas o debate não se encerra no reconhecimento.

O debate sobre a descolonização do (e no) Direito, impõe à racionalidade jurídica desafios de construir canais de diálogo, que permitam aos silenciados falarem. Pois se continuamos a falar por eles, numa lógica indigenista, sustentamos uma relação de conhe-cimento fundada na exclusão do “outro” e na perpetuação do padrão epistemológico de colonialidade de poder.

A isto deve-se a relevância da interculturalidade enquanto espaço de construção de “relações entre grupos, como também entre práticas, lógicas e conhecimentos distintos, com o afã de confrontar e transformar as relações de poder (incluindo as estruturas e instituições da sociedade) que naturalizaram as assimetrias sociais”.44

De nada adianta buscar a positivação do Direito dos “outros”, convertendo-os em políticas estatais, sob a consideração de que esta é a única forma metodológica possível. Como se os juristas funcionassem como “tradutor” dos outros direitos à cultura hege-mônica.

É necessário repensar a cultura jurídica como um todo, para fora das categorias da modernidade, de modo que a transforme efetivamente, do contrário apenas restaria a projeção desta perspectiva eurocêntrica de conhecimento, referindo-se ao controle da cul-tura. Como assinala Walsh45, “requer aceitar que o conhecimento não é único e universal para quem ingressar nele [...]; e que tampouco é único o campo jurídico. Neste sentido, o conceito de interculturalidade vai mais adiante da diversidade, do reconhecimento e da inclusão”.

A interculturalidade é um processo contínuo em que os juristas deveriam fomentar que se explicasse a eles como se realiza esta diversidade –e nisto resulta o aprender a ouvir; não cabendo a eles falarem como porta-voz de um único conhecimento jurídico, tirando conclusões baixo a sua racionalidade– que como vimos projeta a colonialidade.

44 Tradução livre: “[...] la interculturalidad se funda en la necesidad de construir relaciones entre grupos, como también entre prácticas, lógicas y conocimientos distintos, con el afán de confrontar y transformar las relaciones del poder (incluyendo las estructuras e instituciones de la sociedade) que han naturalizado las assimetrias sociales, [...]”. WALSH, Catherine. Interculturalidad, Re-formas Constitucionales y Pluralismo Jurídico. En: Aportes Andinos n.2. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar, Sede Ecuador; Programa Andino de Derechos Humanos, abril 2002, p. 1.45 Tradução livre: “Requiere aceptar que el conocimiento no es uno y universal para quien ingres-sar en el [...]; y que tampoco es uno el campo jurídico. En este sentido, el concepto de la intercultu-ralidad va más allá de la diversidade, el reconocimiento y la inclusión”. Ibid., p. 2.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina230

Ainda que o projeto de “desindianizar”46 a América indígena não tenha alcançado os fins a que se propunha –muito embora não há como negar que tenha alcançado a ex-pressão da mais profunda crueldade humana revestida contraditoriamente sobre o nome de Humanismo– “[...] não se pode ter uma visão ampla de uma determinada forma posi-tivada de Direito (o caso particular, aqui, do Direito Estatal ocidental) se não for identifi-cado a que tipo de organização social está vinculado e que espécie de relações estruturais de poder, valores e de interesses reproduz”47.

Ao se pensar nos setores excluídos do discurso cultural, portanto, histórico e jurídi-co48, o reconhecimento dos “outros” direitos –das expressões jurídicas que se manifestam culturalmente aquém do Estado– não nos libertou do preconceito sobre a manifestação de outras formas de Direito, pois ainda não criamos canais que deem voz aos silenciados, não construímos canais de diálogo. E é a isso que deve-se o discurso sobre descolonizar-se. O reducionismo de limitar o conhecimento à escrita ainda está incutido sobre a com-preensão e aceitação do pluralismo jurídico. O diálogo intercultural que se reivindica so-bre as múltiplas formas de Direito ainda não se desvencilhou da necessidade da segurança jurídica, do reconhecimento do Direito Estatal de sua existência no texto da lei.

Não inicia um processo de descolonização, que nos revela os mecanismos de do-minação a que estamos sujeitos, se não desvencilharmos de categorias com a quais pen-samos e entendemos o mundo jurídico. Em outras palavras, precisamos reconhecer o Direito para além do seu positivismo, de sua escrita. Nas palavras do Prof. QUIJANO, “é tempo, enfim de deixar de ser o que não somos”49.

A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar “quase natural”. Frases como “a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?” ou “o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século” expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora. Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada. O de que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à adaptação do educando, à sua sobrevivência.50

46 RIBEIRO, op. cit., p. 47.47 WOLKMER, 2001, op. cit., p. 26.48 Sobre a exclusão no discurso histórico, cita-se na construção do pensamento: “Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer as certas exigên-cias ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo”. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 18. ed. São Paulo: Loyola, 2009, p. 36-37. 49 Tradução livre: “És tiempo, en fin, de deja de ser lo que no somos”. QUIJANO, op. cit., p. 242.50 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 45ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013, p. 24.

Etnocentrismo jurídico, colonialidade e descolonização 231

Conclusões

O reconhecimento do pluralismo jurídico e o direito de outros povos de expressarem-se culturalmente através de seus próprios Direito – dos seus “outros” “direitos” – enquanto fundamento de um Estado Pluriétnico, retrata uma conquista de uma luta de mais de 500 anos.

Esta conquista, por si só, segue sendo um meio e, não, um fim. Meio porque a luta pelo reconhecimento da existência de um pluralismo jurídico pelo Estado, ainda denota a superioridade da cultura jurídica provinda do racionalismo jurídico-positivista ocidental moderno. Não há uma luta pelo Direito Estatal em se ver reconhecido em povos e comu-nidades autônomos. Isto é óbvio diante da violência física, da exclusão, da contínua ação epistemológica que inferioriza outras formas culturais.

O Direito Estatal e os juristas formados sobre está lógica tecno-formalista ainda precisam compreender o que outras ciências já compreenderam: o positivismo, a escrita, não é um caminho a que todas as manifestações jurídicas devem chegar. E, nesta busca de um universo incompreensível, ao invés de resolver impondo-se o Direito Estatal em nome da segurança jurídica, é preciso retomar concepções de mitos, de não-linearidade temporal, de cosmovisões, de memórias coletivas. Aliás, compreender isto já é um início à nossa própria condição de colonizados, capaz de trilhar um futuro que o diálogo inter-cultural seja realmente possível.

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DIÁLOGO INTERCULTURAL NO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO

Flávia do Amaral Vieira1*

Introdução

Este artigo resulta da busca por uma análise crítica do cenário político e jurídico das resis-tências e transformações paradigmáticas que vem se construindo nas últimas décadas em alguns países da América Latina, no chamado “novo constitucionalismo latino america-no”, referente aos processos constituintes da Venezuela (1999), Equador (2008) e Bolívia (2009), com relação à aplicação do princípio da interculturalidade.

Reconhece-se que trataremos de processos que ainda estão em curso, com pouco tempo histórico e com diferentes contextos de rupturas em cada Estado. Ante a comple-xidade do tema, propõe-se assim a construção de um panorama introdutório dessas cartas políticas, explorando o conceito da interculturalidade, para averiguar se tal como está posto pelas constituições é funcional ao sistema dominante, ou se permanece concebida como projeto político, social, epistêmico e ético de transformação e decolonialidade.

1. Interculturalismo: um novo horizonte pós-multiculturalismo

Fundamentado na diversidade cultural e na necessidade de se promover uma convivência pacífica e em pé de igualdade entre os brancos, mestiços, indígenas e afrodescendentes, surgiu nas últimas décadas um novo discurso público e oficial na América Latina, quando se constitucionalizou o princípio da interculturalidade ou interculturalismo.

Para entender o interculturalismo como princípio no pluralismo jurídico das no-vas constituições latino-americanas, necessário primeiro distingui-lo do multiculturalismo, eis que muitas vezes alguns os confundem, para depois construir seu conceito e bases teóricas. Tanto o multiculturalismo quanto o interculturalismo se referem geralmente às politicas de reconhecimento das identidades e culturas próprias dos outros étnico-raciais que foram historicamente marginalizados nos discursos e políticas das instituições domi-nantes.

1* Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD-UFSC, área de concentração “Direito e Relações Internacionais”. Mem-bro do NEPE-Núcleo de Pesquisas e Práticas Emancipatórias. Bolsista CNPQ. Email: [email protected].

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina234

Nesse sentido, Damasio explica que no mundo ocidental, historicamente, por in-termédio de instituições como as universidades, o ensino obrigatório, os museus e outras organizações, alguns modos de cultura foram consagrados e reproduzidos, assim como exportados para os territórios coloniais, “reproduzindo nesses contextos concepções que são definidas como eurocêntricas”, por fazerem referência e valorizarem o conhecimento produzido na Europa em detrimento de outras formas de saber2.

Como colônia europeia, na América Latina esse processo de afirmação da cultura eurocêntrica é muito acentuado, tornando-se evidente em padrões de poder hierarquiza-dos de dominação e exploração, que se desenvolvem em conceitos como a colonialidade do poder, do ser e do saber, num contexto de repressão e exclusão do ser, saber e poder dos povos indígenas, negros e outros oprimidos, e valorização do que ou é ou descende do europeu.

No período pós-colonial e com os processos de globalização, foi criado o termo multiculturalismo para descrever a diversidade cultural nos Estados do hemisfério Norte; para lidar com a situação resultante da chegada de imigrantes vindos do Sul no espaço europeu, da falta de fronteiras internas, da diversidade étnica e da afirmação identitária das minorias nos EUA, entre outros fatores3.

No entanto, com a emergência do neoliberalismo, o resultado foi a incorporação do multiculturalismo às politicas culturais neoliberais, que constitui estratégia própria da globalização, da conversão relativa dos cidadãos em consumidores.

Assim, o multiculturalismo geralmente é um termo ligado a ideais liberais. Para Borrero, através dele se exprime a ideia de que os direitos étnicos não só são consistentes com o Estado liberal e democrático de direito, como que é um correlato necessário quan-do presentes algumas características populacionais4.

Nessa linha, os estados afirmam proceder baixo ao império do que chama de “omissão bem intencionada”, pela qual o Estado não protege nenhuma cultura em par-ticular, mas reage quando se discrimina alguma em especial. Borrero ressalta que tal ale-gação não condiz com a verdade, uma vez que o Estado sempre faz opções culturais, o que reflete na administração publica (língua, escolha de dias para feriados, sistemas de educação e saúde, etc.)5.

A crítica que se faz ao multiculturalismo é que ele designa uma estratégia política que mantem a assimetria do poder entre as culturas, ao não colocar em xeque o marco estabelecido pela cultura hegemônica. Sendo assim, o respeito e a tolerância, tão difun-

2 DAMASIO, Eloise. Multiculturalismo versus Interculturalismo: Desenvolvimento Em Questão. Editora Unijuí Ano 6. n. 12 . jul./dez.. 2008. p. 63-86. p. 66. 3 SANTOS; NUNES, apud DAMASIO, op. cit. p.74.4 BORRERO, Camilo. Derechos Humanos, Multiculturalismo e Interculturalidad. In: MONGUI Carlos (comp.). Multiculturalismo, Interculturalidad y Derechos Humanos. Cátedra Gerardo Molina de la Universidad Libre de Colombia. Bogotá: Universidad Libre,2010. pp 11-24. p. 125 Ibid., p. 15.

Diálogo intercultural no novo constitucionalismo latino-americano 235

didos pela retórica do multiculturalismo, estão fortemente limitados por uma ideologia semicolonialista que consagra a cultura ocidental como cultura dominante.

Afirma-se que a partir dos projetos multiculturais os povos são reconhecidos ape-nas enquanto subordinados à hegemonia do Estado-nação, sua existência coletiva e direi-tos coletivos são reconhecidos somente enquanto forem compatíveis com as noções de soberania, direitos e, em especial, direitos de propriedade.

Já o interculturalismo, como princípio orientador das políticas culturais, nasce das propostas e reclamações das comunidades e movimentos indígenas e afrodescendentes andinos na América latina, da luta continua entre a colonização e a descolonização.

Visa assim à superação do horizonte da tolerância e das diferenças culturais e a transformação das culturas por processos de interação.

Desta forma, a interculturalidade se afirma em um pensamento pós-colonial, que assume que a integração étnica própria do multiculturalismo é uma estratégia de assimila-ção cultural, que esconderia um proposito homogeneizador do liberalismo. Nesse sentido, a interculturalidade se apresenta como uma crítica ao multiculturalismo e ao liberalismo.

Além de um princípio ideológico, é uma busca pelo resgate e pela construção de um pensamento próprio, de quem foi mais excluído e oprimido historicamente na região, ou seja, os indígenas. Assim, pela construção de um projeto politico e social, cultural, ét-nico, que aponte para uma transformação que gere um outro conhecimento, uma pratica politica outra, uma outra sociedade.

Nas palavras de Marina Almeida, é inegável que as lutas sociais com bases intercul-turais foram as principais responsáveis pela radicalização do pensamento emancipatório na América Latina.6 Nesse sentido, a linguagem da interculturalidade foi logo apropriada pelo Estado, no chamado novo constitucionalismo latino-americano.

Na verdade, o que tem que ser destacado é que a proposta dos movimentos andi-nos se apresenta como projeto transformador que implica a reinvenção do Estado e da nação como pluriétnico, ou plurinacional, transformações profundas na memoria, nos relatos e representações do Estado, o que tem como consequência uma redefinição do espaço cultural, que influenciou os processos constitucionais de Venezuela, Equador e Bolívia. A interculturalidade então supera o conceito de multiculturalidade, a lógica e a significação de aquilo que foi pensado desde cima, que tende a sustentar os interesses hegemônicos e manter os centros de poder.

2. “Novo” constitucionalismo latino-americano

De acordo com Wolkmer, a constituição deve ser resultado das correlações de forças e lu-tas sociais em um dado momento histórico de desenvolvimento da sociedade. No entanto,

6 ALMEIDA, Marina Correa. Direito insurgente latino-americano: pluralismo, sujeitos coleti-vos e nova juridicidade no século XXI. In: Constitucionalismo Latino-americano: tendências contemporâneas. Antonio Carlos Wolkmer e Milena Petters Melo (org.). Curitiba: Juruá, 2013. pp. 169-190. p. 181.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina236

as constituições tradicionais ocidentais são marcadas pela exclusão histórica das grandes massas campesinas, populares, e dos afrodescendentes e indígenas7.

As mais recentes constituições latino-americanas sobre as quais se tratará nesse estudo, diferentemente, resultaram diretamente de revoltas e protestos populares: na Ve-nezuela, o Caracaço, de 1989; a Guerra da água em 2000, e do Gás em 2003 na Bolívia; e aos protestos no Equador de 2005.

Nesse contexto, esses Estados passaram a reconhecer a necessidade de reformular seus projetos políticos de modo a reaproximar os cidadãos do poder político governa-mental, além de efetivar direitos estabelecidos em seus textos constitucionais.

De acordo com Walsh, no Equador e Bolívia, os movimentos indígenas não só de-safiaram as noções e práticas do Estado-nação, como por meio de uma politica diferente, lograram inverter a hegemonia branca-mestiça8.

Dessa forma, esse “novo” constitucionalismo, principalmente na Bolívia, tem como característica principal surgir do pensamento das comunidades indígenas, campesi-nas e andinas. Nesse giro epistêmico, o que passa a importar nesse processo é a criativida-de e originalidade gestada nos próprios territórios, substituindo a colonialidade vinda do Norte. Nesse sentido, os protagonistas desse processo passam a ser não mais a elite eco-nômica, e sim o povo oprimido, as vítimas excluídas, todos os partícipes do que Wolkmer chama de “largo fosso de desigualdades do continente latino-americano”9.

Para Wolkmer, o que marca e o que une estas três constituições é o reconhecimen-to de direitos da natureza (Pachamama), da proposta do bem viver (sumak kawsay), a cons-trução do Estado plurinacional e a oficialidade do pluralismo jurídico comunitário10.

Este novo modelo de Estado, quando se define plurinacional, refunda o Estado, ao promover a recuperação e uma releitura da soberania popular, se fundamentando em procedimentos de democracia participativa, com intervenção direta dos cidadãos e da sociedade civil organizada no controle e gestão da administração estatal.

Para isso, as constituições estabeleceram instituições paralelas de controle, o “po-der ciudadano” na Venezuela, o “control social” na Bolivia, e o “quinto poder” no Equa-dor. É nesse cenário que deve ocorrer o diálogo intercultural.

7 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Crítico e Perspectivas para um novo constituciona-lismo na América Latina. In: Constitucionalismo Latino-americano: tendências contemporâne-as. Antonio Carlos Wolkmer e Milena Petters Melo (org.). Curitiba: Juruá, 2013. pp. 19-42. p. 19.8 WALSH, Catherine. Interculturalidad y Coloniadad del Poder. Un pensamiento y posiciona-miento otro desde la diferencia colonial. In: WALSH, Catherine; GARCÍA LINERA, A.; MIGNO-LO, Walter (org.). Interculturalidad, descolonización del Estado y del conocimiento, Buenos Aires: Editorial signo, 2006. pp. 21-70. p. 24.9 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Mile-na Petters (org.). Constitucionalismo Latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013b. pp. 9-17. p. 10.10 Ibid.

Diálogo intercultural no novo constitucionalismo latino-americano 237

3. Interculturalidade nas constituições da Venezuela, Bolívia e Equador

A constituição da República Bolivariana da Venezuela de 1999 representa assim o elo para o movimento destas novas constituições, tendo inaugurado esta nova cultura jurídica que se fundamenta no pluralismo, baseada na “Sociedad democrática, participativa y protagò-nica, multiétnica y pluricultural em um Estado de justicia federal y descentralizado”11.

As constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009) são consideradas mais vanguardistas, eis que ainda mais progressivas. Identificam outro paradigma não universal e único do Estado de Direito, assim um que coexista com os saberes das sociedades pluri-nacionais e com a prática do pluralismo igualitário jurisdicional. Através dessas mudanças políticas, estes Estados materializam novos atores sociais.

A constituição venezuelana se destaca por conceber entre seus pilares a partici-pação dos cidadãos nos assuntos públicos, não limitando o sufrágio para a escolha dos governantes, como também usa essa ferramenta para revogação de mandatos, iniciativa legislativa, consulta popular, entre outras possibilidades.

Artículo 70. Son medios de participación y protagonismo del pueblo en ejercicio de su soberanía, en lo político: la elección de cargos públicos, el referendo, la consulta popular, la revocatoria del mandato, la iniciativa legislativa, constitucional y constituyente, el cabildo abierto y la asamblea de ciudadanos y ciudadanas cuyas decisiones serán de carácter vinculante, entre otros; y en lo social y económico, las instancias de atención ciudadana, la autogestión, la cogestión, las cooperativas en todas sus formas incluyendo las de carácter financiero, las cajas de ahorro, la empresa comunitaria y demás formas asociativas guiadas por los valores de la mutua cooperación y la solidaridad.12

Garante a participação política dos indígenas através de representantes, e dispõe também sobre a participação destes nos processos de demarcação de terra e garantia da propriedade coletiva. Prevê a educação bilíngue, no entanto, em seu artigo primeiro dis-põe que o idioma –oficial– é o castelhano, acrescentando que:

Los idiomas indígenas también son de uso oficial para los pueblos indígenas y deben ser respetados en todo el territorio de la República, por constituir patrimonio cultural de la Nación y de la humanidad.

11 VENEZUELA. Constitución de la República Bolivariana de Venezuela. 1999. Publicada en Gaceta Oficial Extraordinaria N° 5.453 de la República Bolivariana de Venezuela. Caracas, vier-nes 24 de marzo de 2000. Disponível em: < http://www.tsj.gov.ve/legislacion/constitucion1999.htm >. Acesso em: 8 out. 2014. Preâmbulo.12 Ibid.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina238

Dessa forma, verifica-se que as línguas indígenas, ao serem concebidas como patri-mônio e em caráter subsidiário/inferior ao castelhano –língua imposta e dominadora– eis que oficiais apenas aos povos indígenas; são vistas pelo discurso oficial do Estado mais próximas do folclórico do que como meio de comunicação vigente para a sociedade ve-nezuelana. Isto será objeto de estudo do próximo tópico.

Dando continuidade, a Constituição do Equador de 2008 inova ao prever juris-dição indígena e fortalecimento do principio da interculturalidade na educação, senão vejamos em seu artigo 28:

É direito de toda pessoa e comunidade interagir entre culturas e participar em uma sociedade que aprende. O Estado promoverá o dialogo intercultural em suas múltiplas dimensões.13

Walsh afirma que a interculturalidade para o movimento indígena equatoriano é vista como um princípio ideológico, um conceito por si mesmo outro, em primeiro lugar porque provem de um movimento étnico social e não uma instituição acadêmica, logo porque reflete num pensamento que não se embasa em legados eurocêntricos, nem nas perspectivas de modernidade e finalmente, porque não se origina nos centros geopolíticos de produção do conhecimento acadêmico (norte). Seria um pensamento subversivo e insurgente com metas estrategicamente políticas14.

No Equador e Bolívia, estas práticas posicionam os povos como atores sociais e políticos. A constituição boliviana buscou refundar o Estado boliviano, majoritariamente indígena, para um horizonte anticolonialista, intercultural e plurinacional, como proclama em suas linhas:

Bolívia se constitui em um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias. Bolívia se funda na pluralidade e no pluralismo politico, econômico, jurídico, cultural e linguístico, dentro do processo integrador do país.15

Na constituição boliviana de 2009 destacam-se a disposição dos direitos indígenas, os direitos à educação intercultural, aos direitos à natureza, etc. Prevê igual hierarquia en-

13 EQUADOR. Constitución del Ecuador. 2008. Disponível em: < http://www. asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf >. Acesso em: 8 out. 2014.14 Walsh, 2006, op. cit., p. 22.15 BOLÍVIA. Constitución Política del Estado Plurinacional de Boli-via. 2008-2009. Disponível em: < http://www.tcpbolivia.bo/tcp/sites/all/ modulostcp/leyes/cpe/cpe.pdf >. Acesso em: 8 out. 2014.

Diálogo intercultural no novo constitucionalismo latino-americano 239

tre a justiça ordinária e a jurisdição indígena, originaria e campesina. Quanto à educação, consagra, como base do Estado plurinacional, o diálogo intercultural.

Dispõe também que este novo Estado para ser plurinacional deve prescrever auto-nomias territoriais. Concebe estas como autonomias indígenas, regionais e interculturais, e cidadãs (indígenas, campesinas, mestiças). Parte da necessidade de “dejar en el pasado el Estado colonial, republicano y neoliberal”:

Un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías [fundado] en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país.16

Assim, a interculturalidade na Bolívia faz parte da caracterização do Estado.

3.1. A interculturalidade institucionalizada

As constituições da Venezuela, Equador e Bolívia buscaram institucionalizar a intercultu-ralidade em seus textos, com relação a três exemplos concretos: o respeito à pluralidade do saber, o reconhecimento dos direitos da natureza, e o sumak kawsay ou bem viver. Conforme acrescenta Walsh:

Hoy, en este continente, la interculturalidad está presente en las políticas públicas y en las reformas educativas y constitucionales, y es eje importante tanto en la esfera nacional-institucional como en el ámbito y cooperación inter/transnacional. Aunque se puede argumentar que esta presencia es efecto y resultado de las luchas de los movimientos sociales-políticos-ancestrales y sus demandas por reconocimiento, derechos y transformación social, también puede ser vista, a la vez, desde otra perspectiva: la que la liga a los diseños globales del poder, capital y mercado.17

Quando institucionalizam a interculturalidade, esses Países transgridem os mode-los e práticas das políticas neoliberais, com seu foco no individualismo.

Os campos em que a interculturalidade poderia avançar com a institucionalização seriam o Direito, através do Pluralismo Jurídico, e na educação, com respeito ao ensino dos línguas e repasses da história e conhecimento latino-americano, e são justamente nestes que encontramos as maiores dificuldades em trazer para a prática a aplicação deste termo teórico.

16 Ibid. 17 WALSH, Catherine. Interculturalidad y (de)colonialidad: Perspectivas críticas y políticas. Ponencia preparada para el XII Congreso ARIC, Florianópolis, Brasil. 29 jun. 2009. p.2.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina240

Onde mais podemos perceber o problema do discurso da interculturalidade quan-do apropriado pelo Estado, é na educação. Observa-se nas reformas curriculares da Bolí-via e Equador (assim como a do Peru, que não é objeto desse estudo), que, apesar de ter sido declarada como critério transversal, significou pouco para a diversidade étnica.

Isso porque, segundo Walsh, sob o pretexto da interculturalidade, os livros edu-cativos e orientadores das práticas pedagógicas passam a se utilizar de uma politica de representação dessas minorias, que ao mesmo tempo em que incorporam a imagem de negros e indígenas, acabam “caindo na armadilha” de reforçar estereótipos e processos coloniais de racialização18.

Quanto à educação bilíngue garantida pelo Estado nas regiões indígenas, como no exemplo do Equador, em castelhano e em quéchua, na verdade o que se percebe é uma política de mão única, de troca cultural para o indígena compreender o branco, e não para o branco compreender o indígena, e muito menos entre as comunidades originárias, refle-xo de uma política nacional-integralista.

Martinez, sobre a educação bilíngue na Venezuela, resume essa prática no termo “alfabetizar y/o hispanizar (enseñanza intercultural-bilingüe) a poblaciones autóctonas”19, no qual se constata esse processo em que o autóctone ainda tem que se “converter” ao mundo hispânico para ser entendido e para ter acesso a direitos.

Para Walsh, a diferença trazida pela interculturalidade institucionalizada foi que indígenas e afrodescentes passaram a fazer parte dos poderes políticos. No entanto, ao invés de trazer resultados transformadores, a autora aduz que isto implicou em muitos ca-sos em uma diminuição das forças opositoras dos movimentos sociais e uma acentuação do individualismo, de forma que esses sujeitos terminam atuando de forma similar aos políticos brancos e mestiços20.

Ao lado disso, as organizações indígenas ainda entendem a educação bilingue como um processo de quebra da história hegemônica, que fortalece as identidades tradicional-mente excluídos e cria áreas de autonomia.

A educação tem papel primordial nesse cenário porque é espaço de luta, de cons-trução de identidades, opiniões, além da esfera educacional, é também um espaço político, social e cultural de reprodução de valores, atitudes e identidades e poder histórico hege-monico.

Dessa forma, verifica-se que mesmo institucionalizada, a interculturalidade na ação educativa não possui as condições necessárias para ser aplicada. As pressões do bloco hegemônico sempre trabalham para diluir este caráter de valorização de quem era antes

18 WALSH, 2006, op. cit. p. 43.19 MARTINEZ, Sérgio Serrón. Bilingüismo, interculturalidad y educación, las comunidades in-dígenas y sorda en Venezuela, una aproximación. In: Opción, Ano 23, No. 53, 2007. pp. 52-71. p. 54.20 Walsh, 2009, op. cit. p.15.

Diálogo intercultural no novo constitucionalismo latino-americano 241

um ninguém histórico, no sentido da manutenção do status quo e das elites, convertendo o interculturalismo em nada além de multiculturalismo liberal.

Borrero recorda que a interculturalidade supõe um pressuposto de partida: o res-peito à autonomia das formas de direito própria de cada cultura, autonomia que só po-deria ser limitada pelo que vem a ser construído em consenso pelas próprias culturas envolvidas.21

Nesse ponto verifica-se a segunda dificuldade de aplicação prática da intercultura-lidade pelas instituições estatais. Na Constituição do Equador de 1999, é prevista a aplica-ção do direito próprio indígena dentro de seus territórios. No entanto, a Carta prevê que este direito não pode ser contrário à Constituição e aos direitos humanos reconhecidos no plano internacional. Ou seja, limitada a jurisdição indígena, a interculturalidade não é aplicada nos moldes pensados pelos movimentos andinos.

Para Walsh, este uso intencional da interculturalidade é uma parte constitutiva da estratégia do Estado de incorporar as demandas sociais e o discurso subalterno dentro do aparato estatal22.

O que deve ser ressaltado é que, atendendo pelo menos de forma oficial estes an-seios, o governo dilui a força de oposição dos movimentos, que pode tornar a promessa da interculturalidade uma moeda de troca para assegurar a implementação de modelos neoliberais.

A interculturalidade para ser de fato aplicada não deve omitir o processo colonial de subalternização de identidades, assim como as consequências da diferença colonial. Para Mignolo:

Quando a palavra interculturalidade é usada pelo Estado, é usada no sentido equivalente ao multiculturalismo. O estado quer ser inclusivo, reformador, para manter a ideologia neoliberal e a primazia do mercado. Enquanto a interculturalidade tal como pensada pelo movimento indígena tem um caráter transformador. Não está pedindo reconhecimento e inclusão em um Estado que reproduz a ideologia neoliberal e o colonialismo interno, e sim reclama que o Estado reconheça a diferença colonial; propõe a participação dos indígenas no Estado, assim como na educação, na economia, no direito23.

Ele utiliza o conceito de diferença colonial, que é a consequência do passado e presente de subalternização dos povos, línguas e conhecimentos. Assim, quando se com-preende a interculturalidade desde o paradigma da diferença colonial, se traz ao debate a estrutura de poder que não pode ser esquecida.

21 Borrero, 2010, op. cit., p. 18.22 WALSH, 2009, op. cit., p. 44-45.23 WALSH, 2006, op. cit., p. 47.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina242

Conclusão

Assim, conclui-se que a interculturalidade, enquanto processo, é irreversível, a partir dela se constrói um novo modelo e estrutura do poder social desde baixo, que efetivamente põe em questão o marco neocolonial de democracia liberal representativa e suas preten-sões de cidadania universal.

Ao refundar o Estado, pode-se repensar e reconstruir as instituições sociais e po-liticas sob critérios que confrontem a colonialidade, o racismo, a desigualdade. Desta ma-neira, através do novo constitucionalismo latino-americano, vizualizamos um novo hori-zonte de democracia participativa e de “bem viver”.

Acredita-se que o princípio da interculturalidade tem transformado o Direito na América Latina, assim como as instituições jurídicas, tendo nesse processo como princi-pais atores, aqueles vítimas históricas de exclusão e marginalização.

No entanto, verificam-se problemas na aplicação do principio da interculturalidade por esses Estados, principalmente com relação ao pluralismo jurídico e a educação bilín-gue, pelo que se constata necessário um aprofundamento do debate da interculturalidade na sociedade latino-americana.

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ENSINO INTERCULTURAL DO DIREITO: UMA ALTERNATIVA AO MÉTODO TRADICIONAL

João Victor Antunes Krieger1*

Introdução

As primeiras décadas do século XXI apresentam um cenário de intensa agitação social em diversos cenários mundiais. Revoluções, crises econômicas, estruturais e políticas, além de manifestações dos mais diversos tipos e ideologias, são apresentadas com frequência nos noticiários nacionais e internacionais. A ebulição desses movimentos, populares ou não, trazem a tona temas de grande relevância jurídica e para sua filosofia. Entretanto, na maioria das universidades brasileiras, principais centros de produção e reprodução do conhecimento da idade moderna e contemporânea, o mínimo debate que acontece nos cursos de direito se dá, majoritariamente, sobre o mérito do legalismo (forma) dos fatos, e não sobre a transformação social e política (substância) que estes acarretam.

A concepção do direito adotada pelas faculdades de direito é extremamente formalista e o ensino é excessivamente dogmático. Limita-se o aprendizado do direito ao conhecimento descritivo e sistemático das normas jurídicas, ou seja, do ordenamento jurídico, bem como de seus institutos. Não se vislumbra, salvo exceções, nenhuma preocupação com a necessidade formar competências e desenvolver habilidades no bacharel em direito no sentido propiciar a ele o conhecimento necessário para atuar numa sociedade globalizada e dinâmica.2

Nota-se, assim, que as faculdades de direito do país priorizam questões formalistas (requisitos de validade, por exemplo) perante o debate do conteúdo. Sendo o curso um estudo que, por sua essência, deveria incentivar a discussão e englobar tópicos questiona-dores sobre política, sociedade e Estado, parece contraditória tal preferência. Entretanto, há uma lógica que a orienta. Ela se funda no interesse da maioria dos sujeitos envolvidos

1 Graduando do Curso de Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista e pesqui-sador da área de Pluralismo Jurídico, Direitos Humanos, Cidadania e Interculturalidade pelo grupo Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE).2 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; SANCHES, Samyra Haydêe Dal Far-ra Naspolini. O Paradigma Dogmático da Ciência Jurídica nos Manuais de Ensi-no do Direito. Universitas Jus, Brasília, v. 24, n. 2, p. 1-9, 2013. Disponível em: <ht tp ://www.publ i cacoesacademicas.un iceub.br/ index .php/jus/ar t i c l e/v iew/ 2361>. Acesso em: 15 abr. 2014. p. 3.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina246

no processo de aprendizagem (alunos e professores), e essa, por sua vez, rege-se segundo as exigências do mercado de trabalho. O bacharelismo (elevado prestígio dado às carreiras profissionais jurídicas com alta remuneração e status de poder político) é exemplo evi-dente dessa opção, trazendo como consequência uma desvalorização social dos trabalhos humanitários, militantes e acadêmicos.

1. O ensino jurídico tradicional

Neste primeiro momento, cabe expor as bases que tradicionalmente norteiam o ensino do direito nas universidades brasileiras. Muito mais que princípios, é importante esclarecer o paradigma dominante e os objetivos que vigoram nesse processo de ensinamento, além da consequência sobre os atuais discentes e graduados.

É necessário destacar que o termo “tradicional” não será usado para designar a metodologia pedagógica aplicada nos primeiros cursos de direito do Brasil. Tal filosofia jurídica era, como orienta Wolkmer de matriz jusracionalista e humanística, herança das faculdades de direito ibéricas, principalmente de Coimbra.3 Tratava-se de um idealismo erudito e meramente retórico, revelando-se “[...] proclamações abstratas, portadoras de efeitos contraditórios, entre ‘suas pretensões e suas realizações.’”4

O ensino jurídico “tradicional” refere-se, portanto, ao modelo que substitui o pa-drão ibérico. O paradigma jusnaturalista perde lugar enquanto o positivismo jurídico se consolida como prática e forma de ensino dominante.

[...] a filosofia do positivismo jurídico, que prosperou principalmente a partir da metade do século XIX e acabou impondo-se como principal tendência do Direito contemporâneo, constituiu-se na mais vigorosa reação às correntes definidas como junaturalistas [...].5

O positivismo jurídico, enquanto paradigma que prega “[...] o repúdio a conceitos valorativos [...], a redução da juridicidade à produção estatal [...], a exaltação do Direito como construção legal lógico-sistemática [...] e o rigor metódico enquanto formalismo técnico [...]”6, trouxe para a pedagogia universitária do direito duas consequências: o dog-matismo e orientação mercadológica do curso, as quais serão analisadas a seguir.

2. O dogmatismo

Ferraz Junior, inspirado na teoria de Viehweg, identifica dois enfoques para o conheci-mento: o zetético e o dogmático. O primeiro é voltado para uma investigação especulativa,

3 WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma História das Idéias Jurídicas: da Antiguidade Clássica à Modernidade. Florianópolis: Ed. Fundação José Arthur Boiteux, 2006. p. 88-97.4 Ibid., p. 90-91.5 Ibid., p. 190.6 Ibid., p. 191-192.

Ensino intercultural do direito: uma alternativa ao método tradicional 247

onde qualquer fato ou conceito pode ser confrontado e dissecado até sua raiz. Já o segun-do parte de verdades pré-construídas (dogmas) e visa dar uma solução de ordem prática, ou seja, direcionar a ação.7

O estudo dogmático ganha importância quando a prática e o ensino do direito aderem à matriz filosófica do positivismo. Em realidade, o dogmatismo representa o ápice do positivismo, pois afirma que toda pesquisa e investigação jurídica deve ter como objeto o direito escrito e positivado.

Dessa forma, nos cursos superiores de direito da atualidade, o estudo dogmáti-co predomina sobre o zetético. “Como a dogmática jurídica elegeu apenas o conjunto normativo como objeto de estudo da Ciência do Direito, evidenciou-se desta forma a predominância do dogmatismo, servindo este de norte ao Ensino Jurídico, real produtor deste paradigma.”8 Assumindo a roupagem do estudo de códigos e leis, disciplinas funda-mentadas na instrução e formação ao direito positivo recebam maior importância frente às derivadas de outros saberes humanos que visam estabelecer pressupostos de discussão (história do direito, sociologia jurídica, antropologia do direito, filosofia do direito etc.).

O ensino universitário resumiu a ciência jurídica ao conhecimento de leis, sua interpretação e aplicabilidade; ocasionando desta maneira a alienação do pobre jurista, que sem ter noção da armadilha engenhada, defende os dogmas estabelecidos como verdade absoluta e não passível de questionamento.9

Em um debate que visa questionar preconceitos da sociedade, superar situações de injustiça e denunciar opressões, o prisma zetético é, evidentemente, mais adequado. “A dogmática é mais fechada, pois está presa a conceitos fixados, obrigando-se a interpreta-ções capazes de conformar os problemas às premissas [...].”10 Partir de verdades apriorís-ticas e preceitos inquestionáveis é um desacordo com a construção de um conhecimento dialógico (fundado no diálogo), o que confronta toda a lógica e sentido do debate.

3. O ensino voltado para o mercado

Outra consequência do positivismo jurídico é a orientação do curso para as necessida-des do mercado de trabalho. Desde as primeiras fases da graduação, os discentes são incentivados a buscarem estágios e atividades de capacitação para a prática advocatícia ou

7 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 4. ed., São Paulo: Atlas, 2003, passim.8 DIAS, Evander. A Influência do Paradigma Dogmático da Ciência do Direi-to na Formação do Jurista. Anais do XVII Congresso Nacional do CONPE-DI, Brasília, nov. 2008, p. 4715-4733. Disponível em: < www.conpedi.org.br/ manaus/arquivos/anais/brasilia/07_477.pdf ‎>. Acesso em: 15 abr. 2014. p. 4718.9 Ibid., p. 4726.10 FERRAZ JUNIOR, 2003, op. cit., p. 35.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina248

público-jurídica, evidenciando-se a preferencia por cargos relacionados ao bacharelismo. É indiscutível que em qualquer faculdade de direito no Brasil a formação profissionalizan-te, prevalece sobre a pesquisa e a extensão.

Neste contexto, a dogmática jurídica propalada nas universidades de direito traz resultados nocivos ao poder judiciário, pois os futuros juristas, em seus primeiros passos na faculdade, já se deparam com uma realidade totalmente adversa ao seu idealismo, pois a finalidade dos cursos concentra-se especificamente aos valores mercadológicos, não recebendo assim o ensinamento do verdadeiro sentido da disciplina chamada “Direito”, qual seja o comprometimento com as mudanças sociais e a efetivação da Justiça.11

A dogmática provou-se uma adequada ferramenta para a difusão de tal cultura jurídica, uma vez que essa perspectiva restringe o operante apenas aos dogmas jurídicos, ou seja, ao direito positivo:

[...] por mais que se esmere em interpretações, [o dogmatismo] está adstrito ao ordenamento vigente, não o ignorando jamais. A ordem legal vigente, embora não resolva a questão da justiça ou injustiça [...], põe fim às disputas sobre o agir [...].12

Isso se dá porque o dogmatismo se baseia na tomada de decisão prática, visando encerrar a problemática através das suas verdades pré-construídas. Dessa forma, busca-se solucionar a problemática da “segurança jurídica”. Não há nada mais condizente com a profissão do advogado, juiz ou demais carreiras jurídicas do que incentivar o ensino dog-mático universitário.

Com as novas necessidades do mundo moderno, que priorizam caminhos curtos e rápidos para solucionar conflitos, o fim das Ciências Jurídicas tem se perdido pelo caminho dos bacharéis. Os profissionais da nova geração enxergam no curso de Direito não mais seu sentido ético e moral, que busca soluções para as demandas sociais da melhor forma para a coletividade, mas soluções rápidas e técnicas, realizadas por meio de um trabalho mecânico de mera reprodução do conhecimento.13

11 DIAS, op. cit., p. 4722.12 FERRAZ JUNIOR, 2003, op. cit., p. 37.13 MARANHÃO, Gabriela Carvalho Mendes. O Ensino Jurídico Moderno e a Formação do Profissional de Direito: Uma Visão Crítica sobre os Fins das Penas no Sistema Penal Brasileiro. Universitas Jus, Brasília, 2010, n. 21, p. 39-46, jul./dez. Disponível em: < http://www.publicacoe-sacademicas.uniceub.br/index.php/jus/article/view/1202 >. Acesso em: 15 abr. 2014. p. 39-40.

Ensino intercultural do direito: uma alternativa ao método tradicional 249

4. Os efeitos sobre os discentes

A união do dogmatismo e da posição mercadológica dos cursos de direito que se regem pelo modelo tradicional implica em uma drástica consequência sobre os sujeitos em pro-cesso de aprendizagem. O corpo docente que sustenta tal paradigma tem grande efeito sobre seus alunos, motivando estes a exercer e repassar o mesmo padrão. Assim, como a grande maioria dos graduandos e graduados reproduz a visão do positivismo jurídico, a superação deste torna-se um grande desafio para aqueles que o criticam.

Inicialmente, verifica-se a predominância da norma positiva enquanto dogma, que encontra fundamento no discurso legalista. As críticas ao direito se resumem aos critérios de compatibilidade e adequação ao ordenamento. A validade e poder de aplicação da lei se justificam meramente pelo argumento da autoridade e posição política do legislador, isto porque “[...] a dogmática não questiona suas premissas, porque elas foram estabelecidas (por um arbítrio, por um ato de vontade ou de poder) como inquestionáveis.”14

O trabalho alienado é fortemente caracterizado pela inércia do jurista fruto do dogmatismo, distanciando-se do senso crítico motivador das lutas ideológicas, entendendo o Direito como um restrito conjunto normativo, fazendo o caminho inverso do que preconiza a teoria crítica do Direito.15

Essa redução do direito à lei também afeta psicologicamente o estudante. A susten-tação dos dogmas positivistas atrofia o pensamento social e o senso crítico, silenciando os questionamentos. Além do distanciamento do profissional à realidade, é visível também a submissão destes aos códigos e institutos jurídicos.

A reprodução do paradigma dogmático pelo ensino jurídico interfere sobremaneira na formação do jurista, já que os discentes oriundos dos bancos universitários geralmente são pessoas dóceis, obedientes, pouco criativas e totalmente inseguras, tornando-se assim presas fáceis a alienação pelo sistema capitalista, fato que interessa as elites dominantes para conquista dos seus anseios.16

Nesse sentido, os interesses dos setores dominantes não se torna alvo de avaliação, perpetuando-se através da máscara legalista. O mito popular do jurista humanitário e atento a questões sociais se mostra hoje representado por uma cifra pequena dos gradu-andos e profissionais. O sistema positivista age e se perpetua graças à imobilidade dos estudantes e juristas diante da ordem vigente.

14 FERRAZ JUNIOR, 2003, op. cit., p. 37.15 DIAS, 2008, op. cit., p. 4721.16 Ibid., p. 4719.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina250

Verifica-se também uma forte semelhança do ensino universitário do direito com o que Paulo Freire chama de concepção “bancária” da educação. Nessa metáfora, o corpo docente, devido à autoridade culturalmente atribuída a si, atua como detentor do co-nhecimento e, num ato de doação, o deposita nos recipientes que seriam os estudantes. Pressupõe-se, assim que os discentes não possuem qualquer forma de saber, vivencia ou experiência, tomando-os como mentes deslocadas da realidade, ignorantes e rudes (recipientes vazios), que deverão ser objeto de instrução. Percebe-se que não há troca ou diálogo, apenas transferência unilateral. A educação bancária é, por um lado, um exercício ativo do educador e, por outro, passivo do educado.

Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão –a absolutização [sic] da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.17

Para além da mera reprodução das fórmulas abstratas, ao separar o direito dos con-textos sociais, o ensino do direito atual dissemina uma lógica eurocêntrica e monocultural firmada sobre valores e princípios liberais. Por nascer do mesmo berço do positivismo, as formulações e teorias jurídicas europeias e derivadas destas prevalecem em importância frente às de origens diversas. Além disso, o dogmatismo fecha os olhos dos discentes ao pluralismo cultural, fenômenos sociais diversos e diferença de racionalidades. O forma-lismo obstrui a visão de outras perspectivas senão a si próprio, impedindo assim a sua superação.

5. Necessidade de mudança

Fica evidente, portanto, que é preciso uma alteração na estrutura dos cursos de direito para aproximar os estudantes dos diversos contextos da realidade. É necessário, portanto, deslocar a cultura jurídica do seu mundo de abstrações e formalismos para que seus ope-radores possam atuar com as demandas concretas da sociedade.

Ora, o uso de manuais pelas faculdades de direito não conseguirá lograr êxito na busca de um bacharel em direito com sólida formação geral, humanística e axiológica [...]. Exige-se do bacharel em direito, além dessas habilidades, capacidade de análise, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e visão critica que fomente a capacidade e aptidão de aprendizagem autônoma e dinâmica [...].18

17 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 25. ed., São Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 58.18 MEYER-PFLUG e SANCHES, 2013, op. cit., p. 8.

Ensino intercultural do direito: uma alternativa ao método tradicional 251

Percebe-se, então, que a tradicional forma de ensino jurídico se distancia dos pro-blemas fáticos da sociedade. Os profissionais do direito se mostram incapazes de compre-ender os conflitos que fogem dos modelos abstratos e padronizados que são repetidos nas salas de aulas da faculdade. Para que o direito atue como uma ferramenta emancipadora e de transformação social, visando atender aos anseios da coletividade, é preciso pensar em modificações no padrão vigente.

Apesar das consideráveis críticas, a universidade ainda se apresenta como um espa-ço de debate mais amplo e aberto quando comparada com o ambiente profissional. Além disso, é oportuno levar o questionamento ao público ainda em formação intelectual, pois são estes que comporão o corpo profissional no futuro. Mostra-se muito propício, por-tanto, buscar a transformação do entendimento e do uso do direito através da mudança no ensino superior.

6. Uma nova forma de ensino: a educação intercultural

Uma vez descrito o paradigma técnico-formal que domina no ensino do direito, revela-se a importância de projetar alternativas visando a construção de um modelo mais concreto, engajado, democrático e plural.

Nesse sentido, a interculturalidade, entendida como o espaço de encontro e in-teração entre culturas diversas, aparece como uma proposta para a pedagogia do século XXI. A aplicação desse novo paradigma educacional nas escolas ao redor do mundo, principalmente na América Latina, tanto no ensino básico e médio quanto no superior, é crescente e os resultados que se apresentaram revelam uma verdadeira revolução com relação ao método tradicional. Por privilegiar uma postura dialógica e aberta, o ensino intercultural é uma abordagem que se mostra em conformidade com o cenário global de conflitos sociais e ascensão de novos sujeitos de direito e suas necessidades, assunto esse de alta pertinência e importância para o estudo jurídico.

7. Definindo interculturalidade

O termo interculturalidade, ainda que corriqueiro no linguajar acadêmico e popular, é mo-tivo de muita divergência quanto à sua definição. “Hoje em dia falar de interculturalidade nos remete a uma série de conceitualizações [sic], as quais vão tomando forma desde o contexto de onde ela se apresenta.”19 Essa possibilidade de interpretações diversas expres-sa também um contraste de ideologias que delas podem derivar, como orienta Catherine Walsh:

19 GUZMÁN, Boris Ramírez. Colonialidade, Interculturalidade e Educação: Desdobramentos na Relação do povo Mapuche e o Estado do Chile. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação)-Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011. Disponível em: < https://repositorio.ufsc.br/handle/ 123456789/94931 >. Acesso em: 15 dez. 2013, p. 51.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina252

Dentro do debate sobre a interculturalidade estão em jogo perspectivas que, por um lado, buscam naturalizar e harmonizar as relações culturais a partir da matriz hegemônica e dominante (o centro, a verdade ou a essência universal do Estado nacional globalizado). Pelo outro lado, denunciam o caráter político, social e conflitivo dessas relações.20

Verifica-se, portanto, a polaridade de orientações políticas que a interculturalidade pode representar: um pensamento neoliberal que busca apaziguar e silenciar as diferenças e seus conflitos; ou uma perspectiva crítica de afirmação dos contrastes visando o diálogo cultural para enriquecimento mútuo. Nesse sentido, Boris Ramírez Guzmán, diferencian-do os termos interculturalidade (matriz progressista) e multiculturalidade (matriz conser-vadora), afirma que:

[...] o Multiculturalismo se refere a uma multiplicidade de culturas, sem que necessariamente tenham uma relação entre elas. Marca-se dentro de uma lógica de “Interculturalidade funcional”, funcional no sentido que desprende uma série de reivindicações identitárias [sic] e de inclusão, mas sempre amparadas dentro de lógicas históricas de subalternização, como seria o Estado (monocultural) e o Mercado (neoliberal), pois não toca as causas das relações de assimetria engendradas por séculos e não propõe uma mudança das regras do jogo tampouco.21

Ao contrário da interculturalidade de caráter conservador, a perspectiva crítica consiste em um campo aberto, plural e dialógico de troca constante de saberes e atividades culturais, promovendo o crescimento de todos os envolvidos. Nadir Esperança Azibeiro, trabalhando com projetos sociais de educação intercultural, adota essa leitura progressista do termo, defendendo seu uso:

Para além de uma proposta idealista de convivência pacífica, a interculturalidade, sob este ponto de vista, coloca-se como uma proposta de produção molecular e cotidiana de espaços, tempos e subjetividades plurais, movendo-se no terreno do plurilinguajamento [sic], do polifônico, do dialógico.22

20 WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y (de)colonialidad: Ensayos desde Abya Yala. Quito: Ed.Abya-Yala, 2012. p. 24, tradução nossa.21 GUZMÁN, 2011, op. cit., p. 58.22 AZIBEIRO, Nadir Esperança. Educação Intercultural e Comunidades de Periferia: limia-res da formação de educador@s. 2006. 338 p. Tese (Doutorado)-Universidade Federal de Santa Ca-tarina, Florianópolis, 2006. Disponível em: < https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/89448 >. Acesso em: 15 dez. 2013. p. 247.

Ensino intercultural do direito: uma alternativa ao método tradicional 253

Por promover o pensamento crítico e ensejar a construção do conhecimento de forma democrática e participativa, a interculturalidade se apresenta como proposta viável para a remodelação da pedagogia tradicional. Quanto ao ensino superior, principalmente ao curso universitário de direito, esse método inovador tem o potencial de transpor o for-malismo e as limitações do positivismo jurídico e, com isso, romper com a cultura elitista e desengajada com a sociedade que marcou a história dessa formação acadêmica.

8. Os sujeitos da interculturalidade

Não basta apenas proporcionar o encontro de diferentes culturas que vivem à margem da sociedade de forma institucionalizada e através de um pretexto de uma igualdade abstrata, ignorando a diferença de relações de poderes (político, econômico, social, institucional, técnico-intelectual etc.) que há entre elas. É esse o erro que é reproduzido pela intercultu-ralidade de matriz conservadora (identificada, por vezes, ao multiculturalismo), o que, por consequência, cria ainda mais dominação por parte da cultura dita central (eurocêntrica, liberal e controladora das esferas de poder) sobre as demais. Guzmán, denunciando o mecanismo opressivo desta prática (associada ao multiculturalismo), adverte:

A idéia [sic] de multiculturalismos neste sentido também se apresenta como uma estratégia de controle social, pois que a proposta está dada desde as cúpulas de poder, como o são o aparato do estado e organizações próprias do poder liberal global, que sob a concepção instaurada da globalização, propõem e projetam políticas para a diversidade, que alienam a particularidade, através de estratégias de inclusão que silenciam as especificidades da diferença, professando valores de respeito e tolerância.23

É necessário, portanto, focalizar a interculturalidade em um tipo específico de sub-jetividade cultural: as minorias políticas marginalizadas e historicamente subjugadas. A pedagogia intercultural se orienta, então, nas formas de vida e saberes dos oprimidos. No campo pedagógico, esses sujeitos desempenham um papel fundamental de crítica e con-traposição sobre a lógica hegemônica.

Referimo-nos a uma práxis pedagógica crítica, intercultural e descolonizadora que pretende pensar não só “desde” as lutas dos povos historicamente subalternizados, senão também “com” sujeitos, conhecimentos e modos distintos de estar, ser e viver, dando um giro sobre a uninacionalidade [sic] e monoculturalidade [sic] fundadora da empresa educativa e sua razão moderno-ocidental-capitalista [...].24

23 GUZMÁN, 2011, op. cit., p. 58.24 WALSH, 2012, op. cit., p. 176, tradução nossa.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina254

O modelo de ensino dialógico desenvolvido por Paulo Freire, pedagogo brasileiro de grande renome internacional, é um exemplo de atuação nesse sentido. A respeito disso, Maria Aparecida Macedo Pimentel defende que Freire: “Não construiu uma pedagogia para o oprimido ou sobre o oprimido, mas uma pedagogia do oprimido, uma concepção de proposta político-pedagógica de educação com base na perspectiva dos dominados.”25

Essa valorização da subjetividade das minorias se motiva, principalmente, pela necessidade de conscientização da situação de subalternidade que se encontram. Para promovê-la, Paulo Freire propõe uma construção do conhecimento fundada no reco-nhecimento da historicidade daqueles envolvidos no processo através uma abordagem problematizadora. Parte-se, então, da condição de inconclusão dos sujeitos e, ainda além, da consciência de sua inconclusão para provocar a curiosidade e fomentar a descoberta de seu lugar no mundo, possibilitando a transformação. Essa metodologia se contrapõe com o já mencionado viés “bancário” da educação atual, rompendo, portanto, com o formalismo e imobilismo desta. “Desta forma, aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens se ‘apropriam’ dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de ser transformada por eles.”26

O reconhecimento da subalternização e da condição do oprimido enquanto sujeito transformador da própria história é pressuposto essencial para a interculturalidade que se pretende crítica. Não se trata apenas de uma função atribuída aos sujeitos oprimidos, mas também uma responsabilidade de quem ocupa as posições e cargos de autoridade, prin-cipalmente no campo científico e intelectual. Afinal, “Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de homens puros, donos da verdade e do saber, para quem todos os que estão fora são ‘essa gente’, ou são ‘nativos inferiores’?”27

Dessa forma, a interculturalidade se dá em um plano de igualdade concreta, na qual as culturas não são vistas de modo hierárquico. O diálogo que acontece nesse contexto reflete a rica diversidade cultural e proporciona o enriquecimento de todas as esferas da sociedade.

9. Fundamentos e princípios de uma educação intercultural

A educação intercultural, do nível básico ao superior, deve ser orientada por princípios democráticos e pluralistas. Sem eles, o projeto pode facilmente ser convertido para sua modalidade acrítica e conservadora, impedindo a real transformação pedagógica que se pretende.

25 PIMENTEL, Maria Aparecida Macedo. A Pedagogia do Oprimido: Uma proposta pedagógica atual? Ou utopia do passado? A educação como prática da liberdade. In: Scientia FAER, Olímpia, ano 1 vol. 1, p. 54-64. 2009. Disponível em: < http://www.faer.edu.br/revistafaer/edicao1.asp >. Acesso em: 15 dez. 2013. p. 58.26 FREIRE, 1998, op. cit., p. 74.27 FREIRE, 1998, op. cit., p. 80.

Ensino intercultural do direito: uma alternativa ao método tradicional 255

Parte-se da ideia de que a interculturalidade é um projeto de respeito e incentivo ao relativismo das culturas, mas também se propõe universal. Apesar de parecer antagônico, esses dois princípios não são conflitantes, pois, como orienta Raúl Fornet-Betancourt, a interculturalidade:

[...] propõe buscar a universalidade desligada da figura da unidade. [...] Por esta razão, a ‘filosofia intercultural’ procura, neste nível, contribuir para refazer a idéia [sic] da universalidade no sentido de um programa regulativo [sic] centrado no fomento da solidariedade consequente [sic] entre todos os ‘universos’ que compõem nosso mundo.28

O relativismo que fundamenta a pedagogia intercultural se consagra na forma li-bertária e emancipadora que propõe sua filosofia. Não mais servindo como repetição de uma concepção estrangeira, os pensamentos filosóficos devem voltar seus olhos às particularidades do regional. Fornet-Betancourt afirma que “[...] não há e não pode haver diálogo onde reina ainda o monólogo de uma filosofia que escuta seu próprio eco, isto é, onde filosofia se confunde com a racionalidade.”29 Nesse sentido, o autor destaca a Filo-sofia da Libertação como exemplo de um pensamento autêntico e local que rompe com a lógica da reprodução da dominante filosofia europeia (colonização intelectual), mas que, ainda assim, não se nega ao diálogo intercultural.

É cabida também uma mudança epistemológica. A interculturalidade rompe com o modo de pensamento europeu, buscando “[...] uma forma de racionalidade que trans-passe os limites atuais da nossa teoria do entender e nos possibilite, assim, ver o mundo e a história a partir da perspectiva da ainda periférica exterioridade do outro.”30 A “verda-de” deve ser encarada, portanto, não mais como um fato imutável e cristalizado, fixo no seu tempo, mas como um processo a ser construído coletivamente por meio do diálogo. Trata-se de uma “[...] reformulação de nossos meios de conhecimento a partir do pleito das vozes da razão ou das culturas no marco da comunicação aberta, e não pela recons-trução de teorias monoculturalmente constituídas.”31 Signos, ícones e dogmas perdem seu caráter universal e apriorístico, ampliando e enriquecendo, assim, as possibilidades de interpretação como explica Nadir Azibeiro:

Como alternativa a isso é que se busca a invenção de entrelugares [sic] em que outras relações tornem-se possíveis. Nestes espaços liminares, as diferenças não se diluem imediatamente num caldo comum, nem são hierarquizadas, tratadas como superiores ou inferiores, melhores ou piores, mas permanecem

28 FORNET-BETANCOURT, Raúl. Questões de Método para uma Filosofia Intercultural a partir da Ibero-América. São Leopoldo: UNISINOS, 1994. p. 12.29 Ibid., p. 14.30 Ibid., p. 18.31 Ibid., p. 19.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina256

em tensão, em ebulição, fazendo com que as mesmas palavras, as mesmas imagens, os mesmos símbolos, não apenas produzam diversas interpretações, mas se mantenham ambivalentes. E assim mantenham também a flexibilidade, a possibilidade de continuar interagindo e mudando, des-locando [sic] relações de poder.32

Essa indefinição acerca da “verdade” repercute também nos sujeitos envolvidos na dinâmica intercultural. O contato com a cultura diversa não deve ser dado por uma relação de assimilação, pois essa postura “[...] não se cumpre como conhecimento que re-conhece [sic] no outro uma fonte de sentido de igual originalidade e dignidade.”33 O res-peito à pluralidade de racionalidades culturais se concretiza nessa atitude de polivalência de conceitos e verdades, mantendo-se, assim, constantemente receptivo ao diálogo.

A intenção de diálogo que caracteriza esta experiência de intercultura supõe atitude de respeito pelos valores d@ [sic] outr@ [sic]. Difere, desse modo, do comportamento daquele que se sabe, se sente ou se coloca como dono da verdade e quer ajudar@ [sic] o outr@ [sic] a sair da ignorância ou das trevas.34

É esse posicionamento de alteridade que torna possível a realização da igualdade entre as culturas, princípio fundamental e imprescindível para a interação intercultural. O diálogo não hierarquizado e toda a filosofia aqui descrita são os pressupostos da intercul-turalidade na sua modalidade crítica.

É através dessa epistemologia livre, flexível e aberta que racionalidades até agora segregadas podem fazer-se ouvir e participar da construção coletiva do conhecimento. A interculturalidade é um meio de reconhecer e realçar formas de pensar diferentes do tradicional, promovendo, assim, a igualdade e a pluralidade cultural-intelectual.10. Experiência de educação intercultural na América Latina

A América Latina apresenta uma longa história de opressão e subalternização de cultu-ras. A chegada do europeu e o estabelecimento de suas colônias, no campo filosófico e intelectual, implicaram na supressão de toda forma de intelectualidade ancestral indígena. Essa racionalidade autóctone foi logo tida como irracional, perversa, bárbara, incivilizada e inválida pelo conhecimento colonizador, o que levou a sua marginalização e negação.

Apesar do intento de diversos intelectuais dos mais diversos períodos históricos de denunciar a intolerância e a perseguição ao modo de vida indígena, foi somente no século XX que as filosofias e racionalidades nativas foram trazidas para pauta nas discus-sões políticas que visavam o diálogo intercultural. Esse silêncio de quase quinhentos anos

32 AZIBEIRO, 2006, op. cit., p. 246.33 FORNET-BETANCOURT, 1994, op. cit., p. 18.34 AZIBEIRO, op. cit., p. 234.

Ensino intercultural do direito: uma alternativa ao método tradicional 257

deve-se à negação da condição de sujeito capaz e consciente aos povos indígenas, fruto do preconceito que se fundava na racionalidade europeia da época.

Iniciou-se, então, um entrave com as agências conservadoras e eurocêntricas do Estado pela defesa, valorização e disseminação dos saberes e culturas ancestrais. Adotou-se a pedagogia como ferramenta para tal transformação social, pois, como explica Cathe-rine Walsh:

Não é estranho que um dos espaços centrais desta luta seja a educação, como instituição política, social e cultural: o espaço de construção e reprodução de valores, atitudes e identidades e do poder histórico-hegemônico do Estado.35

O projeto pedagógico de Paulo Freire, visto até hoje como modelo de renome mundial em educação revolucionária e transformadora, está ligado aos primeiros debates latino-americanos sobre um ensino intercultural de teor crítico (década de 1960). Como já mencionado, essa proposta se iniciava com a conscientização da opressão das comunida-des marginalizadas para promoção da transformação, rompendo com a dominação que se encontram imersas. Maria Aparecida Pimentel enfatiza a importância que o processo de reconhecimento da opressão assume na pedagogia freireana:

No exercício permanente da capacidade de conhecer-se, através da criticização das relações consciência-mundo, o sujeito contribui para a transformação da realidade à medida que transforma também a si mesmo.36

Apesar dos surpreendentes resultados e da repercussão mundial, a aplicação do modelo freireano de ensino foi interrompida e reprimida pelas ditaduras latino-americanas que se instauraram entre as décadas de 1960 e 1970. Tanto no Brasil quanto nos demais países do continente, o projeto de conscientização dos grupos subalternizados entrava em conflito com a legitimação do regime ditatorial militar. “Nenhuma ‘ordem’ opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer ‘Por quê?’”37 Nessa questão, cabe transcrever o enfoque histórico-político de Pimentel:

Porém, o golpe de estado de 31 de março de 1964 atingiu o movimento de educação popular [...] temendo a conscientização, que abre caminho à expressão das insatisfações sociais, porque essas são componentes reais de uma situação de opressão.38

35 WALSH, 2012, op. cit., p.156, tradução nossa.36 PIMENTEL, 2009, op. cit., p. 58.37 FREIRE, 1998, op. cit., p. 75.38 PIMENTEL, op. cit., p. 54.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina258

Apesar da repressão, esse método pedagógico seguiu latente, sendo estudado na-cionalmente à margem da autorização do regime político e influenciando intelectuais da área a nível internacional. Após o reestabelecimento da democracia no Brasil, o pensa-mento de Freire pode enfim ser debatido novamente, voltando à pauta das discussões interculturais.

A abertura política e o consequente fim das ditaduras militares em toda Amé-rica Latina permitiu a retomada das discussões sobre pedagogia intercultural. Confor-me Catherine Walsh (2012), sujeitos historicamente reprimidos puderam fazer-se ouvir e reivindicaram um ensino atento à suas necessidades. A partir dessa abertura política, desenharam-se por toda América Latina projetos denominados Educação Intercultural Bilíngue (EIB), que pretendia fornecer uma base para o diálogo através do ensino do idioma “oficial” do Estado em comunidades indígenas.

Entretanto, o projeto EIB revelou-se em algumas ocasiões como uma ferramenta dominadora das esferas hegemônicas da sociedade, direcionada para atender as necessida-des do capital internacional de inclusão forçada das culturas paralelas. “[...] o intercultural, então, marca o relacionamento que os alunos indígenas devem buscar com a sociedade e com a língua dominante, e não vice-versa.”39 Fica claro, assim, que a EIB depositava toda a responsabilidade da comunicação intercultural sobre os povos periféricos enquanto não demandava esforço algum da sociedade dita “central”.

Portanto, a oficialização da EIB representou sempre uma faca de dois gumes: de um lado está o reconhecimento oficial das línguas, culturas e saberes indígenas e o direito de uma educação própria e, do outro lado, a instalação de mecanismos de gestão, controle e regulação, (...) e de seu sentido comunitário, sociopolítico e ancestral.40

Esse processo se fortaleceu na década seguinte. Para a América Latina, os anos 90 ficaram caracterizados pelas intensas políticas neoliberais adotadas pelos governos. O en-sino intercultural não se manteve ausente a esse processo: as reformas políticas no campo da pedagogia se voltaram mais para “[...] adequar a educação às exigências de moderniza-ção de desenvolvimento do que para ‘interculturalizar’ o sistema educativo.”41

Na virada para o século XXI, o projeto de interculturalidade se dividiu em duas linhas. A primeira delas dá continuidade às políticas anteriores de “multiculturalismo” (interculturalidade conservadora): se proclama engajada com o desenvolvimento social e humano, mas revela-se vinculada à lógica liberal e ao capitalismo internacional. “[...] tal perspectiva e esforço pretende, também, responder [...] à necessidade –social e econômi-ca– de assentar um novo sentido comum compatível com o mercado.”42

39 WALSH, 2012, op. cit., p. 157, tradução nossa.40 Ibid., p. 159, tradução nossa.41 Ibid., p. 161, tradução nossa.42 Ibid., p. 165, tradução nossa.

Ensino intercultural do direito: uma alternativa ao método tradicional 259

Em contraposição está a segunda corrente. Vinculada com a interculturalidade crítica e transformadora, essa variante procura trazer o conhecimento e a cultura de co-munidades historicamente oprimidas (que, no contexto latino-americano, revela-se prin-cipalmente através dos povos indígenas e quilombolas) para a o centro do debate com a “cultura dominante”. As políticas de educação adotadas pelo México são exemplos desse fenômeno:

México foi um dos primeiros [países] a por em prática, em 2001, um novo modelo educativo desde o primário até a universidade no qual se estuda e se privilegia a interculturalidade. A criação de universidades interculturais por parte dos Estados Mexicanos desde 2003 é parte de tal iniciativa; contudo, em sua conceituação podemos testemunhar a contínua associação do intercultural com o indígena e com o programa “especial”.43

Como orienta a autora (2012), o programa universitário intercultural mexicano, bem como modelos semelhantes de demais países sul-americanos como Bolívia e Equa-dor, visa o ensino e a pesquisa de temas relacionados à forma de vida, história, cultura, racionalidade e saberes indígenas e autóctones. Através desse aprendizado, busca-se des-pertar nos profissionais a valorização da diversidade étnica e o compromisso com a alte-ridade das culturas, além da descolonização do pensamento eurocêntrico. Dessa forma, a interculturalidade é projetada para além do espaço universitário, alcançando os mais diversos campos profissionais e a sociedade.

Conclusão

Para o curso de direito, o projeto de uma pedagogia intercultural pode significar im-portantes mudanças. Contrapondo-se com o ensino tradicional, a interculturalidade se desenvolve através da diversidade de culturas e do diálogo entre elas. Esse pluralismo pos-sibilita ao discente uma maior compreensão dos fenômenos sociais presente no cotidiano, deslocando-os de suas torres de marfim de elitismo intelectual e inserindo-os no mesmo contexto dos sujeitos oprimidos.

A interculturalidade crítica pode representar, portanto, a superação do formalismo e do positivismo jurídico. Essa troca de paradigmas possibilita o desenvolvimento de uma concepção humanística concreta (não meramente retórica) do direito e dos juristas e, con-sequentemente, importantes avanços para os sujeitos historicamente marginalizados.

Espera-se, assim, que esse novo paradigma educacional cresça em importância, aplicação e resultados para possibilitar uma cultura jurídica mais engajada e socialmente atuante.

43 WALSH, 2012, op. cit., p. 166, tradução nossa.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina260

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PARTE IVEL ESTADO EN AMÉRICA LATINA

263

LO “PLURINACIONAL” COMO RETO HISTORICO: AVANCES Y RETROCESOS DESDE LA EXPERIENCIA BOLIVIANA

M. Vianca Copa Pabón1*

Introducción

El artículo primero de la Constitución boliviana, establece que: “Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario […] Bolivia se funda en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país”. La configuración “Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario” (sin comas), refleja la transición constitucional, social y política del Estado Boliviano. En pala-bras sencillas, esta transición, a nuestro entender, busca el “vuelco” de lo viejo a lo nuevo, de lo ajeno a lo propio; de un Estado Social de Derecho anclado en el “Estado Nación” republicano, hacia un Estado Plurinacional Comunitario, fundado en la pluralidad y el pluralismo de las naciones y pueblos, que hacen a la diversidad boliviana.

En este sentido, lo “Plurinacional” en la Constitución boliviana, literalmente y te-óricamente hablando, expresa un momento constitutivo de “retorno” hacia una “forma propia de estatalidad”. De ahí que el preámbulo de la constitución sostiene que: “Deja-mos en el pasado el Estado colonial, republicano y neoliberal. Asumimos el reto histórico de construir colectivamente el Estado…”2. Consecuentemente, lo Plurinacional, desde la voluntad del constituyente, busca el trastrocamiento del Estado Nación colonial. Una ruptura con el liberalismo, nacionalismo (falas) y el multiculturalismo. Ahora son y deben ser las na-ciones, los pueblos y las diversidades los que reconozcan al Estado y constituyan lo plurinacional y no a la inversa.

1. Lo plurinacional desde lo histórico

Para comprender la Constitución Boliviana, hay que ubicarla dentro del marco histórico, eso requiere recurrir a la memoria colectiva de su pueblo. Aquella que está escrita junto a los paisajes andino-amazónicos de las naciones originarias de Bolivia. Para ello, es justo hacer referencia a los más de cinco siglos de guerra anticolonial, por la liberación del Qullasuyu3; desde las rebeliones de Manco Inca (1535-1544), Sairi Tupaj, Inca Titu Cusi

1 Abogada constitucionalista. Trabajó en el Tribunal Constitucional Plurinacional de Bolivia.2 Párrafo cuarto del preámbulo de la Constitución Política del Estado de Bolivia. 3 Los indios e indias no soñaban con Republiquetas de ninguna clase, buscaban la restitución de su propio Estado. Por ello la “independencia” de 1825 donde nace Bolivia, para los Pueblos y

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina264

Yupanqui, Tupaj Amaru, hermanos Tomas, Damasco y Nicolás Katari, Julián Apaza (Tu-paj Katari) y Bartolina Sisa (1781), Pablo Zarate Willka, (1896-1900), Santos Marka T’ula, Apiguaiki Tumpa (1892), Leandro Nina Qhispi (1930) 4; las marchas por el territorio y la dignidad de tierras bajas (1990), guerra del agua en Cochabamba (2000) y la guerra del gas (2003).

Referirse a la guerra anticolonial, no es una intensión lírica o sólo hacer la reme-moración de la histórica clásica; sino, es rescatar las significaciones profundas que estas tienen para el presente. Pues son estas luchas y movilizaciones sociales anticoloniales que han terminado por quebrar el sistema y el Estado colonial (en crisis), haciendo posible el escenario constituyente. Por ello, “no hay que interpretarlo ni como un hecho milenarista ni como un hecho simplemente religioso, o un acto desesperado de “nativismo”, sino como una re-actualización del proyecto histórico…”5

En este orden, lo “plurinacional”, es resultado de una re-actualización permanente del proyecto histórico de liberación de las naciones y pueblos indígenas, en el que la Asam-blea Constituyente, se convierte en un escenario e instrumento formal para la restitución y reconstitución de lo “propio”, en el marco de una nueva Constitución. De ahí que Prada sostiene que: “El Estado Nación ha muerto, nace el Estado Plurinacional, comunitario autonómico ¿Cuáles son las condiciones, las características, la estructura, los contenidos y las formas institucionales de este Estado? Uno de los primeros rasgos que hay que anotar es su condición plurinacional, no en el sentido de multiculturalismo liberal, sino en el sentido de descolonización, en el sentido de la emancipación de las naciones y pueblos indígenas originarios (…)”6.

Prada se refiere al sentido descolonizador, y la interrogante es: ¿Cuál es ese senti-do? Ese sentido es el carácter propio, que emerge del pensamiento indio; cuyas significa-ciones y sentidos yacen de las experiencias, vivencias y luchas de los pueblos y naciones originarias, que ahora conforman lo “plurinacional” del Estado Boliviano. Y el preám-bulo constitucional tiene ese horizonte: “El pueblo boliviano de composición plural, desde la pro-fundidad de la historia, inspirado en las luchas del pasado, en la sublevación indígena anticolonial, en la independencia, en las luchas populares de liberación, en las marchas indígenas, sociales y sindicales, en las guerras del agua y de octubre, en las luchas por la tierra y territorio, y en la memoria de nuestro mártires, construimos un nuevo Estado”7.

Naciones originarias significó la continuidad y profundización del sistema colonial. 4 REINAGA BURGOA, Ramiro. Tawantinsuyu, cinco siglos de guerra queswaymara contra España. Chukiapu, Kollasuyu: Centro de coordinación y promoción campesina MINK’A, 1978. p. 335-337.5 MAMANI, Pablo; CHOQUE, Lucila; DELGADO, Abraham; Reconstitución de Tupaj Ka-tari y Bartolina Sisa. El Alto y México-D.F.: Willka y textos rebeldes, 2010.6 PRADA ALCOREZA, Raúl. Horizontes de la Descolonización y el Estado Plurinacio-nal: ensayo histórico y político sobre la relación de crisis y el cambio. La Paz: Soporte magnético, 2011. pp. 57-707 Párrafo segundo del preámbulo de la Constitución Política del Estado de Bolivia.

Lo “plurinacional” como reto histórico 265

2. Desde el pensamiento indio

Cabe hacerse la siguiente interrogante: ¿Existe el pensamiento propio? Al respecto nos remitimos a uno de los pensadores indios más influyentes de la América India, a Fausto Reinaga. Según este pensador el pensamiento propio, yace en el pensamiento indio, que es un pensamiento amáutico. Dicho de otro modo, existe el pensamiento indio, éste es el pensamiento propio o amáutico, algo que no es importado, ni copia de otro. Al respecto, Reinaga dirá que “El pensamiento amáutico es la concepción cósmica del universo y la vida. Para el pensamiento amáutico el hombre piensa, la hormiga piensa, el árbol también (…) ni el hombre ni la hormiga ni el árbol piensa sin el sol (…) el hombre es la conciencia del cosmos (…) en cambio en la con-ciencia de occidente, el hombre es un valor en sí y para sí (…) Ha convertido al Sol, la Tierra, el Agua, el Aire… en mercancía”8. La síntesis del pensamiento de Fausto se resume en “(…) que el hombre es Cosmos. El hombre ajeno al cosmos no existe. Su mundo físico y su mundo espiritual son la presencia y expresión del Cosmos. Por su forma y fondo el hombre es la síntesis del Cosmos. La conciencia del cosmos”9. Para el pensamiento indio-amáutico el ser humano se concibe como una parte de la “totalidad” de la Madre Tierra y el Cosmos. En cambio en la concepción del pensamiento occidental el ser humano es el centro de la existencia. El “ser” es el hombre, es el hacedor del pensamiento y la razón10. De ahí que “La razón en su sentido estricto, en cuanto logos o ratio, se refería siempre esencialmente al sujeto, a su facultad de pensar”11, y este sujeto es siempre el ser humano, no así otros seres vivos. Por tanto, como el “sujeto” es el humano, el humano piensa a la naturaleza y se piensa así mismo. Es él quien le dota de sentido e interpretación a las demás cosas (sujeto-objeto). De este modo el pensamiento y el sen-tido, constituyen el “contenido de la conciencia y la voluntad” (Kelsen y Weber); “por lo tanto, quien da sentido tiene el poder“12 y cualidad de ser pensante. Siendo así, el humano piensa a la naturaleza y al cosmos, pero en sentido de dominación (poder).

En suma lo plurinacional, desde el pensamiento indio así como el pensamiento occidental, se encuentran reflejados en el texto Constitucional, en varios artículos, como por ejemplo, los artículos 1, 2 y 8. En estos artículos se pueden advertir dos pensamien-tos; la occidental y la india. Así en el artículo 8 por ejemplo, se constituyen los principios y valores del Estado Plurinacional de las tres visiones (pueblos indígenas de tierras altas, intermedias y bajas), aún es más plural porque toma en cuenta el pensamiento de las diferentes naciones y pueblos indígenas. Por lo tanto, el sentido descolonizador, no está aislado de lo plurinacional, porque éste es resultado de la descolonización.

8 REINAGA, Fausto. Pensamiento Amáutico. Bolivia: Editorial “UNIDAS” S.A., 1978. pp. 26. 9 REINAGA, Fausto. La Razón y el indio. La Paz: 1978b. p. 203.10 Ibid., p. 207. 11 HORKHEIMER, Max. Crítica de la razón instrumental. Buenos Aires: Sur, 1973.12 CORREAS, Oscar. Crítica a la ideología jurídica. Ensayo sociosemiológico, México, UNAM-CEIICH, Coyoacán, 2005. p. 45

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina266

3. Lo plurinacional desde el sentido descolonizador

Como ya dijimos, lo plurinacional siempre está vinculada a la descolonización. Y éste tiene a su vez su sentido histórico propio. De manera que cabe la siguiente interrogante: ¿Cuál es el sentido de la descolonización boliviana? A lo cual desde el pensamiento indio, diríamos que la descolonización significa liberación. Cuyo sentido histórico-actual, emerge de la tesis de las dos Bolivias: “En el Kollasuyu de los inkas, desde 1825 hay dos Bolivias: Bolivia europea y Bolivia india (…) la nación india no tiene Estado”13 (1971). De la misma forma, la tesis política de 1983 de la Confederación Sindical única de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSU-TCB) expresa: “No puede haber una verdadera liberación si no se respeta la diversidad plurinacional de nuestro país y las diversas formas de autogobierno de nuestro pueblo (CSUTCB-1983)”14. Para la Bolivia india la descolonización es igual a la liberación de las naciones históricamente ex-cluidas.

Por ello la descolonización, y consecuentemente la liberación de los pueblos exclui-dos, es un proceso difícil, que implica luchas y constantes enfrentamientos al interior del propio Estado Colonial, Porque, en términos de Fanón: “…cualesquiera que sean las rúbricas utilizadas o las nuevas fórmulas introducidas, la descolonización es siempre un fenómeno violento”15. Además, la descolonización “…no pasa jamás inadvertida puesto que afecta al ser, modifica fundamen-talmente al ser, transforma a los espectadores aplastados…”16. Al respecto, el inka Ruphaj nos dice: un pensamiento se saca con otro pensamiento17. A este habría que añadir, al constituciona-lismo liberal e individualista se le sustituye con un constitucionalismo descolonizador y comunitario atinente a una sociedad plural.

4. Lo plurinacional en la asamblea constituyente

El proyecto de Estado de las naciones y pueblos indígenas, presentado ante la Asamblea Constituyente, está sustentada en la descolonización del Estado (y lo Plurinacional está vinculado siempre, como ya dijimos, a la descolonización). Si revisamos las actas y docu-mentos de la Asamblea Constituyente encontramos, algunos entendimientos como:

El Estado Plurinacional es un modelo de organización política para la descolonización de nuestras naciones y pueblos, reafirmando, recuperando y fortaleciendo nuestra autonomía territorial, para alcanzar la vida plena, para vivir bien (…)18.

13 REINAGA, Fausto. Tesis india. La Paz: 1971. pp. 2714 CUSICANQUI RIVERA, Silvia. Oprimidos pero no vencidos: luchas del campesinado Ay-mara y Qhechwa 1900-1980. La Paz: La mirada salvaje. 1984. pp. 239-241.15 FANON, Frantz. Los condenados de la tierra. México-D.F.: FCE, 2007. p. 30.16 Ibdi., p. 30.17 REINAGA, Fausto. La Revolución Amáutica. La Paz: 1981. pp. 74 18 Vicepresidencia del Estado al Tribunal Constitucional Plurinacional. 2012. Enciclopedia Histórica Documental del Proceso Constituyente Boliviano. T. III V. I. La Paz: p. 66.

Lo “plurinacional” como reto histórico 267

El proyecto de “Estado Plurinacional”, debatida en la Asamblea Constituyente, es propuesto por los pueblos indígenas. A continuación, de las actas deliberativas, se extrac-tan algunas intervenciones de los constituyentes que son fundantes en la constitución del carácter “Plurinacional” del Estado:

Acta de sesión de la Comisión Visión País - del 25 de abril de 2007. Constituyente Félix Cárdenas.- ¿Quién va reconocer al otro en este País? ¿Son las minorías, las que van a reconocer e incluir a las mayorías? y ¿Quién es el Estado? Todas las instituciones son coloniales, la constitución tiene características coloniales, por lo tanto, el tema de fondo, es la descolonización hay que destruir el Estado colonial. Continuar con todas las instituciones tal como están, es no cambiar nada19.

Félix Cárdenas, entiende la cuestión del Estado atinente a la descolonización. Y es la base. Posteriormente se introducirá a la plurinacionalidad:

Acta de sesión de la Comisión Visión País - del 4 de mayo de 2007. Constituyente Félix Cárdenas.- Ninguna fórmula que ha venido de otro lado ha solucionado los problemas. Primero se trataba de liquidar al indio en la Colonia, luego civilizarlo, incluirlo, interculturalizar al indio. ¿Cómo buscamos algo viable? En el mundo se ha aceptado la existencia de culturas-naciones, lo moderno es reconocer la pluriculturalidad, la plurinacionalidad. Bolivia no es una nación: no tiene idioma propio, religión propia, cultura propia…¿Por qué los aimaras, no piden autonomías? ¿A quiénes vamos a pedir? ¿Quién nos va dar? Al revés, nosotros reconocemos al Estado y le estamos dando una oportunidad más de vivir. Creo superado el tema de Bolivia una sola nación. Ni el diccionario nos interpreta a nosotros. Cuando hablamos de lo Plurinacional, no es repartirnos el territorio20.

Otra de las exposiciones fundamentativas, sobre la constitución del Estado Pluri-nacional en la Asamblea Constituyente, es la de la constituyente Esperanza Huanca:

Acta de sesión de la Comisión Visión País - del 09 de mayo de 2007. Constituyente Esperanza Huanca.- “La Ley (Constitución) no ha servido a los pueblos originarios. Por ello los pueblos originarios han estado condenados a la pobreza. No podemos engañar, no podemos tapar el sol con un dedo. La actual Constitución Política del Estado no sirve. No nos vamos a cansar de decir que no hemos participado en su redacción, nuestros padres. En cada uno

19 Ibid., p. 138.20 Ibid., p. 146.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina268

de nosotros esta la historia. Queremos redactar una nueva Constitución acorde a nosotros, la copia no sirve y eso nos ha llevado al caos. No vamos a permitir que los partidos políticos nos manejen. Nosotros somos los protagonistas, somos los dueños legítimos de estas tierras (…) ¿Qué es Estado Plurinacional? Aunque no es lo mismo nacionalidad al suyu, lo asumimos. Hablamos de Suyu, lo que ustedes llama nacionalidad; tenemos propios mecanismos, desde siempre, la política, la económica, salud, espiritualidad (…) Decimos los originarios de Bolivia es un Estado sin nación, manteniendo naciones originarias sin Estado, sin poder económico. Bolivia es heredado de Estructuras Coloniales, expresión de la invasión, el saqueo, el despojo, la exclusión. Por eso pedimos el cambio profundo, no de cambios a medias, queremos cambiar nuestra vida, queremos iguales oportunidades (…) Hay que descolonizarnos, es un proceso, algunos lo mantenemos, algunos no han podido aguantar la discriminación…21”

En la visión y pensamiento de los constituyentes de la Comisión Visión de País, de la Asamblea Constituyente; lo “Plurinacional” es el elemento configurador del nuevo Es-tado, que se materializará a partir de la “reconstitución” de las naciones y pueblos indígena originarios, y la descolonización del Estado Nación. Consecuentemente, es antagónico y opuesto al Estado Nación Colonial.

Finalmente, conforme las actas y documentos de la Asamblea Constituyente pode-mos resumir la Plurinacionalidad como la expresión sucinta de la diversidad de la realidad boliviana; cimentado en cuatro bases fundamentales: a) La “autodeterminación de los pueblos”, b) La “pluralidad” y el “pluralismo”, c) La “descolonización” y d) El horizonte del “Vivir bien”. Al respecto podemos sintetizar de manera breve en las siguientes defi-niciones:

AUTODETERMINACIÓN- 22: Expresada en la liberación de las naciones y pueblos indígena originario campesinos y la composición plural igualitaria en Órganos de poder del Estado.PLURALIDAD y PLURALISMO: Implica la restitución de sistemas (económicos, - políticos, jurídicos, culturales y lingüísticos) propios y su ejercicio igualitario, lo cual va más allá de mera coexistencia desigual.DESCOLONIZACIÓN: Expresada en la urgente necesidad de reconstitución, res-- titución, “igualación” y reparación histórica de las naciones y pueblos indígena ori-ginario campesinos. VIVIR BIEN: Modelo de vida, como base para superar el modelo liberal sobre la - que se cimentan las desigualdades sociales.

21 Ibid., pp. 168-172. 22 Termino incorporado en el Art. 290 del proyecto de Constitución aprobada en la Asamblea Constituyente y sustituida por “libre determinación” en el Congreso Constituyente. Art. 289 en la actual CPE

Lo “plurinacional” como reto histórico 269

5. Lo plurinacional ante las fracturas y el reordenamiento colonial (post-constituyente)

Lo plurinacional, más allá del cambio en la denominación del Estado –De la “República de Bolivia al Estado Plurinacional de Bolivia– y su refundación el 22 de enero de 2009; para su real aplicación y desarrollo constitucional exigía (y exige) la deconstrucción y el desmontaje del Estado Colonial; a partir de una nueva forma de ser y hacer leyes, que ins-tituyan y expresen las agendas y demandas históricas de las luchas anticoloniales y del pen-samiento indio, establecidas en la Constitución. Esto significa que las nuevas autoridades del Estado “Plurinacional”, no sólo son “nuevas” en términos literales, sino en términos ideológicos y políticos; lo que implica un cambio de mentalidad. A ello se complementa la de construir y consolidar el Estado Plurinacional desarrollando un nuevo orden legal, que permita la ruptura con el viejo sistema colonial.

Sin duda, el escenario político y social para los cambios legislativos, después de la promulgación de la nueva Constitución Política del Estado, tiende un manto apropiado, para que se desarrolle el paquete de “Leyes Fundamentales del Estado Plurinacional”; entre ellas, la Ley Marco de Autonomías, la Ley de Régimen Electoral, la Ley de Deslinde Jurisdiccional, la Ley Marco de la Madre Tierra. Sin embargo, estas normas en el proceso mismo reflejan un proceso contrario a la visión de país de la Asamblea Constituyente, con profundas fracturas al proyecto histórico expresado en la Constitución boliviana. Es decir, se retrocede y se fortalece al viejo estado, con mantos indígenas. De esta manera se ha escamoteado el poder a los indios, y el sentido descolonizador ha sido reducido a un mero discurso romántico.

Por ejemplo, la Ley Marco de Autonomías 031, a tiempo de establecer ciertos “re-quisitos” de acceso a la autonomía indígena originaria campesina (art.56), entre los cuales, se exige un “certificado de ancestralidad” emitido por el Ministerio de Autonomías, a ser definida sobre la base poblacional igual o mayor a 1.000 habitantes para pueblos minori-tarios (paradójicamente existe diversidad de pueblos indígenas en el oriente boliviano con menor población), los cuales acaban por liquidar y limitar el acceso a la autonomía, a la libre determinación y a la autodeterminación de las naciones originarias, desconociendo así la condición de pre-colonialidad establecida en el art. 2 de la Constitución boliviana.

En el ámbito del pluralismo jurídico igualitario establecido en el art. 179.II de la CPE; la Ley de Deslinde Jurisdiccional, limita el ejercicio y acceso en condiciones desigua-les a la jurisdicción indígena originaria campesina con respecto a la jurisdicción ordinaria, dejando a su competencia solo los casos de “bagatela”. Entonces, elimina cualquier in-tento de restitución y reconstitución de los sistemas jurídicos de las naciones originarias, dejando en la clandestinidad (ilegalidad) las prácticas de justicia y sistemas jurídicos que las comunidades aymaras, quechuas, guaranies, etc. Ya que históricamente estas naciones indígenas han venido aplicando su justicia desde tiempos milenarios; y, por supuesto con-tinuaran haciéndolo pese a la Ley de Deslinde Jurisdiccional 073.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina270

Asimismo en el ámbito del pluralismo político expresado en los arts. 11.II y 147 de la Constitución, éste termina subsumido en el art. 56 de la Ley de Régimen Electoral (Ley 026) que dispone la creación de siete circunscripciones especiales, que en la práctica han sido perforadas por el sistema democrático representativo liberal y occidental, pues en las elecciones cada partido político debe contar con su candidato indígena en cada circuns-cripción especial, sin considerar las formas de democracia comunitaria (rotación, turno, sucesión, entre otras). Al contrario, bebieron ser las organizaciones ancestrales, quienes postulen a sus candidatos sin la intermediación de los partidos políticos, que tienen origen netamente colonial.

Respecto al modelo de vida, del Vivir Bien o Suma Qamaña, insertada en el art. 8.II de la CPE, tuvo sus avances parciales en la Ley 071 de Derechos de la Madre Tierra, pro-mulgada antes del conflicto del TIPNIS, el 21 de diciembre de 2010. Sin embargo, luego de la marcha de los pueblos indígenas de Tierras Bajas, que se opusieron a la construc-ción de una carretera en medio del territorio del TIPNIS (Territorio Indígena y Parque Nacional Isiboro-Secure), y a cualquier consulta “previa”; en el parlamento se debatía el proyecto de Ley Marco de la Madre Tierra, que sufre varias modificaciones; promulgán-dose el 15 de octubre de 2012, la Ley 300 bajo la título de “Ley Marco de la Madre Tierra y Desarrollo Integral para Vivir Bien”; en la que se inserta la “visión de desarrollo integral”, en cuya disposición final única establece su vigencia a partir de su reglamentación, misma que a la fecha no ha sido elaborada; y, en ese transcurso se promulga la Ley Minera, la Ley de Consulta, entre otras que no están en el marco de la Ley de la Madre Tierra, dejando esta norma y el paradigma del “Vivir Bien” en la simple retórica.

Por otra parte, la descolonización hoy se encuentra reducida a un Viceministerio que depende del Ministerio de Culturas, que flokloriza y deja el discurso descoloniza-dor en ridículo. Sólo se introdujo en la denominación de los Ministerios y los cargos el término “Plurinacional” como complementación. Sin embargo, todas las iniciativas descolonizadoras, son aplacadas y reprimidas. Por ejemplo, los cuatro sub oficiales de la FFAA, que impulsaron la descolonización para acabar con la discriminación y racismo, han terminado destituidos y encarcelados. Finalmente, el juicio político instaurado contra los magistrados indígenas Gualberto Cusi Mamani y Soraida Chanéz Chire que junto a Ligia Velásquez Castaños, fueron electos por el voto popular, que dicho sea de paso uno de ellos (Cusi), por vez primera impulsa la creación de la Unidad de Descolonización, en el Tribunal Constitucional; y plantea la descolonización de los abogados. Estos tres magistrados, que pretendieron actuar en el marco del principio de la independencia de los Órganos del Estado, hoy afrontan un juicio político en la Asamblea Legislativa “Plurina-cional”, que los suspendió de sus funciones y busca destituirlos de sus cargos, dejando con ello en suspenso el proyecto descolonizador de la justicia y la composición plural del Tribunal Constitucional.

De esta forma el poder constituido que tiene por misión consolidar el Estado Plurinacional, hoy nos entrega leyes, decretos y prácticas políticas orientadas al reordena-

Lo “plurinacional” como reto histórico 271

miento del Estado colonial envueltas bajo el falso discurso romántico “descolonizador” y “plurinacional”, vaciando estos términos de su contenido histórico y liberador.

5. Conclusiones

A manera de conclusión, en este intento por describir y analizar la situación actual que vive el “Estado Plurinacional de Bolivia”; es preciso diferenciar dos factores opuestos sobre los cuales se debate la transición en nuestro País.

Un primer factor, es la “herencia colonial”. Esta herencia aún se refleja en las for-mas de administración de los Órganos del Estado. Es lógico que para los “herederos” de la colonia, esta forma de administración, “vendada y ciega”, a la historia, a la realidad y sometida a las leyes positivas y formalistas, no les es “conveniente” trastocar y desarrollar normas, en concordancia con la Constitución. Al respecto, Walter Benjamin afirma: “…cuando se pregunta con quién se compenetra el historiador historicista. La respuesta suena inevitable: con el vencedor. Pero los amos eventuales son los herederos de todos aquellos que han vencido. Por consiguiente la compenetración con el vencedor resulta cada vez más ventajosa para el amo del momento”23. Lo que quiere decir, que los coloniales, siempre buscan al vencedor para que las viejas prácticas, pervivan y con ella se re-articule el viejo Estado colonial. Nos referimos a la colonialidad objetivada y subjetivada que, aún subsiste y frena cualquier proyecto descolonizador. En este marco, romper con la “formalidad” de los procedimientos y la “jerarquización”, creada entre las autoridades y jurisdicciones. Todo ello impide la consolidación de los cambios constitucionales.

Otro factor opuesto y antagónico al anterior, tiene origen en el estancamiento regresivo de los procesos de trasformaciones y cambios que se habían propuesto en la Asamblea Constituyente (AC). Existe una crisis del proceso. Esta crisis se ha ahondado con las medidas legislativas, ejecutivas y judiciales, que en vez de cambiar y trastocar las estructuras del viejo Estado e implementar la nueva Constitución Política del Estado, han retrocedido y han terminado manteniendo las viejas estructuras coloniales, permitiendo el reordenamiento del sistema colonial. Entonces ¿Cuál es el elemento principal que permite el reordenamiento del Estado Colonial? Es en definitiva “la neocolonización”, y éste se encubre con el falso discurso anticolonial. Nos referimos a los “pluralismos aparentes”, y las “descolonizaciones retóricas” que se vienen repitiendo en los últimos tiempos.

¿Qué significan los pluralismos aparentes?, nos referimos a la manera cómo las estructuras coloniales, para continuar vigentes, se agazapan, disfrazan y se encubren, bajo discursos de un “pluralismo” que en el fondo continúan anclados en el multicultu-ralismo liberal. A nuestro entender la descolonización y el pluralismo no logran superar el “multiculturalismo” liberal, y eso es neocolonialismo; pues no cuestiona, no trastoca ni desestructura las relaciones desiguales, asimétricas y de sometimiento a las naciones y

23 BENJAMIN, Walter. Conceptos de filosofía de la historia. La Plata: Terramar Ediciones, 2007.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina272

pueblos indígenas. Esta forma de “transición”, supone más bien reacomodos del antiguo Estado -Nación colonial, y va deslegitimando la voluntad del constituyente, y traicionado la lucha anticolonial de más de 500 años.

Que no se haga efectiva ni se intente poner el cimiento al proyecto del Estado Plurinacional, no significa que la causa de la crisis sea la ausencia de propuestas descolo-nizadoras o que la vieja ni la nueva derecha liberal lo haya impedido, sino por el contrario la causa de la crisis es la incorporación del viejo sistema en el proyecto del Estado Pluri-nacional. Por ello, estamos estancados, en la fase del tránsito, de lo viejo a lo nuevo, de lo ajeno a lo propio. Este escenario, sin embargo, tiene aún la posibilidad de “reconducirse”, para que verdaderamente se inicie con la consolidación de un “Estado Plurinacional”. Esta reconducción sin duda, debe emerger, nuevamente desde las entrañas de las naciones y pueblos indios.

Referencias

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Histórica Documental del Proceso Constituyente Boliviano. Tomo III volumen I. La Paz, Bolivia.

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PLURALISMO JURÍDICO Y NEOCONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO

Juan Carlos Martínez1

Introducción

El presente trabajo aborda una serie de conceptos sobre la identidad cultural y el Estado nacional que vienen cobrando particular relevancia en la vida política de los países latinoa-mericanos frente a una crisis profunda del sistema económico imperante y de los sistemas políticos como garantes del bienestar de las mayorías. Me refiero a conceptos nuevos que sin embargo buscan dar acomodo a viejas realidades y pasan de las ciencias sociales al Derecho como intento de éste por recuperar su capacidad ordenadora de una realidad que ha desbordado su cauce.

Dividiré el texto en 3 partes. Una primera que se refiere a los aspectos sociohistó-ricos que nos permiten entender el surgimiento del Estado nacional europeo como una construcción cultural identificable históricamente. En un segundo momento me referiré a cómo llega a nuestra América el concepto de Estado nacional y se busca implantar como búsqueda de una nación integrada donde los indios representan el problema principal, así como una descripción de los fracasados intentos por eliminar la diversidad cultural de nuestro entorno político y jurídico. En tercer lugar mostraré porqué es de vital impor-tancia encontrar diseños institucionales que respondan de mejor manera a la situación histórica y el grave momento de transformaciones por las que atraviesan los países lati-noamericanos.

1. El Estado nacional moderno y sus orígenes. Un derecho a la medida de un lugar y un momento

Quisiera ubicar en su contexto sociohistórico el nacimiento de lo que conocemos como Estado nacional o el estado moderno, que de alguna manera se va gestando desde el siglo XVII en los países centro europeos, pero que realmente llega a una concreción ma-terial hacia el final de siglo XVIII y principios siglo XIX, siempre a través de violencia,

1 Profesor investigador CIESAS - Unidad Pacífico Sur. Maestro y Doctor en Antropología Social por el CIESAS. Licenciado en Derecho por la UNAM. Miembro de RELAJU, PRUJULA y del sistema Nacional de Investigadores en México. Autor del libro: La Nueva Justicia Tradicional. Oaxaca: 2011.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina274

traiciones y sometimientos2. Para los países de America Latina las nociones de Estado moderno llegan en momentos de insurgencia y a unos sirve para pensar un destino eman-cipatorio y desligado de sus metrópolis y a otros como una forma de mantener el control social y estamental que venía funcionando en estos países coloniales y periféricos. Así, desde el nacimiento de las repúblicas latinoamericanas en el siglo XIX, la idea del estado nacional que se venía configurando en Europa y los Estados Unidos, se arraiga a nuestra tradición política pero penetra más como discurso retórico, a veces simulador y a veces proyectivo, que como andamiaje normativo eficaz y capaz de estructurar pensamientos y modelar conductas concretas. El Estado moderno esta presente en la palabra y ausente en los hechos, es un Estado de instituciones siempre precarias o coludidas frente al poder fáctico y de ciudadanos imaginados3.

Para entender porqué el Estado-nación ha permanecido como proyecto inconclu-so en América Latina, es importante hacer referencia a algunos elementos de contexto sin las cuáles no se puede entender la vida económica social y política europea en esa época; una es la reforma protestante iniciada en el siglo XVI, cuando ya América se estaba convirtiendo en el alter ego de Europa (sea como el atrasado sin alma o el buen salvaje). La otra, es el surgimiento en de la revolución industrial en la segunda mitad del siglo XVII, proceso en buena medida, financiado con las enormes riquezas que Europa llevó desde América4. Comprender ambos fenómenos en su contexto nos permite entender porqué el Estado moderno más que una receta para la organización de mundo como a la postre resultó, era una salida histórica a desafíos concretos de ese momento y esa realidad específica, Europa y su Estado-nación no era, ni es una salida repetible para el resto de mundo y el intento de “ser como ellos”5 ha sido un acto suicida de la humanidad, que lamentablemente incluso vienen repitiendo los gobierno de izquierda en América del Sur, a pesar de que históricamente se han mostrado las desventajas estructurales de los países periféricos para acceder a un modelo de desarrollo basado en una generación de bienes industriales y un consumo extendido de los mismos6.

2Cf. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difu-sión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1993; GELLNER, Ernest. Nacio-nes y nacionalismo. Madrid: Alianza, 2003 e FOUCAULT, Michel. Vigilar y castigar. Madrid: Siglo XXI Editores. 1986.3 ESCALANTE GONZALBO, Fernando. Ciudadanos imaginarios. Memorial de los afanes y desventuras de la virtud y apología del vicio triunfante en la República mexicana: tratado de moral pública. México: El Colegio de México, 1992; CAPELLA, Juan Ramón. Los ciudadanos siervos. Madrid: Trotta, 1993.4 DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Otro. Hacia el origen del “mito de la Moder-nidad”. México: Alianza, 1992; GALEANO, Eduardo. Las venas abiertas de Américas Latina. México: Siglo Veintiuno de México Editores, 1971; 5 GALEANO, Eduardo. Ser como ellos y otros artículos. España: Siglo Veintiuno de España Editores, 1992.6 CARDOSO, Fernando H.; FALETTO, Enzo. Dependencia y desarrollo en América La-tina. México: Siglo XXI, 1969; COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL

Pluralismo jurídico y neoconstitucionalismo latinoamericano 275

La creación del Estado moderno no se explica sin la sangrienta ruptura que signifi-có la reforma protestante. El desgaste generado por la violenta disputa entre los príncipes germánicos y la iglesia católica por el control económico y político de las masas campe-sinas y lo procesos económicos regionales crea la necesidad de una separación entre el poder político-terrenal y el -espiritual de la Iglesia, con ello, la necesidad de un discurso racional, no-religioso7 que cohesione bastos territorios caracterizado por su fragmenta-ción a partir de tradiciones, lenguas y costumbres heterogéneas, pero con una lealtad compartida la papa de Roma y a la religión católica. Tras este quiebre se vuelve necesario un acuerdo que detenga el baño de sangre y una nueva doctrina que legitime el poder polí-tico al margen del discurso religioso y cohesione la sociedad en torno a un poder terrenal. Como podemos ver, ésta situación particularísima de una sociedad rota en sus principios fundamentales prefigura el invento del Estado-moderno.

Sin la Iglesia católica como referente de cohesión tributaria y de generación valo-res, es decir sin la comunidad que provee los referentes axiológicos que dan coherencia e identidad a esas sociedades, los grupos dominantes vislumbran una pérdida de control social, económico y político frente a un pluralismo religioso que se suma al ya de por sí fragmentado panorama cultural europeo. Así, se empieza a buscar el fundamento de una nueva comunidad que de cuerpo a los diversos grupos coexistentes dentro de un territo-rio continuo. Así se crea una figura capaz de dominar, primero por la fuerza, a todas esas pequeñas comunidades fragmentadas y después preverlas de referentes simbólicos que permitan a todos los habitantes de esos territorios inventar una nueva identidad8.

Durante los siguientes 200 años Europa vive profundas transformaciones particu-larmente basadas en un crecimiento económico inusitado debido en parte los minerales, productos agrícolas y mano de obra esclava proveniente de las colonias americanas, junto con un gran despegue de la ciencia, la maquinización de los sistemas productivos y su respectivo excedente, importantes migraciones del campo a la ciudad, disminución de epidemias, así como un aumento en la definición y el control de las fronteras correspon-dientes al territorio de un soberano. Para la mitad del siglo VXIII, importantes pensado-res habían construido las nociones teóricas del Estado moderno, Hobbes, Rousseau y Voltaire, entre los más destacados como forma de crear un “nuevo orden”. A partir de la paulatina apropiación del poder económico por parte de la burguesía, ésta disputar a las monarquías el control político de las grandes y desordenadas masas que habían migrado de contextos rurales a centros urbanos. Los individuos que habían roto las viejas lealtades colectivas feudales comienzan a creer en una comunidad imaginada por la burguesía y los pensadores llamada nación; una comunidad que habla el mismo idioma, comparte la misma historia, los mismos valores y se subordina al mismo poder político racional lla-

CARIBE (CEPAL). Cincuenta años del pensamiento de la CEPAL. Chile: FCE, 1998.7 KANT, Immanuel. Fundamentación de la metafísica de las costumbres. Traducción de Manuel García Morente. 6ª ed. Madrid, Espasa-Calpe, 1980.8 GELLNER, 2003, op. cit.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina276

mado Estado y que según la ficción nace de la soberanía y la voluntad de “todos los que conforman la nación”9.

Existen 3 medios fundamentales a través de los cuál las nuevas clases dominantes crean la idea de nación compartida y la no menos inventada idea de que a cada “nación imaginada” corresponde un Estado. El primero es el sistema educativo que manejado o definido desde el Estado extiende en la población el uso de un idioma común, la for-mación de individuos y la incorporación en su imaginario de los mitos y valores sobre el surgimiento del Estado propio a partir de la historia común ancestral o bien la idea del futuro común, de irremisible superación de todo atavismo, un futuro de desarrollo, paz, civilización y ciencia a que nos conduciría el Estado. Todo esto genera una consecuente lealtad a la nueva comunidad nacional y a sus autoridades: el Estado moderno.

El Estado crea constituciones, leyes, procedimientos, instituciones y autoridades que encarnan el orden que permitirá organizar a la comunidad milenaria o bien que per-mitirá alcanzar ese futuro de esplendor. El segundo medio fundamental para construir la nación es el sistema de leyes, los postulados legítimos, creados por la autoridad de todos que obligan, permiten o prohíben conductas y constituyen a las autoridades que atrapan y juzgan al infractor. La escuela indoctrina y convence, la justicia obliga y castiga al no con-vencido, doblega al disidente y legitima el poder único, la violencia legítima del Estado.

El tercer medio fundamental que la burguesía utiliza para construir la nación es el Mercado. El Estado crea las libertades de producir, transportar, vender y comprar y define las fronteras donde este sistema de intercambio será controlado por las reglas y las monedas del propio Estado, así se establecen los delitos de contrabando, los aranceles y el control de todo tipo de intercambio comercial, particularmente aquél desarrollado más allá de las fronteras propias. El Mercado le da a la comunidad imaginaria gustos comparti-dos dentro de todo un territorio, hábitos, modelos de trabajo y contratación, reglas de in-tercambio, los productos de la “nación”, las comidas de la nación, los artistas de la nación, los héroes de la nación aparecen en las monedas y los billetes que todos intercambian. El Mercado estandariza hábitos, gustos, conocimientos… y ahí donde un producto, una música o una comida fue característico de una religión, de una de las múltiples culturas extendidas en el territorio se convierte en producto, música o comida de toda la nación y paulatinamente aquello que no logra producto “nacional” tiende a desaparecer.

2. El Estado nacional moderno en América Latina. El derecho moderno como camisa de fuerza

En los albores del siglo XIX, cuando todos estos procesos se consolidan en Europa, las colonias españolas y más tarde las portuguesas en América (lo que a la postre se definiría como América Latina) también viven procesos de cambio, pero cambios muy distintos y mucho menos extendidos que los suscitados en Europa. En América no hubo reforma

9 ANDERSON, 1993, op. cit.

Pluralismo jurídico y neoconstitucionalismo latinoamericano 277

protestante porque más o menos todas las colonias de España y Portugal, cuyas coronas fueron los grandes defensoras del catolicismo, siguieron compartiendo un patrón religio-so. Menos aún hubo una revolución industrial en la época, aunque pronto los pobladores del “nuevo mundo” se convirtieron en consumidores preferidos de los productos ma-nofacturados en el primer mundo, así como exportadores preferidos –a partir de empre-sas fundadas en su mayoría con capital extranjero- de materias primas para la elaboración de los mismos.10

No obstante las ostensibles diferencias históricas, los pensadores y los próceres latinoamericanos son seducidos por la idea del Estado-nacional como figura política para independizarse de las metrópolis. Para algunos el Estado-nacional representaba el ideario emancipador de la igualdad y la superación de los atavismos culturales, para otros fue una forma de similar una igualdad inexistente que permitiría mantener la dominación y el co-lonialismo interno que caracterizó las sociedades estamentales latinoamericanas11.

No obstante la construcción formal de los Estados nacionales en América Latina, en la práctica, durante todo el siglo XIX, ni se creó un sistema educativo abarcante con lo que no se abolieron las lenguas, las tradiciones y las culturas particulares, tampoco se extendió el sistema de leyes, con lo que la gente siguió ligada a sus propias formas tradi-ciones y costumbres, ni se extendió un Mercado nacional con lo que la gente siguío en re-laciones de vasallaje, producción agrícola no industrial y siguió consumiendo sus propios productos artesanales, sus propias comidas, sus propias expresiones culturales, salvo en los centros urbanos que intensificaron su filiación a los mercados del primer mundo y con ello profundizaron las diferencias dentro de los Estados latinoamericanos y convirtieron a los enclaves aculturados de las nacientes “naciones” en la vanguardia civilizatoria del Estado.

Los países latinoamericanos copian la receta sin tener la enfermedad. Así, durante todo el siglo XIX y en buena medida hasta los albores del siglo XXI, la noción de Estado nacional es para algunos proyecto integrador y para otros simulación de un estado de leyes. Aunque ningún país de mundo ha logrado del todo suprimir su diversidad cultural interna, es menester afirmar que los países de Europa central logran con mayor eficacia la construcción de la nación integrada, el Estado genera una cultura nacional y aunque haya diferencias, en términos generales se logra la formación de ciertos patrones que el grueso de su población comparte.

Si Europa construye la alteridad de su Estado civilizado alteridad desplazando a los pueblos “bárbaros” de su continente a los otros, en América Latina el tema de la diver-sidad se encarna en “el otro” interno, el obstáculo para construir la nación, el epitome del atraso versus la civilización: el Indio.

10 PREBISCH, Raúl. Capitalismo periférico: crisis y transformación. Chile: CEPAL, 1981.11 GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. Imperialismo y liberación en América Latina. México: UNAM, 1983.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina278

A lo largo del siglo XIX uno de los retos fundamentales para construir la nación fue el qué hacer con los indios, que en muchos países representaban a la mayor parte de la población y qué elementos de la diversidad de estos países podrían ser ocupados para la construcción de la identidad nacional. Los pensadores y los estadistas se plantean los retos de la identidad cultural y política de América Latina en obras como “Facundo, civilización o barbarie” de Faustino Domingo Sarmiento, “Ariel” de José Enrique Rodó, “Los grandes problemas nacionales” de Andrés Molina Enríquez, entre otros. Uno de los grandes temas es cómo hacer que los indios dejen de serlo, desde el exterminio hasta la integración, la pregunta es cómo eliminar este molesto ingrediente en pos de la construcción del Estado nacional.

Así surgen políticas de confiscación de tierras indígenas, de integración cultural, de castellanización forzada, después de educación bilingüe, programas de asistencia social, desarrollismo etc. todas políticas tendientes a que los indios dejen de serlo y permitan la construcción de la nación integrada.

Durante el siglo XX las políticas educativas y la extensión de Mercado a los territo-rios indígenas se vuelve más agresiva, surgen las teorías de la aculturación y las políticas in-tegracionistas, surgen los procesos de reforma agraria y campesinización de los indios. Sin embargo la meta esperada de “desaparecer” la diversidad no llegó y hacia finales del siglos XX el “movimiento indígena” contemporáneo12 surge con gran fuerza para objetar los propósitos integracionistas, demandar su derechos de permanecer como culturas diferen-ciadas y el reconocimiento de derechos particulares que les permitan esta supervivencia.

En los albores del siglo XXI constatamos que el proyecto del Estado nacional ho-mogéneo sigue tener éxito. Los indígenas han estado ahí, siguen estando, siguen forman-do unidades socioculturales, siguen manteniendo sus propios vínculos históricos, siguen manteniendo sus lenguas, tradiciones y en muchos casos diversas expresiones del Estado siguen siendo algo lejano, ajeno, algo de lo que hay que cuidarse.

Aunque cada nación del sub-continente ha tenido sus particularidades y procesos republicanos divergentes, grosso modo encontramos semejanzas en la constitución de sus Estados. De igual manera, en mayor o menos medida, la revisión histórica de finales del siglo XX y principios del siglo XXI, muestra la crisis del Estado que se expresa en nuevas constituciones o profundas reformas a las ya existentes. En éstas nuevas constituciones es ostensible la renuncia al proyecto de nación homogénea y un mayor o menos reconoci-miento al tema de la diversidad sin que éste sea aún claramente implementado en ningún país, pues particularmente choca con un proceso paralelo de exacerbada explotación de los recursos naturales para sustentar un caduco modelo de desarrollo, mismo que pro-

12 STAVENHAGEN, Rodolfo; ITURRALDE, Diego. Entre la ley y la costumbre: el derecho consuetudinario indígena en América Latina. México: III, IIDH. 1990; BARRE, Marie-Chan-tal. Ideologías indigenistas y movimientos indios. Colección de Antropología. México: Siglo XXI Editores, 1983; MEJÍA PIÑEROS, María Consuelo; SARMIENTO SILVA, Sergio. La lucha indígena: un reto a la ortodoxia. México: Siglo XXI Editores, 1982.

Pluralismo jurídico y neoconstitucionalismo latinoamericano 279

bablemente será frenado por una crisis ambiental de grades dimensiones que ya se viene avizorando13.

Ahora bien, en este contexto diversos movimientos indígenas, particularmente de la region andina, han comenzado a manifestar su desacuerdo con el modelo de Estado nacional dominante. En un principio los movimientos indígenas retoman demandas de caracter social como tierra, trabajo, salud y educación, sin embargo en el proceso de lu-cha muchos líderes e intelectuales se preguntan llegan a un cuestionamiento del modelo hegemónico y reconocen en la autonomía indígena una alternativa a la integración y a las prácticas depredadoras de desarrollo (Ver declaraciones I, II y III de Barbados).

Además de importantes cambios legislativos, de mayor o menor envergadura en el marco normativo de prácticamente todos los países latinoamericanos, el movimiento in-dígena contemporáneo ha ganado un espacio en el “Foro Permanente para las cuestiones indígenas de Naciones Unidas” y diversos espacios de encuentro y discusión a los largo del Continente. Han sido un factor real de poder político en Ecuador, Nicaragua y Bolivia y su manifestación ha sido altamente significativa en la definición de políticas públicas en México, Guatemala, Colombia, Surinam y Chile.

Este indigenismo contemporáneo busca por un lado aumentar la participación y visibilidad política de los indígenas dentro del Estado, mismo que debe ser redefinido como Estado multicultural, pero también luchan por autonomía política que implica to-mar sus propias decisiones a través de instituciones, normatividad y procedimientos pro-pios y por ende una redefinición del concepto clásico de Estado nacional.14

Por otra lado, a partir del llamado proceso de globalización, los Estados nacionales pierden funciones, particularmente en lo referente al control local de la economía para articularse a un mercado internacional, al tiempo que surgen movimientos para hacer frente a nuevos modelos globales de explotación15 y pierden paulatinamente el monopo-lio ideológico de sus connacionales por la acción de las redes sociales, los movimientos

13 CAMPBELL, Kurt M.; GULLEDGE, Jay; McNEILL, J.R.; PODESTA, John; OGDEN, Pe-ter; FUERTH, Leon; WOOLSEY, R. James; LENNON, Alexander T.J.; SMITH, Juliann; WEITZ, Richard; MIX, Derek. The Age of Consequences: Policy and National Security. Implications of global climate chang. Washington D.C.: Center for Strategic & International Studies and Center for a New American Security, 2007; OLABE, Antxón; GONZÁLEZ, Mikel. Cambio Climático, una amenaza para la seguridad global. Politica Exterior, Nº. 124, Julio/ Agosto, 2008; SCHOIJET, Mauricio. Límites del Crecimiento y Cambio Climático. México, DF: Siglo XXI, 2008.14 SANTOS, Boaventura de Sousa. Más allá de la gobernanza neoliberal: el Foro Social Mundial como legalidad y política cosmopolita subalternas. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; RODRÍ-GUEZ GARAVITO, Cesar A. (editores). El derecho y la globalización desde abajo. Hacia una legalidad cosmopolita. México: UAM, Anthropos, 2007.15 RODRIGUEZ GARAVITO, César A. La ley de Nike: el movimiento antimaquila, las empre-sas transnacionales y la lucha por los derechos laborales en las Américas. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; RODRÍGUEZ GARAVITO, Cesar A. (editores). El derecho y la globalización desde abajo. Hacia una legalidad cosmopolita. México: UAM, Anthropos, 2007.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina280

sociales transnacionales y el flujo inmediato de ideas y procesos16, lo que Castells define como la cultura de la virtualidad.17

Estos procesos hacen que por lo menos desde hace tres décadas se vengan discu-tiendo las redefiniciones del Estado nacional en América Latina siendo emblemáticas en este sentido las constituciones de Bolivia y Ecuador con sus nociones de Estado plurina-cional.

3. El siglo XXI y la vuelta a la diversidad. Hacia sistemas jurídicos plurales

El derecho en el siglo XXI redefine el papel del Estado tanto frente a la comunidad internacional, como a sus difusas sociedades nacionales. En este contexto, la noción del derecho monista hace agua hacia lo arriba –derecho internacional-, como hacia abajo –de-rechos subalternos-. Sistemas jurídicos supranacionales y subnacionales que se tocan en giros inesperados desafiando las hegemonías tradicionales y las certezas del derecho que controla el ámbito nacional.18

La trilogía: un pueblo, un Estado, un Derecho, entra en una profunda crisis que de-safía las certezas de la concepción clásica del Estado y la hegemonía de las clases políticas tradicionales. No obstante, los juristas, guardianes del orden establecido por el derecho en crisis, resisten los cambios y se atrincheran en nociones formalistas.

El formalismo jurídico defiende la supuesta separación del razonamiento jurídico que es la supuesta aplicación mecánica del derecho a los hechos concretos obviando todo tipo de consideración social, cultural o política. Esta creencia de muchos juristas, particu-larmente insertos en la función pública supone que el proceso de producción normativa es exclusiva del Estado y se abstrae de todo tipo de consideración contextual. Por lógica, el campo de la ley puede ser visto como más o menos “cerrado” y el sistema normativo es algo tangible a través de la ley escrita19. Así, la lógica formal supone un funcionamiento lógico aristotélico que parte de la definición de conjuntos cerrados de condiciones nece-sarias y suficientes que pueden excluir otras condiciones reales que en teoría quedan fuera de la abstracción jurídica. Por ende, esta concepción es muy precaria en sociedades que como hemos visto se distinguen por su falta de homogeneidad y cohesión.

El positivismo jurídico es particularmente poderoso por su funcionalidad, crea una ilusión de “certeza jurídica” que en teoría permite a todos saber qué es lo debido, lo permitido y lo prohibido. El fenómeno de la ilegalidad en América latina, sin embargo, muestra lo contrario y hace evidentemente el escaso conocimiento de sus contenidos

16 DE SOUZA SANTOS; RODRÍGUEZ GARAVITO, 2007, op. cit.17 CASTELLS, Manuel. La Era de la Información. Vol. I: La Sociedad Red. México: Siglo XXI Editores, 2002.18 MELOSSI, Dario. El Estado del control social. México: Siglo XXI Editores, 1992.19 BOURDIEU, Pierre. Selección de La fuerza del derecho. Bogotá: Universidad de los An-des, 2002.

Pluralismo jurídico y neoconstitucionalismo latinoamericano 281

formales en la población en general y las múltiples estrategias de desviación legal hacen de esto una quimera abstracta de difícil realización, lo que a la postre arroja mucho menos certeza de la pretendida.

A diferencia del rígido concepto de legalidad formal, el pluralismo jurídico entra como una idea fresca a mostrar que es posible estar unidos manteniendo formas de vida diferentes y sin que ello implique un caos interminable20. Las demandas del movimiento indígena sobre autonomía muestran la necesidad de nuevos marcos jurídicos que por otra parte permitirían mayor apertura a temas de regulación transnacional, sobre todo en lo relativo a grandes inversiones dentro de territorios indígenas. El pluralismo jurídico ayuda a definir de manera novedosa ámbitos de competencia y formas de diálogo entre las jus-ticias en búsqueda de coordinación entre sistemas.

Por otra parte, el pluralismo jurídico es un derecho realista, es decir más que in-ventar circunscripciones a través de complicados procedimientos, reconoce los sistemas que han existido y de con una moralidad aceptable y dentro del marco constitucional, han mantenido formas de convivencia pacífica y modelos alternos de desarrollo.

Por supuesto que las comunidades enfrentan nuevas realidades como la migración, los medios electrónicos de comunicación, la incorporación a los mercados nacionales e in-ternacionales, el incremento de niveles educativos, la globalización de discursos de género, derechos humanos y medio ambiente, entre otros, que obligan a la transformación de los sistemas tradicionales21. En efecto el derecho aplicado al contexto social tiene que nacer de las formas concretas de organización social y producción económica de esa sociedad, “el buen orden y la buena distribución” que delinea el derecho nace de los intereses reales y la fuerza de los grupos que estructuran dicha sociedad. Sin la adecuación de la norma a al contexto socio económico el derecho no logrará valor normativo real en la sociedad concreta.22

Así, el gran reto de los sistemas normativos indígenas es adecuarse a sus nuevas realidades sin que ello implique detrimento a sus identidades y tradiciones jurídicas. Cam-biar no significa la incorporación automática de normas de derecho occidental sino un diálogo entre iguales que permita una mutual constitución de sistemas jurídicos23, pero en términos menos injustos.

La vía de coordinación entre la sociedad real, que sintetiza valores de fuentes axio-lógicas diversas, y el sistema jurídico nacional, es el pluralismo jurídico que tiene como

20 MARTÍNEZ, Juan Carlos; HUBER, Rudolf; LACHENAL , Cécile; ARIZA SANTAMARIA, Rosembert. Hacia sistemas jurídicos plurales. Reflexiones y experiencias de coordinación entre el derecho estatal y el derecho indígena. México: Konrad Adenauer Stiftung, 2008. 21 MARTÍNEZ, Juan Carlos. La nueva justicia tradicional. Interlegalidad y ajustes en el cam-po jurídico de Santiago Ixtayutla y Santa María Tlahuitoltepec. México, Oaxaca: Konrad Adenauer Stiftung, 2012.22 BOURDIEU, 2002, op. cit.23 SIERRA, María Teresa. Usos y desusos del derecho consuetudinario. Nueva Antropología, vol. XIII, núm. 44, 1993, pp. 20-39.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina282

base el respeto a la libre determinación de los pueblos indígenas dentro de los estados latinoamericanos contemporáneos y reglas claras de coordinación entre los múltiples sis-temas normativos que componen el panorama jurídico de estos países. Es importante recalcar que la primera fuente de derecho positivo de este nuevo paradigma en ciernes, es el Convenio 169 de la OIT, ratificado por la mayoría de los países de la región, y tiene un importante avance en la Declaración de naciones Unidas sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas aprobada por la Asamblea General de la ONU en 2007.

El derecho de libre determinación no puede ser un enunciado constitucional vacío de contenidos. Tal como los Estados soberanos gozan de dicha atribución y ello les per-mite ser la fuente de legitimidad del gobierno constituido, los pueblos indígenas gozan de tal prerrogativa, pero la ejercen en el marco de la soberanía de los Estados, en muchos casos como autonomía, y a semejanza de los Estados federales conceden márgenes de ac-tuación que no están exclusivamente reservados al Estado nacional, lo que permite mayor eficiencia y racionalidad en el ejercicio del gobierno, es decir una mayor gobernanza de los territorios.

Por supuesto que no se trata de una claudicación del Estado en territorios indíge-nas, sino una coordinación donde el Estado sigue haciéndose cargo de tareas específicas, mantenga ciertas competencias, pero descentralice las mayores funciones posibles en las autonomías.

Quizá el mayor problema asociado al reconocimiento de las autonomías está en el modelo de desarrollo del que dependen los Estados latinoamericanos tan ligados a las industrias extractivas y explotación de recursos naturales. Incluso en países como Bolivia y Ecuador existe una enrome contradicción entre el modelo pluralista planteando en sus constituciones y las necesidades extractivas de sus gobiernos para sustentar su propia hegemonía. Amparados en la necesidad de construir poder político frente a las Viejas oligarquías, en muchos momentos estos gobiernos de izquierda han dado la espalda a los derechos colectivos de sus pueblos en aras de proteger las inversiones y los intereses del gran capital sobre territorios comunales. Por supuesto éste es también un problema de otros gobiernos, pero en éstos la contradicción es menos evidente.

En síntesis, podemos ver que el nuevo paradigma pluralista ha venido avanzando como forma de reconocimiento jurídico en las constituciones latinoamericanas y los ins-trumentos internacionales. Éste pluralismo reconoce el derecho de libre determinación de los pueblos indígenas y hace de la Constitución un “techo” que alberga tanto las ex-presiones jurídicas de los pueblos indígenas y las comunidades locales, como las de las instituciones formales ordinarias del Estado, crea mecanismos legales de coordinación de competencias y jurisdicciones y permite una relación de igualdad entre los sistemas que coexisten en un territorio teniendo como límites los derechos humanos reconocidos internacionalmente.

No obstante, la implementación tiene serios problemas tanto por las persistentes objeciones positivistas, los cambios socio culturales que atraviesan las comunidades indí-

Pluralismo jurídico y neoconstitucionalismo latinoamericano 283

genas y los proyectos económicos que impulsan los Estados y que particularmente favo-recen el extractivismo y macro-alternativas de desarrollo que por momentos se vuelven incompatibles con el medio ambiente, la autonomía indígena y el desarrollo local.

Conclusiones

El derecho moderno, particularmente el derecho europeo continental es una construc-ción histórico con una retórica propia y en todo caso adecuada para un contexto histórico particular24. Su llegada a las Américas ha significado un deseo de llegar a ser un tipo de sociedad que ontológicamente no somos dado el pasado colonial, la diversidad cultural y la asimetría de poder que caracteriza nuestra constitución real como entidades socio-políticas. El mito del derecho moderno ha traído simulación, cultura de la ilegalidad y usos estratégicos del derecho25 que han servido para apuntalar posiciones particulares más que para definir formas viables de “buen orden y buena distribución”26.

El pluralismo jurídico, que de manera incipiente se viene reconociendo en las nue-vas constituciones latinoamericanas y en derecho internacional, abre la puerta a un nuevo paradigma jurídico que articule las formas reales en que diversos núcleos de población, particularmente los pueblos indígenas han usado para organizarse ancestralmente.

Esta nueva perspectiva requiere superar el concepto “usos y costumbres”, como se ha denominado a los sistemas normativos indígenas, para que sus campos jurídicos no se queden fijos como reminiscencias del pasado sino que estos pueblos logren adecuar sus normas, instituciones y procedimientos a las nuevas circunstancias de sus contextos cada vez más implicados en fenómenos socio-económicos derivados de la globalización27.

Un paso fundamental para el pluralismo jurídico es la definición o demarcación de los territorios que han ocupado éstos pueblos. Los territorios representan el ámbito en donde se aplican sus sistemas normativos en aquellos temas que no están reservados a otras instancias del Estado, sin una base territorial el derecho de libre determinación es una entelequia con el solo propósito de legitimación política. El territorio implica también el reconocimiento de sus formas de propiedad, los modelos de aprovechamiento de recursos naturales y en última instancia las perspectivas de desarrollo asociadas a sus culturas, para que este sea comprendido como un hábitat que encierra la totalidad de una cultura.

El pluralismo jurídico no implica la creación de islas de impunidad o comunidades apartadas del resto de la nación, los documentos coloniales muestran cómo los indígenas

24 FITZPATRICK, Peter. La mitología del derecho moderno. México: Siglo XXI Editores, 1998.25 MARTINEZ, Juan Carlos. Derechos indígenas en los juzgados: un análisis del campo judi-cial oaxaqueño en la región mixe. México: INAH, 2004.26 BOURDIEU, 2002, op. cit.27 MARTÍNEZ, et. al., 2012, op. cit.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina284

desde esa época han sido asiduos litigantes frente al Estado28. Lo que sí implica es un nue-vo modelos de relación con las comunidades históricamente subyugadas y nuevos princi-pios de organización basados en la pluralidad y la coordinación de sistemas que más que crear fronteras definen espacios interlegales29 y principios comunicativos30 para construir acuerdos sin negar las diferencias y la diversidad.

Los jueces rurales y otros funcionarios son muy concientes de la existencia de sis-temas normativos en las comunidades indígenas. Ellos saben que en los pueblos se aplica justicia y de definen reglas de parentesco, propiedad, traslación de uso o de dominio, herencia, obligaciones públicas etc. Ahora ya no es necesario fingir que esto no ocurre, simplemente se debe hacer una valoración sobre la constitucionalidad de estas reglas y su aplicación. El Estado debe tener tribunales constitucionales interculturales para ponderar y definir la norma aplicable o bien un justo equilibrio entre principios opuestos en caso de contradicciones. La argumentación legal y la ponderación en las sentencias tiene que ser la clave para avanzar en este nuevo modelo.

Tenemos que superar el modelo decimonónico de “civilización o barbarie” y acep-tar que las culturas se necesitan, todas las culturas son complementarias e incompletas aún cuando en apariencia existan grandes avances en algunas sociedades. Vivimos frente a grandes contradicciones por los avances que ha traído un modelo civilizatorio frente a las grandes catástrofes que ha desencadenado el mismo. Los grandes problemas que aquejan a la humanidad contemporánea son paliables sólo en la medida que nos abramos a formas distintas de vida, a partir del diálogo intercultural y en condiciones simétricas, las respues-tas están en otras culturas, en otras formas de plantarse frente al mundo que nos permitan encontrar respuestas que sobre las bases económicas y políticas actuales no tienen salida.

Es evidente que el pluralismo jurídico no es una panacea, ni un remedio milagroso, es más quizá esté lleno de problemas que cotidianamente se irán enfrentando, sin embar-go sí representa un viraje necesario porque las formas políticas y jurídicas actuales están llegando a un agotamiento en exceso costoso para la humanidad. Me parece que el cami-no es muy difícil pero de alguna manera estamos en una coyuntura histórica donde pode-mos realmente darle una cobertura jurídica a lo que realmente hacen nuestras sociales sin sentir vergüenza por no ser como “los otros”. Es verdad que nuestras relaciones sociales están marcadas por la exclusión y la injusticia y que las formas indígenas de organización social han sido parte de esta dominación, pero también es cierto que mucha de esta in-justicia viene de que los valores que tradicionalmente han sustentado estos pueblos se ha vuelto inservibles para el mundo contemporáneo. Estamos corriendo muchos riesgos de violencia y desintegración y se pueden buscar salidas falsas en nuevos autoritarismos,

28 WOODROW, Borah. El juzgado general de indios en Nueva España. México: Fondo de Cultura Económica, 1985.29 SANTOS, Boaventura de Souza. Toward a New Legal Common Sense: Law, Globaliza-tion, and Emancipation. Great Britain: Butterworth, 1995.30 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1981.

Pluralismo jurídico y neoconstitucionalismo latinoamericano 285

requerimos de una renovación en muchos aspectos de la vida social y esto es reto no es nada fácil y no se les puede dejar a unos cuantos, no es cosa sólo de gobernantes, ni de multinacionales, ni de iluminados. Transitar a la coexistencia de diversos proyectos polí-ticos y económicos en la unidad de un país tiene que ser una tarea que asuma la sociedad y al paso del tiempo en el agravamiento de las múltiples crisis que aquejan al mundo ésta necesidad será cada vez más clara.

Referencias

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EL ESTADO DEL ESTADO EN NUESTRA AMÉRICA. CONTINUIDADES Y RUPTURAS

Beatriz Rajland1

Introducción

El Estado ha pasado a ser –y no por casualidad–, uno de los temas principales en la coyuntura ideológico-teórica-política. El Estado, que ha nacido de la sociedad, del seno de relaciones sociales específicas en un momento determinado de su desarrollo, ha sido y es habitualmente considerado o presentado, como si estuviera situado fuera y por encima de la sociedad, como una suerte de árbitro neutral.

Desde allí, unos se levantan en su defensa y pregonan ampliar el rol (¿?) del Estado en la vida social, en el sentido de supuestas funciones universales a cumplir y otros postulan su disminución Desde nuestro punto de vista impugnamos esta forma de abordarlo e interpelamos la existencia de tal rol. Atribuirle al Estado (hablamos del estado capitalista) un rol del tipo urbi et orbe, o lo que es lo mismo, atribuirle funciones de carácter universal, es otorgarle un grado de autonomía tal, que en la práctica lo deshistoriza, es contribuir a la mistificación, a la fetichización de situarlo por fuera de la sociedad y de las clases, cuando es a la inversa: como ya dijimos, el Estado nace de la sociedad, es producto de ella en un momento determinado y justamente relacionado con la existencia de la lucha de clases.

Esa atribución de roles, a la cual nos referimos, tiene efectos concretos en la realidad social, ya que contribuye a confundir, a manipular en la lucha política porque tiende a po-ner el acento no en la estructura capitalista de la sociedad, en su modo de producción en un lugar y tiempo concretos, históricos, contextualizados, sino en una de sus instituciones (aunque sea de las más importantes). Por ejemplo: frecuentemente se plantea que el rol del Estado es ocuparse de la educación, de la salud, de la vivienda.

En realidad, esas tareas, sus modalidades, alcances, no las decide el Estado capita-lista, se deciden en la esfera de lo privado y no de lo público, insistimos, en lugar y tiempo concretos, relacionado con lo que denominamos capitalismo de época2.

1 Profesora consulta de la UBA. Docente asociada en la Cátedra en Teoría del Estado y inte-grante del Instituto de Investigaciones Jurídicas y Sociales “Ambrosio L. Gioja”, de la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires. Vice presidenta FISYP. Miembro y investigadora de la CLACSO.2 Así conocemos diversos modelos de acumulación todos dentro del capitalismo: liberal, desa-rrollista-keynesiano o de “bienestar”, neo-liberal, neo-desarrollista. Una misma línea directriz con variaciones de aplicación, de ninguna manera secundarias.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina288

O sea que el poder se genera por fuera del Estado, en el ámbito de lo conocido como privado y se torna público a través de la institución Estado, de la utilización de sus aparatos. El aparato del Estado no es la sede del poder, sino la organización en que se encarna el poder que se genera en ciertas clases y fracciones de clase, a cuyos intereses responde en última instancia el Estado. El aparato del Estado, sus instituciones, son ex-presión de ese poder, posibilitan y organizan su ejercicio.

El aparato del Estado está atravesado por los procesos sociales y posee un grado de autonomía que le permite retroactuar sobre la sociedad y no sólo reflejar las relaciones que se traban en el seno de aquella, así como desarrollar procesos cuya lógica se desenvuel-ve al interior del propio aparato estatal. No es, por tanto, un mero instrumento de la clase dominante, pero el grado relativo de su autonomía, se traduce en que, en última instancia como veremos esa es su frontera, sucumbe ante los intereses de la clase dominante, ya que es una especie de ¨comité de administración de sus intereses¨ (Marx y Engels, 2008) que no siempre son homogéneos.

Categoría de alto grado de complejidad, el tratamiento de lo estatal exige que se parta de caracterizar la estructura de clases de la sociedad, cuál es su clase dominante y de dónde obtiene su predominio económico y como puede ‘convertirlo’ en hegemonía política, en qué momento histórico concreto actúa, cuál es la forma de acción y manifes-tación de lo estatal y sus contradicciones. Esto es lo que dará las llamadas condiciones de estatalidad.

Ya entrado el siglo XX, y a partir de la revolución rusa de octubre de 1917, apa-recieron tentativas de construir sociedades no capitalistas, en las que el Estado se asu-mía como poder de clase, ‘dictadura del proletariado’ destinada a terminar tanto con el estado-nación como con el capitalismo. A su vez, en las sociedades capitalistas, frente al desafío que les planteaba la construcción de una sociedad socialista, -como se planteó la revolución de 1917–, comenzó a procurarse una atenuación de los conflictos, de la lucha de clases, apareció la figura del pretendido ‘arbitraje’ de las contradicciones sociales, con el Estado en un rol progresivamente protagónico.

Uno de los temas a los que frecuentemente se ha aludido y se alude en especial a partir de la crisis mundial de 2008, es el referido a la “intervención” estatal. En este sentido, debe tenerse en cuenta lo que acabamos de expresar, alejarse de pensar a sus ins-tituciones como meros “instrumentos” de las clases dominantes, pero tampoco, de nin-guna manera, como instituciones “neutras” que dirimen el conflicto de intereses desde la imparcialidad. Esto se traslada también al aparato del Estado capitalista, que no puede ser neutral en tanto no lo es el Estado, por lo que no puede cruzar el límite de acumulación y reproducción capitalista. No cambia si no cambia la relación social básica capitalista. El Estado capitalista es producto del capital como relación social en sentido histórico, y al mismo tiempo, es espacio de lucha disputado por las clases subalternas.

Hay un sentido común instalado acerca de que en los noventa, no intervenía (eso era ser neoliberal) y que, en cambio ahora sí lo hace (porque estaría dejando de ser neoli-beral). Ni lo uno ni lo otro. Esto conduce a un debate estéril, sobre: estatal-no estatal.

El estado del Estado en Nuestra América 289

El carácter de clase del Estado hace que siempre intervenga en resguardo y rease-guro de la política de los sectores hegemónicos y es la lucha de las clases subalternas la que disputa el sentido de la intervención estatal.

Es por todo ello, que la discusión sobre el hacer, la acción del Estado, tiene que estar centrada, en establecer quiénes se benefician y quiénes se perjudican con la misma, para que quede claro, cuál es el bloque histórico en el poder.

Insistimos una vez más, el Estado es un lugar de la lucha de clases, es un lugar de disputa, de disputa total (se expresa en el concepto complejo de “tomar el poder”) y tam-bién es objeto de disputas parciales a veces con éxitos relativos y a veces con derrotas, en dependencia de la relación de fuerzas entre las clases antagónicas.

El resultado de esas luchas se traducirá, en consecuencia, en los distintos grados de avance o construcción de contrapoder por parte de las clases subalternas o de fisuras en los intersticios del poder, hasta su culminación con la ruptura revolucionaria. 1. Sobre lo electoral, lo político y el aparato del Estado

En razón de la unidad del poder del Estado como poder de dominación de clase, las clases subalternas aunque lleguen por el ejercicio legítimo del sufragio, a ocupar cargos al interior de un aparato de Estado en manos del bloque representativo de los intereses del capital, sean ejecutivos o deliberativos, e incluso judiciales, siempre serán una individua-lidad en el medio de un bloque que no es el propio. Una individualidad en el conjunto de un proyecto que no es el proyecto de las clases subalternas.

Hay infinidad de posibilidades de avances en la construcción de contrapoder y Nuestra América hoy es una muestra, pero si no se cambian las estructuras de dominación hay una limitación fundamental: el propio sistema capitalista que no se desvanece con sólo ganar elecciones. Se puede, incluso, llegar al gobierno, pero ello no implica tener el poder, conquistar el Estado. Es necesario tener claro los límites y las posibilidades que el capital establece o trata de establecer para garantizar su hegemonía, para lo cual no escatima procedimientos ni acciones.

Porque no es al interior del capitalismo que podemos resolver la emancipación humana. Hace falta la acción política, junto con la acción social, gremial, porque lo social y lo gremial sin lo político tienen también un punto de límite del que es preciso tener conciencia: la defensa de los derechos de los trabajadores, de los desocupados, de los precarizados, sin la producción de cambio sistémico o sin transitar hacia esos cambios, sin tenerlos como horizontes, son derechos conquistados dentro de la dominación burguesa, obtenidos dentro de la legislación burguesa. Muy importantes, pero claramente no cons-tituyen emancipación de la explotación.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina290

Si todo el movimiento llamado social permanece exclusivamente en los márgenes de las reivindicaciones, incluso aunque tengan carácter político y no se organiza y proyecta hacia el poder político, hacia su construcción alternativa, los alcances de su lucha quedan limitados, porque se desarrolla por fuera de la aspiración al ejercicio del poder político (que seguirá siendo detentado por el bloque dominante capitalista), por fuera de los cam-bios profundos y sistémicos.

Cuando la organización queda apresada en las negociaciones particulares frente al Estado, renuncia de alguna manera a la participación colectiva en la lucha, en consecuen-cia, lo social y lo político se desligan, se desarticulan, la deificación de lo social actúa en detrimento del horizonte estratégico que implica lo político, entendido como el lugar de las prácticas objetivamente contra hegemónicas.

La relación capital-trabajo necesita ser cuestionada por los trabajadores para que la crisis deje de ser utilizada como chantaje y se transforme en oportunidad para los cambios de sistema de producción y el objetivo de satisfacer necesidades populares.

2. De continuidades y rupturas: Nuestra América hoy

Nos hemos referido de alguna manera a los límites y posibilidades de la disputa por el cambio al interior del Estado capitalista. Límites y disputa están referidos a los cambios revolucionarios en los estados nacionales que no pueden abordarse en general sino en particular. Teniendo claro ello es que podemos analizar las continuidades y rupturas que se dan en cada una de las situaciones de disputa.

Hay formatos que desbordan los limites estatales y se despliegan en un campo social y político más amplio, el aparato estatal se entrelaza con formas de institucionalidad política, con lo que conocemos como gobierno en cuanto aparato burocrático. Significa un límite cierto que se impone al accionar gubernamental, un límite estructural que ase-gura reproducción del sistema aunque, como ya dijimos, no resulte impenetrable Si nos detenemos más particularmente en Nuestra América Latina y Caribeña, tenemos que re-cordar el origen colonial de sus estructuras, producto de la conquista que unificó capitalis-mo y modernidad en la Europa de entonces que resultaba inconcebible sin colonialismo. Y esta región fue una de las avasalladas. Su resultado es la existencia de lo que Tilman Evers calificó como capitalismo periférico, es decir, capitalismo pero con especificidades y particularidades, entre las cuales la subordinación y la dependencia respecto a los países centrales.

Nos encontramos hoy, en una región convulsionada con procesos de cambio, del que unos son meros maquillajes sistémicos, mientras que otros tienen un carácter decla-radamente revolucionario marcado por el hecho de reconocer que no hay posibilidad de cambio dentro del capitalismo, aunque aún no se haya producido esa transición.

El estado del Estado en Nuestra América 291

La generalidad que incluye el conjunto de los Estados de AL arraiga en su origen común como espacios de acumulación dependientes del mercado mundial como dijimos. El momento actual reactualiza la pregunta sobre la especificidad de los Estados en LA en la medida en que el ciclo histórico del capital ha vuelto a poner en primer plano a las for-mas de existencia de los espacios estatales nacionales (tanto centrales como periféricos).

El contexto de la globalización ha situado el debate acerca del Estado-nación en ese marco. Se ha sostenido el “fin” del E-n en beneficio de un estado supranacional. Pero esto no ha demostrado ser así. En realidad hay una reconfiguración, una rearticulación del llamado Estado-nación, que sigue apareciendo como necesario para la conducción de los intereses colectivos del capital (su patrimonio: la coerción y el consenso, el disciplinamien-to). Podrá discutirse si en realidad se trata del E-n o del Estado, de otras características, pero si Estado.

Por otra parte asistimos al mismo tiempo que a la crisis de la UE a nuevas inte-graciones, bloques, concebidos para reforzar sus márgenes de autonomía relativa en el contexto global y su inserción en los circuitos del capitalismo. Tenemos TLC-TBI, CIADI en esa inserción.

En cuanto a políticas sociales, las anteriores del desarrollismo han sido reemplaza-das por subsidios, políticas más focalizadas. Se asiste también a una generalizada precari-zación del empleo.

Otra cuestión, es una cierta soberanía desplazada a espacios institucionales por fuera del Estado (tanto desde las clases dominantes cuanto desde las clases subalternas). Tenemos una situación en LA, con nuevas aristas para pensar las potencialidades y límites que su especificidad histórica le impone y le presenta como desafío. Los gérmenes de tran-sición en la sociedad capitalista no se pueden desplazar acabadamente si no se inscriben en un proyecto conciente y subjetivo de transformación global, dinamizado por la clase obrera y sus aliados estratégicos.

No es lo mismo estar fuera del aparato del Estado, estar en la resistencia o adentro del Estado. Es más facil desde fuera, pero que pasa cuando los gobiernos encaran refor-mas y posibilidades antisistémicas?

La confrontación. Ejercer el gobierno también exige “selectividad estructural”. Frecuentemente hay resistencias al cambio incluso de sectores subalternos. Lo electoral dificulta? Las estructuras estatales aplastan? Burocratiza? El rol de la participación, per-manente y no esporádica. Es importante tener en cuenta el Estado realmente existente o sea las relaciones sociales en las que se basa, qué defiende por sus estructuras, valores y funciones que son capitalistas, pero que conviven con procesos de cambio. Es así, ¿Es igual en toda la región? No. Es preciso delimitar los procesosmás radicalizados como los de Venezuela, Ecuador y Bolivia de otros como los de Argentina, Uruguay, Brasil que no se identifican con posiciones antisistémicas.

Vivimos momentos de transición y de reforma, que si no se llevan a cabo en el marco de un horizonte de cambios profundos, significan sólo reformas que renuncian a abolir las relaciones de producción capitalistas.

Constitucionalismo, descolonización y pluralismo jurídico en América Latina292

Cuál es el horizonte de cambios habidos en la región nuestramericana, particular-mente en Venezuela, Bolivia y Ecuador.? Resultan un verdadero laboratorio de experien-cias y desafíos para el pensamiento crítico y el movimiento popular mundial. Así como a la construcción de un derecho contra-hegemónico.

Distinguimos los países nombrados del resto porque, aunque con diversidad de enfoques y abordajes, los tres se plantean la necesidad de alternativas profundas al sistema dominante, considerando que dentro del capitalismo no puede haber perspectiva de cam-bio y proclamando la necesidad de una sociedad socialista (con distintas denominaciones). Esto es lo que las distingue del resto de los países que aun llevando a cabo políticas que dicen enfrentar al neoliberalismo de los noventa, proclaman o renuevan su pertenencia al sistema capitalista. sin embargo, el desafío es que desde el punto de vista de su composi-ción estructural son Estados capitalistas, cuyos gobiernos se plantean una transición en más o en menos de carácter antisistemico, el que dependerá en gran medida de lo expues-to hasta ahora traducido en un alto grado de participación de las clases subalternas.

La emancipación no se construye por tramos, eso es posibilismo y no conduce a la emancipación.

Pero para llegar al poder y a la hegemonía hace falta la práctica política de los su-jetos conscientes.

Es necesario tener claro los límites y las posibilidades. Hay infinidad de posibili-dades, pero una limitación fundamental, cierta: el sistema capitalista, que no se desmonta con sólo “ganar elecciones”. Por eso no es al interior del capitalismo que podemos resol-ver la emancipación humana. Cómo ya insistimos, hace falta la acción política, gremial, pero también lo gremial tiene un punto de límite, defendemos los derechos de los trabaja-dores, pero a consciencia de que esos son derechos conquistados dentro de la dominación burguesa, obtenidos dentro de la legislación burguesa. Muy importantes, pero claramente no constituyen emancipación de la explotación.

Si todo el movimiento llamado social permanece exclusivamente en los márgenes de las reivindicaciones y no se organiza y proyecta hacia el poder político, hacia su cons-trucción alternativa, los alcances de su lucha quedan limitados, por fuera de la aspiración al ejercicio del poder político, por fuera de los cambios profundos y sistémicos.

Cuando la organización queda apresada en las negociaciones particulares frente al Estado, y simultáneamente en la cándida imagen de sus logros asociativos y comunitarios que el espejo del auto-encierro le devuelve, es el momento en que lo social y lo político se desligan, se desarticulan, dado que se deifica lo social en detrimento del horizonte estra-tégico que implica lo político, entendido éste último como “la instancia que encauza las luchas particulares y las prácticas objetivamente contra hegemónicas hacia un horizonte trascendente y evita que la lucha reivindicativa se convierta en un objetivo “per se”.

La subordinación al capital necesita ser cuestionada por los trabajadores para que la crisis deje de ser un chantaje y se transforme en oportunidad para los cambios de sistema de producción y el objetivo de satisfacer necesidades populares.

El estado del Estado en Nuestra América 293

La clave consiste en cómo construir las relaciones de fuerzas, los apoyos suficientes como para avanzar en transformaciones más profundas. Y la diferencia entre los gobier-nos también estará planteada en función de los recursos que movilizan para cambiar la relación de fuerzas a favor de las mayorías populares. Porque no se trata de aceptar límites sino de empujar hacia horizontes emancipatorios.

No se visualiza aun una movilización alternativa generalizada, una construcción política popular alternativa en consonancia con los cambios en la región. Por eso, nos en-contramos ante una profunda crisis no sólo de representación política, sino también ante una crisis política en general, aunque la penetración de la ideología posibilista (incluida la de la llamada izquierda tradicional), sostenga argumentaciones en contrario. La lógica del posibilismo en tiempo de crisis capitalista mundial y fuerte ofensiva del capital sobre los trabajadores se la pretende hacer aparecer, como lo más avanzado que deja la coyuntura.

Lo cierto es que son necesarios cambios de fondo, estructurales, en nuestra rea-lidad socio-económica. Es lo que se requiere para avanzar en sentido contrario a las po-líticas hegemónicas de los noventa. No alcanza con el discurso crítico, la observación o los “buenos deseos” y si no se remueven las reformas estructurales regresivas se corre el peligro de la reversión política favorable a las demandas de las clases dominantes.

La personalización de la política, la generación de liderazgos nacionales y locales, caracterizan la gestión política en la etapa actual, tanto respecto a los políticos profesio-nales más o menos autonomizados de sus tradiciones de origen, como a las nuevas estrellas políticas sin antecedentes de militancia ni experiencia en ella.

O sea, que lo político se realizaría, se concretaría por la vía de la actividad política en su significado más tradicional, el asociado a las estructuras partidarias. Esta concepción, de algún modo encorseta, limita, el concepto de lo político y de la política.

En cambio, desde un abordaje alternativo al tradicional enunciado, si bien el objeti-vo último, necesariamente va a estar simbolizado en el poder, lo será a través de la acción dirigida a un proceso de construcción de poder y hacia la obtención del poder pensado como resultado –no de una evolución, sino de una ruptura–, pero no meramente como un momento de asalto.

Conclusión

Resumiendo, cuando nos planteamos que “hay que ir por más”, por la emancipación, no quiere decir desechar la labor cotidiana, o la lucha gremial, quiere decir, tener claro un ho-rizonte utópico pero sí realizable y ese es el de la ruptura revolucionaria y la construcción de una nueva sociedad que yo llamo socialismo, pero que no es una cuestión de nombre, es un problema de realización.

Así, lamentablemente el balance nos presenta más continuidades que rupturas.