considerações lingüísticas sobre a aquisição da escrita

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Considerações Considerações lingüísticas sobre a lingüísticas sobre a aquisição da escrita aquisição da escrita UCS – Bento Gonçalves UCS – Bento Gonçalves 8 de maio de 2007 8 de maio de 2007 Maria Bernadete Marques Abaurre (LINGÜÍSTICA / IEL / UNICAMP - CNPq) IEL / UNICAMP - CNPq) [email protected]

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Considerações lingüísticas Considerações lingüísticas sobre a aquisição da sobre a aquisição da

escritaescrita

UCS – Bento GonçalvesUCS – Bento Gonçalves8 de maio de 20078 de maio de 2007

Maria Bernadete Marques Abaurre(LINGÜÍSTICA / IEL / UNICAMP - CNPq)IEL / UNICAMP - CNPq)

[email protected]

Os dadosOs dados

Os dados apresentados e comentados Os dados apresentados e comentados fazem parte do banco de dados do Projeto fazem parte do banco de dados do Projeto Integrado CNPq 521837/95-2, Integrado CNPq 521837/95-2, A relevância A relevância teórica dos dados singulares na aquisição teórica dos dados singulares na aquisição da escritada escrita, , desenvolvido no Instituto de desenvolvido no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp de Estudos da Linguagem da Unicamp de 1992 a 2004. 1992 a 2004.

Alguns dos conhecimentos Alguns dos conhecimentos lingüísticoslingüísticos necessários para necessários para

que o professor de língua que o professor de língua materna possa analisar e materna possa analisar e

trabalhar a escrita dos alunostrabalhar a escrita dos alunos

I. Uma concepção de linguagemI. Uma concepção de linguagem

Uma concepção sócio-histórica de linguagemUma concepção sócio-histórica de linguagem

A linguagem é ela mesma A linguagem é ela mesma um trabalhoum trabalho pelo qual, histórica, pelo qual, histórica, social e culturalmente, o homem organiza e dá forma a suas social e culturalmente, o homem organiza e dá forma a suas experiências. Nela se produz, do modo mais admirável, o experiências. Nela se produz, do modo mais admirável, o processo dialético entre o que resulta da interação e o que processo dialético entre o que resulta da interação e o que resulta da atividade do sujeito na constituição dos sistemas resulta da atividade do sujeito na constituição dos sistemas lingüísticos, as línguas naturais de que nos servimos. (...) É lingüísticos, as línguas naturais de que nos servimos. (...) É na interação social, condição de desenvolvimento da na interação social, condição de desenvolvimento da linguagem, que o sujeito se apropria [do] sistema lingüístico, linguagem, que o sujeito se apropria [do] sistema lingüístico, no sentido de que constrói, com os outros, os objetos no sentido de que constrói, com os outros, os objetos lingüísticos de que se vai utilizar, na medida em que se lingüísticos de que se vai utilizar, na medida em que se constitui a si próprio como locutor e aos outros como constitui a si próprio como locutor e aos outros como interlocutores. interlocutores.

(C. Franchi, “Criatividade e gramática”, em (C. Franchi, “Criatividade e gramática”, em Trabalhos de Trabalhos de Lingüística Aplicada, Lingüística Aplicada, 9. Campinas: IEL/Unicamp, 1987, pág. 12)9. Campinas: IEL/Unicamp, 1987, pág. 12)

II. Conhecimentos sobre o II. Conhecimentos sobre o componente componente fônicofônico da da

linguagemlinguagem

1. Conhecimentos sobre 1. Conhecimentos sobre aspectos aspectos fonéticosfonéticos de de

diferentes variedades da diferentes variedades da língualíngua

A análise de textos produzidos por A análise de textos produzidos por crianças em fase inicial de aquisição da crianças em fase inicial de aquisição da escrita alfabética do português revela a escrita alfabética do português revela a maneira como, maneira como, ao aplicar o princípio ao aplicar o princípio fonográfico que subjaz ao sistema de fonográfico que subjaz ao sistema de escrita da língua, os aprendizes de escrita escrita da língua, os aprendizes de escrita inconscientemente registram inconscientemente registram aspectos aspectos fonéticos segmentaisfonéticos segmentais da modalidade da modalidade sociolingüística regional que utilizamsociolingüística regional que utilizam..

Variação sociolingüística Variação sociolingüística regionalregional

IMEISA (‘imensa’)IMEISA (‘imensa’)

MOREINO (‘morrendo’)MOREINO (‘morrendo’)

TXIABO (‘diabo’)TXIABO (‘diabo’)

BESU (‘berço’)BESU (‘berço’)

MIOCA (‘minhoca’)MIOCA (‘minhoca’)

APARISEU (‘apareceu’) APARISEU (‘apareceu’)

2. Conhecimentos 2. Conhecimentos fonológicosfonológicos::

as estruturas silábicasas estruturas silábicas

a organização prosódicaa organização prosódica

(C)1 (C)2 V (C)3 (C)4

(C)1 (C)2 e (C)3 (C)4p (C)2 e (C)3 (C)4(C)1 (C)2 e (C)3 sp r e (C)3 (C)4p (C)2 e r st r a N s

(C)1 (C)2 V (C)3 (C)4

(C)1 (C)2 e (C)3 (C)4p (C)2 e (C)3 (C)4(C)1 (C)2 e (C)3 sp r e (C)3 (C)4p (C)2 e r st r a N s

Susto, crina, brinco, monstro

(C)1 (C)2 V (C)3 (C)4 $ (C)1 (C)2 V (C)3 (C)4

s (C)2 u (C)3 s t (C)2 o (C)3 (C)4

c r i (C)3 (C)4 n (C)2 a (C)3 (C)4

b r i N (C)4 c (C)2 o (C)3 (C)4

m (C)2 o N s t r o (C)3 (C)4

Susto, crina, brinco, monstro

(C)1 (C)2 V (C)3 (C)4 $ (C)1 (C)2 V (C)3 (C)4

s (C)2 u (C)3 s t (C)2 o (C)3 (C)4

c r i (C)3 (C)4 n (C)2 a (C)3 (C)4

b r i N (C)4 c (C)2 o (C)3 (C)4

m (C)2 o N s t r o (C)3 (C)4

Os constituintes da sílabaOs constituintes da sílaba

os constituintes silábicos são conhecidos os constituintes silábicos são conhecidos por por ataqueataque e e rimarima;;

A rima domina um A rima domina um núcleonúcleo (componente (componente obrigatório) e, opcionalmente, uma obrigatório) e, opcionalmente, uma codacoda;;

O ataque silábico não é obrigatório em O ataque silábico não é obrigatório em português;português;

O ataque pode ser ramificado.O ataque pode ser ramificado.

A A hierarquiahierarquia dos constituintes dos constituintes silábicossilábicos

Essa estrutura gera o inventário básico Essa estrutura gera o inventário básico ((CV, VC, V, CVCCV, VC, V, CVC), com que se descreve ), com que se descreve grande parte das línguas do mundo. grande parte das línguas do mundo.

Estruturas mais complexas como (Estruturas mais complexas como (CCV, CCV, VCC, CCVCCVCC, CCVCC) são derivadas a partir ) são derivadas a partir dessa estrutura.dessa estrutura.

/ \ / \/ \ / \

A R A RA R A R

/ \ / \

N C NN C N

s u s t o s u s t o

/ \ / \ / \ / \

A R A RA R A R

/ \ / \ / \ N / \ N N N

k k i n a i n a

Algumas observações sobre os Algumas observações sobre os dadosdados

Algumas crianças apresentam dificuldades, na Algumas crianças apresentam dificuldades, na escrita, no preenchimento da posição de coda escrita, no preenchimento da posição de coda silábica, bem como da segunda posição nos silábica, bem como da segunda posição nos ataques ramificados; ataques ramificados;

Considerando-se, no entanto, dados como a Considerando-se, no entanto, dados como a escrita de SEPER, observa-se que na segunda escrita de SEPER, observa-se que na segunda sílaba já é usada uma consoante para sílaba já é usada uma consoante para representar o segmento que ocorre na segunda representar o segmento que ocorre na segunda posição do ataque, embora esteja localizada na posição do ataque, embora esteja localizada na coda;coda;

Tais fatos parecem indicar que, no momento de adquirir Tais fatos parecem indicar que, no momento de adquirir a representação alfabética, a criança passa por algumas a representação alfabética, a criança passa por algumas dificuldades com relação ao reconhecimento da dificuldades com relação ao reconhecimento da estrutura interna da sílaba. Sabe-se que, em português, estrutura interna da sílaba. Sabe-se que, em português, ao adquirir a linguagem oral, a criança constrói as ao adquirir a linguagem oral, a criança constrói as estruturas estruturas CVCV e e V V antes de antes de CVCCVC e de e de CCVCCCVC. Parece . Parece que, ao adquirir a escrita alfabética, essa mesma ordem que, ao adquirir a escrita alfabética, essa mesma ordem de dificuldade volta a se manifestar, de certa forma? de dificuldade volta a se manifestar, de certa forma?

A hierarquia de constituintes silábicos permite A hierarquia de constituintes silábicos permite descrever os dados apresentados de maneira a que se descrever os dados apresentados de maneira a que se possam sistematicamente relacionar as vacilações das possam sistematicamente relacionar as vacilações das crianças à crianças à necessidade de identificar e representar necessidade de identificar e representar segmentos em posições de sílabas com estrutura mais segmentos em posições de sílabas com estrutura mais complexa.complexa.

Prosódia e segmentação na escritaProsódia e segmentação na escrita

Ao aplicar o princípio fonográfico que Ao aplicar o princípio fonográfico que subjaz ao sistema de escrita da língua, os subjaz ao sistema de escrita da língua, os aprendizes de escrita inconscientemente aprendizes de escrita inconscientemente registramregistram aspectos relacionados à aspectos relacionados à hierarquia dos domínios prosódicoshierarquia dos domínios prosódicos..

A hierarquia prosódica A hierarquia prosódica (M(M. . Nespor & I. Vogel, 1986, Nespor & I. Vogel, 1986, Prosodic PhonologyProsodic Phonology, ,

Dordrecht-Holland: ForisDordrecht-Holland: Foris))

SÍLABA:SÍLABA:

AO (‘gato’); II (‘xixi’); OIGA (‘borboleta’)AO (‘gato’); II (‘xixi’); OIGA (‘borboleta’)

BBU (‘bebeu’); CO (‘seu’); CMIAJUDA (‘cê mi BBU (‘bebeu’); CO (‘seu’); CMIAJUDA (‘cê mi ajuda?’); APARECU (‘apareceu’) ajuda?’); APARECU (‘apareceu’)

PÉ:PÉ:

SERO MANO (‘ser humano’); CATA PUTA SERO MANO (‘ser humano’); CATA PUTA (‘catapulta’); CALA BOLSO (‘calabouço ‘); A (‘catapulta’); CALA BOLSO (‘calabouço ‘); A LÉGI (‘alegre’); PIDO (‘pai do’); MADO (‘mãe LÉGI (‘alegre’); PIDO (‘pai do’); MADO (‘mãe do’); UM PEDI (‘no pé de’); A BASO (‘abraço’); A do’); UM PEDI (‘no pé de’); A BASO (‘abraço’); A QUELA (‘aquela’); DA QUELA (‘daquela’); DO QUELA (‘aquela’); DA QUELA (‘daquela’); DO ÉTE (‘doente’); E TAMO (‘estamos’); VI ZITA ÉTE (‘doente’); E TAMO (‘estamos’); VI ZITA (‘visita’); SU BIMO (‘subimos’); DERRE PENTE (‘visita’); SU BIMO (‘subimos’); DERRE PENTE (‘de repente’)(‘de repente’)

PALAVRA FONOLÓGICA:PALAVRA FONOLÓGICA:

DEOURO (‘de ouro’), UMDIA (‘um dia’); APATA DEOURO (‘de ouro’), UMDIA (‘um dia’); APATA (‘a pata’); CESAUVAR (‘se salvar’); (‘a pata’); CESAUVAR (‘se salvar’); QUERA/QUIERA (‘que era’)QUERA/QUIERA (‘que era’)

FRASE FONOLÓGICA:FRASE FONOLÓGICA:

PROBEPATO (‘pobre pato’); VOTELEFONA PROBEPATO (‘pobre pato’); VOTELEFONA (‘vou telefonar’); TODUMUDO (‘todo mundo’); (‘vou telefonar’); TODUMUDO (‘todo mundo’); MUTOEPÉTO (‘muito esperto’)MUTOEPÉTO (‘muito esperto’)

FRASE ENTONACIONAL:FRASE ENTONACIONAL:

ELAFICOUCOTETE (‘ela ficou contente’); ELAFICOUCOTETE (‘ela ficou contente’); JAESTACOMENO (‘já está comendo’);JAESTACOMENO (‘já está comendo’);

O LOBO MAU (I)O LOBO MAU (I)OXAPEZIOFOINAFORETANACAZAVOVO (I) OXAPEZIOFOINAFORETANACAZAVOVO (I) OLOBOFOINACAZADAVOVÓ (I)OLOBOFOINACAZADAVOVÓ (I)ENTRONACAZA (I)ENTRONACAZA (I)COMEUAVOVÓ (I)COMEUAVOVÓ (I)OLOBOVIOXAPEZIOSAIDODACAZADAVOVÓ OLOBOVIOXAPEZIOSAIDODACAZADAVOVÓ (I)(I)

OXAPEZIOVIOCASADOIFOIXAMOOCASADOIPOXAPEZIOVIOCASADOIFOIXAMOOCASADOIPAMATAOLOBO (U)AMATAOLOBO (U)

ENUNCIADO:ENUNCIADO:

OCOELHOVIUMATRELACADETIACHOUOCOELHOVIUMATRELACADETIACHOUATRELAMUITOBONITAELEVOUPARSUATRELAMUITOBONITAELEVOUPARSUACASA (‘O coelho viu uma estrela ACASA (‘O coelho viu uma estrela cadente, achou a estrela muito bonita e cadente, achou a estrela muito bonita e levou para sua casa’)levou para sua casa’)

III. Conhecimentos sobre III. Conhecimentos sobre aspectos aspectos morfossintáticosmorfossintáticos da da

língualíngua

IV. Conhecimentos sobre a IV. Conhecimentos sobre a organização textual-discursivaorganização textual-discursiva

OS GÊNEROS DISCURSIVOSOS GÊNEROS DISCURSIVOS

Qualquer enunciado considerado Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera [contexto] de utilização da cada esfera [contexto] de utilização da língua elabora seus língua elabora seus tipos relativamente tipos relativamente estáveisestáveis de enunciados, sendo isso que de enunciados, sendo isso que denominamos denominamos gêneros do discursogêneros do discurso [diálogos, exposições, relatos, bilhetes, [diálogos, exposições, relatos, bilhetes, cartas, relatórios, etc.]cartas, relatórios, etc.]..

Mikhail Bakhtin, Mikhail Bakhtin, Os gêneros do discursoOs gêneros do discurso. . (Em: (Em: Estética da Criação VerbalEstética da Criação Verbal. SP.: . SP.:

Martins Fontes: 1992 [1952])Martins Fontes: 1992 [1952])

A língua escrita corresponde A língua escrita corresponde ao conjunto dinâmico e ao conjunto dinâmico e

complexo constituído pelos complexo constituído pelos gêneros/unidades gêneros/unidades

composicionais/estilos.composicionais/estilos.

O escritor competente:O escritor competente:Identifica a situação de produção do texto.Identifica a situação de produção do texto.

Escolhe adequadamente o gênero e a(s) Escolhe adequadamente o gênero e a(s) unidade(s) composicional(is) a ele adequadas.unidade(s) composicional(is) a ele adequadas.

Identifica o interlocutor/leitor preferencial do texto.Identifica o interlocutor/leitor preferencial do texto.

Determina o grau de formalidade lingüística Determina o grau de formalidade lingüística adequado ao gênero e ao interlocutor/leitor. adequado ao gênero e ao interlocutor/leitor. [correção gramatical, norma escrita culta][correção gramatical, norma escrita culta]

Controla a coesão (articulação) e a coerência Controla a coesão (articulação) e a coerência (seleção e articulação de informações e (seleção e articulação de informações e argumentos necessários para a construção do argumentos necessários para a construção do sentido).sentido).

A diferenciação dos gêneros A diferenciação dos gêneros escritos: primeiras manifestaçõesescritos: primeiras manifestações

As crianças, tanto de escolas particulares As crianças, tanto de escolas particulares como de escolas públicas, já demonstram, como de escolas públicas, já demonstram, em seus primeiros textos, um conhecimento em seus primeiros textos, um conhecimento intuitivo sobre alguns dos muitos gêneros intuitivo sobre alguns dos muitos gêneros discursivos que circulam em diferentes discursivos que circulam em diferentes esferas sociais.esferas sociais.

O que a escola tem a ver com isso?O que a escola tem a ver com isso?

Quino. Toda Mafalda. SP: Martins Fontes

Apenas 25% dos brasileiros acima dos Apenas 25% dos brasileiros acima dos 15 anos têm domínio pleno das habilidades 15 anos têm domínio pleno das habilidades de leitura e de escrita, segundo pesquisa de leitura e de escrita, segundo pesquisa feita pelo Instituto Paulo Montenegro. Isso feita pelo Instituto Paulo Montenegro. Isso significa que só um em cada quatro significa que só um em cada quatro brasileiros consegue entender totalmente as brasileiros consegue entender totalmente as informações de textos mais longos e informações de textos mais longos e relacioná-las com outros dados.relacioná-las com outros dados.

De acordo com o levantamento, 38% dos brasileiros podem ser considerados analfabetos funcionais -- não conseguem utilizar a leitura e a escrita na vida cotidiana. Desses, 8% são absolutamente analfabetos, e 30% têm um nível de habilidade muito baixo -- conseguem apenas identificar uma informação simples em um só enunciado, como um anúncio.

Outros 37% têm um patamar básico -- são capazes de localizar uma informação em textos curtos, como uma carta ou uma notícia.

INAF (Índice Nacional de Alfabetismo Funcional)Instituto Paulo Montenegro / ONG Ação Educativa /

(setembro 2003)

Escrever é fácil. Você começa com uma

maiúscula e termina com um ponto final.

No meio, coloca idéias.Pablo Neruda