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  • Conselho Editorial

    Alana Lima De OliveiraAntonio De Pdua Dias Da SilvaBetnia Maria Oliveira De AmorimCleidiane De Oliveira SilvaEduardo Gomes OnofreEronides Cmara De ArajoFrancisco Felipe Paiva FernandesGilvan De Melo SantosJhonatan Leal Da CostaKatemari Diogo Da RosaManuela Aguiar Araujo De MedeirosMaria Eulina Pessoa De CarvalhoRozeane Porto DinizTnia Maria Augusto Pereira

  • Katemari Diogo da RosaMarcio Caetano

    Paula Almeida de Castro(Organizadores)

    Campina Grande-PB2017

  • Sobre o ebook

    Design da Capa Luiz Felipe de Oliveira Ramos

    Projeto Grfico e Editorao Jefferson Ricardo Lima Araujo

    Ficha catalogrfica Jane Pompilo dos Santos

    REALIZE EVENTOS CIENTFICOS & EDITORA LTDA Rua: Padre Aristdes Lbo, 331 - So Jos, Campina Grande/PB | CEP: 58400-384

    E-mail: [email protected] | Telefone: (83) 3322-3222

    Copyright RealizeA reproduo no-autorizada desta publicao, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violao da Lei n 9.610/98.

    DEPSITO LEGAL NA BIBLIOTECA NACIONAL, CONFORME LEI N 10.994, DE 14 DE DEZEMBRO DE 2004

    G326 Gnero e sexualidade: interfaces e discursos [Livro eletrnico]./Katemari Diogo da Rosa, Marcio Caetano, Paula Almeida de Castro (organizadores). Campina Grande: Realize Editora, 2017.9700 kb. - 937 p. il.

    http://www.editorarealize.com.br/revistas.php

    ISBN: 978-85-61702-47-2

    1. Literatura. 2. Realismo. 3. Hemoerotismo. 4. Sexualidade. 5. Gnero.I. Rosa, Katemari Diogo da. II. Caetano, Marcio. III. Castro, Paula Almeida de. IV. Ttulo.

    21. ed. CDD 800

  • Sumrio

    APRESENTACAO, 13Katemari Rosa | Marcio Caetano | Paula Castro

    LITERATURA E OUTRAS PALAVRAS, 17

    A MULHER EM DOM CASMURRO E DOM: DILEMAS DE CAPITU E ANA, 18

    Jos Kelson Justino Paulino | Daise Lilian Fonseca Dias

    VIDAS SECAS NA LITERATURA E NO CINEMA: REPRESENTACES IDENTITRIAS E NEORREALISTAS DA MULHER NORDESTINA, 30

    George Patrick do Nascimento

    COMO EMPODERAR UMA MENINA? UM ESTUDO ACERCA DA LITERATURA TEEN CHICK LIT , 42

    Alleid Ribeiro Machado

    A VOVOZINHA DE PERRAULT E GRIMM: O IMAGINRIO NA FORMACAO DA SEXUALIDADE FEMININA NA VELHICE, 57

    Ana Catarina da Silva Nbrega | Adriana Sousa Silva | Josinaldo Furtado de Souza | Francisco Felipe Paiva Fernandes

    ESPELHO, ESPELHO MEU EXISTE ALGUM MAIS BELA DO QUE EU?, 69Ana Thiena Apoliano Gomes da Silva | Francisca Lopes de Souza

    AS REPRESENTACES DO SIGNO IDEOLGICO NAS VESTES DE SOFIA, 82

    Antonia Gerlania Viana Medeiros

    A (RE)CONSTRUCAO IDENTITRIA NA CONTSTICA REZENDEANA: O ALTRUSMO DE AURORA DOS PRAZERES, 96

    Bruno Santos Melo | Fernanda Karyne de Oliveira | Ana Lcia Maria de Souza Neves

  • A REPRESENTACAO DA MULHER EM A MORTE DO CAIXEIRO VIAJANTE: UMA LEITURA PSCOLONIAL, 107

    Daise Lilian Fonseca Dias

    HOMOEROTISMO E PROSTITUICAO MASCULINA EM CONTOS DE GASPARINO DAMATA, 120

    Dorinaldo dos Santos Nascimento

    ARQUTIPO, GNERO E IDENTIDADE EM VENHA VER O PR DO SOL, DE LYGIA FAGUNDES TELLES, 133

    Irio Jos do Nascimento Germano Jnior | Antnio Cleonildo da Silva Costa

    REALISMO, VIOLNCIA E MULHERES EM NEIGHBOURS, DE LLIA MOMPL , 146

    Izabel Cristina Oliveira Martins

    ENTRE CEGOS E ANIMAIS: ALEGORIAS DESESTABILIZADORAS DO FEMININO EM DOIS CONTOS DE CLARICE LISPECTOR, 160

    Joo Ricardo Pessoa Xavier de Siqueira | Matheus Franco Fragoso

    O PATINHO ELMER: UMA ANLISE DISCURSIVA E PRTICA DO OUTRO NA LITERATURA INFANTIL, 174

    Jos Francisco Duran Vieira | Maria de Ftima Duarte Martins

    GNERO E REPRESENTACAO NA LITERATURA: COZINHEIRAS E PATROAS EM ECA DE QUEIRS , 188

    Jos Roberto de Andrade

    HUMOR E ESTERETIPOS EM O PASQUIM, 204Marcelo Rodrigo da Silva

    RELATOS DE CORPOS E (DES)AFETIVIDADES: MEMRIAS DE INSTRUCAO EM GILBERTO AMADO, 219

    Maria Claudia Cavalcante | Francis Oliveira Bezerra

    RESSIGNIFICANDO A MULHER NA LITERATURA ATWOODIANA: O CONTO DA AIA , 231

    Matheus Franco Fragoso | Joo Ricardo Pessoa Xavier de Siqueira | Silvanna Kelly Gomes de Oliveira

  • BELA, RECATADA E DO LAR: A CASA-GRANDE E OS ESPACOS DO FEMININO NAS OBRAS DE JOS LINS DO REGO, 242

    Olindina Ticiane Sousa de Arajo

    CONCEITUACES LUKACSIANAS SOBRE A TIPOLOGIA DO HERI: MACABA, UMA HERONA PROBLEMTICA, 255

    Sheyla Maria Lima Oliveira

    FRONTEIRAS DA SEXUALIDADE: OS LIMITES DO CORPO E A MENTE ANDRGINA DO NARRADOR DE INSCRITO NO CORPO,

    DE JEANETTE WINTERSON, 267Silvanna Kelly Gomes de Oliveira | Matheus Franco Fragoso

    ATIVO X PASSIVO: HOMOAFETIVIDADE, GNERO E INFNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA, 279

    Benedito Teixeira de Sousa

    O FEMININO NO ROMANCE BENJAMIM DE CHICO BUARQUE, 293rica Tavares de Arajo

    AS POSSIBILIDADES DE ENTRELUGAR EM LLEX LEILLA: TRILHANDO CAMINHOS NOS ESTUDOS GAYS, LSBICOS E QUEERS, 303

    Micaela S da Silveira

    OBJETOS DE DESEJO OBJETOS GEOMTRICOS: RELACES POSSVEIS EM O SOL QUE A CHUVA APAGOU, 317

    Micaela S da Silveira

    MDIAS E OUTRAS LINGUAGENS, 331

    QUE MUTANTE VOC SERIA?: A UTILIZACAO DOS X-MEN COMO IDENTIDADE GAY NO LIVRO NO PRESENTE, DE MRCIO EL-JAICK, 332

    Jos Vilian Mangueira

  • DANCANDO CONTRA A CORRENTE: CORPORALIDADE E MOVIMENTO NO FILME BILLY ELLIOT, 345

    Wendell Marcel Alves da Costa

    O QUEER NA MDIA: UMA REFLEXAO, ATRAVS DA PERFORMANCE, SOBRE A REPRESENTATIVIDADE DE

    BICHAS NO PROGRAMA POLICIAL BARRA PESADA., 358Thomas Lopes Saunders

    ANNA KARENINA E THE AWAKENING: A INFLUNCIA SOCIAL NO SUICDIO FEMININO, 380

    Josefa Luiza Nunes Tavares | Fernanda Marabelly de Oliveira Veras

    MULAN E VALENTE: SIMETRIAS, ASSIMETRIAS E RELACES DE GNERO, 393

    Maria do Socorro Pereira de Almeida

    REPRESENTACAO DO FEMININO NA MDIA: CONSTRUCAO DO CORPO E DA FEMINILIDADE EM GIRLS, 407

    Paula Cunha Lopes

    SE AS PAREDES PUDESSEM FALAR: UMA ETNOGRAFIA DE TELA SOBRE AS REPRESENTACES SOCIAIS DE CASAIS LSBICOS , 422

    Amanda Nunes de Assis | Frederico Rafael Gomes de Sousa | Xnia Digenes Benfatti

    BELA, RECATADA E DO LAR: (DES)CONSTRUINDO DISCURSOS SOBRE A FEMINILIDADE NA CONTEMPORANEIDADE., 434

    Ana Paula Costa Nascimento | Guy Bravos Monteiro Neto | Gwendoline Jacqueline Mignot | Aline Maria Barbosa Domcio Sousa

    COMECEI A ME MONTAR COM AS COISAS DELAS: AS REDES DE AMIZADES EM MICROTERRITRIOS E A REINVENCAO DE SI , 447

    Ciro Linhares de Azevdo

    TRANSEXUALIDADE E O DIZER PSICANALTICO, 461Francisco Andr da Silva | Ivana Suely Paiva Bezerra de Mello

  • DISCURSO, CORPO E MDIA QUE CORPO ESSE MONA LISA??!!, 473Jos Gevildo Viana

    A EPOPEIA DE GILGAMESH: UM PARADIGMA PR MODERNO DE AMOR E CASAMENTO DO MESMO SEXO, 487

    Jos Walter da Silva

    ANTES DA MULHER: A SUBJETIVIDADE DO CORPO NA FOTOGRAFIA COMO FRENTE DE ACAO FEMINISTA , 499

    Karla Gonalves

    POR OUTRA RELACAO CONSIGO MESMO: REFLEXES INTRODUTRIAS E INTERMITENTES SOBRE O DISPOSITIVO DA SEXUALIDADE NOS

    DITOS E ESCRITOS DE MICHEL FOUCAULT, 510Millene Rhayenne Teixeira da Silva | Diogo Emmanuel Lucena dos Santos |

    Romildo Fellipe do Nascimento Silva

    A PERCEPCAO DE GAYS SOBRE A APRESENTACAO DA IDENTIDADE HOMOSSEXUAL, 525

    Pala Kessy de Souza Belo | Bianca Jorge Sequeira | Perla Alves Martins Lima

    MALU: MEMRIAS DE UMA TRANS: ANLISE DA REPRESENTACAO DO TRANSGNERO, 538

    Raul Felipe Silva Rodrigues

    SUBVERSAO DE GNERO EM JOHNNY HOOKER E LINIKER: TRANSGRESSAO DA MASCULINIDADE NA MSICA BRASILEIRA, 553

    Ribamar Jos de Oliveira Junior | Samuel Macdo do Nascimento

    UMA TRILOGIA DA FIGURA MATERNA NO TEATRO BRASILEIRO, 565Romair Alves de Oliveira

    EU QUERO UMA PESSOA PARA QUEM EU ME ENTREGUE DE CORPO E ALMA!: AMOR, SEXO E FIDELIDADE EM RELACIONAMENTOS

    HOMOAFETIVOS, 581Nathalya Cristina Ribeiro Trigueiro | Mrcia Swnia Brito da Silva

  • CONTEXTOS SCIO-POLTICOS DA SEXUALIDADE: DO CAMPO ANTROPOLGICO AO OLHAR (DES)VIADO

    SOBRE OS CORPOS TRANS*VERSALIZADOS NO CANDOMBL, 595Claudenilson da Silva Dias | Rosangela Costa Arajo

    A RESSUREICAO DA SUBJETIVIDADE FEMININA NA FUGA DO CASAMENTO, 609

    Dbora Lorena Lins

    A PAQUERA ENTRE HOMENS NO FACEBOOK, 622Fabrcio de Sousa Sampaio

    O ARQUTIPO DO CORNO: UM CONSTRUTO CMICO-VIOLENTO, 638Haiany Larisa Lencio Bezerra | Tnia Maria Augusto Pereira

    GNERO E RELACOES SOCIAIS: REFLEXES SOBRE A VIOLNCIA NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA, 650Andrea Alice Rodrigues Silva | Leticia da Silva Cabral

    TERAPIA AFIRMATIVA CENTRADA NA PESSOA: UMA PROPOSTA, 662Francisco Andr da Silva

    POLTICA, EDUCACAO E OUTRAS ACES, 674

    DISCUSSES INICIAIS SOBRE LESBIANIDADES E EDUCACAO ESCOLAR , 675

    Keith Daiani da Silva Braga | Mrcio Rodrigo Vale Caetano |Arilda Ines Miranda Ribeiro

    JOVENS GAYS NA ESCOLA: DA VIOLNCIA HOMOFBICA CONTRACULTURA DAS DIFERENCAS, 689

    Alexandre Martins Joca

    PRTICAS DISCIPLINARES NA CULTURA ESCOLAR DO COLGIO ESTADUAL DE CAMPINA GRANDE (1953-1959), 704

    Nita Keoma Lustosa de Sousa

  • INTERPOSICES RELIGIOSAS CRISTAS FRENTE EDUCACAO EM SEXUALIDADE COMO POLTICA DE ENSINO DA REDE MUNICIPAL

    DO RECIFE, 718Regina Bezerra de Gouveia | Newton Darwin de Andrade Cabral

    A CLASSE TRABALHADORA NO BRASIL: EXPERINCIA, ESTRUTURA E GNERO. UMA HOMENAGEM A ELIZABETH SOUZA-LOBO, 729

    Djamiro Ferreira Acipreste Sobrinho

    SADE MENTAL DA MULHER COMPREENSAO SOBRE A RELACAO ENTRE MULHERES E DEPENDNCIA QUMICA EM CAPS AD, 744

    Romildo Fellipe do Nascimento Silva | Diogo Emmanuel Lucena dos Santos |Sybelle Karollynne de Holanda Azevedo Barros |

    Millene Rhayenne Teixeira da Silva | Lucyanna Maria de Souza Melo

    PARTICIPACAO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS: REFLEXES A PARTIR DA EXPERINCIA DA 1 CONFERNCIA MUNICIPAL DE DIREITOS

    HUMANOS DE CARUARU/PERNAMBUCO, 758merson Silva Santos

    CUIDADO MULHER: O QUE DIZ A POLTICA NACIONAL DE SADE INTEGRAL LGBT, 770

    Andrea Alice Rodrigues Silva | Leticia da Silva Cabral

    LIMITES E POSSIBILIDADES DA LUTA CONTRA HOMOFOBIA NA CIDADE DE PICOS - PI, 782

    Andrea Alice Rodrigues Silva | Leticia da Silva Cabral

    MOVIMENTO SOCIAL E ATIVISMO LGBT NO BRASIL: REFLEXES SOBRE DIREITOS SEXUAIS E CIDADANIA, 794

    Alexandre Martins Joca

    GNERO E SEXUALIDADES EM TRAJETRIAS DA DOCENCIA, 808Marcio Caetano | Paulo Melgao Jr.

  • EDUCACAO E GNERO, 828

    DISCUTINDO AS QUESTES DE GNERO ATRAVS DO MTODO PENSAR ALTO EM GRUPO NA AULA DE LNGUA PORTUGUESA, 829

    Maria Celma Vieira Santos | Iskaime da Silva Sousa |Nelson Eliezer Ferreira Jnior

    EDUCAR E NORMATIZAR: A PRODUCAO DA IDENTIDADE E DIFERENCA NO ESPACO ESCOLAR, 841

    Romualdo da Silva Sales | Roberta Tiburcio Barbosa |Rogrio Marcelino dos Santos Melo

    PERCEPCAO E ATUACAO DE DOCENTES DO ENSINO MDIO FRENTE HOMOSSEXUALIDADE NA ESCOLA, 853

    Sskya Jorgeanne Barros Bezerra | Grayce Alencar Albuquerque

    TEORIA QUEER VAI ESCOLA: (COMO) ESTAMOS LIDANDO COM ESSA PRESENCA?, 865

    Camilla de Melo Silva | Camilla Marques da Silva |Micaela S da Silveira

    DIREITOS HUMANOS, POLTICAS PBLICAS E GNERO, 879A SADE DA MULHER LSBICA E BISSEXUAL: O ESTADO DA ARTE, 880

    Josefa Eliziana Bandeira Crispim | Ivoneide Lucena Pereira | Jordana de Almeida Nogueira | Sandra Aparecida de Almeida

    DIREITOS HUMANOS, TRABALHO E ESFERA PBLICA PARA TRAVESTIS E TRANSEXUAIS , 895

    Adolff Ucha de Lima

    MEMRIAS DE MULHERES ENCARCERADAS E O TRABALHO NO TRFICO DE DROGAS, 912

    Marta Bramuci de Freitas | Ana Elizabeth Santos Alves

    VIOLNCIA CONTRA MINORIAS SEXUAIS: PERFIL DOS AGRAVOS NO INTERIOR DO CEAR, 927

    Grayce Alencar Albuquerque | Sskya Jorgeanne Barros Bezerra

  • Gnero e sexualidade: interfaces e discursos

    13ISBN: 978-85-61702-47-2

    Apresentao

    As revoltas estudantis desenvolvidas em vrios pases ocidentais, a contracultura, a luta pelos direitos civis de minorias sexuais, os movimentos revolucionrios e de independncia poltica nos pases americanos, africa-nos e asiticos e, sobretudo, as crticas do movimento feminista estrutura patriarcal e ao sujeito universal, especialmente a partir da dcada de 1960, abriram caminhos ao surgimento de novos sujeitos sociais e polticos no chamado sculo sangrento e da emancipao das mulheres, como afirmou o historiador Eric Hobsbawm (1995)1.

    Integrado no intenso debate promovido pelo movimento feminista, o conceito de gnero se disseminou rapidamente entre os campos de produ-o de conhecimento na segunda metade do sculo XX. Esse movimento esteve inserido em um momento de alteraes substanciais nas Cincias que, por sua vez, no estavam ausentes dos debates polticos que envolviam o contexto de ps-guerras e dos movimentos sociais emergentes em inme-ras partes do mundo. Ao ponderar o sexo como um feito a esclarecer, em vez de fator, por si explicativo, o conceito de gnero corresponde ao pro-psito de colocar as diferenas entre os sexos na agenda de investigaes acadmicas e nas elaboraes de marcadores para as polticas pblicas. Esse quadro foi de extrema importncia porque possibilitou retirar o corpo do domnio exclusivo da biologia; com o conceito de gnero elaborado pelas feministas, o corpo sexual teve suas anlises tambm orientadas pelas condies histricas e sociais de produo de cultura e poltica.

    Como sustenta Judith Butler (2003) em Problemas de Gnero2, publi-cao na qual prope a ideia de matriz de inteligibilidade, o primeiro elemento a subjetivar o corpo, a fundar na carne a pessoa, seria o gnero, ou melhor, a marca de gnero, e da o lugar de destaque que o ultras-som ocupa nesse processo ao, como um deus, inaugurar o humano. Esse seria, segundo Butler, o momento fundacional do sujeito e, portanto, de

    1 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve sculo XX: 1914- 1991. So Paulo: Cia. Das Letras, 1995.

    2 BUTLER, Judith. Problemas de gnero: feminismo e subverso da identidade. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2003.

  • Gnero e sexualidade: interfaces e discursos

    14ISBN: 978-85-61702-47-2

    estabelecimento de sua inteligibilidade, isso , da possibilidade de ser lido pela cultura heteronormativa.

    Com isso, verificamos que os corpos j nascem conspurcados pela cul-tura, j se originam cirurgiados por tecnologias discursivas precisas que iro orientar e validar as formas adequadas e imprprias do gnero, con-forme nos afirmou Berenice Bento (2006). Nessa lgica normalizada no somos somente ns a determinarmos o gnero de nossos corpos, eles so configurados por meio dos dilogos com as tecnologias educativas e perfor-mativas que nos regulam. A construo dos corpos-sexuados, naturalizados como diferentes, mais um assunto da disputa de saberes que se instaurou com a histria da modernidade. Como o gnero constitudo e significado atravs de tecnologias educativas assimtricas de mbito cultural, social, poltico e histrico, ele que significa o sexo. Portanto, no existe sexo in natura sem gnero.

    Quando o corpo vem luz do dia, j carregar um conjunto de expectativas sobre seus gostos, seu comportamento e sua sexualidade, antecipando um efeito que se julga causa. A cada ato do beb a/o me/pai interpretar como se fosse a natureza falando. Ento, se pode afirmar que todos j nascemos opera-dos, que somos todos ps-operados. Todos os corpos j nascem maculados pela cultura. A interpelao que revela o sexo do corpo tem efeitos protticos: faz os corpos-sexuados. Analisar os corpos enquanto prteses significa livrar-se da dicotomia entre corpo-natureza versus corpo-cultura e afirmar que, nesta pers-pectiva as/os mulheres/homens biolgicas/os e as/os mulheres/homens transexuais se igualam. Esta a primeira cirurgia a que somos submetidos. A cirurgia para a construo dos corpos sexuados. Neste sentido, todos somos transexuais, pois, nossos desejos, sonhos, papis no so determinados pela natureza. Todos nossos corpos so fabricados: corpo-homem, corpo-mu-lher. (BENTO, 2003. p. 02)3.

    At aqui temos defendido que os corpos so diariamente interpela-dos e as pedagogias que os educam buscam milimetricamente desenhar suas configuraes identitrias. Mas preciso que saibamos que, nas vivn-cias rotineiras dos sujeitos, as identidades so posteriores configurao cotidiana do corpo, essa mais gil e rizomtica, menos capturada pela

    3 BENTO, Berenice. Transexuais, corpos e prteses. Revista Labrys estudos feministas. No. 4, ago/dez, 2003.

  • Gnero e sexualidade: interfaces e discursos

    15ISBN: 978-85-61702-47-2

    classificao. Elas, as identidades, precisam, para existir, de um teatro discursivo que solicita aos recursos cientficos, sociais, culturais e histricos a sua escrita lingustica orientadas pelas dinmicas androcntricas e hetero-normativas (CAETANO, 2016)4.

    Como situao, a dimenso de conhecimento sobre o corpo, a pro-duo do sexo no corpo e a prpria inveno do gnero a partir do sexo so interpelados e ganham significados sociais na cultura por meio da lin-guagem. Essa situao lembra Foerster (1996)5, no momento que o autor descreve o mundo como uma imagem da linguagem. A linguagem vem primeiro; o mundo uma consequncia dela [...] Se algum inventa algo, ento a linguagem o que cria o mundo (p. 66). Nesse sentido, ela no apenas um meio pelo qual a realidade se torna acessvel aos sujeitos e pelo qual compartilhamos significados, mas produtora de realidades. Quer dizer, constitui a linguagem, portanto, o prprio mundo e as coisas que nele habi-tam. Somos seres de linguagem. No h nada antes da linguagem. Se esse antes existe, ele no pode ser recuperado seno pela linguagem.

    Quando trazemos essas provocaes de Foerster e Butler para refletir sobre as dimenses do gnero e das sexualidades, somos conduzidos e con-duzidas a pensar que elas falam muitas linguagens, se dirigem a muitos tipos de pessoas e oferecem uma cacofonia de distintos valores e possibilidades. A capacidade humana de inventar identidades, desejos e prticas a partir de seus significados sobre gnero e sexualidades fragiliza qualquer certeza e nos denuncia que mesmo com toda a tentativa de determinar as performati-vidades dos corpos, com graus de liberdade, as pessoas se reinventam, elas produzem seus corpos e existncias.

    Levando em considerao que o corpo a base onde o conheci-mento significado e ele o ponto de partida da produo e expresso da cultura, as sexualidades e o gnero ganham significados e reafirmam a necessidade de problematiz-los continuamente com vista a fragilizar suas verdades. neste cenrio que emerge o livro Polifonia: estudos sobre gnero e sexualidade originrio dos debates oportunizados com a estudan-tes, profissionais, pesquisadores/as e interessados/as nas discusses acerca

    4 CAETANO, Marcio. Performatividades Reguladas: heteronormatividade, narrativas biogrficas e educao. Curtiba: Appris, 2016.

    5 FOERSTER, Von Heinz. Viso e conhecimento: disfunes de segunda ordem. In: SCHNITMAN. Dora Fried. Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Trad. Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Mdicas. 1996. (p. 59-74).

  • Gnero e sexualidade: interfaces e discursos

    16ISBN: 978-85-61702-47-2

    das questes relacionadas a gnero, sexualidade e a produo do conhe-cimento que estavam XII Colquio Nacional Representaes de Gnero e de Sexualidades, realizado de 08 a 10 de Junho de 2016, no Centro de Convenes Raymundo Asfora - Campina Grande - PB.

    Katemari RosaMarcio Caetano

    Paula Castro

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  • Gnero e sexualidade: interfaces e discursos

    18ISBN: 978-85-61702-47-2

    A MULHER EM DOM CASMURRO E DOM: DILEMAS DE CAPITU E ANA

    Jos Kelson Justino Paulino1

    Daise Lilian Fonseca Dias2

    Resumo

    O objetivo central deste artigo fazer um estudo comparativo na pers-pectiva feminista entre as heronas do romance Dom Casmurro (1857), de Machado de Assis, Capitu, e Ana, do filme Dom (2003), de Moacyr Gis, uma releitura moderna da obra machadiana. Este estudo ir mostrar como os protagonistas - de gneros e linguagens diferentes - masculinos veem as protagonistas femininas, ambas aprisionadas em dilemas prprios do seu sexo, uma no contexto do sculo XIX, em condies mais opressoras, a outra, uma mulher do terceiro milnio, ainda vitima do sistema patriarcal que limitava Capitu, representado atravs da figura masculina que parece no ter sofrido alteraes nas suas convices enquanto esposo, mesmo no sculo XXI. Ges debate aspectos das relaes de gnero problematizadas por Machado que ainda perduram na atualidade, castrando a liberdade total da mulher de viver plenamente as conquistas do seu sexo, em pleno sculo XXI.Palavras-chave: Representao, espaos, sociedade, mulher.

    1 Especialista em Estudos Literrios pela Universidade Federal de Campina Grande. Professor de Ingls e Portugus na cidade de Coremas e Condado PB. E-mail: [email protected] .

    2 Daise Lilian graduada em Letras Lngua Verncula e Lngua Inglesa (UFRN), possui curso de aperfeioamento em Metodologias do Ensino de Lngua Inglesa (University of Texas), mestrado em Literaturas de Lngua Inglesa (UFPB) e doutorado em Literatura e Cultura (UFPB). professora de Lngua Inglesa e suas literaturas da UFCG. E-mail: [email protected].

    mailto:[email protected]:[email protected]
  • Gnero e sexualidade: interfaces e discursos

    19ISBN: 978-85-61702-47-2

    Introduo

    A escolha de Dom Casmurro (2008) para esta pesquisa justifica-se pelo fato de que, alm de ser uma obra consagrada dentro e fora da acade-mia, ela um romance de relevncia nacional, pois inaugura, juntamente com outras obras do autor, a exemplo de Memrias pstumas de Brs Cubas (1881), o estilo inovador que caracterizou uma poca e que estava em fase inicial, o realismo/simbolismo. Dom Casmurro (2008) caracteriza-se pela ironia; crticas sociedade do sculo XVIII, o que inclua a hipocrisia; ambi-guidade do ser humano (dualidade); a mulher adltera; o cime como tema principal.

    O livro considerado um romance realista que possui atitude crtica, objetividade e contemporaneidade. Contudo, ainda mostra alguns traos do Romantismo, a exemplo dametfora utilizada para descrever os olhos da protagonista Capitu; do romance Impressionista, como por exemplo, a recriao do passado atravs dautilizao da memria; elementos Clssicos, como equilbrio, contenso lrica e expressional. Esta obra tambm apre-senta o que se poderia chamar de antecipaes modernas, como no caso da aluso a temas que permitem diversas leituras e interpretaes, como o cime.

    Observando a qualidade de Dom Casmurro (2003) e sua importn-cia para a literatura brasileira, digno de nota o fato de que foram feitas algumas adaptaes cinematogrficas e televisivas tendo como base esse texto. Em 1968, a primeira adaptao para o cinema recebeu o nome de Capitu; seu roteiro foi escrito porPaulo Emlio Sales Gomesepela aclamada escritora Lygia Fagundes Telles. O filme era em preto e branco e pode ser considerado uma leitura bastante aproximada do livro.

    O filme Dom (2003) de Moacyr Ges, escolhido para anlise neste trabalho, a segunda adaptao cinematogrfica do romance em questo. Ges props uma releitura moderna do clssico, permitindo substituies, acrscimos e ocultamentos, uma vez que se tratava de uma montagem moderna do romance de Machado de Assis e destacava as mudanas con-textuais, inclusive sobre a questo do cime na atualidade. O filme tem em seu elenco o famoso tringulo do livro, representados pelos atores Maria Fernanda Cndido, Marcos Palmeira e Bruno Garcia, com roteiro do prprio Ges.

  • Gnero e sexualidade: interfaces e discursos

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    A terceira adaptao da obra foi Capitu (2008), esta no foi desenvol-vida para o cinema, mas para a televiso. Dividida em quatro captulos, a microssrie foi exibida pela Rede Globo de Televiso em horrio nobre. A adaptao televisiva foi exposta de maneira teatral, bastante fiel ao livro, e mostrava um nico cenrio onde os objetos de cena e cmeras iam mudando de posio, destacando o dinamismo da TV e a proposta teatral da produ-o. A produo contava com Maria Fernanda Cndido, tambm no papel de Capitu, Michel Melamed (Bento) e Eliane Giardini (Dona Glria).

    Ao acompanharmos o filme de Ges (2003), percebemos relevantes mudanas em relao obra de Machado de Assis. Primeiramente por que se trata de uma obra cinematogrfica inserida na atualidade, seguindo o contexto atual e, segundo, porque no visa a fidelidade em relao obra original, pois moderniza os fatos e atualiza os temas. Todavia, o olhar deste trabalho se debrua sobre as personagens femininas de ambas as obras.

    Capit e Ana: Semelhanas e Diferenas

    A protagonista Ana do filme Dom (2003), de Moacyr Gis apresenta grandes semelhanas com a personagem Capit, do romance Dom Casmurro (1857) de Machado de Assis. Ambas so retratadas como misteriosas e ousa-das. Capitu, aos quatorzes anos, j mostrava idias consideradas ambiciosas para uma adolescente do seu tempo:

    Se eu fosse rica, voc fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa. (...) Como vs, Capitu aos quatorze ano , tinha j idias atrevi-das, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram s atrevidas em si, na prtica faziam-se hbeis, sinuosas, surdas, e alcanavam o fim proposto, no de salto, mas aos saltinhos (ASSIS, 1994, p. 37-38).

    Em virtude da condio da mulher no seu tempo, Capitu no teve o privilgio de viver experincias como a protagonista de Ges que atriz, antes de se aventurar pelas guas do matrimnio com um homem machista.

    Apesar da independncia de Ana, o filme no traz considerveis ati-tudes da moa em relao obsesso de seu marido, pois a mesma prefere no confrontar constantemente o esposo. Ana apenas se mostra constran-gida com as desconfianas de Bento (ele tem dvidas sobre sua fidelidade) e, somente no final do filme, decide abandonar o marido e levar consigo o filho do casal. Percebe-se pelo caminhar de sua vida que a personagem

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    tambm ousada. Ana era rf de pai e me e desde cedo comeou a se sustentar sozinha. Decidiu seguir a profisso que lhe dava prazer, a de atriz. A moa era bastante independente e no admitia que qualquer pessoa interferisse em seu trabalho. Sua determinao marca a imagem da mulher do sculo XXI, pois a mesma conseguiu ter coragem de encarar seu prprio marido para ir em busca de seus ideais.

    Percebe-se que as duas personagens femininas principais do romance e do filme em estudo se comportam de maneiras diferentes. Em 1857, por exemplo, as mulheres no podiam sequer emitir qualquer tipo de opinio sobre muitas questes, pois seriam rejeitadas. Sabendo disso, Capitu trans-mitia suas ideias para Bentinho de maneira discreta, contando sempre com a ajuda de Jos Dias, j que ele era homem e bem mais velho que Bento. Os pensamentos de Capitu eram explicitados pelo prprio Bentinho e depois direcionado para os seus responsveis, mostrando que a personagem era astuta e gil ao convenc-lo de suas ideias.

    J Ana, vive em um tempo em que a mulher tem mais liberdade de expresso, e toma suas prprias decises. Apesar do preconceito com a pro-fisso que escolheu, a moa no se faz de derrotada e enfrenta o marido de maneira satisfatria. Enquanto isso, Bento trazia consigo a figura do homem moderno, porm machista, tentando transformar a amada em mais uma mulher oprimida pela sociedade patriarcal.

    No quesito beleza, algo que despertava o cime do marido, Capitu ins-pirava Bento de tal maneira que o moo no lhe poupava elogios: Capitu passou a ser a flor da casa, o sol das manhs, o frescor das tardes, a lua das noites (ASSIS, 1994, p. 115). A beleza de Capitu descrita por Bento era to grandiosa. Capit era Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo (ASSIS, 1994, p. 57). Com relao beleza de Ana descrita por Bento, ela assemelhava-se de Capitu, mostrando em alguns pontos que qualquer homem ficaria disposio das vontades de tal moa. Alm de comparar a moa com os olhos de ressaca de Capitu, ele a via da seguinte forma:

    A imagem de Ana reconstruiu em mim as imagens de outro tempo. (...) os olhos. O que foram aqueles olhos? O que fizeram de mim? Olhos de ressaca que me arrebatavam. A no ser arras-tado, tentava me segurar nas partes vizinhas, as orelhas, a boca, os cabelos. No podia resistir. Voltava aos olhos de Ana. Capitu (GES, 2003).

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    Miguel, amigo de Bento, tambm se mostra interessado nos atributos de Ana: Que olhos heim? (...) uma mulher dessa capaz de destruir a vida de um homem (GOES, 2003). Em seu discurso, percebe-se que Ges (2003) comea a lanar dvidas, fazendo o pblico ansiar pelo desfecho da histria.

    Capit e Ana aos olhos dos protagonistas

    Como notrio, desde o lanamento do romance em estudo que a personagem Capit passou a ser tida como adltera. A beleza, as atitudes e o poder de persuaso que a moa mostrava para com Bento, juntamente com seu dom de conquistar a famlia do rapaz podem ter sido alguns pon-tos determinantes para que se chegasse tambm tal concluso sobre seu carter. Como a histria contada depois de ter acontecido, e atravs da narrao ulterior, tem-se a ntida impresso que Bento narra tudo, sempre colocando alguns indcios que Capitu, de fato, o traiu e complementa a ideia de suspeito com alguns defeitos da moa.

    Em alguns momentos, o rapaz insinua que sua amada interesseira e que s se casara com ele devido a uma grande herana que ele herdaria. Durante o casamento dos dois, o padre falava em latim, Bento por ser ex-se-minarista compreendia as palavras do vigrio, mas Capitu no. Contudo, o rapaz explica que existia uma frase que Capitu havia memorizado para este momento: Sentei-me sombra daquele que tanto havia desejado (ASSIS, 2008, p. 193). Percebe-se que Bento, sutilmente, faz insinuaes sobre os interesses de Capitu a sua herana. Assim, Machado de Assis no havia escolhido especificamente este versculo de So Pedro de maneira aleat-ria. Percebe-se nas palavras acima citadas a sugesto de que Capitu estava a procura de descanso financeiro e ao lado de Bento ela garantiria isso para si. O versculo de So Pedro, pode ter tambm inspirado Ges na caracteri-zao da personagem Ana, uma vez que a moa seria o oposto das palavras ditas na cerimnia de casamento dos personagens de Machado de Assis. Em momento algum Ana se mostra intil e sempre deixa explcita sua vontade de voltar a trabalhar como fazia antes de casar-se com Bento. Mas Bento quem fazia as palavras de So Pedro as suas prprias, exigindo que Ana as seguisse, defendendo a submisso da esposa ao marido.

    No que diz respeito ao primeiro contato mais ntimo entre os prota-gonista de Machado, o beijo de Capitu e Bentinho foi na adolescncia: ela

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    tinha 14 anos e ele 15. Enquanto Bentinho fazia uma trana no cabelo de Capit, ela contava um sonho que teve na noite passada e, em seguida, o to esperado beijo acontece. J o beijo de Bento e Ana acontece no segundo encontro do casal. Depois de almoarem, os dois decidem dar uma volta prximo praia e terminam um nos braos do outro. Uma constatao interessante que pouco antes do beijo, Bento fala que sonhara com Ana a noite passada e que a moa estava contando seu sonho quando eram crianas. O sonho dizia que os dois estavam no mar e que ondas gigantes os assustavam. Intencionalmente, Ges (2003), descreveu o primeiro beijo do casal do filme, justamente prximo praia, visto ser o mar um smbolo de instabilidade, inconstncia, uma referncia ao tipo de relacionamento que os protagonistas teriam.

    Diante do exposto em relao ao relacionamento dos protagonistas de ambas as obras, pode-se identificar no livro de Machado de Assis, vrios referncias aos cimes de Bento. certo afirmar que, como a histria foi contada por Bento depois de adulto, registram-se constantes insinuaes sobre Capitu e Escobar. Desde o incio da narrao o protagonista faz uso de sua ironia para antecipar alguns fatos que viriam a esclarecer mais tarde a questo da fidelidade de Capitu. No captulo X, por exemplo, percebe-se a sutileza de Bento em mostrar sua situao depois do casamento com a amada Capitu. O rapaz compara sua vida a uma pera. Deve-se salien-tar que neste captulo o moo no narrara prpria vida, apenas d uma breve pausa para referir-se a uma teoria que naquele momento lhe coube perfeitamente:

    Cantei um duo tecnicismo, depois um trio, depois um quatuor... Mas no adiantemos; vamos primeira parte, em que eu vim a saber que j cantava, porque a denncia de Jos Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim que ele me denunciou (ASSIS, 2008, p. 63).

    No fragmento acima, percebe-se claramente que Bento estava se refe-rindo ao tringulo amoroso entre Capitu, Escobar e ele. Ao comentar o trecho da pera cantada por duas pessoas, o rapaz estava mencionando ele mesmo e Capitu. Depois disso, insinua uma parte com trio, fazendo refern-cia chegada de Escobar em sua vida e, depois, em seu casamento, como amante de Capitu. A dvida sobre o quatuor continua a prevalecer. Bento

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    insinua, todavia, que existia uma quarta pessoa no relacionamento. Se exis-tiu, a quem o protagonista se refere no fica explcito na obra.

    No filme de Ges (2003), o personagem Bento no poupa Ana de suas impresses sobre a traio da mulher. Se Bento, no livro de Machado de Assis fazia tudo como o mximo de sutileza, mostrando sua viso ape-nas para os leitores, o Bento do filme no fazia segredo de suas opinies, fazendo referncia tambm ao tringulo amoroso entre ele, Ana e Miguel. Enquanto Ana gravava as ltimas cenas de seu filme, Bento aparece de sur-presa chamando a moa para voltar para casa. Ao rejeitar o pedido de seu marido, o rapaz no reprime sua viso: no sei por que vocs esto to constrangidos. Afinal de contas, ns somos um tringulo (GES, 2003).

    Depois de tantas insinuaes, encontra-se de fato uma cena que reflete um momento forte e explcito dos cimes de Bentinho. No captulo LXXIII observa-se amostras de angstia e desespero do protagonista ao pensar que Capitu poderia est envolvida com outro rapaz:

    O cavaleiro no se contentou de ir andando, mas voltou a cabea para o nosso lado, o lado de Capitu e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabea do homem deixava-se ir vol-tando para trs. Tal foi o segundo dente de cime que me mordeu. A rigor, era natural admirar as belas figuras; mas aquele sujeito costumava passar ali, s tardes...Vo l raciocinar com um cora-o de brasa, como era o meu! Nem disse nada a Capitu...(ASSIS, 2008, p. 159).

    O notrio momento de cimes registrado no fragmento acima pode ser considerado o primeiro acontecimento solidificado em aes concretas em relao ao cime de Bento por Capitu, pois a maioria das demonstraes de cimes do rapaz eram manifestadas apenas por pensamentos, de modo implcito, sem manifestaes formais e evidentes de sua parte. Detecta-se que o cime de Bento to grande e incontrolvel que ele prefere sair do ambiente em que estava simplesmente para no ver a cena que desenrola-va-se diante dos seus olhos.

    No filme Dom (2003), a primeira cena de cime de Bento mostrada de maneira bastante sutil. O jogo de cmeras mostra seu rosto preocupado de tal maneira, que sem precisar de texto algum, entende-se que ali o princpio de uma srie de desconfianas em relao sua mulher Ana. A cena tem incio na praia quando Bento e Miguel esto conversando na areia sobre o casamento relmpago com Ana. Enquanto os amigos conversam,

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    ela est ao fundo, banhando-se nas guas da praia. No discurso dos dois, ambos concordam com as qualidades da moa, deixando explcito que de alguma forma Miguel guarda certa inveja do amigo e at lamenta o com-promisso de Ana com Bento deixando soltar: Filho da puta! No meu teste! (GES, 2003), dando a entender que a moa deveria ser do produtor e no de Bento, uma vez que Ana estava no territrio de Miguel, que perdeu a oportunidade de se envolver com ela.

    Na sequncia desta cena, depois de conversarem um pouco mais, Ana aparece e chama o marido para banhar-se, mas Miguel se adianta e aceita o convite sem mesmo ter sido chamado. Bento, por sua vez, rejeita o pedido de Ana. A moa vai para a gua com Miguel. Neste instante, a cmera foca-liza primeiramente as brincadeiras dos dois na gua e, em seguida, o rosto de Bento, que de despreocupado torna-se pensativo. Alm do close dado na face e no olhar preocupado do rapaz, uma msica de suspense toma conta da cena, sugerindo que a tenso j estava comeando. A trilha de suspense marca as primeiras preocupaes do protagonista. Junto com a msica, as cenas foram mostradas em cmera lenta, enquanto Ana gritava o nome de seu marido, o rapaz imediatamente baixa a cabea. A sequncia d uma ideia clara de que ao chamar o nome de Bento e a imagem segui lenta-mente, percebe-se que ali seria o incio dos fortes acontecimentos e que faria Ana se afastar do marido, como um sinal de adeus.

    Quando se toma o filme como um todo (incluindo o menu), perce-be-se que a primeira cena apresentada no menu interativo , justamente, a cena da praia, mostrada atravs das letras da arte grfica do filme e por uma imagem avermelhada. A produo do DVD mostra tal cena logo no incio do mesmo como se estivesse sugerindo que o pblico deve focar sua aten-o para tal sequncia, pois ali seria o incio dos pensamentos ciumentos do protagonista.

    Pode-se detectar que Ges (2003) criou a cena em estudo para referir--se ao captulo CVI do livro de Machado de Assis. O ttulo dele Cimes do mar. O nome bastante sugestivo. Em uma conversa com Bento, Capitu fita o mar de tal maneira que perde-se totalmente em devaneios, distrain-do-se to profundamente que esquece-se das palavras que lhe esto sendo proferidas pelo seu marido. Isso incomoda Bento que no tinha cime do mar, mas dos pensamentos da moa. O rapaz levanta hipteses de que sua mulher estaria imaginando algo que fez de errado, como se sua conscincia estivesse to pesada que causou-lhe a distrao.

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    O amor do protagonista de Dom (2003) era bem mais intenso que o do personagem de Machado de Assis. Pode-se perceber que houve uma ampliao da intensidade do sentimento entre os protagonistas de Ges. A ampliao a transformao que consistiu em, no filme, aumentar a dimenso de um ou mais elementos do romance (BRITO, 2006. p. 20). Sendo assim, percebe-se que a ligao, atitudes e aes que Bento tinha para com Ana, pareciam mais verdadeiras e intensas que aquelas entre Bento e Capitu. Enquanto no filme Bento se mostrava completamente emotivo com a presena de Ana e animado com a idia de poder t-la para si, exposta em cenas mais ntimas, o personagem de Machado de Assis, apesar de esperar por Capitu por longos anos e mostrar-se contente com o envolvimento com a moa, no convence o leitor que est to eufrico como o personagem do filme o faz. As aes do Bento de Machado de Assis, geralmente, so frias e vazias, o oposto do que se v no protagonista do filme.

    Entretanto, um fator de diferenciao para o conflito de ambas as obras est relacionado ao fato de Ana ser uma mulher do sculo XXI, o que signi-fica que trabalhar algo fundamental para ela. Em relao a esse fator, aps os protagonistas do filme concretizarem o amor que sentiam um pelo outro atravs do casamento, um dia Bento chega do trabalho e encontra Ana ter-minando o jantar. Nesta ocasio, Ana deixa claro para o marido que gostava de trabalhar e que sentia falta do teatro e da dana:

    Ana: quero voltar a trabalhar! Voltar a fazer teatro, voltar a dan-ar, sei l!Bento: voc poderia procurar umas agncias aqui em So Paulo. Ou seno liga para o Miguel!Ana: j falei com ele!Bento: como assim?Ana: foi na segunda-feira mesmo lem-bra? Quando voc voltou mais cedo para So Paulo? Bento: onde voc encontrou com o Miguel?Ana: bento, fui l na produtora. Fui l exatamente para falar com ele sobre isso. Amor, falei com Miguel, por que o Miguel nosso amigo. E , ele foi super legal. Disse que se pintar qualquer coisa ele me chama (GES, 2003).

    Bento no esconde seu desagrado em relao sua mulher ter tomado a deciso de ir conversar com seu amigo sem sua permisso. Na obra Dom Casmurro a cena discutida acima se configura de maneira parecida, pois tambm foi um acontecimento que no narrado pelo protagonista, sendo apenas exposto por Capitu em momentos posteriores, o que causa a des-confiana do personagem. No livro de Machado de Assis, depois da lua de mel, Capitu e Bento conversavam despreocupados sobre as estrelas e Marte,

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    podendo-se observar o mar ao longe do lugar de onde estavam. Enquanto Bento falava, percebeu um ar srio e pensativo em Capitu e ps-se a falar com a moa. Com uma Capit distrada e pensativa, a conversa se desenrola:

    - Voc no me ouve, Capitu. -Eu? Ouo perfeitamente. -O que que eu dizia? -Voc...voc falava de Srius. -Qual Srius, Capitu. H vinte minutos que eu falei de Srius. -Falava de... falava de Marte, emendou ela apressada.Realmente, era de Marte (...). Capitu fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era minha. Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na mo; eram as sobras do dinheiro que eu lhe dava mensalmente para as despesas. (...)-No muito, dez libras s; o que a avarenta de sua mulher pde arranjar, em alguns meses, concluiu fazendo tinir o ouro na mo. - Quem foi o corre-tor? - O seu amigo Escobar. -Como que ele no me disse nada? -Foi hoje mesmo. - Ele esteve c? -Pouco antes de voc chegar; eu no disse para que voc no desconfiasse (ASSIS, 2008, p. 198-199 ).

    A partir deste momento, Bento tambm comea a lanar dvidas sobre a fidelidade da mulher e mostra-se, igualmente como se v no Bento do filme, incomodado com a aproximao entre a esposa e o melhor amigo.Tanto a cena do filme como a do livro no foram detalhadas pelos protago-nistas, pois foi um fato acontecido sem a presena do narrador.

    Depois da morte de seu melhor amigo Escobar, Bento vai ao velrio do amigo e surpreende-se. A expresso de Capitu era to misteriosamente tristonha que se algum a visse poderia chegar a concluso que a amizade entre a moa e Escobar era profundamente ntima. Bento deixou escorre-gar algumas lgrimas de seus olhos, mas conteve-se quando viu as de sua mulher:

    Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carcias para a amiga, e quis lev-la; mas o cadver parece que a retinha tambm. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar l fora, como se quisesse tragar tambm o nadador da manh (ASSIS, 2008, p. p. 220-221).

    Tanto Ana como Capitu podem simplesmente ter demonstrado o quo importante o melhor amigo de seus maridos eram para elas. Ana por achar que Miguel sempre lhe deu fora para continuar sua vida profissional e

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    Capitu por achar que Escobar esteve presente nos momentos mais signifi-cativos da vida do marido, alm de consider-lo um amigo. Entretanto, os protagonistas de ambas as obras desfrutavam da mesma desconfiana em relao Capit-Ana. Parece que os cimes dos dois personagens os cega-ram a ponto de no pensarem em outras possibilidades, somente as que lhes convinha.

    Consideraes finais

    As obras em estudo ilustram a questo da figura feminina na corda banca de relacionamentos afetivos insatisfatrios, nos quais a mulher parece ser vista apenas como no famoso esteretipo da mulher monstro, aquela que tra e que o oposto da passiva mulher anjo. Os sculos se passaram, mas Ana, enquanto mulher mudou, emancipou-se, apenas a figura mascu-lina permanece inaltervel, na condio de agente dominador da mulher. Estas obras mostram as armadilhas que esto/estavam sempre espreita da mulher: o cime, a necessidade abusiva de controle da mulher por parte do homem.

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    Referncias

    ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.

    AZERDO, Genilda. Literatura, cinema, adaptao. In: Graphos. Revista de Ps-Graduao em Literatura da UFPB. Ano I, vol. 2. Joo Pessoa: EDUFPB, 1996.

    BAZIN, Andr. Por um cinema impuro: defesa da adaptao. In: BAZIN, Andr. O cinema: ensaios. So Paulo: Brasiliense, 1991.

    BOSI, Alfredo. Machado de Assis. So Paulo: Publifolha, 2002. (Coleo Folha Explica)

    BRITO, Joo Batista. Imagens Amadas. So Paulo: Ateli Editorial, 1995.

    BRITO, Joo Batista. Literatura no cinema. So Paulo: Unimarco, 2006.

    BRITO, Joo Batista. Literatura, cinema, adaptao. In. Graphos. Revista da Ps-graduao em letras da UFPB. Vol. I, N 2. Joo Pessoa: EDUPB, 1996.

    CASTELO, Jos Aderaldo. Realidade e iluso em Machado de Assis. Volume 6. So Paulo: Companhia Editoria Nacional, 1969. (coleo de ensaios).

    DOM. Direo e roteiro: Moacyr Ges. Elenco: Marcos Palmeira; Maria Fernanda Cndido; Bruno Garcia. Distribuio: Warner Bros. Cor. 91 min. 2003.

    GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis. So Paulo: Perspectiva, 1986.

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    VIDAS SECAS NA LITERATURA E NO CINEMA: REPRESENTAES IDENTITRIAS E NEORREALISTAS DA MULHER NORDESTINA

    George Patrick do Nascimento1

    1. Introduo

    bem verdade que, durante a histria da humanidade, as mulheres foram tradadas em um aspecto de submisso ou marginalizao perante os homens. De modo que isso tambm se manifestou na literatura, no sentido de elas no disporem de uma liberdade para serem escritoras em p de igualdade com os demais escritores do sexo masculino, ou at mesmo a mesma educao. Se bem que muitas foram tambm as que se rebelaram contra esse sistema e se intelectualizaram nas letras e nas produes lite-rrias. Porm, antes dessas conquistas, as mulheres j se faziam relevantes por meio de uma presena simblica nos mitos, nos livros de estrias, nas obras de arte em geral, seja no papel de musas, de donzelas perfeitas huma-nas transgressoras. Esse poder de transgresso e de relevncia sociocultural tambm se fez presente na Histria propriamente dita. (MONTERO, 2007).

    Mas, enfim, a figura da mulher, durante muitos sculos da sociedade patriarcal, desempenhou, quase que exclusivamente, uma funo de per-sonagem ou instrumento de inspirao para determinado autor/artista. Ou seja, houve uma dominao masculina tambm no campo da Literatura, de modo que as mulheres costumavam aparecer nesse mundo literrio apenas como um fruto da inspirao e criatividade de algum homem.

    Mas os tempos evoluram e essa parte da histria realmente, a duras penas, virou histria. A mulher conseguiu seu espao perante a sociedade e ainda continua lutando por tantos outros direitos. Na nossa literatura bra-sileira, podemos citar o exemplo de Rachel de Queiroz, que foi uma das muitas escritoras mpares e renomadas do nosso cnone. Seu talento foi

    1 Universidade Estadual do Rio Grande do Norte

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    tamanho que impressionou at mesmo os homens escritores de sua poca, como foi o caso de Graciliano Ramos, o qual chegou at mesmo a ques-tionar a autoria de uma das obras de Rachel: O Quinze. (ALVES, 2015). Por algum tipo de preconceito, ou, na melhor ou pior das hipteses, por causa de uma imposio patriarcal de valores de gnero que o seu contexto sociocultural estabelecia. Contudo, posteriormente, esses dois autores iriam tornar-se amigos, de modo que esse episdio acabou sendo superado.

    Na obra Vidas Secas de Graciliano Ramos, o personagem principal um homem chamado Fabiano, porm, a personagem Sinha Vitria tambm tem um relevante papel no enredo do romance. De modo que, evidenciado, no texto, passagens que demonstram uma possvel inferioridade do prprio Fabiano em relao a ela, como no quesito inteligncia. Assim, descartando o possvel pr-julgamento intelectual acima citado entre os autores, bem verdade que Graciliano Ramos constri, em sua obra-prima, a representa-o de uma mulher que detentora de saberes culturais que superam, de certa forma, o saber dos prprios homens, como ser evidenciado adiante. Dentre outras descries, a personagem Sinha Vitria representada como um sujeito inteligente, enquanto que Fabiano figurativizado como um indivduo que apenas age durante o desenrolar de suas peripcias.

    Desta forma, o presente trabalho objetiva demonstrar o papel social da mulher nordestina como detentora de subliminar superioridade sobre o indivduo masculino, tambm nordestino, na obra literria Vidas Secas do autor modernista Graciliano Ramos, de forma a analisar tambm, com-parativamente, as manifestaes sociais existentes na adaptao feita pelo diretor neorrealista Nelson Pereira dos Santos, em sua obra cinematogrfica de mesmo nome do livro j mencionado.

    2. Metodologia

    Neste trabalho, procura-se examinar e enfatizar as manifestaes his-tricas de gnero da sociedade nordestina, presentes tanto no livro quanto no filme, em que a figura da mulher est estigmatizada como uma este-reotipizao de mulher sertaneja, sem recursos, me de famlia e dona de casa, na poca em que os fatos fictcios relatados nessas produes esto artisticamente inseridos.

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    Tal enfoque discursivo ser construdo a partir de uma perspectiva cultural e tradicional da conduta humana feminina perante a civilizao sertaneja do Nordeste brasileiro.

    Para isso, metodologicamente, ser apresentado explanaes das caractersticas culturais existentes em ambas as obras, bem como dos tra-os literrios que as constituem, todavia, dando destaque a vida difcil da mulher pobre na regio Nordeste. Apontando, inclusive, para a reflexo de uma sociedade rural como fonte de subsdios para o progresso da sociedade local e, sobretudo, para comprovar o valor que a mulher desempenha como parte indispensvel na preservao e conduo da vida dos integrantes da sua prpria famlia (cuidados com os filhos, marido e lar), alm de estar, quase sempre, religiosamente subserviente a alguma doutrina de f, como a catlica, conforme nos apresentam as referidas produes artsticas.

    3. Vidas Secas: fico fundamentada na realidade nordestina

    Apesar de no haver nenhuma passagem que identifique diretamente o lugar, alis, a prpria cidade ou regio em que as personagens da obra Vidas Secas esto inseridas, possvel perceber claramente que se trata do serto nordestino por uma srie de fatores, como o linguajar, os costumes, as vestimentas, a descrio da fauna e flora comuns ao ambiente da caa-tinga, a questo do problema da seca, entre outros fatores. No filme de Nelson Pereira dos Santos essa suposio fica ainda mais evidente em vir-tude de ser um gnero do discurso que utiliza conjuntamente de imagens e sons, ou seja, que ilustra explicitamente os seres e acontecimentos relatados na obra de Graciliano Ramos. Alm do fato das filmagens realmente terem sido feitas em territrio alagoense, terra natal deste ltimo autor.

    Graciliano Ramos constri o dito romance em uma perspectiva que privilegia, marcadamente, o narrador. Tanto que as demais personagens pra-ticamente no so possuidoras de falas expressivas ou substanciais. Alm do fato de o autor as rebaixar, literariamente, para a condio de coisas, ani-mais e seres miserveis. O romance , ento, fundamentalmente, de terceira pessoa por meio de um narrador onisciente. Nesse sentido:

    Graciliano situa as personagens Fabiano, Sinha Vitria e os filhos como exemplos de seres convertidos em animais, brutalizados que esto em suas pelejas para sobreviver. Nesse contexto, eles abandonam a terra ressequida em que nasceram, e vo procurar

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    em outras paragens trabalho, comida, carinho, ternura, alegria, beleza... vida. (PERDIGO, 2010, p. 41).

    Essas descries de inferioridade serviram para que o autor pudesse demonstrar o nvel de pobreza e de vida difcil em que o povo do serto nordestino se encontrava em pocas em que o problema da seca era to preocupante na regio. cabvel ressaltar que o prprio Graciliano era nor-destino, ento ele estava bem familiarizado ou ao menos bem informado sobre a problemtica existente no Nordeste brasileiro, como tambm dos costumes e das pessoas desse territrio. Assim, ao caracterizar suas persona-gens em uma perspectiva de inferioridade humana, ele o faz principalmente no Fabiano, que era o trabalhador subordinado, o vaqueiro, o cabra, ou seja, que estava nessa condio de rebaixamento. O autor faz essa constru-o para comprovar o esteretipo do homem sertanejo, da pessoa pobre e sem estudos.

    Sinha Vitria, por sua vez, era submissa ao marido, como mandava os costumes do casamento e da sociedade (MONTERO, 2007). Mas, apesar dessas marcas, ela a pessoa que detm a inteligncia da famlia, a que aconselha e a que faz a contabilidade dos rendimentos do esposo. Ela , em outras palavras, a parte culta de Fabiano, j que, contrariando de certa forma os costumes e ideologias da famlia patriarcal, embora sejam subor-dinadas, as mulheres no so destitudas de poder (BRANCO, 2000, p. 37).

    Aproveitando dessa descrio sociocultural da realidade brasileira, neste caso, uma realidade nordestina, o diretor/roteirista Nelson Pereira dos Santos lanou na dcada de 60 o filme tambm intitulado Vidas Secas, em virtude de ser uma reproduo fiel, conforme suas prprias consideraes, da obra de Graciliano Ramos. O cineasta Nelson Pereira dos Santos foi um tpico representante da vertente cinematogrfica neorrealista italiana no Brasil e, portanto, percebeu no livro j mencionado, elementos que carac-terizavam a verdade impactante das muitas pessoas oriundas do Nordeste, na poca em que o filme foi produzido (DAVI, 2004). Essa temtica ainda pode ser, inclusive, atual, j que a existncia de reas secas em territrio nordestino, provocada por fatores como a ausncia ou a irregularidade da chuva, agravada por causas socioeconmicas e polticas, tem sido uma das maiores preocupaes da populao local principalmente porque, a maio-ria dela, depende da agricultura e da pecuria para sobreviver (BRANCO, 2000, p. 79).

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    4. O papel sociocultural da mulher sertaneja

    Comentou-se, anteriormente, que a personagem Sinha Vitria, esposa de Fabiano, era tida por ele como uma pessoa de singular inteligncia. Fabiano, homem matuto e de poucas palavras, a admirava por essa singula-ridade e por compreend-lo da forma rstica que ele era. De fato, Fabiano era um homem sem muito jeito para conversas, tanto que ele prprio usava de onomatopeias ou palavras (frases feitas) de um dos seus amigos, o seu Toms da bolandeira, bem como da sua prpria mulher.

    Perdigo (2010) descreve a esposa de Fabiano da seguinte forma:

    Sinha Vitria, sua companheira, a encarregada dos servios domsticos e das crianas, religiosa, acredita em Deus e na Virgem Maria; objetiva, sabe raciocinar e contar com bagos de feijo quanto Fabiano receber do patro (por conta disso, o marido a via como esperta, pois ele era bruto, mas a mulher tinha miolo); sonhadora, sua maior aspirao era possuir uma cama igual do seu Toms da bolandeira, este, homem educado e de leituras variadas. (PERDIGO, 2010, p. 42).

    Sinha Vitria era, aparentemente, uma pessoa com desejos simples. Para ela bastava possuir uma cama mais confortvel do que a de varas em que ela e seu cnjuge dormiam. Analisando essas descries, podemos encontrar, nessa personagem, caractersticas que representam o perfil de muitas mulheres nordestinas, como tambm das de outras regies geogr-ficas brasileiras, uma vez que essa temtica da pobreza, ou de indivduos pertencentes a uma classe socioeconmica desprivilegiada, constitui-se espao de discusses sociolgicas em todo o Brasil e no prprio mundo.

    Alm desse quesito, podemos mencionar que Sinha Vitria era uma mulher caracterizada como religiosa e, apesar de suas crises de rudeza para com o Fabiano ou os filhos, a exemplo de certos momentos, como no trecho: Sinha Vitria tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de prop-sito, dissera ao marido umas inconvenincias a respeito da cama de varas (RAMOS, 2007, p. 40), no fim das contas ela se comportava como uma boa esposa e uma boa me de famlia. Talvez por figurar um ser conhecedor dos preceitos do catolicismo, de modo que podemos encontrar diversas passa-gens que apontam para essa conduta religiosa de Sinha Vitria, tais como: Rezou baixinho uma ave-maria, j tranquila (p. 42); Ouvindo o tiro e os latidos, sinha Vitria pegou-se Virgem Maria (p. 88); Sinha Vitria

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    benzia-se tremendo, manejava o rosrio, mexia os beios rezando rezas desesperadas (p. 117).

    Seja para sossego espiritual, seja por uma questo de rotina ritualstica ou por outros motivos, a marca da religiosidade encontrada, em Vidas Secas, mais nas mulheres do que nos homens, j que eles so geralmente considerados como brutos. No encontramos isso s no livro ou no filme, mas esse esteretipo est ancorado em uma limitada verdade que a socie-dade insiste ou insistiu em transmitir, estabelecendo que os homens so ou devem ser mais insensveis do que as mulheres, menos sentimentais e mais pragmticos. Essas caractersticas so repassadas, inclusive, na criao dos filhos, e dessa forma que as personalidades do pai e da me impri-mem-se nas almas infantis para sempre. O pai encarna a autoridade, e a me, o amor (MORIN, 2007, p. 172). Lembrando que a predominncia religiosa no Nordeste do sculo XX era o catolicismo, assim, essa vertente religiosa prega justamente o bom comportamento de qualquer ser humano, seja homem ou mulher. Todavia, excluindo esse elemento, outros fatores contriburam ou contribuem com mais fora para a formao da conduta humana dita masculina e feminina de muitas civilizaes:

    As culturas estabelecem, fixam, mantm e amplificam uma diferenciao entre homens e mulheres em papis sociais, especializando-os nas tarefas cotidianas; sobredeterminam as diferenas psicolgicas. Instituem um poder masculino que, salvo excees, atuou continuamente na histria das civiliza-es. (MORIN, 2007, p. 82).

    Tanto o homem quanto a mulher so, portanto, o resultado do que o meio social e cultural impe na vida deles. (ALBUQUERQUE JNIOR, 2013). Contudo, a mulher costumou sempre ser a desfavorecida nessa rela-o de diferenas. No que ela seja inferior ao homem, mas acontece que, do ponto de vista religioso e histrico, a feminilidade no foi digna de expresso para ingressar na histria, ainda que, segundo a cristandade, a mulher seja uma pessoa perante Deus, tal qual o homem e, portanto, igual-mente merecedora de sua ao salvadora e de sua misericrdia (ROBLES, 2006, p. 302). Ou seja, em termos sacros, a mulher igual ao homem e, por conseguinte, deveria ter os mesmos valores na sociedade.

    Entendida essa questo da cultura judaico-crist como exemplo de estigma comportamental do indivduo feminino nordestino na obra em questo, iremos discorrer agora sobre o clima sertanejo. De incio, podemos

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    entender que as condies climticas normalmente fazem da regio Nordeste um lugar de vivncia difcil, em termos parcialmente consensuais e estigma-tizados. por isso que as mulheres dessa localidade podem ser chamadas de fortes, pois no so todas as brasileiras que conseguem, por exemplo, carregar jarros de gua na cabea por longas distncias ou que conseguem sobreviver com pouco alimento e pouca gua, entre outros feitos demonstra-dos no livro de Graciliano Ramos e no filme de Nelson Pereira dos Santos, os quais buscaram justamente evidenciar a vida intensa e difcil de um tipo de povo sertanejo, de um tipo de mulher sertaneja. Porm, apesar de toda essa fora, h uma ressignificao da mulher nordestina, uma manifestao alte-rativa nos conceitos de gnero, em que essa mulher no pode nem sequer desfrutar de suas habilidades em lidar com as situaes conflituosas da vida sem que seja comparada com um homem, ser este figurativizado por scu-los como smbolo histrico e cultural do poder, da virilidade (NOLASCO, 2001). Isso talvez explique o uso corriqueiro e informal do termo popular mulher macho, ou seja, em sentido de estereotipizao, para ser forte a mulher tem que ser um homem. Tal pensamento , na verdade, uma tentativa de inferiorizao do gnero feminino, neste caso, da mulher do nordeste brasileiro.

    Outra realidade que as obras analisadas aqui nesse trabalho mostram a questo do indivduo que, sabendo ler e escrever, consegue dominar os leigos, melhor dizendo, consegue coloc-los em uma relao de subordi-nao. De fato, ter conhecimento das letras pode fazer a diferena na vida social e grupal de um indivduo inserido em uma civilizao. Chaui (1990) aponta o status social que as atividades de leitura e escrita podem produzir nas camadas mais elitistas e privilegiadas:

    A elite est no poder [...] porque detm o saber. Se, enquanto maior, o dominante representado como um senhor, enquanto detentor do saber tende a ser representado como melhor. Nessa medida, a expresso autoritarismo das elites, embora em si mesma seja redundante e evasiva, contudo nos ensina alguma coisa: deixa mais ntido o lugar por onde passa a representao da diferena entre cultura do povo e a do no-povo. Essa dife-rena j visvel na fala do dominado, pois embora continue a estabelecer uma distino cujo corte dado pela separao entre pobres e ricos, entretanto frequente ouvi-lo referir-se ao rico como aquele que tem leitura. (CHAUI, 1990, p. 49).

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    Como estamos examinando a obra Vidas Secas a partir de uma perspec-tiva que enfatiza, prioritariamente, o ser mulher e, delimitando mais ainda, a mulher nordestina, podemos primeiramente citar o contraste que h entre essas duas divises sociais: ricos e pobres. Durante as obras, romancista e roteirista exemplificam um possvel poder que o conhecimento tem sobre a vida das pessoas. Sinha Vitria tem o maior apreo pela pessoa de seu Toms da bolandeira, por esse ser um homem de leitura, um homem de estudo. Fabiano, por sua vez, tinha muita considerao tanto pelo seu Toms da bolandeira quanto por Sinha Vitria, a qual era muito valiosa em sua vida, por ser uma pessoa inteligente, seja por fazer contas com gros de semen-tes diversas, seja por fazer descobertas, como a possvel causa da seca do lago. Segundo ela, o fenmeno ocorria em virtude do intenso calor do sol em parceria com a ao dos pssaros que bebiam a gua restante da fonte. Teoria essa fortemente estimada por Fabiano: Sinha Vitria tinha razo: era atilada e percebia as coisas de longe. Fabiano arregalava os olhos e desejava continuar a admir-la. (RAMOS, 2007, p. 115). Porm, os conhecimentos culturais e de letramento de Sinha Vitria so, necessariamente, poucos. A dona de casa s sabia fazer contas com o auxlio de gros, j em relao a seca do lago, dificilmente aves podem fazer tal fenmeno natural de secar uma grande poro de gua, o que torna sua teoria falha. Todavia, Fabiano a admirava, pois ela pensava em coisas que ele jamais teria a capacidade de raciocinar.

    Nesse sentido, se pegarmos agora a famlia do patro de Fabiano, poderemos notar o quanto a educao era diferenciada entre essas duas famlias, pois, na adaptao cinematogrfica de Nelson Pereira dos Santos, h um momento em que Fabiano v uma mulher apreciando msica de violino na casa de seu patro, como se essa estivesse tendo aula do referido instrumento. muito provvel que essa mulher seja filha ou pelo menos que tenha algum grau de parentesco com o patro de Fabiano, porque, como foi mencionado anteriormente, quem exerce poder ou tem o poder eco-nmico, seja no Nordeste ou fora dele, precisa estar em contato constante com o mundo dos estudos, para ser respeitado e mostrar-se tanto melhor quanto maior em relao s outras pessoas, principalmente se elas forem de classes menos privilegiadas. A carga de conhecimento dessa mulher an-nima, que, alis, s aparece no filme, se distingue em aspectos formais e cultos dos conhecimentos humildes de Sinha Vitria. Isso no quer dizer que essa pessoa incgnita necessitasse ter contato com a leitura e escrita,

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    mas como parente de algum importante e formal, supostamente falando, essa mulher teria mais acesso a livros e outras manifestaes intelectuais. Alm disso, quase que obrigatoriamente, pessoas com essas marcas finan-ceiras demonstram comportamentos mais sofisticados e eruditos, em termos de estereotipizao, para contrapor-se aos demais indivduos pertencentes a uma classe econmica inferior.

    5. Uma identidade folclrica e sociocultural nordestina

    possvel identificar na obra Vidas Secas diversidades culturais nas aes das personagens. No Nordeste at meados do sculo XX, que o tempo representado no livro e no filme, essas manifestaes de conheci-mentos populares eram, normalmente, mais encontradas nas famlias e pessoas do campo do que nas das reas urbanas. Embora que, no filme, h uma passagem que mostra o envolvimento dos indivduos da classe rica com as festividades folclricas da cidade. Contudo, esses indivduos esto na condio de pblico, pois, na verdade, o folclore menos uma neces-sidade da burguesia, mas sobretudo uma forma de saber que se associa, de incio, s camadas tradicionais de origem agrria (ORTIZ, 1994, p. 70). Assim, o envolvimento maior dessas tradies folclricas se deu e/ou ainda se d na vida das pessoas de classe econmica quase sempre menos pri-vilegiada, ou que no sejam to eruditas a outros conhecimentos de nvel escolar e acadmico, apesar desse ser tambm um tipo de saber, no caso, o saber cultural.

    Para ilustrar essa cultura popular na obra em anlise, temos, mais uma vez, a personagem Sinha Vitria, que era, de certa forma, inteligente, religiosa, ornamentava sempre um rosrio no seu pescoo, alm de rotinei-ramente fumar um cachimbo: Sinha Vitria cachimbava tranquila no banco do copiar, catando lndeas no filho mais velho (RAMOS, 2007, p. 48).

    Seus hbitos so carregados de costumes populares e, portanto, de folclore nordestino. Todavia. alm de Sinha Vitria, tanto livro quanto filme apresentam outra personagem, chamada Sinha Terta. Essa mulher era uma senhora de idade, rezadeira, costureira e falava quase to bem como as pessoas da cidade (RAMOS, 2007, p. 98).

    Na verdade, todas as prticas sociais que se diferenciam de um povo para outro, ou de uma regio para outra, ou at mesmo de um pas para outro, podem ser consideradas folclricas, j que o conceito de folclore se

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    formula justamente por essas diversas manifestaes de uma cultura popu-lar, desde hbitos comportamentais at, por exemplo, a produo de objetos artesanais. Dessa forma, podemos entender que a noo de cultura popu-lar enquanto folclore recupera invariavelmente a ideia de tradio, seja na forma de tradio-sobrevivncia ou na perspectiva de memria coletiva que age dinamicamente no mundo da prxis (ORTIZ, 1994, p. 70), e ambas as mulheres citadas aqui carregam essas marcas culturais em suas vidas.

    6. Consideraes finais

    A realidade do povo nordestino fica muito bem exemplificada na obra Vidas Secas. Graciliano Ramos ao metaforizar suas personagens com ani-mais e coisas de valor inferior ao de um ser humano, procura dar destaque justamente a essa condio miservel que a populao sertaneja passou e ainda passa em algumas reas de difcil vivncia por causa da problemtica da seca.

    Aqui nesse trabalho buscou-se mostrar as caractersticas da mulher nordestina representadas, enfaticamente, pela personagens Sinha Vitria e, por vezes, pela personagem Sinha Terta, bem como outras mulheres presen-tes na obra cinematogrfica Vidas Secas. Ambas so demonstraes, em um primeiro momento, de mulheres religiosas. Contudo, Sinha Vitria des-crita, alm disso, como uma pessoa de raciocnio lgico, o que a faz fugir da condio de animal dita anteriormente.

    De fato, a mulher do Nordeste no s dotada de inteligncia para superar os conflitos da vida. Ela principalmente a figurao de uma mulher forte que, seguindo o bom lado da tradio, busca dar o melhor de si para sua famlia e para seu lar. Se bem que ela muito mais do que isso. A mulher , numa noo geral, o smbolo da continuidade da vida, seja essa vida seca ou cheia de aes vitoriosas.

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    Referncias

    ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: inveno do falo Uma histria do gnero masculino (1920-1940). So Paulo: Intermeios, 2013.

    ALVES, Viviane Klen. A representao da infncia em O Quinze e Vidas Secas. 107 f. Tese (Mestrado). Athens, Georgia: University of Georgia, 2015.

    BRANCO, Adlia de Melo. Mulheres da seca: luta e visibilidade numa situa-o de desastre. Joo Pessoa: UFPB, Ed. Universitria, 2000.

    CHAUI, Marilena de Sousa. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 5. ed. So Paulo: Cortez, 1990.

    DAVI, Tnia Nunes. Nelson Pereira dos Santos e o cinema brasileiro: trajet-rias de luta e renovao. Cadernos da FUCAMP, Monte Carmelo-MG, v. 3, n. 3, p. 1-22, 2004. (ISSN 2236-9929).

    MONTERO, Rosa. Histria das mulheres: introduo. Trad. Joana Anglica dAvila Melo. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 09-30.

    MORIN, Edgar. O mtodo 5: a humanidade da humanidade. Trad. Juremir Machado da Silva. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007.

    NOLASCO, Scrates. De Tarzan a Homer Simpson: banalizao e violncia masculina em sociedades contemporneas ocidentais. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

    ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    PERDIGO, Carlinhos. Fragmentos: poemas e ensaios. Fortaleza: Premius, 2010.

    RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 103. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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    ROBLES, Marta. Mulheres, mitos e deusas: o feminino atravs dos tempos. Trad. William Lagos, Dbora Dutra Vieira. So Paulo: Aleph, 2006.

    Vidas Secas. Direo de Nelson Pereira dos Santos, Brasil: Bretz Filmes, 1963. 1 DVD (103 min. Ntsc, son., P&B, Port).

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    COMO EMPODERAR UMA MENINA? UM ESTUDO ACERCA DA LITERATURA TEEN CHICK LIT

    Alleid Ribeiro Machado1

    Resumo

    Este artigo trata da literatura de massa denominada chick lit bem como seu subgnero, o teen chick lit, em razo de se observar que tais produes tm sido relacionadas ao feminismo, principalmente, por trazerem tona pro-tagonistas supostamente libertas da dominao masculina, j portadoras, portanto, de uma nova identidade. Dessa forma, toma-se como base de an-lise o romance O dirio da Princesa de Meg Cabot, em que se pode verificar a construo e o reforo dos ideais femininos que se abrem para questes de gnero, corpo e sexualidade, ao se estabelecer padres estigmatizados sobretudo para as meninas em crescimento. Para tanto, feito um breve panorama do feminismo da 3 vaga em duas vertentes implicadas ao chick lit: o movimento girlie e o feminismo DIY. O objetivo propor uma discus-so em torno do que oferecido pela indstria cultural como produto de poder emancipatrio para as garotas e o que simbolicamente essa produo tem representado. Palavras-chave: teen chick lit, terceira onda feminista, gnero, empodera-mento feminino

    1 Mestre e Doutora em Letras pela USP. Professora do Centro Universitrio SantAnna. Ps-doutora em Estudos Literrios pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (agncia de fomento: CAPES) e em Literatura Portuguesa Contempornea pela FFLCH/USP (agncia de fomento: FAPESP). Atua nas seguintes linhas de pesquisa: estudos de gnero, corpo e sexualidade; estudos culturais, inds-tria de consumo e chick lit.

    E-mail: [email protected]

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    Introduo

    As pautas em torno das polticas de gnero para mulheres tm frequen-temente sido veiculadas por diversos meios de comunicao. Redes sociais como Facebook e Instagram so meios de dar voz e visibilidade a grupos interessados em disseminar a ideia de empoderamento feminino e, nesse sentido, no raro observarem-se campanhas seguidas das palavras-chave (hashtags) #empodereumamulher, #empodereasmulheres ou #empodera-mentofeminino justamente incentivando mulheres a se conscientizar e a empoderar outras mulheres, companheiras, mes, amigas, irms.

    Entretanto, o incio do sculo XXI marcado por uma realidade sem fronteiras, de capitalismo irrestrito regido e orquestrado pela indstria cultural. Adorno e Horkheimer (2002), pensam essa realidade associando-a s artes. Para os autores, ela atuaria no sentido de neutralizar os aspectos crticos de uma obra artstica, transformando-a em objeto comercial. Portanto, estabelecendo--se uma correlao entre as campanhas de paridade de gnero, empoderamento feminino e de outras de cunho feministas, em redes sociais como as j citadas, e a indstria da literatura de massa, poder-se-ia afirmar que essas lutas so assimiladas pelo mercado do capital, de formaintensa e direta, transformando-se em objetos e pautas de consumo e de perpetuao de estigmas de gnero, corpo e sexualidade.

    Este texto busca problematizar a literatura do tipo chick lit e de seu subgnero que tem sido nomeado como teen chick lit, em razo de obser-var-se que tais produes tm sido relacionadas ao feminismo, no apenas por serem escritas por mulheres, mas, principalmente por trazerem tona protagonistas supostamente libertas da dominao masculina, j portado-ras, portanto, de uma nova identidade.

    De forma mais direta, toma-se como base de anlise o romance O dirio da Princesa (2000) de Meg Cabot. Nesse livro de confidencialidades, pode-se verificar a construo e o reforo dos ideais de beleza e de com-portamento que se abrem para questes de gnero, corpo e sexualidade, ao estabelecer-se padres estigmatizados sobretudo para jovens mulheres. A ideia , em ltima instncia, trazer a lume uma discusso suscitada por uma literatura de massa que, atrelada a alguns pressupostos da terceira onda feminista e indstria cultural, tem veiculado a premissa insidiosa de empo-deramento feminino.

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    Do movimento girlie ao teen chick lit: mdia e consumo.

    Em termos genricos, a sociedade do incio do Sculo XXI transformou--se sobremaneira sessenta e seis anos depois de Simone de Beauvoir (1949) lanar a sua mais clebre frase: No se nasce mulher, torna-se mulher, que veio a ser a pedra de toque tanto para o feminismo quanto para os estudos de gnero. Admite-se hoje a existncia de uma terceira vaga, tambm enten-dida como ps-feminismo,

    que se identificaria mais com uma agenda liberal e individualista do que com objetivos coletivos e polticos, considerando que as principais reivindicaes de igualdade entre os sexos foram j satisfeitas. (AMARAL; MACEDO, 2005, p. 153).

    Ainhoa Flecha (2010) num artigo em que trata das diversas nuances do feminismo da 3 onda, ressalta uma faceta que veio a ser intitulada como girlie, que seria um movimento encabeado por jovens mulheres, desligado de conceitos profundos e menos acadmico em sua origem.

    O movimento girlie teve incio nos Estados Unidos durante os anos 80 e 90. Uma de suas principais impulsionadoras foi Rebecca Walker (1969). Conforme Flecha (2010) e Karp e Stoller (1999) autoras como Walker e outras adeptas desse movimento, em sua essncia, apoiam um feminismo do tipo DIY (Do It Yourself), baseando-se na ideia de que o feminismo o que cada mulher quer fazer dele e, portanto, h tantos feminismos como mulheres no mundo. O problema, segundo essas autoras, que a individualizao proposta pelo DIY elimina a capacidade de luta por objetivos e causas comuns s mulheres, diminuindo o poder e a fora da luta coletiva. Um outro ponto crtico desse movi-mento seria a exaltao da feminilidade, em oposio ao modelo anterior de boa feminista que rechaava toda a atitude que pudesse remeter ao tipo feminina. Assim, defendem o direito de usar maquiagem, sapatos altos, tomando como smbolo desse comportamento a cor rosa (FLECHA, 2010).

    Em virtude das demandas liberais das sociedades contemporneas, interessante considerar os movimentos sociais, como j foi dito, dentro de um contexto, ainda que problemtico em termos de pases em desenvolvi-mento, de realidade sem fronteiras, de capitalismo global, admitindo, assim, que so marcados pela difuso massiva de informaes. No que tange ao feminismo, os mass medias atuam como um importante adjuvante para a

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    propagao dos esteretipos femininos, que aparecem como uma dimenso da imposio, pelos estratos de grupos dominantes, de sua viso de mundo. Nesse mbito, a mdia, que pode ser compreendida como centro regulador de poder (GOFFMAN, 2009), tambm entendida como um instrumento central de sua propagao.

    No que tange, assim, ao feminismo da terceira vaga, questes relati-vas luta das mulheres por um espao de igualdade foram paulatinamente sendo assimiladas pelos mais diversos meios de comunicao e transforma-das em pauta de consumo e, como j se observou, como algo que pode ser realizado pela prpria jovem (diga-se de classe mdia, branca), desde que ela queira, assumindo alguns tipos de conduta consideradas femininas. Portanto, so veiculadas pelos diversos medias novos paradigmas de com-portamento para as garotas que desejam ter a sua imagem associada de uma mulher dona de si e bem-sucedida.

    Como se pode notar, alguns conceitos vo entrando em moda e sendo incorporados ao lxico de matriz feminista, numa espcie de aglutinao de ideias e de conceitos que so, muitas vezes, opostos. Esses conceitos veiculam modos de ser que conotam s meninas uma sensao de liber-dade e poder. Disseminam modelos ideais de qual mulher elas podero ser, instituindo, assim, identidades carregadas de esteretipos. Ento, assumir a bandeira feminista passou a ser, em palavras mais simples, mais acessvel do que no passado. Afinal uma girlie uma jovem poderosa que pode fazer as suas escolhas e agir segundo os seus prprios princpios, algo nunca antes to facilmente sonhado em geraes anteriores.

    Por ser tangido sem amarras acadmicas, mas livremente inspirado nas ideias libertrias de autoras feministas como Chimamanda Ngozi Adichie (1977), essa nova bandeira est sendo erguida no por filsofas, antroplo-gas, mas por pop-stars, por exemplo. Recentemente a cantora inglesa Adele, numa entrevista revista Rolling Stone2, afirmou ser feminista e acreditar que todos deveriam ser tratados da mesma forma. J Beyonc, na ocasio de sua premiao no Video Music Awards (VMA) de 2014, promovido pela MTV, aproveitou para projetar o feminismo enquanto apresentava Flawless, cuja letra traz a fala da escritora nigeriana Chimamanda. Ao lanar o ltimo

    2 Revista Rolling Stone [on line], Nov. 19, 2015, Edio 1248. Contedo disponvel em < http://www.brasilpost.com.br/2015/11/03/rolling-stone-adele capa_n_8463608.html?ncid=fcbklnkbrhpmg000

    00004>. Acesso em 16/01/2016.

    http://www.brasilpost.com.br/2015/11/03/rolling-stone-adele%20capa_n_8463608.html?ncid=fcbklnkbrhpmg00000004http://www.brasilpost.com.br/2015/11/03/rolling-stone-adele%20capa_n_8463608.html?ncid=fcbklnkbrhpmg00000004http://www.brasilpost.com.br/2015/11/03/rolling-stone-adele%20capa_n_8463608.html?ncid=fcbklnkbrhpmg00000004
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    lbum, autointitulado Beyonc, trouxe tona a questo do feminismo como um modelo de atitude para as garotas estadunidenses. Diversas msicas desse lbum possuem um teor combativo, lanando a ideia de que garotas podem ser fortes e independentes, desvirando a ideia de mulher objeto do avesso.

    1. As msicas de Beyonc so veiculadas num contexto em que garo-tas americanas, sobretudo negras, reivindicam o poder. A questo que a pop star surge neste cenrio dito feminista trazendo consigo uma mquina que movimenta a indstria da moda, dos costu-mes, da beleza. Em ltima instncia, a artista personifica diversos padres estticos impostos s mulheres, mas se assume feminista. Isso pode incomodar as feministas mais acadmicas, mas ela inte-gra e representa o feminismo DIY. Por meio de sua influncia mais e mais garotas estadunidenses vo querer imit-la, inclusive repro-duzindo a sua viso de mundo. Para alm disso, vo usar a sua marca de cosmticos, de roupas, e vo fazer sacrifcios corporais para alcanar tal modelo de beleza.

    Em todo caso, o que as faro se sentir garotas poderosas a fora que transmitida nos smbolos que representam o universo feminino girlie, como o uso de determinadas cores de batom, sobretudo variaes de rosa (matte), maquiagens, tipos de roupas, sapatos. Esses smbolos funcionam como ins-trumentos de poder feminino, dentro da terceira onda feminista liberal.

    1. Portanto, alguns pressupostos do ps-feminismo, afinados aos discursos miditicos, segundo McRobbie (2004), Baumgardner e Richards (2000), no esto exatamente inventando comportamen-tos, tendncias ou valores, mas decidindo a qual dar visibilidade, legitimidade e importncia. A partir da, produzem apelos eficien-tes e dita estilos de vida para vender produtos e modelos de beleza e comportamento atrelados indstria de consumo.

    2. Se os diversos meios de comunicao divulgam tendncias e valo-res, a par dos contextos de produo, obviamente a literatura de massa tambm os assimila e os redistribui. Da mesma forma ocor-rer, por exemplo, em livros voltados para o pblico feminino, como os chick lits, gnero que ser tratado a seguir, tomando como ponto de partida o livro O dirio da princesa, de Meg Cabot.

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    O dirio da princesa de Mag Cabot e os estigmas de gnero

    Meg Cabot uma autora estadunidense, muito conhecida pelO dirio da princesa (o primeiro da srie, publicado originalmente no ano de 2000 e j em sua 34 edio no Brasil). A autora, referncia no gnero chick lit, tem quase 80 ttulos lanados, entre sries voltadas para adultos, jovens e pr-adolescentes, com mais de 25 milhes de cpias vendidas. Por aqui, seus livros j venderam mais de 1,5 milho de exemplares3. Em O dirio da princesa conhece-se a histria de Mia Thermopolis, uma jovem na faixa dos 14-15 anos que vive em Manhattan. A protagonista do romance mora com sua me, uma artista plstica com a qual:

    ele [o pai de Mia] nunca se casou [...]. Minha me diz que isso aconteceu porque, na poca, ela rejeitava os costumes burgueses de uma sociedade que nem mesmo aceitava as mulheres como iguais aos homens e se recusava a reconhecer os direitos dela como pessoa (CABOT, 2014, p. 35).

    O discurso de Mia transmite, inicialmente, a ideia de que sua me uma mulher independente, tanto emocional quanto financeiramente. No entanto, a prpria adolescente ir, ao longo da narrativa, contestar o comportamento de sua progenitora uma mulher razoavelmente intelectua-lizada, uma artista bomia (CABOT, 2014, p. 45), por no corresponder efetivamente imagem de mulher independente que sempre tentou mostrar filha. Mia no concorda com o comportamento um tanto displicente da me, seja em relao s obrigaes com a casa, como ir ao supermercado, ou mesmo com as contas a pagar, como se observa pelas anotaes no pr-prio dirio da adolescente: COISAS PARA FAZER: 8. Aluguel de outubro (confirmar se mame depositou o cheque de papai!!!) [...] 2. Fazer mame depositar o cheque de papai (CABOT, 2014, p. 14; 27), ou mesmo na seguinte passagem do dirio:

    Papai repetiu essas palavras para minha me. Ouvi ela resmungar alguma coisa em resposta. Ela sempre resmunga quando lembro a ela que tem que entregar quadros em uma certa data. Mame gosta de trabalhar quando as musas do uma ajudinha. Uma vez que papai paga a maioria das contas, isso geralmente no

    3 Segundo dados disponveis no site http://www.bbcnews.com.br/noticia/157756-meg-cabot-auto-ra-do-best-seller-o-diario-da-princesa-vem-ao-brasil-em-outubro.html. Acesso em 10/03/2016.

    http://www.bbcnews.com.br/noticia/157756-meg-cabot-autora-do-best-seller-o-diario-da-princesa-vem-ao-brasil-em-outubro.htmlhttp://www.bbcnews.com.br/noticia/157756-meg-cabot-autora-do-best-seller-o-diario-da-princesa-vem-ao-brasil-em-outubro.html
  • Gnero e sexualidade: interfaces e discursos

    48ISBN: 978-85-61702-47-2

    problema, mas tambm no uma maneira muito responsvel de um adulto se comportar, mesmo que seja uma pintora (CABOT, 2014, p. 51).

    Fica patente, assim, que ambas, me e filha, so sustentadas pelo pai de Mia, embora a me trabalhe em seu estdio de artes a fim de garantir sua independncia financeira. O que se nota uma reconfigurao do patriar-calismo, que, como vlido lembrar, se sustenta [...] pela autoridade, imposta institucionalmente, do homem sobre mulher e filhos no mbito familiar (CASTELLS, 2001, p. 169).

    O pai de Mia, dessa forma, tambm se enquadra num paradigma de masculinidade socialmente desejvel. Ele vive em Genovia, um pas fict-cio situado entre a Frana e a Itlia, cujos habitantes no pagam impostos, muito semelhante a Mnaco, em razo de tambm ser um principado. Ele v a filha esporadicamente, funcionando para ela mais como um provedor das finanas na verdade, Mia tem pouca intimidade com o pai, com quem costuma passar apenas as frias de vero, no castelo francs de Grandmre - a av paterna - em Miragnac.

    A vida particular de Mia, exposta no dirio, reflete o que os contextos sociais e culturais ainda mantm do patriarcalismo. Outro exemplo disso seria o tratamento dado pelo pai s namoradas de vero, que so para ele, como objetos descartveis:

    sempre tem uma nova namorada [...]. No vero, quando vamos para o castelo de Grandmre na Frana, ele sempre leva a moa da vez. Elas ficam sempre babando com as piscinas, as cachoei-ras, a cachoeira, os 27 quartos, o salo de baile, a adega, a fazenda e a pista de pouso. Uma semana depois, manda a moa passear (CABOT, 2014, p. 35)

    Essa nova reconfigurao do patriarcalismo parece prever exatamente algum tipo de liberdade de escolha e empoderamento feminino, ao menos, at o ponto em que tudo fique sob controle. Essas garotas, supostamente, podem fazer uma escolha, podem ter a falsa noo de que esto no controle, podem estar num castelo usufruindo do conforto e da riqueza por escolha, servir e usar o sexo como prazer apenas por um vero, mas, a deciso final do homem que uma semana depois, manda a moa passear. O poder exercido do homem sobre a mulher.

    Ainda acerca do pai de Mia, vlido ressaltar que ele um aristocrata que governa um pequeno pas da Europa, por herana, um homem tambm

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    frustrado, inacessvel, deprimido, segundo considera Mia, em decorrncia de um cncer de testculo que lhe tirou as possibilidades de novamente ser pai.

    Como o problema todo gira em torno exatamente da falta de um her-deiro do sexo masculino, que faz com que o pai de Mia seja obrigado a fazer dela a prxima herdeira do trono, a adolescente ter de se adaptar a uma nova vida, a de aprender a ser princesa. O livro mexe com o imagi-nrio de muitas jovens ao tratar de um conto de fadas que aconteceu com uma garota comum de Nova Iorque. Mia, ento, precisar se transformar em uma verdadeira princesa, ter aulas de etiqueta com a rgida av, com quem no tem muitas afinidades, e at mesmo carregar um guarda-costas tiracolo. Isso tudo em meio ao auge da adolescncia.

    Inicialmente, a personagem no queria levar a srio a questo de tor-nar-se princesa, mas forada a faz-lo por no ter alternativas. Dessa forma, Mia vai recebendo, dia a aps dia, as lies de Grandmre: Amanh, voc vai usar meias de nylon. No malha. No meias pelos joelhos. Voc j est crescida demais para malha e meias pelos joelhos. E vai usar os sapatos da escola, e no tnis. Vai arrumar os cabelos, usar batom e pintar as unhas (CABOT, 2014, p. 117). Essas lies pretendem ensinar garota modos ade-quados de ser e de comportar.

    Mia no era um modelo de feminilidade, no para os padres de Grandmre. No usava adereos femininos, como meias finas, ou mesmo maquiagem, era alta, desajeitada e roa as unhas, seus cabelos eram desalinhados; no era como as demais garotas no que tange aos desejos consumistas, era simpatizante do Greenpeace. Ser difere