conjunto de cantor dos terços médios

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Conjunto de Cantor dos ter¸cos m´ edios Lucas Menezes de Brito Universidade Federal de Goi´ as Abril, 2015 1 Defini¸ ao O conjunto de Cantor dos ter¸cos m´ edios ´ e um subconjunto da reta estudado pelo matem´ atico Georg Cantor e definido como se segue: No intervalo [0, 1], que chamaremos de K 0 , retiramos o intervalo ( 1 3 , 2 3 ), de modo que sobre apenas o conjunto 0, 1 3 2 3 , 1 que ser´ a chamado K 1 . Ap´ os isso, retiremos os intervalos ( 1 9 , 2 9 )e( 7 9 , 8 9 ), sobrando o conjunto 0, 1 9 2 9 , 1 3 2 3 , 7 9 8 9 , 1 chamado de K 2 . Desse modo continuamos indefinidamente, sempre repetindo o processo de retirar o ter¸co edio aberto dos intervalos. O conjunto obtido ap´ os o n-´ esimo processo ser´ a chamado K n , e o conjunto K, ou K , dos pontos do intervalo [0, 1] que pertencem a K n para todo n N ´ e o Conjunto de Cantor. Chamando os intervalos abertos omitidos de I 1 ,I 2 , ..., I n , ..., temos K = [0, 1] - [ n=1 I n 2 Propriedades O Conjunto de Cantor tem propriedades interessantes, algumas das quais listamos e demonstramos a seguir. 2.1 K tem interior vazio Um conjunto X R tem interior vazio quando n˜ ao cont´ em intervalos. Para mostrar que o Conjunto de Cantor n˜ ao cont´ em intervalos suponhamos que exista um intervalo I (de qualquer tipo, fechado, aberto ou semiaberto) tal que I K. Seja |I | = o comprimento desse intervalo. Sendo 1 3 n o tamanho de todos os intervalos contidos em K n , existe n 0 N tal que 1 3 n 0 <, j´ a que lim n→∞ 1 3 n = 0. Portanto os intervalos de tamanho , seriam todos desfeitos no m´ aximo at´ ea n 0 esima etapa da constru¸c˜ ao do Conjunto de Cantor, e por isso n˜ ao existe intervalo I K,e K tem interior vazio. 2.2 K ´ e n˜ ao-enumer´ avel Defini¸c˜ ao 1 (Enumerabilidade de conjuntos) Seja X N. Um conjunto A ´ e dito enumer´avel se houver uma bije¸ ao φ : X A, ou seja, se todos os elementos de A podem ser colocados em uma lista. Um conjunto B ´ en˜ao-enumer´avelsen˜ ao existir bije¸ c˜ao σ : X B. Antes de analisarmos a enumerabilidade de K, analisemos a enumerabilidade de um subconjunto. 1

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Trabalho sobre o Conjunto de Cantor, usado como exemplo em análise matemática e topologia.

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  • Conjunto de Cantor dos tercos medios

    Lucas Menezes de Brito

    Universidade Federal de Goias

    Abril, 2015

    1 Definicao

    O conjunto de Cantor dos tercos medios e um subconjunto da reta estudado pelo matematico Georg Cantore e definido como se segue:

    No intervalo [0, 1], que chamaremos de K0, retiramos o intervalo (13 ,

    23 ), de modo que sobre apenas o conjunto[

    0,1

    3

    ][

    2

    3, 1

    ]que sera chamado K1. Apos isso, retiremos os intervalos (

    19 ,

    29 ) e (

    79 ,

    89 ), sobrando o conjunto[

    0,1

    9

    ][

    2

    9,

    1

    3

    ][

    2

    3,

    7

    9

    ][

    8

    9, 1

    ]chamado de K2. Desse modo continuamos indefinidamente, sempre repetindo o processo de retirar o tercomedio aberto dos intervalos. O conjunto obtido apos o n-esimo processo sera chamado Kn, e o conjunto K, ouK, dos pontos do intervalo [0, 1] que pertencem a Kn para todo n N e o Conjunto de Cantor.Chamando os intervalos abertos omitidos de I1, I2, ..., In, ..., temos

    K = [0, 1]n=1

    In

    2 Propriedades

    O Conjunto de Cantor tem propriedades interessantes, algumas das quais listamos e demonstramos a seguir.

    2.1 K tem interior vazio

    Um conjunto X R tem interior vazio quando nao contem intervalos.

    Para mostrar que o Conjunto de Cantor nao contem intervalos suponhamos que exista um intervalo I (dequalquer tipo, fechado, aberto ou semiaberto) tal que I K. Seja |I| = o comprimento desse intervalo. Sendo13n o tamanho de todos os intervalos contidos em Kn, existe n0 N tal que 13n0 < , ja que limn 13n = 0.Portanto os intervalos de tamanho , seriam todos desfeitos no maximo ate a n0-esima etapa da construcao doConjunto de Cantor, e por isso nao existe intervalo I K, e K tem interior vazio.

    2.2 K e nao-enumeravel

    Definicao 1 (Enumerabilidade de conjuntos) Seja X N. Um conjunto A e dito enumeravel se houveruma bijecao : X A, ou seja, se todos os elementos de A podem ser colocados em uma lista. Um conjuntoB e nao-enumeravel se nao existir bijecao : X B.

    Antes de analisarmos a enumerabilidade de K, analisemos a enumerabilidade de um subconjunto.

    1

  • Lema 1 Seja E o conjunto de todos os extremos de intervalos retirados durante a construcao do Conjunto deCantor. E e um conjunto enumeravel.

    Demonstracao: Podemos mostrar facilmente uma enumeracao de E. E so pegar em cada etapa n daconstrucao, os extremos dos intervalos de Kn. Como o conjunto dos ndices n e enumeravel, entao, E tambeme. Desta forma temos uma enumeracao:

    E =

    {0, 1,

    1

    3,

    2

    3,

    1

    9,

    2

    9,

    7

    9,

    8

    9, ...

    }o que prova o lema.

    Agora, a proposicao principal:

    Proposicao 1 O Conjunto de Cantor e nao-enumeravel.

    Demonstracao: Podemos construir uma correspondencia biunvoca entre os pontos de K e as sequencias(an)

    n=1, formadas de zeros e uns. Nos utilizaremos do seguinte processo:

    (i) escolha x K;(ii) denote por Jn o intervalo de Kn1 que contem x para cada n N;(iii) chame de J(n,0) o intervalo em Kn que esta contido em Jn e que contem o extremo esquerdo de Jn e deJ(n,1) o intervalo em Kn+1 que esta contido em Jn e que contem o extremo direito de Jn;(iv) ponha, formando uma sequencia, an = 0 se x pertencer a J(n,0), e an = 1 se x pertencer ao J(n,1).Temos que essa associacao de um elemento de K a uma sequencia an = (a1, a2, a3, a4, ...) e uma bijecao.Vamos provar agora que o conjunto das sequencias do tipo (an)

    n=1, onde an = 0 ou 1 e nao-enumeravel.

    Suponhamos um conjunto enumeravel A = {(a1), (a2), (a3), (a4), (a5), ...}, onde cada an e uma sequencia determos iguais a 0 ou 1, e chamemos de a(m,n) o n-esimo termo da m-esima sequencia desse conjunto. Agora,construmos a sequencia (bn), tal que bn 6= a(n,n). Da, teremos:

    b1 6= a(1,1) = (bn) 6= (a1)

    b2 6= a(2,2) = (bn) 6= (a2)...

    bn 6= a(n,n) = (bn) 6= (an)...

    Logo, para todo conjunto enumeravel de sequencias com termos 0 ou 1, sempre ha outra sequencia desse tipoque nao pertence a esse conjunto. Entao essas sequencias formam um conjunto nao-enumeravel.Mas ja que existe uma correspondencia biunvoca entre o conjunto dessas sequencias e os elementos do Conjuntode Cantor, conclumos que K e nao-enumeravel.

    A partir desse fato, conclumos que o Conjunto de Cantor tem pontos alem dos extremos dos intervalosomitidos na sua construcao. Mas nao apenas isso, tambem vale o

    Corolario 1 O conjunto dos pontos de K E e nao-enumeravel

    Demonstracao: Vamos provar esse fato por contradicao. Se tivessemosKE enumeravel, seja {x1, x2, ..., xn, ...}uma enumeracao dos seus elementos. Se tomarmos a uniao de E com K E teramos o conjunto:{

    0, x1, 1, x2,1

    3, , x3,

    2

    3, x4,

    1

    9, ...

    }que e enumeravel. Mas (K E) E = K que acabamos de provar que nao e enumeravel. Absurdo. Portanto,E K e nao-enumeravel.

    2

  • 2.3 K e compacto

    Comecamos com algumas definicoes sobre a natureza topologica de R.

    Definicao 2 (Ponto aderente) Um ponto a e aderente ao conjunto X R se a e limite de alguma sequenciade pontos xn X. O conjunto de pontos aderentes a X e chamado fecho de X e denotado por X.

    Definicao 3 (Conjunto fechado e compacto) Um conjunto X R e fechado se X = X, e e compacto see fechado e limitado.

    Definicao 4 (Ponto interior e conjunto aberto) Um ponto a e interior a um conjunto X R (e diz-sea int(X)) se existe > 0 tal que (a , a + ) X. Se todos os pontos de um conjunto forem interiores aele, ou seja, int(A) = A, diz-se que o conjunto e aberto.

    Agora provaremos lemas importantes para a demonstracao da proposicao principal.

    Lema 2 A uniao de conjuntos abertos e um conjunto aberto.

    Demonstracao: Sejam, L um conjunto de ndices, A conjuntos abertos e

    A =L

    A

    a uniao desses conjuntos. Se tomarmos um x A, existe pelo menos um L tal que x A. Como A eaberto, entao existe pelo menos um tal que x (x, x+) A. Como A A, entao x (x, x+) A,e portanto, x int(A). Conclumos que todo ponto em A e ponto interior a A, portanto, int(A) = A e A e umconjunto aberto.

    Lema 3 Seja X R. Se seu complementar Y = RX e aberto, entao X e fechado.

    Demonstracao: Se Y = R X e aberto, entao para todo ponto a Y existe um intervalo aberto I talque a I Y . Como I X = conclumos que a nao e aderente a X seja qual for a Y . Entao sea / X = a / X, por contrapositiva temos: a X = a X, e portanto, X e fechado.

    Ja estamos prontos para provar que

    Proposicao 2 O Conjunto de Cantor e um conjunto compacto.

    Demonstracao: Ja sabemos que o Conjunto de Cantor e limitado (ja que K [0, 1]), resta saber se efechado. Sabendo que todo intervalo aberto e um conjunto aberto e que, por definicao,

    K = [0, 1]n=1

    In

    sendo In os conjuntos abertos retirados na construcao de K, temos que:

    RK = (, 0) n=1

    In (1,)

    e um conjunto aberto pelo Lema 2, e portanto, K e fechado pelo Lema 3. Fica assim provado que o Conjuntode Cantor e compacto.

    3

  • 2.4 K nao contem pontos isolados

    Comecaremos com uma definicao intermediaria.

    Definicao 5 (Ponto de acumulacao) Um ponto a e de acumulacao a um conjunto X se existirem sequenciasde pontos xn X {a} tal que limxn = a. O conjunto de pontos de acumulacao a um conjunto X e denotadoX .

    Quando todos os pontos de um conjunto sao pontos de acumulacao, diz-se que esse conjunto nao contempontos isolados.

    Proposicao 3 O Conjunto de Cantor nao contem pontos isolados.

    Demonstracao: Considere um ponto x K. Seja E o conjunto formado pelos extremos dos intervalosomitidos nas etapas da construcao de K.Se x E, seja y1 um ponto tal que x e y1 sao extremos de um mesmo intervalo em Kn para algum n N.Entao temos que na proxima etapa da construcao de K havera a omissao do terco medio do intervalo [x, y1]ou [y1, x] gerando um novo extremo y2 e o intervalo [x, y2] ou [y2, x]. Procedendo dessa maneira, vemos que ospontos yn formarao uma sequencia que converge pra x e, portanto, x K .Caso x nao pertenca a E, entao x esta contido em um intervalo [a, b] Kn para algum n N. Definamosa seguinte sequencia: yn = extremo direito do intervalo que contem x em Kn. E evidente que lim yn = x,portanto, x e ponto de acumulacao de K.

    Corolario 2 O conjunto E e denso em K.

    Antes, precisamos da

    Definicao 6 (Conjunto denso) Um conjunto X e denso em Y se todo ponto de Y e limite de sequencias deelementos de X. Em outras palavras, X = Y .

    Demonstracao do Corolario 2: A demonstracao segue imediatamente do argumento que utilizamos naProposicao 3. E evidente que todo ponto de E e limite de sequencia de E (basta pegar uma sequencia constante),e da proposicao anterior, conclumos que todo ponto em K E e limite de sequencia de elementos de E.

    Um conjunto que e fechado e nao contem pontos isolados e chamado de conjunto perfeito. Assim, K e umconjunto perfeito. Outro exemplo de conjunto perfeito e R.

    2.5 K tem medida nula

    Definicao 7 (Conjunto de medida nula na reta) Um conjunto X R tem medida nula quando, para todo > 0, for possvel obter uma colecao de intervalos abertos I1, ..., Ik, ..., chamada cobertura, tal que

    X I1 I2 ... Ik ...

    e |Ik| <

    Ou seja, a soma dos comprimentos dos intervalos que contem o conjunto e tao pequena quanto se queira.

    Dois resultados importantes sobre conjuntos de medida nula sao mostrados a seguir.

    Lema 4 A uniao de dois conjuntos A e B de medida nula tambem tem medida nula.

    Demonstracao: Se A tem medida nula, entao para todo > 0, e possvel obter uma cobertura I tal queA I e |I| < /2. Do mesmo modo, se B tem medida nula, podemos, para todo > 0 obter uma cobertura Jtal que B J e |J | < /2. Desse modo, a soma dos comprimentos dos intervalos das coberturas I e J e menorque (/2) + (/2) = , para qualquer > 0. Como a uniao I J contem ambos os conjuntos, AB tem medidanula.

    4

  • Lema 5 Todo conjunto enumeravel infinito tem medida nula.

    Demonstracao: Seja E = {r1, r2, ..., rn, ...} um conjunto enumeravel. Para todo > 0 consideremosintervalos In de tamanho

    2n+2 cobrindo o ponto rn para n N. Entao a soma de todos esses intervalos e

    i=1

    2i+2=

    i=1

    1

    2i+2<

    i=1

    1

    2i=

    o que conclui a demonstracao.

    Precisamos dos lemas anteriores para provar a seguinte proposicao:

    Proposicao 4 O Conjunto de Cantor tem medida nula.

    Demonstracao: A soma do comprimento dos intervalos abertos omitidos em Kn e:

    1

    3+

    2

    9+

    4

    27+ ...+

    2n1

    3n

    e isto e igual a:

    1

    3

    n1i=0

    (2

    3

    )i= 1

    (2

    3

    )nComo o intervalo [0, 1] tem comprimento 1, a soma dos comprimentos dos intervalos de Kn e

    1(

    1(

    2

    3

    )n)=

    (2

    3

    )nEscolhendo entao intervalos abertos de mesmo comprimento que contem cada intervalo de Kn, temos que otamanho desses intervalos e ( 23 )

    n e

    lim

    (2

    3

    )n= 0

    que e a soma do tamanho dos intervalos que escolhemos. Ou seja, a nossa cobertura tem medida menor quequalquer > 0 ja que seu limite e 0. A demonstracao nao esta completa, pois negligenciamos os extremosdos intervalos dos conjuntos fechados que compoem Kn. Mas este conjunto e o conjunto E que pelo Lema 1 eenumeravel. Segue do Lema 5, E tem medida nula e do, Lema 4, K tambem tem medida nula, como queramosdemonstrar.

    References

    [1] ABBOTT, Stephen; Understanding Analysis. Springer, Undergraduate Texts in Mathematics, MathematicsDepartment - Middlebury College, 2001.

    [2] FREIRIA, Antonio Acra; A teoria dos conjuntos de Cantor. Ribeirao Preto, Depto. de Geologia, Fsica eMatematica FFCL de Ribeirao Preto - USP, 1992.

    [3] LIMA, Elon Lages; Analise Real 1. Colecao Matematica Universitaria, Instituto de Matematica Pura eAplicada, CNPq, 1989.

    [4] LIMA, Elon Lages; Curso de Analise, Volume 1. Projeto Euclides, Instituto de Matematica Pura e Aplicada,CNPq, 1982.

    [5] MEDEIROS, Luis Adauto; A Integral de Lebesgue. Instituto de Matematica - Universidade Federal do Riode Janeiro, 2008.

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