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LARISSA GDYNIA LACERDA Conflitos e Disputas Pela Mercantilização de Territórios Populares: o caso da favela do Vidigal, Rio de Janeiro Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Orientador: Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Júnior Rio de Janeiro 2016

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LARISSA GDYNIA LACERDA

Conflitos e Disputas Pela Mercantilização de Territórios

Populares: o caso da favela do Vidigal, Rio de Janeiro

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do

Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e

Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.

Orientador: Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Júnior

Rio de Janeiro

2016

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CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Lacerda, Larissa Gdynia

L131c Conflitos e disputas pela mercantilização de territórios populares: o caso da favela do Vidigal, Rio de Janeiro / Larissa Gdynia Lacerda. -- Rio de Janeiro, 2016.

143 f.

Orientador: Orlando Alves dos Santos Junior. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional, 2016.

1. Urbanização. 2. Neoliberalismo. 3. Favelas. 4.

Empreendedorismo. I. Santos Junior, Orlando Alves dos, orient. II. Título.

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LARISSA GDYNIA LACERDA

Conflitos e Disputas Pela Mercantilização de Territórios

Populares: o caso da favela do Vidigal, Rio de Janeiro

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do

Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e

Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

____________________________________ Profa. Dra. Luciana Corrêa do Lago Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ

____________________________________ Prof. Dr. Rafael Soares Gonçalves Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio

____________________________________ Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Junior Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram no

processo de construção desse trabalho. Foram incontáveis as conversas e acolhidas

encontradas em tantas pessoas que passaram por mim nesse período, deixando um

pouco desses encontros nesse processo que agora se materializa como dissertação.

Por isso, meu sincero agradecimento:

Aos funcionários/as, professores/as e colegas do IPPUR/UFRJ por me mostrarem

que é possível uma universidade comprometida com a transformação da sociedade,

sem deixar de lado o cuidado com a formação acadêmica de seus estudantes;

À Fundação Ford, que por meio da bolsa de pesquisa concedida a mim nesse

período permitiu que esse trabalho fosse realizado da melhor forma possível;

Ao meu orientador, que é também meu amigo, Orlando Junior, pela dedicação e

paciência na construção desse trabalho, mas também na minha recém-iniciada

trajetória na universidade;

Às colegas do grupo de pesquisa no Observatório das Metrópoles pela parceria e

aprendizado constante, especialmente à Patrícia, minha companheira no trabalho de

campo;

Aos colegas do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio, por me mostrarem o

Rio de Janeiro que pulsa pela construção de uma cidade mais justa;

Aos moradores/as do Vidigal por me receberem e compartilharem comigo um pouco

de suas histórias, experiências e reflexões;

À minha família e ao meu companheiro, Victor, sem os quais nada disso seria

possível. Obrigada pelo carinho, amor e paciência.

Ao meu pai, razão de tudo isso.

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RESUMO

Sob a perspectiva da neoliberalização do Rio de Janeiro e seus diferentes impactos

sobre o território, o presente trabalho se debruça sobre as transformações

socioespaciais vividas pela favela do Vidigal, localizada na região mais valorizada da

cidade. Busca-se fazer uma reflexão capaz de caracterizar os elementos dessa

transformação e seus impactos sobre a conformação desse território e de sua

população, sob a hipótese de que estaria em curso uma descaracterização da favela

enquanto território popular, tanto em sua dimensão física quanto, notadamente,

simbólica. O ponto de inflexão aqui estaria na instalação da Unidade de Polícia

Pacificadora no Vidigal, em 2012, que tem garantido a segurança necessária para

alavancar uma maior ofensiva do mercado formal. Partindo da matriz teórica que

pensa a urbanização neoliberal a partir do ‘neoliberalismo realmente existente’,

discute-se sobre os elementos dessa transformação em curso na favela, pensados a

partir de suas próprias particularidades e em sua relação com as dinâmicas mais

amplas que conformam a cidade. A análise permite afirmar que os processos de

ressignificação da favela estão na base da mercantilização do seu território, no qual

percebe-se esforços no sentido de empreender o Vidigal enquanto mercadoria e na

difusão de valores pró-mercado entre sua população.

Palavras-chave: Urbanização neoliberal. Favela. Empreendedorismo. Direito à

cidade.

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ABSTRACT

Under the perspective of Rio de Janeiro's process of neoliberalization and its

different impacts on the territory, this thesis focuses on the sociospatial

transformations occurred in the Vidigal favela, located on the most valuable region of

the city. It aims to make a reflection capable of characterizing the elements of this

transformation and its impacts on the conformation of the territory and its population,

discussing in which way a mischaracterization of the favela as a popular territory

would be happening, not only in its physical dimension but also, notably, in a

symbolic one. The inflexion point here would be in the installation of the Pacifying

Police Unit in Vidigal, in 2012, which has guaranteed the necessary security to boost

a major offensive from the formal market. Starting from the theoretical matrix which

reflects on the neoliberal urbanization from the 'real existing neoliberalism', we

discuss the elements of this transformation in course in the favela, thought from its

own particularities and its relations to more wider dynamics that shape the city. The

analysis allows us to say that the processes of redefining the favela are in the base

of the mercantilization of its territory, in which we can see efforts in the sense of

undertaking the Vidigal as a commodity and in the diffusion of pro-market values

among its population.

Keywords: Neoliberal urbanization. Favela. Entrepreneurism. Right to the city.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figuras

Figura 1 - Construção de ponte sobre o canal Jardim de Alah, que hoje separa os

bairros de Ipanema e Leblon ..................................................................................... 21

Figura 2 - Vidigal visto de cima ................................................................................. 31

Figura 3- Papa João Paulo II em visita à favela do Vidigal, 1980. ............................. 35

Figura 4 - Mapa das intervenções previstas pelo programa Favela-Bairro ............... 43

Figura 5 - Guerra do tráfico volta a levar medo ao Vidigal ........................................ 54

Figura 6 - Guerra sem fim no Vidigal ......................................................................... 55

Figura 7 - O Vidigal encena a realidade do morro ..................................................... 56

Figura 8 - Traços de especulação imobiliária no Vidigal na década de 1990 ............ 57

Figura 9 - Turismo chega às favelas: Rocinha e Vidigal ........................................... 58

Figura 10 - Vidigal se transforma em pesadelo ......................................................... 59

Figura 11 - Hasteamento das bandeiras no Vidigal, 13 nov. 2011 ............................ 64

Figura 12- Localização das UPPs no Rio de Janeiro/2014 ....................................... 68

Figura 13 - Empresários se unem com o governo do Rio para firmar convênio para

realização de obras nas UPPs .................................................................................. 69

Figura 14 - Localização das áreas Carlos Duque e Arvrão na favela do Vidigal ....... 88

Figura 15 - Av. João Goulart, Vidigal ......................................................................... 95

Figura 16 - Anúncios de imóveis à venda no Vidigal ................................................. 98

Figura 17 - Suíte principal do hotel Mirante do Arvrão............................................ 127

Figura 18 - Bar da Laje, favela do Vidigal............................................................... 128

Figura 19 - “Vem viver essa experiência!!!”............................................................. 129

Figura 20 - Anúncio da marca Osklen: T-Shirt ‘Favela’ – R$ 89............................. 132

Figura 21 - Anúncio da marca Osklen: T-Shirt ‘Vidigal’ - R$ 127............................ 133

Tabelas

Tabela 1 – Valorização imobiliária do Leblon e Vidigal (2008-2015) ..................... 123

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Ademi-RJ – Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário

AEIS – Área de Especial Interesse Social

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNH – Banco Nacional de Habitação

BOPE – Batalhão de Operações Policiais Especiais

CHISAM – Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana

COHAB – Companhia de Habitação Popular

CUFA – Central Única das Favelas

FAFEG – Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara

FNRU – Fórum Nacional de Reforma Urbana

IPP – Instituto Pereira Passos

MCMV – Minha Casa Minha Vida

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

POUSO – Posto de Orientação Urbanística e Social

RA – Região Administrativa

Secovi – Sindicato da Habitação do Rio de Janeiro

UPP – Unidade de Polícia Pacificadora

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10

2. VIDIGAL: A CONSTRUÇÃO DE UM TERRITÓRIO POPULAR.......................... 19

2.1 A construção do espaço urbano carioca........................................................ 19

2.2 Vidigal – a história da ocupação.......................................................................... 31

2.3 Da política de remoção à política de urbanização.............................................. 36

3. A POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO E O MERCADO............................................... 50

3.1 O discurso hegemônico da violência e suas contradições.......................... 50

3.2 O discurso da “pacificação”................................................................................. 60

3.3 A UPP do Vidigal................................................................................................. 63

3.4 Política de segurança, mercado e a cidade neoliberal........................................ 67

3.5 O debate sobre a gentrificação e os territórios populares................................... 79

4. O EMPREENDEDORISMO DITA O RITMO: A FAVELA DO VIDIGAL COMO

MERCADORIA.......................................................................................................... 86

4.1 A renovação urbana do Vidigal........................................................................ 86

4.2 Quem governa o Vidigal? Disputas em torno da gestão do território.................. 97

4.3 Entre o clientelismo e o universalismo: para quem são as regras?.................. 109

4.4 A ressignificação simbólica do Vidigal............................................................... 116

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 135

REFERÊNCIAS....................................................................................................... 141

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1 INTRODUÇÃO

Desde 2009, um breve olhar pela cidade do Rio de Janeiro já nos é capaz de

suscitar as mais diversas questões. Parecia impossível, mesmo ao observador mais

desatento, não se questionar frente ao grande canteiro de obras no qual se

transformou a cidade, nas quais a urgência parecia ditar o ritmo, enquanto seus

objetivos políticos permaneciam obscurecidos pela poeira.

A cidade carioca é dona de uma agenda robusta de megaeventos1 que por si

só já traz uma enxurrada de obras e intervenções na paisagem urbana sob a

justificativa de preparar a cidade para tal calendário – obras que vão da construção

de equipamentos esportivos às grandes transformações na malha viária da cidade,

por exemplo. Paralelamente, uma política de segurança pública fundada na

instalação de unidades de polícia pacificadora (UPP) em favelas estratégicas da

cidade, seja por estarem no entorno dos equipamentos esportivos, no roteiro

turístico ou no caminho do aeroporto, tem também contribuído para essa percepção

de grandes transformações, alterando o discurso em torno da violência, tema

especialmente caro a cidade até muito recentemente.

Olhando um pouco mais de perto, podemos começar a desnudar o sentido

dessas mudanças. Muitos trabalhos têm chamado atenção para a concentração de

investimentos em determinadas áreas da cidade, três especialmente: zona sul,

região portuária e Barra da Tijuca. Essas três regiões configurariam hoje os

principais vetores das transformações que vêm ocorrendo na cidade do Rio de

Janeiro.

Dentre os principais locais de investimento na cidade, a região portuária é

aquela na qual as transformações parecem ser as mais gritantes. Através da Lei

Municipal nº101/2009, que criou a Operação Urbana Consorciada de Área de

Especial Interesse Urbanístico, o projeto Porto Maravilha2 tem atuado sobre uma

área de 5 milhões de m², prometendo uma mudança radical na paisagem urbana da

1 Para se ter uma ideia, a cidade do Rio de Janeiro recebeu os Jogos Pan-Americanos de 2007, a

Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) em 2012, a Jornada Mundial da Juventude em 2013, foi uma das cidades-sede da Copa do Mundo da FIFA de 2014 e irá recepcionar, sozinha, os Jogos Olímpicos de 2016. 2Mais informações disponíveis em:

http://www.portomaravilha.com.br/web/sup/OperUrbanaApresent.aspx. Acesso em 8 jan. 2014.

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região, o que já se mostra bem visível se avaliarmos pelas dimensões dos primeiros

equipamentos inaugurados, como o Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio,

ambos situados na renovada Praça Mauá, o AquaRio, maior aquário da América

Latina, e o mais novo meio de transporte da região, o Veículo Leve sobre Trilhos

(VLT). Em meio as grandes obras de renovação urbana realizadas pela prefeitura e

seus parceiros privados, grandes prédios comerciais também vão sendo erguidos na

região que foi um dia o maior mercado de pessoas escravizadas do mundo

(CICALO; VASSALLO, 2015).

A Barra da Tijuca conforma outra região centralizadora de investimentos na

cidade. Por lá tudo assume grandes proporções – são grandes avenidas, grandes

empreendimentos imobiliários, grandes equipamentos públicos e grandes obras em

sua malha viária. Escolhida como eixo de crescimento da cidade, a região tem

recebido uma quantidade enorme de investimentos públicos e privados, que

impactam constantemente sua configuração urbana. Aqui, o principal impulsor das

transformações veio sob a justificativa da necessidade de preparar a cidade, no

caso, Barra da Tijuca e região, para receber os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de

2016.

Por fim, temos a zona sul carioca, sinônimo do imaginário difundido mundo a

fora de “Cidade Maravilhosa”, comporta bairros como Leblon, Ipanema,

Copacabana. É, talvez, a mais famosa região da cidade, principal ponto de encontro

de turistas do mundo todo a procura de suas praias, paisagens e festas. No entanto,

do ponto de vista urbanístico, essa é uma área considerada por muitos como já

saturada de edificações e investimentos, também de intensa especulação

imobiliária, que elevou de tal forma seus preços que atualmente o bairro do Leblon

se situa no topo da lista dentre os mais caros do Brasil3.

Mas é também na zona sul que estão situadas algumas dezenas de favelas e

são elas, hoje, o principal atrativo para investimentos públicos e privados,

funcionando mesmo como uma fronteira de expansão do capital nesta região. Nesse

sentido, a UPP parece ter um papel central – segundo o discurso oficial, as

Unidades de Polícia Pacificadora foram idealizadas visando livrar essas áreas da

3 Rio de Janeiro tem o metro quadrado mais caro do país. Veja Rio Online, 08 jan. 2014.

http://vejario.abril.com.br/materia/cidade/rio-janeiro-tem-metro-quadrado-mais-caro-pais/. Acesso em: 17 nov. 14.

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influência do tráfico de drogas e, sem entrar aqui na discussão de sua eficiência ou

não, essas unidades policiais têm garantido, pelo menos ao nível de mercado, a

segurança necessária para que alguns desses territórios sejam incorporados nos

circuitos de turismo, mercado imobiliário e outros.

Garantindo e expandindo essa nova “função” das favelas enquanto locais de

atração de investimentos, o Estado tem dispendido uma quantidade significativa de

recursos em programas de intervenção urbana, como o PAC, pelo governo federal e

estadual, e o Morar Carioca, através do poder municipal, de modo a transformar

esses territórios em ambientes ainda mais atrativos aos capitais que disputam a

cidade. O modo como esses investimentos têm sido realizados, seus objetivos e a

quem eles têm beneficiado é um dos caminhos que essa pesquisa pretende seguir.

A partir daí, diversos trabalhos têm se dedicado a buscar interpretações sobre

esses processos de grandes transformações no espaço urbano. De maneira geral, o

pano de fundo analítico é traçado sobre a neoliberalização do Estado, de suas

políticas. Ou seja, estaríamos vivendo sob a égide da urbanização neoliberal. Mas o

que isso significa?

Compartilhamos das inquietações frente às mudanças aceleradas na cidade

carioca e, buscando também contribuir com a reflexão, o objetivo desse trabalho é

buscar apreender o sentido dessas transformações nas favelas situadas na área

mais nobre da cidade, a zona sul, articulando o estudo mais aprofundado de uma

localidade específica com as dinâmicas mais gerais da cidade como um todo, que

conformariam a ‘cidade neoliberal’.

Como ponto de partida, escolhemos para estudo mais detido uma favela

situada na zona sul da cidade, aquela que, acreditamos, seja o símbolo das grandes

transformações empreendidas nesses territórios – a favela do Vidigal. Situada entre

os bairros do Leblon e São Conrado, a ocupação no morro do Vidigal começa a se

consolidar em meados da década de 1940 e, passadas diversas ameaças de

remoção, a favela resistiu a todas as investidas contra ela e há mais de setenta anos

o Vidigal marca uma das paisagens mais bonitas e famosas da cidade do Rio de

Janeiro, aos pés do morro Dois Irmãos.

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Por sua localização privilegiada e vista exuberante, a favela do Vidigal é uma

das mais conhecidas da cidade. Seu perfil artístico também vem de longa data,

desde a década de 1970, quando mais uma tentativa de remoção ganhou

visibilidade e um apoio mais amplo para além do morro, atraindo a atenção de

diversos artistas. Posteriormente, esse processo foi ainda impulsionado pela criação

do grupo de teatro Nós do Morro, em 1986, que também alcançou significativa

notoriedade e teve importante papel na disseminação da imagem do Vidigal como

um local de ativa produção cultural na cidade.

A partir daí, a favela do Vidigal passou a receber com certa frequência a visita

de artistas, estrangeiros e curiosos atraídos por suas histórias e encantados com

sua vista. No entanto, até muito recentemente, essas histórias eram também

acompanhadas pela violência latente nas favelas cariocas, narradas diariamente

pela grande imprensa, marcando essas regiões como locais de drogas e

criminalidade.

Os discursos em torno do Vidigal mudam mais radicalmente a partir da

implantação da UPP, em 2012. Com o discurso da “pacificação”, as transformações

parecem ter tomado proporções significativas, seja pela velocidade, seja pela

alteração da própria paisagem urbana. Segundo reportagem do jornal O Globo4,

apenas em 2013, compraram casas no morro o artista plástico Vik Muniz, a

produtora de cinema Jackie De Botton, o casal proprietário do Zazá Bistrô e bar

Devassa, além da construção do hotel realizada pelo dono do bar Belmonte, sem

contar os moradores “ilustres” mais antigos, como o cantor Otto. Já em 2015, boatos

circularam na imprensa de que o ex-jogador de futebol David Beckham e o cantor

estadunidense Kanye West também teriam comprado casas na favela, num valor

que chegaria a R$ 1 milhão.

Expressão de tudo isso, de acordo com os indicadores da Fundação Instituto

de Pesquisas Econômicas (Fipe/Zap), o Vidigal teve uma valorização de 477,324%

desde a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP, em 2012.

4 Vidigal atrai moradores ilustres e ganha status de favela chique. O Globo Online, 18 maio 2013.

http://oglobo.globo.com/rio/vidigal-atrai-moradores-ilustres-ganha-status-de-favela-chique-8412639. Acesso em 06 nov. 2014.

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Esse cenário tem provocado as mais diferentes reações, pois se de um lado o

discurso oficial do poder municipal, corroborado e veiculado pela grande imprensa, é

o de exultação dessa valorização imobiliária enquanto prova das melhorias vividas

por essas regiões como resultado de suas políticas públicas, o discurso de parte dos

moradores5 e de diversos movimentos sociais aponta o lado negativo dessa

valorização – o aumento dos preços na favela estaria contribuindo para a

precarização da vida de parte dos moradores e mesmo “expulsando” outros,

fenômeno esse que vem sendo chamado, de maneira recorrente, de gentrificação.

De modo geral, esse termo, importado de experiências internacionais, é por aqui

usado como expressão do fenômeno de elitização de áreas revalorizadas, ou recém-

valorizadas, a partir da entrada do mercado e de melhorias urbanas, sem o

acompanhamento de dispositivos que garantiriam a permanência dos moradores

tradicionais, resultando na substituição de uma classe por outra de maior poder

aquisitivo.

O objetivo desse trabalho não é assumir um lado ou outro na disputa de

interpretações sobre essas mudanças, mas antes o de apreender o sentido das

transformações urbanas no Vidigal. Acreditamos que a descaracterização da favela

enquanto território popular, expressão da perda de territórios centrais na disputa

pela construção da cidade, pode ser interpretada como uma grande derrota de toda

classe trabalhadora. Aqui pode estar a chave para entender o elo entre processos

localizados no Vidigal com as dinâmicas que atravessam e transformam a cidade

como um todo, seja através da elitização das favelas da zona sul, os despejos de

moradores na região portuária e as remoções forçadas de comunidades inteiras na

Barra da Tijuca e região.

Através do trabalho de campo na favela buscaremos nos debruçar sobre as

dinâmicas dos processos de transformação desse espaço, atentando para as

mudanças na configuração urbana, os (re)arranjos na gestão do espaço, as

alterações nos marcos regulatórios e as transformações simbólicas. Um importante

espaço será dado para a apreensão das arenas de conflito, partindo do pressuposto

5 Vidigal debate a Gentrificação e o futuro da comunidade no segundo “Fala Vidigal”. Rio On Watch,

30 abril 2014. http://rioonwatch.org.br/?p=11349. Acesso em 06 nov.14.

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de que o sentido das transformações no Vidigal é um elemento em disputa que

depende do protagonismo e correlação de forças dos atores envolvidos.

Acreditamos que a principal contribuição desse trabalho estará na articulação

dessa análise das transformações no Vidigal com as mudanças mais gerais da

cidade como um todo. Para tanto, estaremos nos apoiando na pesquisa mais ampla

da qual esse trabalho faz parte, que busca discutir o conceito de cidade neoliberal a

partir do Rio de Janeiro.

Realizada em coletivo, a pesquisa A Cidade Neoliberal6, tem se debruçado

sobre as três regiões que conformam os principais vetores de transformações da

cidade, tal como citado anteriormente. Visando tanto dar sustentação teórica ao

conceito, quanto refletir a cerca dos fenômenos que o caracterizariam, parte-se da

hipótese de que a cidade do Rio de Janeiro poderia ser considerada uma cidade

neoliberal. Daí as questões: por que falar em cidade neoliberal? Quais processos

sustentariam a hipótese da neoliberalização?

São essas as questões que, de maneira geral, estarão informando nossas

análises quando dos estudos mais aprofundados de processos localizados, sem

perder, contudo, as particularidades que conformam cada contexto. A ideia é estar

em constante diálogo e troca entre os estudos de localidades específicas e a

reflexão teórica mais ampla em torno da neoliberalização das políticas urbanas em

nossa cidade. Está aí a grande contribuição, e novidade, dessa pesquisa e seus

desdobramentos, da qual esse trabalho faz parte.

A dissertação estará organizada em três capítulos centrais, além deste

introdutório e um dedicado às considerações finais. Iniciaremos por uma

recuperação histórica da construção do espaço urbano carioca, atentando para as

disputas e atores envolvidos na configuração espacial da cidade. Com isso,

buscamos ressaltar as particularidades que atravessam a construção do território da

zona sul e, consequentemente, das favelas que ali surgiram e se estabeleceram. Em

seguida, o olhar se volta para a construção da favela do Vidigal e sua insistência

pela permanência enquanto um território da classe popular encrustado na área mais

valorizada da cidade. Por fim, recuperaremos as formas pelas quais o poder público

6 Coordenada pelo professor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do Observatório das Metrópoles,

Orlando Alves dos Santos Junior.

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interviu na construção desses territórios, desde as diversas tentativas de remoção

até as iniciativas de urbanização e regularização fundiária.

Partindo desse desenho histórico mais amplo do Vidigal, no terceiro capítulo

nos debruçaremos naquilo que pode ser visto como um dos marcos na história da

favela – a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em 2012.

Acreditamos que a UPP, não apenas em sua implementação no Vidigal, mas

enquanto carro-chefe da política de segurança pública municipal, pode representar a

inflexão que vinha ocorrendo nas políticas urbanas, marcando a progressiva

passagem para uma urbanização neoliberal.

Nesse sentido, a discussão dos objetivos e impactos da UPP requer um

momento de reflexão anterior sobre os discursos de violência que marcaram esses

territórios nas décadas anteriores. Ou seja, entender como a UPP surge enquanto a

grande solução para combater a violência nas favelas cariocas passa,

necessariamente, pelo discurso que criminalizou esses territórios e sua população e

que aparece agora como elemento fundamental para a legitimação na escolha

dessa política de segurança pública.

Ainda, nos parece importante ressaltar, mais uma vez, as particularidades das

favelas da zona sul, e do Vidigal especialmente, buscando ilustrar como elas

influenciam no desenho dessa política, que atua de forma seletiva e fragmentada no

território da cidade. Aqui está a chave para entender a relação entre segurança e

mercado no contexto da cidade neoliberal, onde a entrada da UPP – em algumas

favelas – é seguida por uma maior ofensiva do mercado formal.

No quarto capítulo chegamos ao Vidigal de hoje. Através de uma exposição

mais sistemática do trabalho de campo, descrevendo e analisando as dinâmicas

atuais que conformam esse espaço, estaremos buscando o sentido das muitas

transformações no Vidigal. O olhar se volta aqui para os novos agentes econômicos

que estão se estabelecendo nesse território, quais suas motivações e expectativas

em relação aos seus ganhos versus o processo de elitização da favela. As

mudanças nas configurações urbanas, nos arranjos institucionais, nas formas de

regulação e, especialmente, as transformações simbólicas serão analisadas em

relação a este processo, objetivando, assim, uma análise das transformações

socioespaciais e do processo de mercantilização do Vidigal.

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O último capítulo será reservado às considerações finais desse trabalho. Até

lá, esperamos que o caminho percorrido pela pesquisa, as informações coletadas,

as discussões bibliográficas e com o grupo de pesquisa, e as reflexões vindas daí

nos permitam uma elaboração mais sistemática sobre o quanto as transformações

atuais que atravessam o Vidigal estão inseridas, e de que forma, na dinâmica mais

geral da cidade, não apenas como um reflexo, mas como mais um processo

constitutivo dessa política neoliberal que acreditamos estar em curso em nossa

cidade.

A noção de território popular7 mais uma vez aparece aqui como fundamental

para compreender a forma como a neoliberalização incide sobre territórios centrais

tradicionalmente ocupados pela classe trabalhadora, atuando de modo a

descaracterizá-los enquanto tal, seja via mercado, seja através da atuação direta do

poder público, que libera esses espaços para a acumulação e reprodução do capital,

configurando, assim, essa nova rodada de mercantilização da cidade.

Nesse ponto, esperamos ter uma avaliação consistente relativa ao sentido

das transformações urbanas no Vidigal, podendo, a partir daí e com base no projeto

político de cidade no qual acreditamos, avaliar essas transformações sob a lógica do

direito à cidade e da justiça social, apontando brechas e estratégias pelas quais se

dá a disputa pela cidade.

A bibliografia com a qual vamos trabalhar e dialogar perpassará todos os

capítulos da dissertação, estará sempre informando nosso olhar e nossas análises,

ao mesmo tempo em que se coloca como passível de questionamento e

transformação. A ideia é partir das discussões teóricas para interrogar o objeto e, a

partir dele, poder voltar nessas discussões para também interrogá-las quanto a sua

validade explicativa para o caso em questão. O que está implícita aqui é uma

descrença em teorias descoladas das realidades concretas nas quais elas são

forjadas e nas quais elas devem ser constantemente testadas, e a busca pela

7 A escolha pelo uso de “território popular” vem no sentido de ressaltar a dimensão da apropriação do

espaço e as disputas de poder que atravessam essa apropriação. Apoiando-nos em Haesbaert (2002) ao pensar o território envolvendo não apenas uma dimensão espacial concreta das relações sociais, mas também o conjunto das representações sobre o espaço ou o “imaginário geográfico” que também move estas relações. Nesse sentido, falar em descaracterização do território popular é pensar não apenas nas perdas materiais, como a substituição de classes morando no território, mas também as transformações simbólicas sobre o ver e viver naquele território.

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superação das dicotomias entre teoria e práxis, conceitos e realidade (HARVEY,

1980).

Por fim, acreditamos ser importante algumas palavras sobre a relevância

desse trabalho para o campo do planejamento urbano e, principalmente, para o

campo político no qual nos situamos.

Buscar compreender as transformações no espaço, seus agentes e objetivos,

é tarefa fundamental para todos aqueles que trabalham no campo do planejamento

urbano, afinal, a compreensão dos processos é o primeiro passo para a tentativa de

planejar, ou seja, de disputar esses projetos de transformações urbanas. Assim,

levando-se em consideração a dimensão desses grandes projetos urbanísticos que

estão em curso na cidade carioca, com significativos impactos sobre a vida de todos

os seus habitantes, um olhar através de diferentes escalas se mostra essencial e é

isso que esse trabalho busca fazer.

O olhar para um contexto local e, para nós, exemplar, como é o caso da

favela do Vidigal, pode nos ajudar a compreender o papel que tem sido dado as

favelas da zona sul da cidade pelo poder público e os capitais privados. A discussão

a cerca da produção do espaço tem ocupado um importante lugar nos debates

urbanos e a tentativa de desnudar o processo em um caso ilustrativo pode ser de

grande auxílio quando voltamos o olhar para o geral.

Nesse sentido, o diálogo mantido com o grupo de pesquisa que discute a

cidade como um todo também é muito enriquecedor. O neoliberalismo parece estar

informando grande parte das pesquisas produzidas em nossa área, como chave de

inteligibilidade dos mais distintos processos, no entanto, ainda nos falta uma

compreensão mais consistente a cerca do sentido dessa neoliberalização. E,

acredito, essa é ainda uma importante questão em aberto em nosso campo.

Junto a tudo isso, um projeto político está sendo construído e disputado. Mais

do que contribuir para o debate e compreensão dos processos que perpassam

nossa cidade, buscamos uma reflexão que possa informar também as disputas

políticas em torno do direito à cidade.

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2 VIDIGAL: A CONSTRUÇÃO DE UM TERRITÓRIO POPULAR

Recuperar a história da ocupação da favela do Vidigal, lançando luz sobre os

atores envolvidos na construção desse território e as disputas que resultaram em

sua configuração atual, pode nos ajudar a entender o sentido desse turbilhão de

transformações pelas quais a favela vem passando nos últimos anos e que tem sido

objeto de muitas dúvidas e questionamentos, não apenas por aqueles que estudam

o urbano, mas também por aqueles que vivenciam essas transformações todos os

dias.

No entanto, inserir a construção desse território nas dinâmicas que

conformaram o espaço da cidade carioca como um todo nos parece importante para

evitar as armadilhas de reflexões isoladas sobre processos específicos. Antes de

atentar para as particularidades e dinâmicas do Vidigal, precisamos entender os

processos mais gerais nos quais ele se insere. O esforço aqui é de não perder a

dimensão geral quando olharmos para o local.

2.1 A construção do espaço urbano carioca

Para recuperar a história do Vidigal é preciso dar um passo atrás, puxando

essa linha histórica desde o momento que marca o início da constituição das favelas

no cenário carioca enquanto território construído pela e para a classe trabalhadora.

Não temos condições aqui de realizar um trabalho de recuperação histórica

exaustivo sobre a formação do espaço urbano do Rio de Janeiro, assim, vamos nos

apoiar na extensa e consolidada bibliografia já existente para nos ajudar nesse

exercício de reconstituição histórica.

A vinda da família real e toda sua corte no início do século XIX teve um

importante impacto na estrutura de classes da cidade, refletindo na formação

estratificada de seu espaço urbano (ABREU, 1987). A passagem do século XIX para

o século XX trouxe junto com a proclamação da República a elevação da cidade do

Rio de Janeiro à capital federal da recente nação e, com isso, a necessidade de

adaptá-la a tal posição. À estrutura de classes, somavam-se, naquele momento, os

recém-libertos pelo fim da escravidão, povoando a cidade a procura de

oportunidades de trabalho. Tal como ressalta Gonçalves (2013), o fim da escravidão

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no país se deu de maneira branda, sem qualquer rompimento ou mudança

significativa na estrutura social – para onde vão os negros?

O Rio de Janeiro também vivia um período de expansão econômica graças à

economia cafeeira, que atraía tantos trabalhadores livres nacionais e estrangeiros,

quanto capitais internacionais em busca de locais de reprodução. Assim, se

elementos capitalistas já apareciam nas dinâmicas da cidade desde o início do

século XIX, é a partir do fim desse período que eles se consolidam.

Segundo Abreu (1987), entre 1870 e 1902 o Rio de Janeiro viveu sua primeira

fase de expansão significativa da malha urbana, pautada pelas necessidades de

reprodução dos capitais que buscavam garantir as condições de sua reprodução

através da intervenção no espaço físico. O capital internacional teve papel

fundamental na implementação e expansão das linhas de bondes e trens na cidade

e, consequentemente, nos caminhos e formas que assumiram a expansão urbana

no período.

Em 1868 são inauguradas as primeiras frentes de expansão da cidade –

linhas de bonde sentido zonal sul e trilhos de trem rumo ao subúrbio. Enquanto o

capital nacional, advindo principalmente da economia cafeeira, era aplicado na

compra de terras nas áreas servidas pelo bonde, o capital estrangeiro mantinha o

controle sobre a expansão, liderada pelos caminhos do bonde e pela provisão de

infraestrutura urbana em determinadas áreas.

Nesse momento, ainda segundo Abreu (1987), Botafogo emergia como o

bairro nobre carioca, enquanto os mesmos responsáveis pela expansão dos bondes

rumo às praias ajudavam na difusão de uma ideologia que associava o estilo de vida

“moderno” à moradia à beira-mar, garantindo, assim, a expansão dos territórios

sobre os quais detinham o monopólio.

A partir daí o avanço foi rápido. Em 1890 os bondes começam a chegar à

Copacabana, em 1892 é inaugurado o que hoje conhecemos como Túnel Velho e

em 1894 a expansão se consolida sentido Leme e Ipanema. Tal como ressalta o

autor, é importante notar como se relacionavam naquele momento os capitais

investidos nos transportes com aqueles da construção civil, através da adequação

dos lotes urbanos para a recepção dos bondes, garantindo, assim, a reprodução de

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ambos. Os anos seguintes dão continuidade à extensão das linhas de bonde,

enquanto novos lotes de terra são incorporados à área urbana. Em 1901, a energia

elétrica chega ao ainda inabitado bairro de Ipanema.

Figura 1 - Construção de ponte sobre o canal Jardim de Alah, que hoje separa os bairros de Ipanema

e Leblon

Fonte: Augusto Malta – Arquivo IHGB8

É dessa forma que a zona sul já surge na paisagem carioca como um bairro

construído para receber as elites. A expansão da malha urbana naquela direção foi

feita com base em uma aliança do Estado com as companhias de transportes e os

proprietários de terra, que prepararam a região antes mesmo da chegada dessas

elites. Desde o começo, para os bairros ricos, a infraestrutura chega até mesmo

antes de seus moradores. Aliás, esse é um dos elementos que faz deles um bairro

concebido para as classes altas – a estratificação de classes da sociedade se

expressa na estratificação física dos espaços da cidade.

Entretanto, essa frente de expansão sentido zonal sul não influenciou de

maneira determinante as dinâmicas do centro da cidade, que continuava se

adensando dada a necessidade da população mais pobre de morar perto dos locais

com maiores oportunidades de trabalho, função essa ainda concentrada nas áreas

centrais. Pois bem, voltemos ao centro.

8 Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/rio-450/livro-comemorativo-dos-175-anos-de-fundacao-

do-ihgb-tem-fotos-ineditas-do-rio-13546415. Acesso em 24 out. 2015.

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O contexto que marcou a passagem do século XIX para o XX é atravessado

por transformações estruturais: o esgotamento do sistema escravista acompanhado

do declínio da economia cafeeira via emergir a multiplicação de fábricas no entorno

do centro e um grande afluxo de imigrantes estrangeiros (ABREU, 1987).

Se no início a industrialização aparecia de modo incipiente, localizando-se

nas áreas centrais, já na virada do século ela passa a se instalar majoritariamente

nos subúrbios recém “inaugurados” pelas ferrovias. Seguindo agora esse outro vetor

de expansão apontado por Abreu (1987), os trens foram os responsáveis por

expandir a malha urbana sentido subúrbio, consolidando uma forma de ocupação

que acompanhava os trilhos, de territórios que se constituíam dormitórios,

substancialmente dependentes do centro da cidade.

Nesse momento, no entanto, a massa da população mais pobre ainda se

concentrava nas áreas centrais. De acordo com Valladares (2005), o cortiço era

então um dos personagens principais da vida no centro da cidade. Entre 1850 e

1870, os cortiços chegaram a abrigar metade da população carioca (CAMPOS,

2004), sendo vistos pelas classes altas como locus da pobreza e das “classes

perigosas”, ameaça à ordem social e moral, se constituindo, assim, como um dos

principais problemas a ser combatidos no processo de transformação da cidade

carioca.

Nesse sentido, Campos (2004) chama atenção para uma questão que muitas

vezes é invisibilizada nos trabalhos dedicados a construção do espaço urbano

carioca – a população que habitava os cortiços era majoritariamente negra,

constituída por ex-escravos excluídos do acesso à terra e ao mercado de trabalho9.

Introduzindo o papel do negro nos processos de construção da cidade, o autor

argumenta que o estigma que recaía sobre os habitantes dos cortiços – futuramente

moradores das favelas – já vinha impregnado com as marcas da escravidão.

Assim, ainda no fim do século XIX, sob influência do modelo urbanístico

europeu, as palavras de ordem eram higienizar e modernizar, o que na prática teve

expressão nas grandes obras idealizadas por Pereira Passos, prefeito do Rio entre

9 A Lei de Terras, de 1850, pode ser vista como o marco de uma legislação construída para

consolidar, e legitimar, a exclusão econômica dos negros, que se expressa também na exclusão espacial, ao não permitir que esse segmento social tivesse acesso à propriedade da terra.

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1902 e 1906, que, buscando “sanear e civilizar”10 a cidade, acabou com centenas de

habitações populares espalhadas pelo centro, naquilo que veio a ser conhecido

como “bota-abaixo”, ou seja, a destruição de cortiços e estalagens, vistas como os

grandes focos das epidemias que afetavam a cidade. O cortiço sai de cena e as

favelas assumem o protagonismo.

Apesar da dificuldade em precisar exatamente o surgimento da primeira

favela, há muito a relação é traçada entre esses episódios de despejos e as

ocupações iniciais dos morros da cidade do Rio de Janeiro. Realizadas apenas

enquanto reformas estéticas do espaço urbano, sem qualquer dimensão de reforma

social, a população que morava no centro para se manter perto das oportunidades

de emprego, se viu diante da inexistência de qualquer alternativa habitacional a não

ser o espaço livre das encostas do que hoje conhecemos como o Morro da

Providência. Como muitos autores já mostraram, foi assim que os destroços das

demolições dos cortiços do centro da cidade serviram como base para as primeiras

casas no Morro da Favella11. Ainda no fim do século XIX outras favelas surgiram na

região central, com a tolerância do poder público12.

Tal como apontado por Gonçalves (2013) desde o surgimento das primeiras

casas nos morros da cidade, o discurso político pautava-se pela condenação a esse

tipo de ocupação ao lado de certa tolerância, já que a falta completa de uma política

habitacional, aliado a ofensiva contra os cortiços, então das poucas possibilidades

de moradia para as classes populares, deixava poucas alternativas ao governo. Nas

palavras do autor: “Essa tolerância constituiu uma indispensável concessão social às

classes populares, assegurando, assim, certa estabilidade social fundamental ao

processo de acumulação do capital” (GONÇALVES, 2013, p. 49).

O projeto de intervenção no centro que passa a ser implementado a partir do

início do século XX fundamenta-se em uma concepção da forma urbana diferente

daquela estabelecida até então – seu objetivo era a eliminação dos cortiços no

10

Valladares (2005). 11

O termo “favella” foi trazido pelos ex-combatentes da Guerra de Canudos (1896-1897) que, ao

retornarem ao Rio de Janeiro, instalaram-se também nas encostas atrás de onde se localizava o antigo Ministério da Guerra. Os soldados logo associariam seu novo local de moradia aos morros da região do sertão da Bahia, de onde regressavam, onde os morros eram cobertos por uma vegetação de nome justamente favella (Jathropa phyllaconcha). Não tardou para o morro começar a ser conhecido como Morro da Favella (Gonçalves, 2013). 12

Valladares (2005).

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centro da cidade e o direcionamento da massa da população pobre aos subúrbios,

em contraposição a essa tolerância das ocupações dos morros, que vinha desde

meados de 1850. Com isso, essa tolerância se veria enfraquecida já nas primeiras

décadas do século XX.

“Trem, subúrbio e população de baixa renda passaram a ser sinônimos aos

quais se contrapunha a associação bonde/zona sul/estilo de vida “moderno”.”

(ABREU, 1987, p. 57). No entanto, a construção do espaço da cidade não se deu de

maneira tão homogênea em relação ao projeto concebido para ela. A existência de

bairros operários na zona sul, no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas, expressava

as brechas desse projeto, que não passaram despercebidas.

De modo a evitar a consolidação desse modelo de ocupação naquela área, a

única ferrovia projetada para passar pela zona sul, que ligaria Botafogo à Angra dos

Reis, foi suspensa. Seu único trecho iniciado, em 1891, foi a primeira abertura no

sentido do que hoje conhecemos como a Avenida Niemeyer, que depois de muitos

anos abandonada, foi inaugurada em 1912 graças aos esforços do diretor do

Ginásio Anglo-Brasileiro, localizado aos pés do morro Dois Irmãos e que acabou

facilitando o início das ocupações que formaram o morro do Vidigal. Mas voltaremos

a isso mais a frente.

Segundo Abreu (1987), a Reforma Passos não se restringiu a demolição de

cortiços e alargamento de vias, mas representou a primeira grande intervenção

estatal no urbano, reorganizando suas bases econômicas e ideológicas. O

significado desse período é interpretado pelo autor como expressão do modo como

as transformações na organização social determinam novas funções à cidade e,

ainda, como a tentativa de suprimir contradições do espaço geram novas

contradições relacionadas ao próprio reordenamento da organização social.

Ainda segundo o autor, o período Passos representaria, de forma mais geral,

o momento de superação da cidade escravagista, com suas formas, funções e

contradições, para a consolidação do espaço urbano adequado às exigências do

modo de produção capitalista, transformando substancialmente a forma de

construção do espaço urbano e de sua gestão.

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Nesse sentido, ao criar novas funções para os espaços da cidade, onde os

bairros do subúrbio emergem como novos locais destinados à moradia da classe

trabalhadora pobre expulsa do centro, a cidade do Rio de Janeiro viu emergir e

consolidar aquela que seria uma das marcas mais profundas de sua paisagem

urbana – as favelas.

O início do século XX vem acompanhado de uma grande ofensiva contra as

favelas. Ao argumento higienista, somava-se a construção da ideia de lugares de

criminalidade, consolidando as representações negativas em torno da favela e de

seus moradores (GONÇALVES, 2013). A política de tolerância era vista agora como

uma das responsáveis pela expansão dessa forma de ocupação por toda cidade.

A partir da década de 1920 o urbanismo se consolida na política e no

pensamento brasileiro. No Rio de Janeiro, essa nova forma de pensar a cidade,

segundo Gonçalves (2013), estaria muito relacionada à consolidação do mercado

imobiliário e seu objetivo de implementar uma divisão espacial de forma a beneficiar

a acumulação de capital. Nesse projeto não havia espaço para as favelas e as

ofensivas contra ela estavam a todo vapor.

Pensando nas disputas que atravessam as dinâmicas de construção do

espaço urbano, podemos entender as favelas, do centro e zona sul, como espaços

de resistência da classe trabalhadora, que garantiu territórios em áreas centrais,

destinadas a moradia das classes altas, contrariando o modelo de ordenamento

planejado por essas classes dominantes.

Andrelino Campos (2004) é enfático ao afirmar o espaço das favelas como

espaços de resistência, mas o autor vai mais atrás e afirma a transmutação do

espaço quilombola nos espaços das favelas cariocas. Tal como foram os quilombos

no período escravagista, a ocupação das favelas representaria a transgressão das

formas de utilização do espaço urbano, construído sobre a lógica das classes

dominantes. Ainda, seria o destino da população negra que, sem espaço nesse novo

rearranjo da organização social, foi marginalizada no acesso ao mercado de

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trabalho, o que contribuiu para a manutenção dessa população e de suas formas de

reprodução na informalidade13.

No entanto, apesar do caráter de resistência que marca essas duas formas de

organização social – o quilombo e a favela – uma diferença fundamental entre elas

deve ser ressaltada. Enquanto o quilombo se constituiu, em pleno período

escravagista, como um território livre que rompia a ordem social estabelecida

recebendo justamente aqueles que não tinham lugar nessa estrutura, as favelas

estão inseridas na organização social da qual emergem enquanto espaços de

despossessão, reproduzem-na, mesmo que de forma subordinada. Ainda assim,

podendo também constituir-se em territórios de resistência.

Aproximando-nos do território que será objeto de reflexão mais detida nesse

trabalho, a favela do Vidigal, voltaremos mais uma vez o olhar para a zona sul da

cidade, área nobre do Rio de Janeiro e onde ela está localizado. O exercício a partir

daqui é buscar as particularidades que marcaram a construção desse território e

seus impactos na forma como as favelas aqui também se constituíram.

Tal como já mencionado, desde os primeiros movimentos de expansão do

tecido urbano para essa região, através, principalmente, das linhas de bonde, a zona

sul surge como espaço destinado à moradia das classes altas. No entanto, se até as

primeiras décadas do século XX essa ocupação se deu de maneira incipiente, é a

partir de 1930 que as transformações desse território passam a ocorrer de maneira

mais intensa.

Com as dificuldades para se expandir além da zona sul, cercada por morros,

e a introdução do concreto armado na construção civil, o que permitiu a

verticalização de Copacabana e o barateamento da produção da unidade

habitacional, a região começou a receber parte da classe média que sonhava com a

casa própria à beira-mar. Além disso, com investimentos apenas na remodelação

física daquele espaço, não havia a necessidade de incorporação de novas áreas ou

a realização de grandes gastos com infraestruturas, gerando possibilidades de

acumulação rápida de capital. É nesse sentido que, a partir da década de 1930, a

13

Não teremos condição, no escopo desse trabalho, de tratar a questão do negro no processo de

construção da cidade, tal como colocada por Andrelino Campos (2004). No entanto, acreditamos ser importante situar a questão de tal modo a evitar, mesmo que de maneira superficial, a redução da questão racial no Brasil à problemática da pobreza.

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reconstrução do espaço físico da zona sul se torna a principal forma de investimento

de reprodução do capital imobiliário (ABREU, 1987).

Como consequência, a zona sul – Copacabana, principalmente – passa por

um período de grande crescimento populacional, estimulando o desenvolvimento do

comércio e de serviços diversos, consolidando um mercado de trabalho que passa a

atrair significativa parcela de mão-de-obra barata através dessas novas ofertas de

trabalho.

E é nas encostas que cercam a região que esses trabalhadores vão se

estabelecer. Segundo Abreu (1987), se em 1942 a zona sul contava com cerca de

10 favelas, em menos de 10 anos, já em 1950, esse número sobe para 25 favelas,

abrigando em torno de 40 mil pessoas. Era o início do processo de consolidação das

favelas da zona sul carioca, que marcam sua paisagem até os dias de hoje.

Essa retomada da valorização da orla da zona sul traz também as

contradições dos processos que vinham transformando a cidade. Em oposição ao

crescimento de Copacabana, a “velha zona sul”, como Botafogo, Flamengo e

Laranjeiras, vivia um período de relativa estagnação, enquanto o centro e seu

entorno, como bairros como Catete e Glória, passavam por processos de mudança

estrutural deixando, progressivamente, de se constituírem em áreas de residência

das elites. Ou seja, se no início do século foram essas as regiões que receberam

mais aporte de recursos e intervenções nos seus espaços físicos, elas foram

também rapidamente colocadas em segundo plano com a emergência de um novo

território mais atrativo para o investimento do capital imobiliário.

Esse período de euforia econômica durou até a década de 1950. Com a

abertura definitiva do país ao capital internacional, muitos setores nacionais foram

fragilizados por não conseguiram se manter na competição. Junto com a

transferência da capital do país para Brasília, que impactou diretamente a cidade

carioca, vemos, a partir desse período, a estagnação econômica da cidade refletir no

aumento da população favelada e dos bairros nas periferias. Essa intensificação da

segregação do espaço da cidade pode ser entendida como consequência da falta de

políticas urbanas capazes de controlar a valorização e especulação do solo e da

habitação, garantindo seu acesso e uso para fim de moradia. Resultado disso foi o

agravamento da crise habitacional no Rio de Janeiro (ABREU, 1987).

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Para enfrentar o cenário de crise econômica, o capital imobiliário mais uma

vez se reinventou em Copacabana, verticalizando ainda mais o bairro, e

apresentando uma nova forma de habitação, os apartamentos de quarto e sala e os

conjugados, hoje tão característicos do bairro. Com isso, o mesmo bairro que

recebeu as classes altas, depois as favelas, recebia agora a classe média que

buscava não apenas status, mas também a proximidade com as oportunidades de

trabalho. O efeito dessa “popularização” de Copacabana para a zona sul como um

todo foi o deslocamento das classes mais altas para áreas de mais difícil acesso,

como Lagoa e Leblon, que começaram a ter seu processo de ocupação intensificado

(ABREU, 1987).

Foi assim que, desde a década de 1940, o debate a cerca das favelas se

intensificou na mesma medida em que o fenômeno se espalhava pela malha urbana

da cidade carioca. De acordo com Valladares (2005), sob o governo federal de

Getúlio Vargas, a experiência dos Parques Proletários14, primeira política efetiva de

construção de moradias populares para os habitantes de favelas, marcou uma

importante guinada na concepção das políticas públicas, que passavam agora a

incluir as classes populares, mesmo com seu caráter restrito e provisório.

A aprovação do Código de Obras, em 1937, foi um momento importante e

contraditório na história das favelas, pois, ao mesmo tempo em que apresentava a

primeira definição de favela em um documento público, apontava também como

meta sua completa extinção. Em 1949 foi realizado o primeiro recenseamento das

favelas do Rio de Janeiro pelo governo municipal e, em 1950, sob coordenação do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Recenseamento Geral foi

elaborado, contendo dados oficiais sobre as favelas e seus residentes. As favelas

cariocas começavam a ser reconhecidas na geografia oficial.

No entanto, esse reconhecimento não significou o fim das investidas contra as

favelas, principalmente nas áreas mais valorizadas como a zona sul. Ao argumento

14

Os Parques Proletários foram criados não apenas como uma política habitacional que visava a

erradicação das favelas, mas também como um modo de conformação do comportamento da classe trabalhadora, pautado por uma visão que postulava a necessidade de civiliza-los, ou ainda, de controla-los socialmente. Entre os anos de 1941 – 43 foram criados três Parques Proletários no Rio de Janeiro (Gávea, Caju e Leblon), que em sua estrutura contavam com escolas, centro social, assistência religiosa e policial, além de regras de comportamento que buscavam a criação do “novo homem”. O insucesso dos Parques Proletários é comprovado pela sua própria remoção entre as décadas de 1960 e 1970. (GOMES, 2009).

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da insalubridade se acrescentou o medo da expansão do comunismo nas favelas

quando, na década de 1950, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) teve significativa

votação nas eleições.

Segundo Tepedino (2007), o início da gestão de Carlos Lacerda como

governador do Estado da Guanabara (1960-65) foi marcado por uma postura

ambígua frente às favelas, pois se de um lado a política de remoção era colocada

em prática, ela vinha acompanhada de tímidas intervenções de urbanização. Não

durou muito, já em 1962 a política de remoção se intensifica e volta a ser o carro-

chefe do governo de Lacerda. Como resposta, em 1963 é fundada a Federação de

Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), com o apoio de mais de

100 associações de moradores.

O período da ditadura militar (1964-85) mantém essa política violenta de

remoção – sob o argumento da desordem, combatia-se o comunismo e favorecia os

interesses do mercado imobiliário. Ao lado do esvaziamento das associações de

moradores, que vinham se fortalecendo desde os anos 1950, com a intervenção

direta em sua organização, o governo federal passou a usar recursos do recém-

criado Banco Nacional de Habitação (BNH) para construir conjuntos habitacionais

que viabilizassem as remoções de favelas, através da coordenação de órgãos como

a Companhia de Habitação Popular (COHAB) e a Coordenação de Habitação e

Interesse Social na área Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM). Essa última

tinha como meta a extinção de todas as favelas da cidade até 1976, segundo

Tepedino (2007), a CHISAM foi responsável pela demolição completa de mais de 60

favelas e pela transferência de mais de 35 mil famílias para conjuntos habitacionais.

No que concerne à Zona Sul especialmente, o governo Negrão de Lima

colaborou de forma ativa com a CHISAM para acabar com as favelas naquela

região. Segundo Gonçalves (2013), o relatório do governo do Estado, em 1969,

apontava que todas as favelas da Zona Sul estariam erradicas até o fim daquele

governo, em 1970, com exceção da favela da Rocinha. Em grande medida esse

objetivo foi cumprido, pelo menos no círculo entorno da Lagoa Rodrigues de Freitas.

No entanto, como aponta Gonçalves (2013), é importante ressaltar que a

intensificação das tentativas de remoção também provocou reações dos moradores

de favelas. Exemplo disso foram os congressos combativos da FAFEG, que

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enfrentou a violência do regime militar colocando-se firmemente contra as remoções,

e mesmo a derrota eleitoral de Carlos Lacerda ao governo do Estado, em 1965,

pode ser vista como sinal do fracasso dessa política.

Mesmo com a política intensa contra as favelas seu crescimento nunca foi

interrompido, configurando hoje uma das marcas da paisagem urbana carioca. O

que procuramos ressaltar brevemente com essa recuperação histórica foi como elas

surgiram, se construíram e se consolidaram inseridas nas dinâmicas de construção

do espaço da cidade do Rio de Janeiro, ou seja, as favelas não surgem às margens

da construção da cidade, mas são parte estruturante desse processo. As favelas

não podem, e não devem, ser entendidas de forma fragmentada, como um

fenômeno externo aos fenômenos que conformam o território da “cidade formal”15,

elas se constituem na sua relação com eles e podem ser vistas como um dos

resultados da estratificação de classes que por aqui se expressou no território na

forma favela, e não só.

No entanto, a partir da literatura trabalhada, é possível destacar uma

particularidade que marcou a expansão das favelas para a zona sul. Enquanto as

primeiras que emergiram no centro representavam o processo de adensamento

dessa região, as favelas que surgem na zona sul, acompanhando a mobilidade das

classes mais altas, são expressão da expansão do tecido urbano.

As favelas do centro surgem desse processo de adensamento combinado

com um mercado de trabalho precário e concentrado espacialmente, uma rede de

transportes frágil e a falta completa de uma política habitacional. Já as favelas da

zona sul aparecem como resultado do movimento de expansão das elites para

aquela região, levando junto novas oportunidades de trabalho em uma área ainda

carente de mão de obra. Nesse sentido, as favelas aqui foram toleradas na medida

estrita em que funcionavam como acervo de mão-de-obra barata, não expressando,

naquele momento, qualquer empecilho à reprodução do capital ou mesmo qualquer

interesse a ele.

No entanto, isso também não significa que esses processos estejam livres de

contradições, pelo contrário, são frutos delas. As favelas, seja no centro ou na zona

15

Conceito muitas vezes utilizado justamente para marcar a separação entre a cidade e a favela, a

cidade formal e a informal, o asfalto e o morro.

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sul, sempre foram alvo de ofensivas visando sua erradicação, em maior ou menor

grau, durante toda a história do desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro. Afinal, a

construção do espaço urbano não se dá apenas fundamentada nos interesses

econômicos, mas em disputas políticas e ideológicas que incidem sobre o território

de diferentes formas.

2.2 Vidigal – a história da ocupação

O ano de 2015 ficou marcado pelas comemorações de 75 do Morro do

Vidigal16. Dono de uma localização privilegiada, com vista exuberante para o mar e

aos pés do Morro Dois Irmãos, o Vidigal também tem passado por grandes

transformações socioespaciais em seu território.

Figura 2 - Vidigal visto de cima

Fonte: Reprodução da Internet / Google17

16

Uma página no facebook fazia a divulgação dos eventos da comemoração:

https://www.facebook.com/Vidigal-75-ANOS-824792000946757/timeline/. Acesso em 24 set. 2015. 17

Disponível em:

https://www.google.com.br/search?q=vidigal&espv=2&biw=1242&bih=606&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwj_oIz35b3MAhWKEZAKHZyFC5UQ_AUIBygC#imgrc=nyHjSrUPrEdkIM%3A. Acesso em 26 out. 2015.

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Se o início da ocupação “oficial” é de 1940, suas histórias vêm de muito

antes. O nome Vidigal parece fazer referência ao Major Miguel Nunes Vidigal, que

ainda durante o Primeiro Império (1822-1831) recebeu as terras do entorno do Morro

Dois Irmãos como um presente dos monges beneditinos em cumprimento aos bons

serviços prestados18.

No início do século XX, em 1911, o investidor inglês Charles Armstrong

instalou ali o Colégio Anglo-Brasileiro, responsável pelas primeiras ocupações

daquela região. Como já apontado, Armstrong também foi o responsável por concluir

uma parte da obra iniciada para instalação da linha férrea que ligaria Botafogo à

Angra dos Reis, abandonada em 1981. Para facilitar o acesso à escola, parte da via

foi inaugurada em 1912, sendo posteriormente finalizada pelo comendador Conrado

Niemeyer, que deu o nome a hoje conhecida Avenida Niemeyer, bela via à beira-mar

que liga o bairro do Leblon a São Conrado.

Já na década de 1930, o Anglo-Brasileiro foi vendido para o Colégio Stella

Maris, que teve importante papel em muitos momentos na história do Vidigal,

permanecendo no mesmo local até os dias de hoje.

De acordo com Tepedino (2007), na década de 1940, alguns barracos

começaram a se instalar na parte baixa da Av. Niemeyer, próximo à praia e onde

hoje se localiza o Hotel Sheraton. No entanto, em poucos anos essas ocupações

começaram a se deslocar morro a cima, iniciando a consolidação de uma favela que

aparece em alguns registros desde a virada do século XIX-XX.

Apenas a partir de 1950, juntamente com a urbanização e adensamento dos

bairros de Ipanema e Leblon, as ocupações no Morro do Vidigal começaram a se

expandir. Não sem resistência, em 1958 os moradores enfrentaram sua primeira

tentativa de remoção, comandada pela empresa Melhoramentos do Brasil. A

tentativa não foi concretizada graças à organização dos moradores, que

conseguiram impedir os despejos – começava ali a história de resistência do Vidigal

18

A figura do Major Vidigal ficou muito conhecida em sua época por sua postura autoritária, ganhando

fama por reprimir manifestações culturais populares. Personagem presente no romance de Manoel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, no livro de Ruy Castro, Era no tempo do rei, e também em quadrinhas popular de sua época: “Avistei o Vidigal, Fiquei sem sangue, Se não sou ligeiro, O quati me lambe. Avistei o Vidigal, Caí no logo, Se não sou ligeiro, Suja-me todo.”. Essas e outras informações estão reunidas no blog: https://vidiga.wordpress.com/. Acesso em 24 set. 2015.

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na luta pela construção e manutenção de seu território em meio a área mais

valorizada do Rio de Janeiro.

Uma nova tentativa de remoção em 1967, na qual o proprietário de um dos

terrenos onde a favela está localizada entrou com uma ação de reintegração de

posse, resultou na proibição de qualquer nova construção ou mesmo reparo de

casas na favela. Em resposta, também em 1967 foi formada a Associação de

Moradores do Vidigal, que conseguiu liberar o reparo das casas em negociação com

os responsáveis pela Região Administrativa. Estando em pleno regime militar, no

qual o combate ao comunismo ditava as regras, uma das estratégias do poder

público era a intervenção direta nos sindicatos e associações, assim, foi imputada à

própria associação do Vidigal a tarefa de fiscalização para impedir a construção de

novas moradias. Essa ação acabou contribuindo para o esvaziamento e pouca

efetividade da associação naquele momento (TEPEDINO, 2007).

Em mais um capítulo dessa história, já no ano seguinte teve início a

construção do Hotel Sheraton, que tentou privatizar a praia – hoje Praia do Vidigal –

para uso exclusivo de seus futuros hóspedes. A tentativa de privatização foi barrada

na justiça por uma ação movida pelos moradores do Vidigal, mas deixava clara a

permanência do estigma que recaía, e recai, sobre os moradores de favelas.

A década de 1970 foi um período agitado na favela, ao lado das constantes

ameaças de remoção, o Vidigal começou a chamar cada vez mais atenção e

conquistar apoio para além do morro. Foi nesse período que o compositor e cineasta

Sergio Ricardo se mudou para a favela e começou a apoiar a luta dos moradores

pela permanência.

Mas foi no ano de 1977 que a favela viveria sua pior ofensiva. Segundo

Tepedino (2007), em dezembro desse ano os moradores foram surpreendidos com

funcionários da prefeitura em suas portas prontos para a demolição das casas e o

reassentamento no conjunto habitacional de Antares, construído com recursos do

BNH em Santa Cruz, mais de 30 km distante do Vidigal. O argumento utilizado era o

perigo de desabamento, configurando área de risco.

A associação de moradores se organizou e, através da assessoria do

advogado Aloísio Teixeira, garantiu um adiamento das remoções sustentando o

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direito à moradia e pedindo o reconhecimento da usucapião para aqueles que

estavam ali há mais de 10 anos19. Foi nesse momento que dois atores fundamentais

nas histórias de resistência do Vidigal entraram em cena – a Pastoral de Favelas20

do Rio de Janeiro e o Colégio Stella Maris.

Agora com o auxílio da Pastoral e tendo como local de reunião, e mesmo

apoio financeiro, do Colégio Stella Maris, os moradores conseguiram expor os reais

motivos para a tentativa de remoção – parte do terreno onde se localiza a favela

tinha sido adquirida pela empresa Rio Towers para construção de um hotel de luxo

na área, projeto do famoso arquiteto Oscar Niemeyer.

Uma vez o real argumento tendo sido divulgado, o Vidigal atraiu grande

visibilidade e conseguiu amplo apoio popular, político e artístico na luta pela

permanência. Sergio Ricardo teve um papel importante ao levar a luta do Vidigal

para além do morro, o compositor foi um dos responsáveis pela organização do

show “Tijolo por Tijolo”, realizado na concha acústica da Universidade Estadual do

Rio de Janeiro (UERJ), para arrecadar fundos para a reconstrução de casas no

Vidigal. O show contou com a participação de Chico Buarque, Gonzaguinha, Ney

Matogrosso e outros músicos21.

O advogado Bento Rubião, da Pastoral de Favelas, teve papel fundamental e

evitou a remoção de grande parte das famílias ameaçadas. A disputa se prolongou

por alguns meses, até a assinatura do decreto de desapropriação para fins sociais,

assinado pelo governador Chagas Freitas, em 1978, que colocou fim às ameaças.

De acordo com Gonçalves (2013), o fracasso da tentativa de remoção do

Vidigal em 1977 tornou-se o marco do fim da remoção como política pública no Rio

de Janeiro, ao menos naquele período. Além disso, ao recuperar os debates nos

19

“Causa espécie, por outro lado, a súbita preocupação da Municipalidade com a integridade física e

a segurança dos requerentes, preocupação tanto mais estranhável quando, existindo a favela no local, comprovadamente, há mais de vinte anos, coincide com a também repentina valorização imobiliária da região, preferida das redes internacionais de hotéis de luxo e similares.” Sentença de 9 de janeiro 1978 da 5ª Vara de Direito Público (Processo nº 3.155). Citada por Rafael Gonçalves, Favelas no Rio de Janeiro. História e Direito, 2013. 20

A Pastoral de Favelas é uma entidade vinculada à Igreja Católica que, tal como aponta Brum

(2005) teve nesse conflito do Vidigal seu marco inicial de atuação enquanto entidade de apoio às lutas comunitárias na cidade. 21

Mais informações disponíveis em: http://albumitaucultural.org.br/notas/no-brasil-nada-muda/.

Acesso em 6 nov. 2015.

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jornais à época sobre o caso, o autor chama atenção também para os interesses

imobiliários que já naquele momento ditavam a atuação do poder público.

Assim, entendemos esse episódio como um momento de inflexão na história

da favela do Vidigal, que passava agora a ser reconhecida pelo poder público como

uma conformação socioespacial da cidade carioca. O fracasso dessa tentativa de

remoção marcou a transição na ênfase das políticas em favelas, da remoção às

políticas de urbanização.

Apenas dois anos depois, em 1980, o Vidigal recebeu a visita do Papa João

Paulo II, que escolheu a favela para discursar sobre o papel da Igreja Católica em se

colocar ao lado dos pobres, na busca pela dignidade humana e contra a

desigualdade social22. Para receber o Papa, a prefeitura realizou algumas melhorias

pontuais na favela, como mais um eco do reconhecimento do Vidigal como território

da cidade do Rio de Janeiro.

Figura 3- Papa João Paulo II em visita à favela do Vidigal, 1980.

Foto: Anibal Philot / Agência O Globo23

22

Íntegra do discurso do Papa João Paulo II aos moradores do Vidigal pode ser acessado aqui:

http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1980/july/documents/hf_jp-ii_spe_19800702_vidigal-brasile.html. Acesso em 23 set. 2015. 23

Disponível em: http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/o-brasil-recebe-papa-joao-paulo-ii-

9224970. Acesso em 26 out. 2015.

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No entanto, o fim da década de 1980 ficou marcada mesmo pela expansão e

consolidação do tráfico de drogas nas favelas da cidade carioca e no Vidigal não foi

diferente. A facção criminosa Comando Vermelho se instalou na favela e passou a

exercer seu domínio sobre o território – entrava mais um ator em cena nas

dinâmicas de construção do território do Vidigal, e de todo Rio de Janeiro.

2.3 Da política de remoção à política de urbanização

Não sem muita resistência, as favelas passam a compor a geografia oficial da

cidade do Rio de Janeiro, mesmo que isso não tenha significado o fim das investidas

contra elas ou mesmo sua incorporação efetiva no escopo das políticas sociais e

urbanas. Ou seja, a incorporação física das favelas ao território da cidade não

significou, necessariamente, sua inserção social.

No entanto, para entender o lugar que as favelas passam a assumir na

configuração espacial da cidade, é preciso recuperar as formas pelas quais elas

foram sendo incorporadas e os meios utilizados pelo poder público para tanto.

Ainda, situar essas intervenções no contexto mais geral que influencia a política

urbana municipal é mais um desafio colocado para esse item.

Se as intervenções nas favelas já vinham desde 1950 apontando no sentido

de sua consolidação, trazendo alguns melhoramentos pontuais, elas se deram em

um contexto marcado por relações políticas clientelistas, que aproveitavam do frágil

contexto político-social para negociar pequenas concessões aos moradores de

favelas (GONÇALVES, 2013), de forma tanto a garantir os interesses políticos em

jogo, quanto de gerir essa população e seus territórios.

Assim, repetimos, apesar da ilegalidade das favelas, nenhuma política institucional foi implantada para erradicá-las de forma integral. A resposta pública dependia do poder dos favelados de fazer valer os trunfos de suas redes clientelistas: a negociação tinha se tornado a palavra de ordem. (GONÇALVES, 2013, p. 160).

Os grupos políticos, buscando sua manutenção no poder, precisavam garantir

o apoio das classes mais pobres, com isso, certa inserção dessa população à

política precisava ser feita, mas uma inserção parcial e condicionada, que permitisse

sua manutenção enquanto mão-de-obra barata ao mesmo tempo em que garantia

certos melhoramentos que os fidelizasse aos grupos políticos responsáveis.

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Assim, como ressalta Gonçalves (2013) retomando Machado da Silva, o

clientelismo aparecia como instrumento paradoxal, pois ao mesmo tempo em que

garantia certa integração desses territórios à administração pública, limitava sua

inserção efetiva à sociedade política, deixando-os dependentes dos acordos

personalistas para acessar a máquina estatal. Além disso, com o status jurídico

ilegal das favelas desde o Código de Obras de 1937 e a inexistência de qualquer

ação de regularização fundiária, a situação jurídica das favelas permitia que se

mobilizasse esse argumento a qualquer momento, tanto para justificar uma remoção

quanto a ausência de investimentos públicos nessas localidades.

É apenas com o processo de redemocratização, a partir da década de 1980,

que a própria concepção de política urbana assume outras dimensões, incidindo

diretamente na forma de atuação do poder público nos territórios de favela. O início

dos anos 1980 trouxe de volta à cena movimentos sociais, sindicatos e partidos

exigindo mudanças políticas. Segundo Maricato (2015), era a reelaboração da pauta

desses movimentos já na década de 1960 que, interrompida por um longo período

de ditadura civil-militar (1964 – 1985), voltava com ainda mais força, em um contexto

já bem diferente – se na década de 1960 o Brasil contava 44,67% de sua população

morando nas cidades, em 1980 esse número já tinha subido para 67,59%.

Um importante marco para a política urbana no Brasil se deu a partir da

convocação da Assembleia Constituinte de 1987. Visando garantir a participação da

sociedade civil no processo legislativo, a Assembleia recebia propostas de projetos

populares com pelo menos 30 mil assinaturas, dentre esses projetos, destaca-se

aquele encabeçado pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU)24, apoiado por

mais de 160 mil assinaturas (GONÇALVES, 2013).

O ponto central da proposta apresentada pelo FNRU centrava-se na

afirmação do cumprimento da função social da propriedade, a partir da proposição

de novos instrumentos jurídicos capazes de garanti-la, permitindo e facilitando a

regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas para moradia. Também

ressaltava a importância de uma política de construção de moradias capaz de

24

O Fórum Nacional de Reforma Urbana é uma articulação de diferentes organizações, movimentos

populares, associações de classe e instituições de pesquisa, pautado pela defesa e promoção do direito à cidade. Mais informações em: http://www.forumreformaurbana.org.br/. Acesso em 11 out. 2015.

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responder ao déficit habitacional brasileiro, atrelada a uma política pública de

transportes e serviços públicos. Ou seja, o que estava sendo proposto ali era um

projeto de política urbana que pensasse as cidades em toda sua complexidade,

garantindo, ainda, sua gestão democrática, através da proposição de diferentes

mecanismos que efetivassem a participação, tais como conselhos populares,

audiências públicas, plebiscitos.

Em 5 de outubro de 1988 a nova Constituição do Brasil foi promulgada, a

chamada “Constituição Cidadã”, que trazia no capítulo da política urbana algumas

das propostas do FNRU (artigos 182 e 183)25. A constituição federal consolida o

processo de descentralização política, o que, entre outras coisas, deixou a política

de desenvolvimento urbano a cargo dos municípios, sendo seu instrumento

fundamental a elaboração dos Planos Diretores26, obrigatórios para as cidades com

mais de 20 mil habitantes e que devem ser renovados a cada 10 anos.

O primeiro grande programa de urbanização de favelas no Rio de Janeiro é

formulado ainda nos primeiros momentos do processo de redemocratização, antes

mesmo da promulgação da Constituição Federal, foi o chamado Projeto Mutirão

(1981 – 1989). O programa previa obras de infraestrutura, pavimentação e

construção de equipamentos comunitários, além da implementação de programas

de capacitação profissional e geração de emprego e renda. Contando com o apoio

da UNICEF (Fundação das Nações Unidas Para a Infância) o programa atuou sobre

um número restrito de favelas, com obras realizadas nos finais de semana e uso de

mão de obra não remunerada. (LEITÃO; BARBOZA; DELECAVE, 2014).

A segunda fase do programa, tal como apontado pelos autores Leitão,

Barboza e Delecave (2014), sofre mudanças significativas. A partir de 1984, a mão

de obra passa a ser remunerada, o número de favelas atendido é ampliado e as

obras são reduzidas à projetos de intervenções mais simplificadas. A partir de 1987,

o Projeto Mutirão passa a atuar sobre três eixos: Obras, Educação Sanitária e

Reflorestamento.

25

Disponível em:

http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/constfed.nsf/16adba33b2e5149e032568f60071600f/2b0b3fe92a9119b803256561007b7c24?OpenDocument Acesso em 19 out. 2015. 26

O Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, consolida o Plano Diretor como instrumento fundamental

do planejamento urbano: “[Plano Diretor] é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.” (p.13), ou seja, o Plano Diretor deve conter as diretrizes básicas que nortearão a política urbana dos municípios.

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A administração de Leonel Brizola (1983 – 1987) no governo do Estado pode

ser entendida como um marco dessa nova postura de intervenção. Eleito através de

uma campanha de combate ao regime militar e proximidade com as camadas

populares, seu governo procurou atender as principais demandas dos moradores de

favelas.

A criação do Projeto Favelas (Proface), através da Companhia Estadual de

Águas e Esgotos (Cedae), foi responsável pela instalação de serviços públicos em

muitas favelas da cidade. Segundo Gonçalves (2013), apenas dois anos após sua

criação, o programa já tinha atingido 245 mil pessoas.

O governo Brizola também foi responsável pela criação do primeiro programa

de regularização fundiária por meio da oferta de títulos de propriedade, em 1983:

Cada Família Um Lote (CFUL)27. Ainda de acordo com Gonçalves (2013), o

programa tinha o objetivo de regularizar 400 mil imóveis em toda região

metropolitana do Rio, atingindo favelas e loteamentos informais, mas seu resultado

foi bem mais modesto, com 16 mil títulos provisórios entregues, sendo que muitos

destes não chegaram sequer a receber o título definitivo.

A baixa efetividade do programa pode ser entendida tanto pelas dificuldades

enfrentadas “em campo”, como o fato de muitos moradores serem inquilinos, quanto

pela falta de uma estrutura institucional capaz de responder aos desafios colocados

por uma política que enfrentava altos custos políticos e econômicos (GONÇALVES,

2013), resultado de uma legislação inapropriada e uma cultura política que atua

sobre uma gestão negociada desses territórios e de sua população. Assim, os

poderes públicos preferem tolerar – ou manter? – a informalidade das ocupações do

que enfrentar os caminhos da regularização fundiária desses territórios, mantendo

essa população sempre nas fronteiras do formal e informal, tornando-a mais

vulnerável às mudanças na configuração espacial das cidades.

A promulgação da Constituição Federal teve importante impacto na política

urbana do Rio de Janeiro, ao menos a nível legislativo. Tal como ressalta Gonçalves

(2013), a nova constituição do Estado, promulgada um ano após a federal, trazia,

entre outros fatores, diretrizes e normativas de desenvolvimento urbano que

27

Não conseguimos informações a cerca das favelas que foram beneficiadas pelos programas de

urbanização e regularização fundiária até aqui citados, incluindo o caso do Vidigal.

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deveriam assegurar a urbanização e regularização fundiária das favelas, colocando

a remoção como caso de última exceção.

O primeiro Plano Diretor da cidade (PDDCRJ-92, Lei Complementar nº 16),

aprovado em 1992, confirmava as diretrizes apontadas na Constituição do Estado,

consolidando as políticas de urbanização e regularização fundiária das favelas

cariocas, trazendo, inclusive, um novo conceito jurídico. Tal como consta no artigo

147:

(...) favela é a área predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação da terra por população de baixa renda, precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de alinhamento irregular, lotes de forma e tamanho irregular e construções não licenciadas, em desconformidade com os padrões legais.

Apesar da manutenção de uma visão que ressalta a ilegalidade e

precariedade dos territórios de favela, o conceito aponta uma visão mais técnica,

livre de juízos de valor (GONÇALVES, 2013). Ainda, o Plano Diretor ressaltava o

papel do município em garantir a permanência dos moradores das favelas após os

programas de urbanização, através da regulamentação do uso e ocupação do solo.

Entretanto, sob essa nova configuração, os programas de urbanização e

regularização fundiária de favelas ficaram sob a responsabilidade quase exclusiva

dos municípios, que adotaram tímidas iniciativas antes do programa Favela-Bairro,

marco na política de urbanização de favelas no Rio de Janeiro. A cidade que por

anos tentou extirpá-las de seu território foi se tornando um verdadeiro laboratório de

programas de urbanização de favelas.

Saturino Braga (1986 – 1988) instituiu o projeto Profavela prometendo a

transformação das favelas em bairros populares. Sem recursos, o programa nunca

saiu do papel. Seus sucessores também pouco fizeram nesse sentido, com isso, as

diretrizes das novas Constituições não encontravam eco na formulação de políticas

públicas efetivas.

O plano municipal sofre uma grande mudança com a eleição para a prefeitura

de Cesar Maia, que, com apenas um intervalo, esteve na liderança da cidade entre

1993 e 200828. Foi sob sua gestão que o Rio de Janeiro elaborou seu primeiro Plano

28

Após sua primeira gestão (1993 – 1996), Cesar Maia foi substituído por Luiz Paulo Conde (1997 –

2001), retomando o poder em seguida para dois mandatos.

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Estratégico, contando com a assessoria internacional de Jordi Borja e Manuel

Castells, representantes do modelo urbanístico de Barcelona, que vê a cidade como

um motor fundamental de crescimento econômico. Assim, em 1995 é homologado o

primeiro Plano Estratégico da cidade, que tinha como eixo fundamental a parceria

entre o setor público e o setor privado para a atração de investimentos

internacionais.

Desenhava-se ali a mudança no padrão de relação entre poder público,

sociedade e mercado, inaugurando o Rio de Janeiro naquilo que Harvey (1996)

chamou de empreendedorismo urbano, um padrão de governança fundado na

promoção do desenvolvimento econômico pelo poder público. Dentre as inúmeras

estratégias que podem ser adotadas pelas cidades para se inserir no mercado

mundial, um elemento é fundamental: sua imagem.

Sob a lógica do Planejamento Estratégico, o Plano Diretor perde força como

diretriz do desenvolvimento urbano, enquanto a imagem da cidade passa a ser

elemento fundamental para o mercado internacional que era agora almejado. Nesse

sentido, o programa Favela-Bairro surge como um dos projetos emblemáticos da

política urbana municipal (GONÇALVES, 2013), uma vez que atuaria justamente

sobre os territórios que estavam na contramão dessa lógica, as favelas, vistas como

locais de pobreza e precariedade. Também é sob o governo de Cesar Maia que o

instrumento de demarcação de AEIS começa a ser utilizado, visando à regularização

fundiária dessas áreas.

O programa Favela-Bairro é implementado por Cesar Maia em 1994,

idealizado pelo então secretário municipal de urbanismo Luiz Paulo Conde como um

entre os seis programas propostos pelo Grupo Executivo de Assentamentos

Populares (Geap). Segundo Marcello Burgos (1998), tal como apresentado, o

programa deveria ser coordenado por uma secretaria exclusiva, daí a criação, em

caráter ainda provisório, da Secretaria Extraordinária de Habitação, que contaria

ainda com o apoio da COMLURB, companhia de coleta de lixo municipal, e da

CEDAE, companhia de água do Estado. Diferente dos programas adotados até

aquele momento, o Favela-Bairro conseguiu uma atuação conjunta de diferentes

órgãos públicos, rompendo com o caráter pontual das intervenções urbanas que

vinham sendo realizadas.

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O programa previa melhorias em infraestruturas, implementação de serviços

públicos e regulamentação urbanística. Assim, colocava o espaço público como alvo

central de intervenções, rompendo com os programas que focavam em melhorias

residenciais. Dados de 1990 indicavam que, dos domicílios de favelas, menos de

20% era atendido por redes de esgoto e 60% por água encanada. Apenas 3,7%

desses domicílios tinham títulos de propriedade (BURGOS, 1998).

Como fonte de financiamento, Cesar Maia firmou um acordo em 1995 com o

Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que forneceu 180 milhões de

dólares somados aos 120 milhões dólares do Governo do Estado, apenas para a

primeira fase do programa. Em 2000, o mesmo orçamento é aprovado para a

segunda fase.

Ainda de acordo com Burgos (1998) para selecionar as favelas que seriam

beneficiadas pelo programa, foi criado um critério com base no tamanho: pequena,

média, grande. As favelas inicialmente escolhidas eram de porte médio, com 500 a

2.500 domicílios, população variando entre 2 mil e 10 mil moradores, representando

40% dos moradores de favelas na cidade. Entre estas, foram escolhidas aquelas

com mais facilidade para receber intervenções, chegando a um número inicial de 16

favelas beneficiadas na primeira fase do programa.

A segunda fase (2000 – 2005) teve início no mandato de Conde e continuou

pelo segundo mandato de Cesar Maia, atuando em outras 62 favelas e 24

loteamentos irregulares. Paralelamente, foram criados outros dois programas de

urbanização – Favela Bairrinho (com menos de 500 domicílios) e Grandes Favelas

(com mais de 2.500 domicílios)29.

Até o ano de 2000, o Favela-Bairro interviu em 115 favelas, atingindo cerca

de 450 mil pessoas (GONÇALVES, 2013). No entanto, mesmo reconhecido como

um programa inovador e modelo para a América Latina, o Favela-Bairro também foi

alvo de muitas críticas, principalmente no que diz respeito à qualidade das obras,

sua manutenção e, com isso, durabilidade. Também a falta de participação popular

efetiva na elaboração e execução das obras foi fortemente criticada.

29

A história das urbanizações nas favelas Parte II: Favela-Bairro. Disponível em:

<http://rioonwatch.org.br/?p=5042>. Acesso em 19 out. 2015.

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A favela do Vidigal entra no escopo do programa Favela-Bairro já em sua

primeira fase, tendo sido o projeto criado e executado entre 1996 e 1998. O

escritório contratado para a elaboração do projeto foi o Atelier Metropolitano, sob

coordenação do arquiteto Jorge Mario Jauregui.

Figura 4 - Mapa das intervenções previstas pelo programa Favela-Bairro

Fonte: jauregui.arq.br30

Como podemos notar na imagem acima, a intervenção do Favela-Bairro no

Vidigal seguiu as diretrizes previstas no programa, privilegiando melhoramentos e a

provisão de infraestrutura e equipamentos públicos à melhorias residenciais. Nas

palavras do arquiteto Jauregui:

A favela de Vidigal, pela sua vez, constitui um caso especial de centralidade linear sinuosa multipolarizada, configurada ao longo da

30

Disponível em: http://jauregui.arq.br/favela-bairro-vidigal.html. Acesso em 26 out. 2015.

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rua principal de acesso, começando na praça de articulação favela-bairro e culminando no mirante projetado no alto do morro. As atividades cívicas, culturais, esportivas, de lazer e de prestação de serviços, se dispõem sobre este eixo. Um teleférico foi projetado para atravessar diagonalmente a favela contribuindo para reduzir o fluxo interno (muito intenso) de veículos, ao mesmo tempo que possibilitar o acesso à magnífica vista da zona sul da cidade e das praias, permitindo inclusive a visita turística, interconectando a favela aos bairros vizinhos de São Conrado, Rocinha, Gávea e Leblon.

Os edifícios arquitetônicos projetados cumprem neste contexto um papel fundamental; eles são as marcas visíveis de uma nova "aura" do lugar, no sentido que representam a conquista do direito à arquitetura e aos serviços dos quais são portadores.

Tanto as creches, como no caso do Campinho e Fubá, ou uma vila olímpica, como no Vidigal [...] constituem o início da chegada dos elementos da cidade formal à favela, com o mesmo nível de elaboração formal e espacial.

No caso da Favela do Vidigal uma única rua principal que atravessa a comunidade de alto a baixo, constitui a espinha dorsal que costura todos os "eventos" distribuídos ao longo dela, tratados como pontos de singularização que definem setores com identidades específicas. A Vila Olímpica e seu entorno, o ginásio e suas áreas conexas, o centro profissionalizante, a praça criada junto à sede da associação de moradores, o parque ecológico, o tratamento do Largo do Santinho, a remodelação do "Teatro Nós do Morro", a sede do núcleo da Comlurb e a praça principal de acesso, são alguns desses pontos principais. Isto constitui um percurso que culmina no belvedere onde está prevista a chegada do teleférico projetado

31.

É interessante notar já naquele momento a proposta de construção de um

teleférico que, além de servir ao uso dos próprios moradores, serviria também ao

turismo “à magnífica vista da zona sul da cidade e das praias”. O teleférico, no

entanto, nunca saiu do papel.

Em seguida ao fim das obras de urbanização, o Morro do Vidigal é declarado

Área de Especial Interesse Social (Lei nº 2704), em 8 de dezembro de 1998, pelo

então prefeito Luiz Paulo Conde. Como veremos adiante, esse reconhecimento seria

necessário para a fase de regularização fundiária do programa, que nunca

aconteceu.

A AEIS é um instrumento urbanístico que aparece pela primeira vez no Rio de

Janeiro na Lei Orgânica do Município em 1990, regulamentado pelo Plano Diretor

em 1992. Trata-se de um instrumento de política urbana que permite ao poder

municipal tratar de forma diferenciada determinadas áreas da cidade, em geral,

31

Retirado do site do escritório Atelier Metropolitano, disponível em:

http://www.jauregui.arq.br/favelas2.html. Acesso em 19 out. 2015.

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áreas de ocupação informal de baixa renda, como favelas e loteamentos irregulares,

ou terrenos não utilizados ou subutilizados. Uma vez delimitada uma AEIS, ela

demanda o estabelecimento de parâmetros diferenciados de urbanização,

parcelamento da terra e uso e ocupação do solo, ou seja, uma vez demarcada a

área, é preciso dotar esse instrumento de conteúdo.

O Plano Diretor de 1992, em seu artigo 141, colocava como condição para a

inclusão de determinada área no escopo de programas de urbanização sua

demarcação como AEIS32. Assim, dentro do próprio programa Favela-Bairro, para a

fase de regularização fundiária (Proap-Rio), seria necessário que as favelas

beneficiadas fossem declaradas AEIS, o que foi feito, mesmo o Favela-Bairro não

tendo avançado na regularização fundiária.

Entendemos esses processos de demarcação de áreas de favela como AEIS

enquanto mais um momento de inflexão na história das favelas no Rio de Janeiro,

expressão agora não apenas do reconhecimento desses territórios, mas também de

sua consolidação, através dos programas de urbanização implementados. No

entanto, como veremos a frente, esse é um processo que se perpetua atravessado

por profundas tensões entre o reconhecimento e consolidação e as contínuas

tentativas de remoção que voltam a todo momento.

Com a ausência de regularização fundiária, emergia já naquele período o

debate sobre a valorização imobiliária nas favelas em consequência de obras de

urbanização. Segundo Gonçalves (2013), os valores dos imóveis em algumas

favelas urbanizadas aumentaram em 97% entre 1995 e 1997. Já o valor dos imóveis

do entorno dessas favelas teriam tido um aumento de 20% durante o mesmo

período. Enquanto alguns viam nessa valorização um resultado positivo das

intervenções, outros chamavam atenção para a relação perigosa entre a valorização

imobiliária e a fragilidade da segurança da posse dos moradores, o que muitas

vezes resultava na incapacidade de se manter no local frente ao aumento dos

preços.

32

O Plano Diretor Decenal da cidade do Rio de Janeiro, de 1992, está disponível em:

<http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/573ad0b372ea8c96032564ff00629eae/758414dfee085d47032577220075c7e4?OpenDocument>. Acesso em 19 out 2015.

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Não foi apenas a regularização fundiária de favelas que não avançou no Rio

de Janeiro. Também as AEIS se mantiveram, pelo período de uma década, como

instrumentos vazios, sem qualquer efetividade, uma vez que seus parâmetros

urbanísticos não foram delimitados33. No caso do Vidigal, o decreto de uso e

ocupação do solo foi publicado 13 anos após a demarcação da AEIS, em 10 de

janeiro 2011 (Decreto 33352).

Qual o efeito prático do esvaziamento desse instrumento urbanístico para as

favelas? Mais uma vez, acreditamos que essa possa ser outra estratégia do poder

público para manter esses territórios e sua população nas margens da fronteira entre

o formal e informal, permitindo que sejam geridas de acordo com os interesses que

conformam a configuração espacial da cidade a cada momento. Uma vez publicadas

as regras de uso e ocupação do solo, resta-nos agora saber sua efetividade e a

quem elas têm servido, tarefa que buscaremos desenvolver no próximo capítulo.

A aprovação da Lei do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), ainda

sob a gestão de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, seguida pela criação do

Ministério das Cidades, sob o governo do presidente Lula, em 2003, dão sequencia

a consolidação de políticas urbanas inauguradas com a promulgação da

Constituição Federal, reintroduzindo, nesse momento, a escala nacional na

discussão e gestão das cidades, sinalizando a construção de uma política urbana

nacional (GONÇALVES, 2013). Sob esse contexto foram formulados programas

como o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento e o Programa Minha Casa

Minha Vida (MCMV), programas de escala nacional que têm tido grande impacto nas

cidades34.

33

A título de exemplo, a favela Santa Marta foi demarcada AEIS em 2000 (Lei nº 3135), sendo o

decreto de uso e ocupação do solo publicado em 2009 (nº 30870); a lei de AEIS da favela da Babilônia é de 1999 (nº 2912), seu decreto de uso e ocupação do solo de 2013 (nº 37.914 e 37.915); lei de AEIS do Complexo Cantagalo/Pavão-Pavãozinho de 2003 (nº 3688), seu decreto de uso e ocupação do solo publicado em 2010 (nº 33015). Como podemos notar, ao menos em todos esses territórios, a AEIS também se manteve como um instrumento vazio durante anos. 34

No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, o PAC – Favelas é responsável por obras de urbanização

em 15 favelas e loteamentos de baixa renda na cidade. Mais informações disponíveis no site do programa: <http://www.pac.gov.br/infraestrutura-social-e-urbana/urbanizacao-de-assentamentos-precarios/rj/>. Acesso em 20 out. 2015. Quanto ao Minha Casa Minha Vida no Rio de Janeiro, Faulhaber (2012) chama atenção para como a construção de conjuntos habitacionais através do programa tem viabilizado a maior onda de remoções da história do Rio de Janeiro, em números absolutos. Além disso, ao mapear a localização dos empreendimentos, o autor também lança luz para a periferização dos conjuntos, consolidando

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O novo Plano Diretor do Rio de Janeiro é aprovado em 2011, trazendo grande

parte do arcabouço de seu antecessor. No entanto, tal como nos chama atenção

Gonçalves (2013), no que diz respeito às favelas, este último tem uma diferença

fundamental que deve ser ressaltada – se o Plano Diretor de 1992 reforçava a

necessidade de integração das favelas à cidade, o atual tem como uma de suas

diretrizes a contenção do crescimento e expansão das favelas, com o

estabelecimento de limites físicos e regras urbanísticas especiais. Além disso, no

conceito jurídico de favela trazido pelo novo Plano Diretor há a introdução da noção

“ocupação clandestina”, o que representaria um retorno a valoração desses

territórios pelos documentos oficiais.

Quanto aos atuais programas de urbanização e regularização fundiária, o que

seria a terceira fase do programa Favela-Bairro, com financiamento já aprovado pelo

BID, foi transformado pelo atual prefeito Eduardo Paes (2009 – atual) no Programa

Morar Carioca. Apresentado em 2010 como um dos grandes legados dos Jogos

Olímpicos de 2016, o programa, com orçamento de 8 bilhões de reais, prometia a

urbanização e integração de todas as favelas da cidade até 2020. No entanto, sua

efetividade tem sido muito menor que o prometido35.

Pensando na diretriz trazida pelo novo Plano Diretor do município de

contenção do crescimento e expansão das favelas, uma diferença do Morar Carioca

em relação em programa Favela-Bairro deve ser ressaltada. No concurso realizado

em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o Morar Carioca estimulou

a apresentação de projetos que desadensassem o tecido urbano das favelas, com a

construção de prédios nos vazios deixados pelas retiradas das casas (LEITÃO;

BARBOZA; DELECAVE, 2014).

Assim, como ressaltam os autores, trata-se de uma mudança ideológica na

intervenção sobre os territórios de favelas. O Favela-Bairro tinha como premissa o

respeito à conformação física dos territórios, tal como construído por seus

moradores, deslocando o mínimo necessário de famílias. Já o Morar Carioca pode

ser visto como um programa que tem interferido também na dimensão simbólica dos

um modelo de cidade excludente e segregador, no qual a população de baixa renda vem sendo expulsa de áreas centrais e realocada nas bordas da cidade. 35

“Morar Carioca: o desmantelamento do sonhado programa de urbanização para as favelas”,

publicado em 25/09/2014. Disponível em: <http://rioonwatch.org.br/?p=12410>. Acesso em 20 out. 2015.

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territórios, trazendo mudanças significativas na forma como esses espaços são

construídos e vivenciados, ainda, de maneira autoritária, com a imposição de

projetos com grande impacto na morfologia dos espaços e a remoção de um maior

número de casas36. Nesse sentido, poderíamos pensar o Morar Carioca mais como

um esforço de integração do espaço físico dos territórios, mas não de seus

moradores, configurando mais um elemento que poderia atuar no sentido de

descaracterização das favelas da zona sul enquanto território popular.

Após as obras do Favela-Bairro, ainda na década de 1990, a favela do Vidigal

não esteve no escopo de novos programas de urbanização e regularização fundiária

mais recentes, seja o PAC do governo federal e estadual, seja o Morar Carioca do

governo municipal. No entanto, a partir da instalação da Unidade de Polícia

Pacificadora (UPP), em 2012, a favela tem passado por profundas transformações

sociais e urbanas, que serão objeto de reflexão ao longo do trabalho.

***

Ao longo desse capítulo, buscamos fazer um resgate histórico da construção

do espaço urbano do Rio de Janeiro, atentando principalmente para o lugar e o

papel das favelas da zona sul nesse movimento, e no caso mais específico desse

trabalho, da favela do Vidigal. Em seguida, partindo de um momento no qual as

favelas são finalmente consolidadas como uma organização socioespacial que

compõe a configuração espacial da cidade, voltamos o olhar para as formas de

atuação e intervenção do poder público no sentido de melhorar a infraestrutura

desses territórios, contribuindo para sua inserção no tecido urbano dito formal.

Ao recuperar a história da ocupação e consolidação da favela do Vidigal,

buscamos não apenas situá-la nesses processos de construção da cidade, mas

também ressaltar as singularidades que marcam sua história e influenciam as

dinâmicas que conformam seu território hoje, chamando atenção para as tensões

36

A favela da Babilônia, no Leme, é um dos casos que exemplifica esse modo de intervir do

programa Morar Carioca, no caso, ainda com uma particularidade, a Babilônia é a única favela que recebe obras do Morar Carioca Verde (http://www.cidadeolimpica.com.br/morar-carioca-verde-no-morro-da-babilonia/, acesso em 20 out. 2015), a parte do projeto “sustentável”. Sob essa justificativa, 60 casas no alto do morro foram demolidas, algumas com mais de 100 anos de história, para o estabelecimento de um eco limite e o controle da expansão da favela. Os moradores foram reassentados em um prédio construído na parte baixa da favela. “Babilônia e a ameaça de gentrificação”, disponível em: <http://rioonwatch.org.br/?p=2095>, publicado em 18/09/2011. Acesso em 20 out. 2015.

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que atravessam todos esses processos, entre o formal e o informal, remoção e

reconhecimento, despossessão e resistência.

Acreditamos que essa recuperação histórica possa nos ajudar a entender

qual o sentido das atuais transformações urbanas no Vidigal e sua inserção nas

dinâmicas mais gerais que conformam a cidade hoje, marcada por processos de

reajuste em sua configuração espacial, como o retorno das remoções em massa e

da realização de grandes obras urbanas sob a justificativa dos megaeventos37. Ou

seja, partindo da hipótese de que viveríamos um movimento de neoliberalização da

cidade e das políticas urbanas, qual o papel tem sido dado às favelas da zona sul

nesse novo arranjo espacial?

No próximo capítulo, pretendemos aprofundar essa discussão através da

inclusão de novos elementos – a instalação das UPPs e a entrada de novos atores.

A hipótese aqui é de que estaríamos vivendo mais um momento de inflexão na

história da (re)construção da cidade do Rio de Janeiro, e da favela do Vidigal

especialmente, expressão do avanço das políticas neoliberais.

37

O Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro têm produzido dossiês anuais sobre as

transformações urbanas e sociais recentes na cidade sob a justificativa dos megaeventos e seus impactos sobre a cidade e a população carioca, configurando um grave quadro de violações de direitos humanos e a consolidação de um modelo de cidade excludente. A versão de 2014 do dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro” está disponível em: <https://comitepopulario.files.wordpress.com/2014/06/dossiecomiterio2014_web.pdf>. Acesso em 20 out. 2015.

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3 A POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO E O MERCADO

Desde 2009, o carro-chefe da política de segurança pública no Rio de Janeiro

tem sido a implementação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) em algumas

favelas da cidade. O argumento oficial ressalta a retomada do controle desses

territórios pelo Estado, mas a instalação seletiva das unidades pelo território,

privilegiando favelas situadas em áreas de maior valorização imobiliária, nos

caminhos do roteiro turístico ou que se encontram no entorno dos equipamentos

esportivos, tem colocado dúvidas sobre seu real objetivo.

A curta experiência das UPPs já revela alguns de seus impactos, sendo a

maior ofensiva do mercado formal uma delas. Como frequentemente ouvimos nas

favelas: “a Sky já vem dentro do caveirão”. Traçar a relação entre segurança e

mercado no contexto da cidade neoliberal, partindo da favela do Vidigal, é um dos

objetivos desse capítulo.

3.1 O discurso hegemônico da violência e suas contradições

Para entender o surgimento da instalação das UPPs em (algumas) favelas

como a grande “solução” para a segurança pública carioca é preciso recuperar o

discurso que a legitimou, ou seja, o discurso anterior da violência que marcou essas

favelas nas décadas passadas, construindo o imaginário que agora respalda o

discurso da pacificação. Para tanto, vamos retomar o fio da história de onde

paramos – década de 1980.

Em um país cada vez mais urbanizado38, com grandes fluxos migratórios em

direção as cidades do sudeste, o número daqueles que subiam o morro em busca

de casas também aumentava constantemente na cidade carioca, resultado da

atração que os empregos na construção civil exercia, principalmente, durante o

período conhecido como o “milagre econômico”. Em um momento de grandes

investimentos em infraestruturas urbanas e desenvolvimento das vias de transporte,

38

Segundo dados do IBGE, a população brasileira passou a ser majoritariamente urbana a partir da

década de 1970, em uma proporção de 56% - 44%, em 1980 a população vivendo nas cidades chega 66%, número que continuou aumentando nas décadas seguintes, alcançando mais de 80% nos anos 2000.

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o Brasil passou a exercer importante papel em um ramo comercial especial – o

tráfico de drogas ilícitas.

O país compõe a rota internacional de drogas ilícitas que saem da Bolívia,

Peru e Colômbia rumo à Europa e aos Estados Unidos, sendo o Rio de Janeiro um

dos portos utilizados. A partir de 1980, parte dessa mercadoria ficava no Brasil para

abastecimento interno e já em 1990, a rota Paraguai – São Paulo – Rio de Janeiro

começou a ser utilizada também como rota para o tráfico de armas de guerra, que

passavam a ser requeridas naquele momento nas disputas pelos pontos de venda

entre as facções nas favelas do Rio de Janeiro e nos confrontos com a polícia

(MISSE, 2011).

Segundo Márcia Leite (2015), é assim que, a partir de 1980, o tráfico de

drogas ilícitas assume outros contornos, colocando em movimento grandes fluxos

financeiros a partir da internacionalização das atividades, principalmente do tráfico

de cocaína.

Já as facções que protagonizavam as disputas por esses pontos de venda

têm uma história mais antiga. De acordo com Michel Misse (2011), essas facções

surgem dentro das penitenciárias, ainda durante a década de 1970, a partir da

convivência entre presos comuns, geralmente assaltantes de bancos, e presos

políticos, colocados juntos graças à Lei de Segurança Nacional (1969) que passou a

considerar como crime comum aqueles cometidos pelos opositores ao regime.

Através de sua organização, os presos políticos conseguiam garantir certos

direitos dentro das penitenciárias, o que passou a ser replicado pelos presos

comuns. Ainda, alguns entre eles também se consideravam politicamente “de

esquerda”, segundo Misse (2011), foi desse encontro que teria surgido a “Falange

Vermelha”, posteriormente conhecida como o Comando Vermelho, facção que por

muitos anos esteve na disputa pelo controle do território do Vidigal.

Ainda segundo o autor, entre 1982 e 1985, consolidou-se uma forma de

organização que interligava os pontos de venda nas favelas controladas pelo

Comando Vermelho, conformando uma grande rede distribuída entre os territórios

sob seu domínio, enquanto, como contrapartida, o Comando se responsabilizava por

garantir a proteção dentro das penitenciárias daqueles que compunham a sua rede.

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Entretanto, apesar da tentativa de comandar a venda a varejo de cocaína no

Rio de Janeiro, ainda durante os anos 1980, o Comando Vermelho viu emergir um

grande oponente, a facção Terceiro Comando, que passou a disputar violentamente

com ele esses territórios, dando início a uma corrida armamentista que só se

intensificou na década seguinte, com a proliferação de dissidências dentro dessas

facções.

Junto aos conflitos oriundos dessa disputa, os moradores que já viviam em

meio ao fogo cruzado passaram a viver também com as invasões comandadas pela

polícia, que gratificava seus agentes pelas mortes de líderes do tráfico de drogas – o

Estado passava a ver os territórios de favela como território inimigo, território de

guerra. Um dos resultados dessa política foi a estigmatização dos moradores de

favela, “confundidos” com os traficantes e tão sujeitos quanto eles à violência

policial.

Dessa forma, a violência do Estado também deve ser entendida como um

componente do discurso da violência que passou a atravessar esses territórios.

Como nos chama atenção Michel Misse (2011), encurralados entre a polícia e os

traficantes, muitos moradores se submeteram e se silenciaram, assim, não podendo

contar com esse auxílio, a polícia passou a adotar cada vez mais uma postura de

invasão e extermínio generalizado. Atrelado a esse comportamento, muitos agentes

policiais se dividiam entre combater os traficantes e, ao mesmo tempo, negociar sua

proteção, contribuindo ainda mais para a vulnerabilidade da população frente a

esses poderes em disputa pelo e no território.

O retorno dos discursos de estigmatização das favelas e de sua população é

acompanhado por uma mudança no seu sentido: do “problema favela” a “favela

problema”. Não se tratava mais de um questionamento sobre essa forma urbana,

mas, uma vez reconhecida sua consolidação, passam a representá-la agora como

local que abriga o problema, o “problema” da criminalidade.

De acordo com Leite (2015), é a partir desse momento que as favelas passam

a ser representadas, sobretudo, como “territórios da violência”, locus das “classes

perigosas”, mas a partir de um novo sentido de perigo representado pela pobreza e

marginalidade – a figura do favelado não era mais entendida como resultado de uma

inserção parcial ao mercado de trabalho, geradora de uma marginalidade decorrente

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de sua “incivilidade”, agora, o perigo vinha da violência individual contra a pessoa e

o patrimônio que eles representavam.

A própria contiguidade territorial dos moradores de favelas com os traficantes

de drogas ilícitas, somada à ideia da vulnerabilidade social e econômica de muitos

deles, tornava-se a expressão de sua culpabilidade. Constituídas na percepção

social como “territórios da ilegalidade”, as favelas passam a ser geridas como

“territórios da violência”. Ou seja, essa nova representação das favelas e de seus

moradores atrelada à imagem do tráfico de drogas violento é sobreposta à

representação de espaços ilegais, criando uma imagem radicalmente oposta entre

favela e bairros formais.

Sintetizando seu argumento e apresentando sua referência analítica e teórica,

Márcia Leite afirma:

É nesse sentido que argumento que essas categorias de nominação [favela e favelado], enquanto dispositivos discursivos constituíram-se como um dos dispositivos com função estratégica dominante para a produção desses espaços urbanos como margens do Estado e da cidade, subsidiando e justificando as políticas públicas de urbanização precária – que Rafael Gonçalves (2010), ressaltando o papel do Estado em sua produção, designa “congelamento urbanístico” – assentadas (nos)/justificadas pelos ilegalismos (Foucault, 1997; Telles, 2010) que atravessariam seu cotidiano e teriam seu solo na ilegalidade fundiária das favelas. (LEITE, 2015, p. 381).

Ao retomar brevemente a construção social das favelas, lançando mão da

ideia de margem, a autora chama atenção para como essas representações vão

sendo sobrepostas com as mudanças dos contextos históricos e atuam como

justificativa para as formas especiais de gestão desses territórios pelo Estado. É

nesse sentido que Leite (2015) vai afirmar que favela, ao menos no Rio de Janeiro,

passa a funcionar como categoria que marca as fronteiras sociais, espaciais e

morais entre territórios, embasando e legitimando dinâmicas que reforçam ainda

mais sua segregação.

As transformações nas formas de representar as favelas como territórios da

violência são em grande medida alimentadas pela imprensa e produções

acadêmicas. Clivagens como “morro” e “asfalto” passam a permear o imaginário

carioca, marcando a oposição entre a cidade formal e os territórios das carências no

mais amplo sentido, logo, supostamente propícios para disseminação da violência.

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54

Exemplo desse momento foi o livro “Cidade Partida” (1994), do jornalista

Zuenir Ventura, que contribuiu para consolidação e disseminação desse conceito

como chave de leitura da realidade carioca. Ao comparar as experiências dos

moradores de Vigário Geral, que recentemente tinham vivenciado uma grande

chacina39, com ativistas da Zona Sul, o autor afirmava essa divisão a partir das

experiências de violência.

Também a grande imprensa exerceu um papel fundamental na construção

desse discurso hegemônico que marcou as favelas como territórios de violência.

Destaques cotidianamente, as favelas cariocas eram sempre as protagonistas nos

relatos de episódios de violência que aterrorizavam a população da cidade.

Nas duas manchetes abaixo, o Vidigal é o grande palco da “guerra do tráfico”

durante dois dias seguidos, em um período no qual o território estava em disputa

entre facções do Vidigal e da vizinha favela da Rocinha. O resultado do confronto

envolvendo explosões de granadas foi a comunidade sem luz e ocupada por 50

agentes policiais.

Figura 5 - Guerra do tráfico volta a levar medo ao Vidigal

Fonte: Acervo O Globo, 08 de setembro de 20

39

Em agosto de 1993, 21 pessoas foram executadas em Vigário Geral em uma única noite por um

grupo de extermínio. O caso ganhou grande visibilidade pelo tamanho do massacre e envolvimento de policiais militares.

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55

Figura 6 - Guerra sem fim no Vidigal

Fonte: Acervo O Globo, 09 de setembro de 2005

É preciso ressaltar a importância desses discursos veiculados pela imprensa,

dia após dia, em suas páginas. O alcance dessa fala e sua relevância na construção

de um discurso hegemônico sobre criminalidade e favela foi fundamental para

disseminar entre a população carioca a sensação de insegurança decorrente dos

confrontos nesses territórios. Dessa forma, a imprensa contribuía para criar a

relação direta entre insegurança e favela, consolidando a estigmatização desses

territórios e de sua população.

Essa mudança na representação das favelas também é acompanhada por

uma mudança na forma de atuação do Estado, suas demandas deixam de ser lidas

a partir do campo da cidadania e da “questão urbana” para serem interpretadas

como uma questão de segurança pública, reduzindo toda a diversidade das

demandas das favelas à necessidade de combater o tráfico de drogas e suas

disputas violentas pelos territórios (LEITE, 2015).

No entanto, como todo processo de transformação social, essa não é uma

história livre de contradições, ao contrário, está atravessada por processos que vão

na contramão dessa representação hegemônica das favelas como territórios da

violência, especialmente se pensarmos o caso do Vidigal.

Sua localização privilegiada e o apelo da vista sempre foram elementos de

destaque na favela do Vidigal, atraindo a curiosidade de muitos visitantes e

garantindo alguns caminhos alternativos aos discursos da violência. O grupo de

teatro Nós do Morro é um bom exemplo de como a história do Vidigal carrega há

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muito tempo, a despeito das narrativas de violência, a marca de um local de intensa

efervescência cultural.

O grupo Nós do Morro surge do encontro entre a iniciativa do padre austríaco

Humberto Leed, que em 1986 inaugurava na favela o Centro Cultural Padre Leed,

com o ator e diretor cultural Guti Fraga, recente morador da favela que, junto a

outros jovens do Vidigal, dá origem ao grupo de teatro Nós do Morro, apresentando

sua primeira peça já em 1987, “Encontros”, no Centro Cultural.

Figura 7 - O Vidigal encena a realidade do morro

Fonte: Acervo O Globo, 23 de Julho de 1987

Goiano, Guti Fraga mudou-se para o Rio de Janeiro e escolheu o Vidigal

como casa, não apenas pela sua vista e localização, mas também porque “o lugar

respirava cultura”, rodeado por uma vizinhança artística de peso, como Gal Costa,

Lima Duarte e outros tantos conhecidos artistas40. A proximidade com o circuito

cultural “oficial”, concentrado na zona sul da cidade, somada à suas características

físicas e iniciativas como o grupo de teatro Nós do Morro contribuíram para

consolidar a imagem cultural da favela do Vidigal ao longo do tempo.

Ainda na década de 1990, o Vidigal era também procurado por pessoas que

vinham de outras regiões da cidade buscando moradia próxima ao trabalho ou à

praia. Também já naquele momento alguns empreendedores viam ali uma

40

Entrevista de Guti Fraga ao HT, disponível em: http://www.heloisatolipan.com.br/teatro/em-

entrevista-exclusiva-guti-fraga-fundador-do-nos-do-morro-fala-da-expansao-da-ong-dilma-maioridade-penal-e-editais-de-cultura-sao-utopicos/. Acesso em 30 jan. 2015.

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oportunidade de negócios, compravam barracos nas fronteiras das favelas com os

bairros “formais” na zona sul, aproveitando-se da localização com preços mais

baixos e da ausência de legislação urbanística.

Figura 8 - Traços de especulação imobiliária no Vidigal na década de 1990

Fonte: Acervo O Globo, 17 de abril de 1988

O privilégio da localização do Vidigal não está apenas na vista para o mar,

mas na proximidade com territórios elitizados (entre Leblon e São Conrado), o que

possibilitou a construção de porções desse território destinadas à classe média e

alta que não conseguiam acessar esses bairros, materializadas até hoje nas

construções que embaralham as fronteiras físicas da favela com prédios e casas de

alto padrão na subida do morro.

O caso do Vidigal é mais uma vez exemplar, a av. João Goulart, principal rua

de acesso à favela, é composta em seu início por prédios e casas de médio e alto

padrão que passam a se diluir entre construções mais irregulares e adensadas

conforme se alcança o alto do morro. Formalmente, parte dessa avenida, inclusive,

compõe a dita área formal da cidade, não fazendo parte do traçado da AEIS, mas,

na prática, essas fronteiras são muito menos delimitadas e mais porosas, ficando

difícil dizer onde começa ou termina a favela.

Também o turismo já emergia como possibilidade no Vidigal, mesmo que

timidamente, especialmente pelo apelo de sua trilha que leva até o Morro Dois

Irmãos e da vista que acompanha os visitantes por todo o caminho.

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Figura 9 - Turismo chega às favelas: Rocinha e Vidigal

Fonte: Acervo o Globo, 19 de março de 1992

Não obstante, a década de 1990 intensifica as disputas territoriais pelos

pontos de venda de drogas e os confrontos com a polícia, invisibilizando toda a

diversidade cultural e social desses territórios. As incursões policiais se tornam mais

constantes, a política de extermínio atinge níveis alarmantes e os relatos cotidianos

nos jornais continuam. Ainda assim, isso não significa que essas outras histórias

tenham sido encerradas, o grupo de teatro Nós do Morro, por exemplo, continuou a

produzir peças e alcançar cada vez mais notoriedade, rompendo as fronteiras do

Vidigal e levando seu nome para outros lugares da cidade.

Com isso, queremos ressaltar as contradições que perpassam o processo de

construção dessa imagem das favelas como territórios exclusivos de violência,

processo que silencia seus moradores e reduz sua diversidade cultural e social. No

lugar de problematizar as causas desses episódios de violência, da ascensão do

tráfico de drogas ilícitas como um ramo comercial extremamente lucrativo e de

dimensão internacional, o que se viu foi a alimentação desse cenário de violência

através da militarização crescente desses territórios com uma polícia treinada para

atuar como em uma guerra em que todos são inimigos.

Longe de solucionar, a opção do Estado por essa forma de gestão desses

territórios serviu apenas para ver aumentar os casos de violência nesse período, que

eram rapidamente relatados pela grande imprensa, também ator fundamental nesse

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processo de construção de um discurso hegemônico que silencia a multiplicidade.

Mesmo a favela do Vidigal, com suas importantes particularidades – vista

exuberante, proximidade com territórios elitizados, tradição cultural – não conseguiu

se sobrepor ao discurso hegemônico das favelas como territórios de violência.

Figura 10 - Vidigal se transforma em pesadelo

Fonte: Acervo O Globo, 03 de setembro de 1995

De acordo com LEITE (2015), essa política de segurança pública terá seu

ápice no episódio que ficou conhecido como a Chacina do Alemão, em 2007, na

iminência dos Jogos Pan-Americanos na cidade. Sob a necessidade de garantir a

segurança do evento, 19 pessoas foram mortas em um único dia, em uma operação

policial que contou com um efetivo de 1.350 policiais, em um processo que ganhou

grande repercussão internacional, sendo denunciado à ONU como uma ação de

extermínio.

O resultado disso foi mais uma alteração no discurso sobre a representação

da violência, e também das favelas, onde o Programa Estadual de Pacificação de

Favelas surge como a grande – e inovadora – solução, inserida em um contexto

mais amplo de reestruturação urbana, na qual os megaeventos esportivos aparecem

como os grandes impulsionadores e legitimadores dessas transformações.

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3.2 O discurso da “pacificação”

Apresentado como um dos programas mais importantes da segurança pública

nos últimos anos, a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) surge em 2008

proclamada como a grande solução para a violência na cidade do Rio de Janeiro. Os

objetivos do programa são assim apresentados em sua página oficial:

O Programa engloba parcerias entre os governos – municipal, estadual e federal – e diferentes atores da sociedade civil organizada e tem como objetivo a retomada permanente de comunidades dominadas pelo tráfico, assim como a garantia da proximidade do Estado com a população.

A pacificação ainda tem um papel fundamental no desenvolvimento social e econômico das comunidades, pois potencializa a entrada de serviços públicos, infraestrutura, projetos sociais, esportivos e culturais, investimentos privados e oportunidades.

41

A primeira Unidade de Polícia Pacificadora foi instalada em 19 de dezembro

de 2008, na favela Santa Marta, em Botafogo, bairro da zona sul do Rio de Janeiro –

pouco depois do anúncio da escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo FIFA de

201442 e logo antes da escolha do Rio de Janeiro para receber os Jogos Olímpicos

em 201643. Hoje, são 38 favelas ocupadas pelas UPPs44.

O Programa se apresenta com o duplo objetivo de livrar os territórios

dominados pelo tráfico de drogas e, assim, permitir a entrada do Estado nesses

locais com infraestrutura e programas sociais. Apesar de ser visto como um

programa que rompe com a política de segurança pública anterior (LEITE, 2015), ele

está fortemente ancorado no discurso hegemônico que marcava as favelas como

locais exclusivos da violência, nas quais o Estado estaria, supostamente, ausente. O

41

Apresentação do programa no site. Disponível em: http://www.upprj.com/index.php/o_que_e_upp.

Acesso em 16 fev. 2016. 42

Anúncio feito em 30 de outubro de 2007:

http://globoesporte.globo.com/ESP/Noticia/Futebol/Campeonatos/0,,MUL163196-9790,00.html. Acesso em 11 mar. 2016. 43

Anunciado em 2 de outubro de 2009: https://www.youtube.com/watch?v=y1s13NMhhyE. Acesso

em 11 mar. 2016. 44

Segundo listagem retirada no site da UPP, as favelas ocupadas são: Santa Marta, Cidade de Deus,

Jardim Batan, Babilônia e Chapéu-Mangueira, Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, Ladeira dos Tabajaras/Cabritos, Providência, Borel, Formiga, Andaraí, Salgueiro, Turano, Macacos, São João, Quieto e Matriz, Coroa, Fallet e Fogueteiro, Escondidinho e Prazeres, Complexo de São Carlos, Mangueira, Vidigal, Fazendinha, Nova Brasília, Adeus/Baiana, Alemão, Chatuba, Fé/Sereno, Parque Proletário, Vila Cruzeiro, Rocinha, Manguinhos, Jacarezinho, Caju, Barreira/Tuiuti, Cerro-Corá, Arará/Mandela, Lins, Camarista Méier, Mangueirinha e Vila Kennedy. Disponível em: http://www.upprj.com/index.php/o_que_e_upp. Acesso em 10 mar. 2016.

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próprio nome “pacificação” denuncia a concepção do projeto, que estaria trazendo a

“paz” para lugares antes dominados pela “guerra”.

Nesse sentido, a ocupação policial permanente aparece como condição para

entrada do Estado – e não só dele. Segundo Leite (2015), estava implícita aqui a

ideia de que a segurança seria necessária não apenas para a preservação dos

moradores, mas para o próprio funcionamento das instituições públicas ali.

A ruptura do programa com as experiências anteriores é entendida tendo em

vista a adoção do modelo de polícia comunitária, que vinha no sentido de

transformar a relação da polícia com os moradores de favelas, incluindo uma

transformação no próprio processo de seleção e formação dos novos agentes, não

mais treinados para a “guerra”45. Essa não foi a primeira iniciativa nesse sentido –

durante as décadas de 1980 e 1990, duas experiências de implementação de uma

polícia de proximidade falharam, o Posto de Policiamento Comunitário (PPC) e o

Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE). Ambos os programas

previam bases de apoio da polícia em algumas favelas, com um efetivo variando

entre 5 e 15 policiais (CUNHA; MELLO, 2011).

Um último elemento importante para entendermos o programa de maneira

geral, tal como apontado por Marcia Leite (2015), é a ideia de que a ocupação

policial permitiria legitimar a demanda dos moradores, não mais submetidos ao

tráfico de drogas. Ou seja, estaria contida aqui a imagem de uma população incapaz

de formular suas próprias demandas, o que acabou legitimando o papel de gestor

também dado à UPP, que passou a ter a prerrogativa de decidir o que é permitido ou

não nas favelas ocupadas, tal como veremos mais adiante.

Para cumprir esse duplo objetivo de livrar os territórios do domínio do tráfico

de drogas e ao mesmo tempo permitir a entrada do Estado com equipamentos e

serviços sociais, em agosto de 2010 é lançado o Programa UPP Social, com a

função de coordenar programas sociais, culturais, ambientais e de desenvolvimento

45

Em 2013, a morte de um aluno da PM em formação no curso da UPP decorrente de ações de

tortura às quais foi submetido pelos responsáveis do curso, junto com outros alunos, colocou em dúvida o caráter “comunitário” desses policiais: Aluno da PM que teria sofrido trote em curso de formação tem morte cerebral. Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2013-11-19/aluno-da-pm-que-teria-sofrido-trote-em-curso-de-formacao-tem-morte-cerebral.html. Acesso em 16 fev. 2016.

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nas favelas pacificadas, através da articulação entre município, Estado, empresas e

ONGs46.

Inicialmente coordenado pela Secretaria de Assistência Social e Direitos

Humanos do Estado (SEASDH), o programa foi transferido ao município em menos

de seis meses, ficando então sob responsabilidade do Instituto Pereira Passos

(IPP)47, em parceria com a ONU-Habitat – Programa das Nações Unidas para

Assentamentos Humanos.

Assim, em 11 de janeiro de 2011, é oficialmente apresentado o programa

UPP Social Carioca, tendo como principais objetivos a consolidação do controle

territorial das favelas recuperadas através da UPP, a urbanização e regularização do

fornecimento de serviços, como água, luz e saneamento, promover o

desenvolvimento social e econômico e, por fim, possibilitar a eliminação das

fronteiras materiais e simbólicas que separariam a favela da cidade formal (CUNHA;

MELLO, 2011). Ou seja, toda a política pensada para as favelas cariocas estava

ancorada na ocupação policial permanente desses territórios, logo, também muito

dependente do sucesso dessa ocupação.

Os primeiros anos do programa foram embalados pela euforia com o seu

sucesso, expresso, principalmente, na queda das taxas de homicídio nas áreas

pacificadas48, tanto assim, que serviu como uma das grandes promessas do

governador Sergio Cabral (PMDB) em sua campanha pela reeleição, em 2010 –

pacificar, até o fim do novo mandato, todas as favelas do Estado dominadas pelo

tráfico de drogas ou pela milícia49.

Contudo, passado esse momento inicial, alguns de seus problemas

começaram a vir à tona, em sua maioria, fruto da continuidade de muitas das formas

46

Governo lança UPP Social, programa para comunidades pacificadas do Rio. O Globo, 19 ago.

2010. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/governo-lanca-upp-social-programa-para-comunidades-pacificadas-do-rio-2963015. Acesso em 13 mar. 2016. 47

O Instituto Pereira Passos (IPP) é o órgão de planejamento estratégico do município responsável

pela produção de dados, informações e mapas. Mais informações em: http://www.rio.rj.gov.br/web/ipp. Acesso em 13 mar. 2016. 48

Taxa de homicídios em UPPs é quase 1/3 da média nacional, O Globo Online, 7 dez. 2013.

Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/taxa-de-homicidios-em-upps-quase-13-da-media-nacional-11004359. Acesso em 30 mar. 2016. 49

Confira as promessas do governador Sergio Cabral para cobrar ações do governador reeleito. O

Globo Online, 3 out. 2010. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/eleicoes-2010/confira-as-promessas-do-governador-sergio-cabral-para-cobrar-acoes-do-governador-reeleito-4986900. Acesso em 30 mar. 2016.

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de proceder da polícia militar tradicional – relatos de abusos, maus tratos e mesmo

desaparecimentos sob o comando da polícia pacificadora começaram a circular pela

imprensa50. O caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo, em 2013, na favela

da Rocinha, é emblemático desse processo de enfraquecimento do programa51.

Em 2014, a prefeitura do Rio de Janeiro alterou o nome do programa UPP

Social, rebatizado de Rio+Social, em uma clara tentativa de desvincular a totalidade

das políticas públicas daquelas relacionadas à segurança, no caso, desvincular as

ações do poder público municipal do programa estadual que começava a enfrentar

duras críticas.

3.3 A UPP do Vidigal

No dia 18 de janeiro de 2012, o Vidigal recebia a instalação de uma Unidade

de Polícia Pacificadora, a 19ª unidade da cidade, prevista para atuar sobre a área

das favelas do Vidigal e Chácara do Céu52.

A instalação da UPP representava a consolidação da ocupação iniciada em

novembro, através da operação “Choque de Paz”, quando uma ação integrada pela

Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Federal ocupou as favelas do Vidigal, Chácara

do Céu e Rocinha em um mesmo dia – eram as três ultimas favelas da zona sul a

serem ocupadas pelas forças do Estado.

50

Em 76% das UPPs no Rio há denúncia contra algum policial. Folha de S. Paulo, 2 set. 2013.

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/09/1335523-em-76-das-upps-no-rio-ha-denuncia-contra-algum-policial.shtml. Acesso em 30 mar. 2016. 51

O pedreiro Amarildo, morador da favela da Rocinha, desapareceu no dia 14 de julho de 2013,

depois de ser levado à sede da UPP para averiguação no âmbito da operação “Paz Armada”, realizada nos dias 13 e 14 de julho. O caso do desaparecimento de Amarildo se tornou um símbolo na luta contra a violência policial e uma das pautas das manifestações de junho daquele mesmo ano. Em 2016, 12 policiais militares, dos 25 acusados, foram condenados pela tortura e morte de Amarildo. Sobre a repercussão do caso para o projeto UPP: Caso Amarildo abalou projeto UPP, diz Pezão. Portal UOL, 19 set. 2014. Disponível em: http://noticias.band.uol.com.br/eleicoes/2014/rio-de-janeiro/100000708673/caso-amarildo-abalou-projeto-upp-diz-pez%C3%A3o.html. Acesso em 30 mar. 2016. UPP: os cinco motivos que levaram à falência o maior projeto do governo Cabral. Revista Fórum Online, 12 fev. 2014. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/2014/02/12/upp-os-cinco-motivos-que-levaram-a-falencia-o-maior-projeto-do-governo-cabral/. Acesso em 30 mar. 2016. 52

A Chácara do Céu é uma pequena favela ao lado do Vidigal (segundo censo do IBGE de 2010,

com uma população de 694 habitantes) que não apresenta grandes indícios de estar passando por processos semelhantes aos da favela do Vidigal. Dado o curto tempo de pesquisa, optamos por não incluí-la no escopo do trabalho.

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Dada a proximidade entre as favelas, a operação ocorreu simultaneamente,

na madrugada do dia 13 de novembro de 2011, contando com o apoio de blindados

do exército, caveirões do BOPE, helicópteros e um grande efetivo de agentes

policiais. Antes do raiar do dia, o BOPE entrava na Rocinha enquanto o Batalhão de

Choque da PM ocupava o Vidigal. Apesar de ter sido uma operação considerada

tranquila, policiais que entraram no Vidigal afirmaram ter encontrado muito óleo na

rua e alguns móveis abandonados na tentativa de dificultar a entrada dos agentes53.

Passadas as primeiras horas da ocupação, as bandeiras do Brasil e do Rio de

Janeiro eram hasteadas nas favelas, em mais um ato carregado de simbolismo

marcando a retomada desses territórios pelo Estado.

Figura 11 - Hasteamento das bandeiras no Vidigal, 13 nov. 2011

Fonte: G1 / Thamine Leta54

A operação policial nas três favelas contou com uma grande cobertura

midiática, o portal de notícias na internet G1 fez uma cobertura ao vivo, desde o

início da madrugada, sobre o andamento da operação. Aqui, é curioso notar quando

53

O portal de notícias G1 fez uma cobertura ao vivo da operação “Choque de Paz”, que pode ser

encontrada no link a seguir: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rocinha-e-vidigal/cobertura/. Acesso em 14 mar. 2016. 54

Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/11/bandeiras-do-brasil-e-do-rio-de-

janeiro-sao-hasteadas-no-vidigal.html. Acesso em 14 mar. 2016.

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no meio da cobertura, ainda no início da manhã, é anexada uma reportagem com o

título: Mercado vê imóveis mais caros em São Conrado com UPP da Rocinha. Na

matéria, publicada nas primeiras horas do primeiro dia de ocupação da favela, as

entidades do mercado imobiliário já falavam em uma valorização de 30% dos

imóveis da região. Nas palavras do presidente da Associação de Dirigentes de

Empresas do Mercado Imobiliário do Rio (Ademi-RJ): “a UPP vai valorizar os imóveis

entre 70% e 100% em algumas regiões do bairro. É o preço real de morar bem, em área

nobre, ao lado de uma comunidade pacificada.” 55.

O conteúdo da matéria, no entanto, não é de causar espanto. Desde o início

da implementação das unidades de polícia pacificadora, a valorização dos imóveis

do entorno já era um dos resultados mais comemorados, tanto pelos profissionais da

área, quanto pelos próprios moradores. Como veremos adiante, essa relação entre

segurança e mercado não é mera casualidade.

Passados quatro anos de sua inauguração, a UPP do Vidigal hoje conta com

um efetivo de 246 policiais militares e três bases de apoio: uma na entrada da

favela, outra na região do Sobradinho, no alto do morro, e a terceira na Chácara do

Céu56.

O Fórum UPP Social, que marca o início da atuação do programa municipal

Rio+Social nas favelas pacificadas, foi realizado no Vidigal em 2 de março de 2012.

O Fórum é um encontro realizado logo depois da ocupação das favelas, no qual os

moradores são apresentados ao programa e a equipe que atuará na região,

reunindo, assim, representantes do poder público, moradores, ONGs e empresas

parceiras para discutir demandas e propostas que guiarão o programa na

localidade57.

O programa Rio+Social, alocado no Instituto Pereira Passos (IPP), produz e

sistematiza dados demográficos e socioeconômicos das favelas pacificadas,

apoiando-se nos censos realizados pelo IBGE, reunidos no documento Panorama

55

Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/11/mercado-ve-imoveis-mais-caros-

em-sao-conrado-com-upp-da-rocinha.html. Acesso em 14 mar. 2016. 56

Disponível em: http://www.upprj.com/index.php/informacao/informacao-selecionado/ficha-tecnica-

upp-vidigal/Vidigal. Acesso em 14 mar. 2016. 57

Informações retiradas do site do programa, disponível em:

http://www.riomaissocial.org/2012/02/forum-upp-social-chega-ao-vidigal-e-a-chacara-do-ceu-nesta-sexta/. Acesso em 30 mar. 2016.

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do Território. O documento contendo as informações do Vidigal e de sua população

foi publicado em setembro de 2014 e traz dados censitários, informações a cerca

das condições de ocupação e dos serviços urbanos e as legislações urbanísticas e

programas já realizados na favela, sendo sempre comparativos à cidade do Rio de

Janeiro ou à região administrativa na qual a favela se localiza58. O objetivo do

documento é subsidiar as intervenções do poder público municipal em consonância

com as especificidades de cada área.

Segundo os dados do Panorama do Território, o Vidigal possui uma

população de 9.677 pessoas, divididas em 3.448 domicílios. A densidade

demográfica do território da favela é de 328,3 pessoas por hectare, cerca de três

vezes maior que a média do município (110 hab/há), já o adensamento dentro dos

domicílios é praticamente igual a média do restante da cidade – enquanto no Vidigal

é de 2,99 pessoas, para o município ela fica em 2,94.

A propósito das condições de ocupação, em 2010, o Vidigal possuía 77% dos

domicílios declarados como sendo próprios, porcentagem que acompanha a média

da região administrativa da Lagoa (72%) e do município (73%). Importante ressaltar

aqui, mais uma vez, que essas informações foram recolhidas através do censo do

IBGE realizado em 2010, ou seja, anterior a instalação da UPP na favela. Apesar de

ser um dado comparativo importante para testarmos a hipótese de que o Vidigal

estaria sofrendo uma descaracterização enquanto território popular – o que envolve

uma tendência na alteração do perfil dos moradores, com a chegada de pessoas de

classe social mais elevada, podendo significar um aumento no número de aluguéis –

não temos como compará-lo com as informações pós UPP, uma vez que o censo só

será realizado novamente em 2020.

O mesmo vale para as informações relacionadas a escolaridade e rendimento

mensal dos moradores. Em 2010, a média de analfabetismo para pessoas com 15

anos ou mais era de 7,1% no Vidigal, contra 1% na RA da Lagoa e 2,9% para a

totalidade da cidade. Já no que diz respeito ao rendimento mensal por pessoa, os

dados apontam que 4,4% da população do Vidigal viviam na linha da pobreza,

média que fica em 0,5% para a RA da Lagoa e 2,8% para o município, já a faixa,

58

Documento completo disponível em: http://www.riomaissocial.org/wp-content/uploads/2014/09/1-

Panorama-dos-Territ%C3%B3rios-UPP-Vidigal-Ch%C3%A1cara-do-C%C3%A9u.pdf. Acesso em 30 mar. 2016.

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67

ainda bastante baixa, entre ¼ e ½ salário mínimo per capita, abarcava 18,1% da

população, resultando em mais de 20% dos moradores do Vidigal vivendo com

menos de um salário mínimo por mês59.

Em relação às condições dos serviços urbanos, como acesso à rede geral de

água, rede de esgotamento sanitária, coleta de lixo e luz elétrica, os dados para o

Vidigal se assemelham a média do município - 98,6% dos domicílios declararam ter

acesso à rede de água, 98% consideravam o esgotamento sanitário adequado,

100% afirmaram ser contemplados pela coleta de lixo e 91,8% possuíam energia

elétrica com o uso do medidor. No entanto, é importante sublinhar que os dados se

referem a existência ou não desses serviços, não contemplando sua qualidade e

regularidade.

Uma ultima observação importante revelada pelo documento é a discrepância

interna ao território do Vidigal. Todos os itens analisados possuem uma distribuição

desigual pelas áreas que compõem a favela, sendo aquelas de mais difícil acesso as

que concentravam os piores índices. Essa é uma informação importante se

considerarmos que, no geral, as áreas de difícil acesso são justamente aquelas

localizadas na parte alta do morro – hoje, a parte mais valorizada e cobiçada pelo

mercado.

3.4 Política de segurança, mercado e cidade neoliberal

A recuperação dos discursos que embalaram o surgimento da UPP e seu

recebimento eufórico pela grande imprensa e entidades do mercado imobiliário torna

explícita a relação entre política de segurança e mercado sob a perspectiva da

urbanização neoliberal. Aqui, vamos tentar traçar essa relação e, a partir dela,

desenhar de maneira mais geral a armadura teórica que nos guiará no próximo

capítulo, quando, enfim, chegamos ao Vidigal contemporâneo.

O mapa abaixo, elaborado com dados de 2014, apresenta a localização das

UPPs em relação aos chamados clusters olímpicos, conjunto de locais de

competição onde serão realizados os Jogos. Através dele vemos a relação direta

59

Em 2010, o salário mínimo era de R$ 510,00,

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entre as áreas que concentram os investimentos sob a justificativa dos megaeventos

esportivos e a distribuição territorial das unidades de polícia pacificadora.

Figura 12- Localização das UPPs no Rio de Janeiro/2014

Fonte: Lena Azevedo e Lucas Faulhaber60

De acordo com Freeman (2012), a política da UPP aparece como estratégica

para o Rio de Janeiro enquanto cidade empreendedora em torno da Copa do Mundo

de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 – garantir a atração dos megaeventos

esportivos é garantir a oportunidade de investimentos massivos, especulação e

valorização imobiliária em várias frentes da cidade. Para tanto, o Estado garante a

conquista e o controle dos territórios pela força, liberando a expansão do capital

privado.

Como nos lembra o autor, apenas duas semanas após o anúncio da escolha

do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, um confronto no Morro

dos Macacos, em Vila Isabel, vizinho ao bairro do Maracanã, terminou com um

helicóptero da polícia derrubado pelos traficantes. A notícia repercutiu pelo mundo,

inclusive com documentos vazados pelo Wikileaks demonstrando a preocupação da

embaixadora dos Estados Unidos com a segurança na cidade para receber os Jogos

– a política da UPP, recém-iniciada, ganhava ainda mais força.

60

Mapa retirado do livro Remoções no Rio de Janeiro Olímpico, de Lena Azevedo e Lucas Faulhaber.

Rio de Janeiro: Mórula, 2015, pág. 60.

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69

Desde seu início, diversos setores do mercado se colocaram como

apoiadores das UPPs, inclusive financeiramente. Chama atenção o anuncio do

então governador Sergio Cabral, em 2010, sobre a criação de um fundo para a

realização de obras para as unidades de polícia pacificadora nas favelas. Fizeram

parte desse fundo: Bradesco Seguros, Coca-Cola, Souza Cruz, Confederação

Brasileira de Futebol (CBF) e o Grupo EBX. Somente este último, do grupo do

empresário Eike Batista, comprometeu-se com a doação de R$ 20 milhões por ano,

até 2014, para a instalação das UPPs em todo o Estado61.

Figura 13 - Empresários se unem com o governo do Rio para firmar convênio para realização de

obras nas UPPs

Fonte: Gabriel de Paiva / Agência O Globo62

As entidades de classe do setor imobiliário também são grandes entusiastas

do programa de pacificação, principalmente pela valorização dos imóveis do entorno

da qual elas vêm acompanhadas: “segurança pública é um elemento fundamental,

os bairros com UPP tiveram valorização quase imediata. Foi um fator determinante”,

61

Governo do Rio anuncia fundo para a realização de obras nas UPPs. O Globo Online, 24 ago. 2010. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/governo-do-rio-anuncia-fundo-para-realizacao-de-obras-nas-upps-2961525. Acesso em 2 maio 2016. Em 2013, o Grupo EBX anunciava sua saída do fundo em função das dificuldades financeiras do grupo: Empresa de Eike Batista interrompe injeção de R$ 20 milhões em UPPs no Rio. Portal G1, 10 ago. 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/08/empresa-de-eike-interrompe-injecao-de-r-20-milhoes-em-upps-no-rio.html. Acesso em 28 maio 2016. 62

Idem.

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70

afirmava a então vice-presidente do Sindicato da Habitação no Rio (Secovi Rio), em

entrevista à Folha de S. Paulo, em 201163.

Nessa mesma matéria são apresentados alguns dados do levantamento

realizado pela Secovi relativo à valorização imobiliária dos imóveis no entorno de

favelas com UPP: um imóvel de dois quartos em Copacabana teve aumento de

101,40% no seu valor, em Botafogo, um imóvel de quatro quartos chegou a ficar

114,12% mais caro, já em Ipanema o aumento foi de 158,59%. Segundo o

levantamento, o aumento nos valores dos aluguéis também superou os 100% de

valorização.

A revista do setor de incorporação e construção apontava na manchete: O

efeito UPP – a pacificação de favelas no Rio está valorizando os bairros próximos

das comunidades e abrindo um novo mercado para construtoras e incorporadoras64.

Na matéria, não só a valorização dos imóveis é comemorada, mas também o

lançamento de novos empreendimentos, principalmente na região da Tijuca. Já na

zona sul, região saturada de edificações, o destaque vai para a valorização do bairro

de São Conrado na sequencia das instalações da UPP na Rocinha e no Vidigal.

Essa valorização quase imediata dos imóveis, ainda no início das ocupações

das favelas, demonstra a confiança da população no programa, enquanto a

continuidade da elevação dos preços durante os anos seguintes passava a ser

exibida como prova do sucesso da pacificação, logo, da segurança da cidade para

receber os eventos e os visitantes que vêm com eles: “A valorização foi muito

grande por conta da UPP porque já é um programa consolidado, que deu certo. As

pessoas estão confiantes na segurança que elas trazem para a região”, nas palavras

do vice-presidente da Secovi65.

63

UPP faz preço de imóveis disparar no Rio. Folha de S. Paulo Online, 15 mar. 2011. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/mercado/888964-upp-faz-preco-de-imoveis-disparar-no-rio.shtml. Acesso em 17 mar. 2016. 64

O efeito UPP – a pacificação de favelas no Rio está valorizando os bairros próximos das

comunidades e abrindo um novo mercado para construtoras e incorporadoras. Construção Mercado, fev. 2012. Disponível em: http://construcaomercado.pini.com.br/negocios-incorporacao-construcao/127/artigo282612-1.aspx. Acesso em 17 mar. 2016. 65

UPPs representam 80% da valorização imobiliária no Rio – valor dos imóveis aumenta até 40%

imediatamente após a instalação da unidade. Portal R7, 28 fev. 2011. Disponível em: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/upps-representam-80-da-valorizacao-imobiliaria-no-rio-20110228.html. Acesso em 7 abr. 2016.

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71

Entretanto, o impacto da instalação da UPP não se restringe apenas ao

entorno da favela e ao mercado imobiliário. Não à toa, empresas de diferentes

setores também apoiaram o programa desde seu inicio, visando o mercado de

consumidores interno às favelas, especialmente em um período no qual as políticas

de distribuição de renda consolidavam a capacidade de consumo de boa parte

dessa população. Implementadas a partir de 2002, sob a gestão do presidente Lula

(Partido dos Trabalhadores/PT), programas como o Bolsa Família, as medidas de

valorização do salário mínimo e o aumento das facilidades de acesso ao crédito

criaram uma massa de consumidores dentro das favelas que, por muito tempo,

ficaram inacessíveis a esses mercados pela falta de segurança do território.

Com o programa de pacificação, a possibilidade de exploração dessa

capacidade de consumo interna também aparece como consequência – ou objetivo?

– imediata dessa política. A formalização dos serviços é uma das primeiras ações

realizada nas favelas que recebem as unidades de polícia pacificadora, resultando

em um impacto significativo no orçamento dessas famílias – o primeiro movimento

em direção à “cidade formal” vivido pelos moradores das favelas pacificadas é sua

inserção via consumo de bens e serviços.

Nesse sentido, o caso da favela Santa Marta é ilustrativo desse fenômeno.

Como a primeira favela a receber o programa de pacificação, os problemas

vivenciados ali serviram como base para ajustes e elaboração de novas estratégias

nos demais territórios. A tv por assinatura Sky, por exemplo, foi um dos primeiros

serviços a ser formalizado no Santa Marta, simultaneamente a regularização do

fornecimento de luz, com os valores dos pacotes oferecidos sendo, inicialmente,

idênticos aqueles nos demais bairros da cidade. No entanto, os problemas

enfrentados foram tantos que, ainda em 2010, a Sky assinou um termo de

cooperação com o governo do Estado para o fornecimento de um pacote especial,

Sky UPP, no valor de R$ 44,90, que passou a valer para as favelas pacificadas a

partir dali (OST; FLEURY, 2013).

Ao refletir sobre a experiência da favela Santa Marta, as autoras nos chamam

atenção para o aumento do custo de vida como uma consequência direta da UPP,

consequência da formalização dos serviços que passam a somar no orçamento

dessas famílias. O impacto é sentido também pelo comércio local, que repassa o

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aumento do custo de seu próprio funcionamento através do encarecimento dos

preços, pressionando ainda mais o custo de vida dos moradores, em um ciclo no

qual o resultado acaba sendo o empobrecimento dessas famílias, que passam a

gastar mais para manter o mesmo padrão de vida.

Tudo se passa como se o programa da polícia pacificadora fosse pensado

não para acabar com a venda e o uso de drogas, mas apenas para retirar o controle

do território das mãos dos traficantes. Com isso, a pacificação seletiva de algumas

favelas aparece como elemento essencial para diversas estratégias de acumulação

neoliberal (FREEMAN, 2012). Dentre elas, gostaríamos de destacar: i) megaeventos

esportivos como mercados lucrativos, onde a venda do espetáculo é garantida pela

relação entre a imagem olímpica com a imagem da cidade: a transformação

simbólica das favelas, de lugar de pobreza e violência ao lugar do exótico, aparece

alinhada à imagem de cidade que se quer vender; ii) valorização imobiliária: efeito

da UPP sobre os bairros dos entornos e; iii) favela como mercado e mercadoria – a

pacificação das favelas também representaria o potencial de novos mercados

formais, incluindo a formalização de serviços, como a SKY UPP e Via Paz

(Embratel), serviços de internet e tv à cabo.

A segurança aparece, assim, como elemento fundamental para a boa atuação

do mercado. Em um momento no qual a imagem da cidade passa a ser o principal

elemento a ser vendido mundo a fora, sob a esteira dos megaeventos esportivos, a

narrativa da violência nas favelas passa a ser um problema a ser combatido

(FREEMAN, 2012).

Essa relação direta entre segurança e mercado deve ser lida a partir da

perspectiva do neoliberalismo, sistema de ideias e práticas fundamentado na

oposição ao papel regulador do Estado que, desde a crise do fordismo nos anos

1970, surge como fórmula de reestruturação do sistema capitalista mundial

(HARVEY, 2005). Ainda, o olhar aqui deve se voltar, especialmente, para a forma

como ele se concretiza no espaço das cidades, ou seja, do ponto de vista da

urbanização neoliberal. No entanto, Harvey (2005) também vai apontar para a

contradição entre a utopia e o projeto político do neoliberalismo, uma vez que o

Estado passa a ser, cada vez mais, um agente fundamental atuando no/para o

mercado, portanto, não se trata de uma ausência de intervenção estatal, mas de

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uma mudança em sua direção – o fundo público retira-se da área social para ser

investido de forma a garantir e otimizar a acumulação de capital.

A partir daí, podemos nos perguntar se esse movimento expressaria a

subordinação do poder público aos interesses privados ou uma fusão desses

interesses com importante atuação do poder público em sua promoção. Essa é uma

pergunta que está para além desse trabalho, mas importante o bastante para não

perdermos de vista quando formos olhar para o Vidigal e as formas pelas quais o

Estado tem atuado naquele território.

Entendemos a urbanização neoliberal (THEODORE; PECK; BRENNER,

2009) a partir de três dimensões: i) transformações na estrutura física da cidade de

forma a beneficiar a acumulação capitalista; ii) mudanças nas instituições políticas,

com a passagem da gestão do Estado para gestão do mercado e; iii) mudanças nas

regulações sociais, de forma a legitimar os novos processos de mercantilização. No

entanto, entendendo também a urbanização neoliberal como uma tendência, um

campo de experimentação onde se lança mão das mais diferentes estratégias

visando dar fôlego a uma nova rodada de mercantilização da cidade, torna-se um

desafio olhar para essas três dimensões a partir de seus mútuos movimentos de

destruição, criação e manutenção desses elementos ao longo dos processos.

Assim, os autores vão nos chamar atenção para a forma como a

neoliberalização baseia-se em um desenvolvimento espacial desigual e instável,

fruto de uma transformação socioespacial impulsionada pelas necessidades do

mercado.

Por fim, é preciso ressaltar uma dimensão também fundamental para o

sucesso dessa nova rodada de mercantilização vivida pelas favelas da zona sul: a

ressiginificação simbólica de seus espaços. Ao sustentarmos a hipótese da

tendência a uma descaraterização do Vidigal enquanto território popular, estamos

problematizando não apenas as transformações em seu espaço físico, mas também

aquelas simbólicas, que atingem as formas de ver e viver naquele território, no qual

os elementos que caracterizam o ‘popular’ passam a configurar um diferencial

estético, passível de valoração pelo mercado (PEREIRA, 2014).

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A partir daí, buscando entender as transformações pelas quais o Vidigal vem

atravessando sob essa perspectiva, acreditamos ser preciso inseri-lo nas dinâmicas

mais amplas que conformam a cidade do Rio de Janeiro hoje. Ao aceitarmos a

hipótese de que a cidade se consolida sob um modelo neoliberal, entendendo esse

processo como um campo de experimentação que lança mão de distintas

estratégias buscando o aprofundamento dos processos de mercantilização, é

preciso perguntar também: como a urbanização neoliberal tem atuado no território

do Vidigal?

Segundo Orlando dos Santos Junior (2015), a urbanização neoliberal não

envolve apenas reestruturação urbana, mas também mudanças no padrão de

governança, ou seja, na forma de relação entre Estado, sociedade e mercado.

Recuperando o trabalho de David Harvey, Santos Junior (2015) aponta alguns

elementos que conformariam a “governança empreendedorista neoliberal”: i)

coalizões de poder sustentadas, fundamentalmente, através das parcerias público-

privadas; ii) atividades empreendedoras, associadas ao desenvolvimento

especulativo e; iii) enfoques em lugares específicos da cidade, através de uma

atuação fragmentada sobre o território.

Pensando o Rio de Janeiro, o autor argumenta, a partir de uma breve

recuperação histórica sobre a evolução dos padrões de governança no Brasil, que o

empreendedorismo urbano neoliberal estaria sendo adotado centralmente na cidade

do Rio de Janeiro, dada a grande desigualdade socioeconômica de sua região

metropolitana. Assim, na capital carioca esse novo padrão de governança estaria

sendo estabelecido combinando-se com os demais padrões (clientelismo urbano,

patrimonialismo urbano e corporativismo urbano) em um processo interativo de

transformações e permanências (SANTOS JUNIOR, 2015).

A propósito da dimensão das instituições de gestão dos territórios sob a lógica

neoliberal, configuração de uma passagem da gestão do Estado para a gestão do

mercado, parece-nos, ao primeiro olhar, que para a favela do Vidigal ela não se

sustenta. Tínhamos antes, e ainda temos, modos de regulação informais, desde o

tráfico de drogas aos laços de solidariedade. Entretanto, viveríamos hoje uma fase

de mercantilização crescente dos modos de regulação desse espaço e suas

relações com a entrada cada vez maior de novos agentes do mercado formal,

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contribuindo para a despersonalização das relações de troca – as política urbanas

hoje estariam contribuindo para o acirramento da mercantilização das cidades em

todas as suas esferas.

Como sustenta Santos Junior (2015), esse é um processo atravessado por

disputas e lutas de classes sociais que deve ser entendido como um processo

heterogêneo, resultado das muitas variações dependendo das escalas territoriais,

instituições, trajetória das instituições e das regulações. Portanto, é preciso pensar o

fenômeno da urbanização neoliberal, enquanto um fenômeno de escala global,

atentando para as particularidades que ele assume em cada contexto.

A isso, Theodore, Peck e Brenner (2009) chamaram de “neoliberalismo

realmente existente”. Buscando se distanciar das discussões que pensam o

neoliberalismo a partir de sua doutrina, ou seja, enquanto um modelo fechado e

acabado, os autores propõe o uso de outro conceito em sua análise: neoliberalismo

realmente existente. Segundo os autores, esse seria um modo de destacar a forma

pela qual a ideologia distorce os verdadeiros efeitos sobre as estruturas macro-

institucionais e o capitalismo. Assim, entendem o neoliberalismo realmente existente

levando em consideração a inserção contextual dos projetos neoliberais e a

dependência de sua trajetória, ou seja, o cenário regulatório e institucional herdado,

apontando o necessário hibridismo do neoliberalismo, o que coloca a

impossibilidade de analisá-lo como um modelo abstrato e acabado.

No Rio de Janeiro, poderíamos pensar o processo de neoliberalização sendo

expresso na incorporação de determinadas áreas e serviços urbanos parcialmente

desmercantilizados à lógica própria do mercado (SANTOS JUNIOR, 2015) – como

seria o caso das favelas da zona sul e do Vidigal, em especial.

Ainda segundo o autor, as transformações urbanas aqui seriam viabilizadas

com recursos vinculados aos megaeventos esportivos, concentrados nas três áreas

da cidade já citadas: Barra da Tijuca, Zona Portuária e Zona Sul. A propósito desta

última, dona de uma estrutura urbana já há muito consolidada, o principal alvo das

transformações urbanas seriam os territórios de favelas encrustados em sua

paisagem.

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O olhar para o Vidigal será pautado pela perspectiva do “neoliberalismo

realmente existente”, um processo aberto de formas complexas em que as

estratégias neoliberais de reestruturação interagem com os usos do espaço, suas

configurações institucionais e constelações de poder sociopolíticas existentes, tendo

como objetivo a mobilização dos espaços da cidade para o crescimento econômico

orientado para o mercado, pautado pelas práticas de consumo das elites e de forma

a controlar as populações “excluídas” (THEODORE; PECK; BRENNER, 2009).

Seguindo os autores, acreditamos que interrogar as geografias do

neoliberalismo realmente existente nos possibilita a análise dos diversos caminhos

através dos quais as políticas neoliberais são impostas às cidades e ali

reproduzidas. Ao fazer isso olhando para o Vidigal, lançamos luz sobre um desses

caminhos.

Os processos contemporâneos de neoliberalização seriam catalisadores e

expressão de um processo de destruição criativa do espaço político-econômico

existente (THEODORE; PECK; BRENNER, 2009). Assim, de forma a apreender esse

processo em sua incidência territorial, a reflexão se dará em torno das quatro

dimensões propostas como pilares da urbanização neoliberal: mudanças na

estrutura física, nas instituições de gestão, nas regulações do território e em sua

ressignificação simbólica.

Partindo da hipótese de que a instalação da UPP seria o ponto de inflexão

representando o avanço de uma urbanização neoliberal sobre o território do Vidigal,

nos parece importante um primeiro movimento de busca, junto aos órgãos públicos

municipais, estaduais e federais, a cerca das intervenções urbanas realizadas no

Vidigal desde 2009, quando do início do programa de pacificação. A ideia aqui é

mapear as obras e os investimentos que foram feitos no Vidigal ao longo desse

período, e de que forma, objetivando investigar o papel exercido pelo Estado em

relação às transformações percebidas naquele território.

Em seguida, é preciso interrogar as instituições a partir da hipótese de uma

passagem da gestão do Estado para uma gestão do mercado. Por se tratar de um

território no qual a gestão foi, historicamente, alvo de violentas disputas envolvendo

não apenas Estado e mercado, mas também o tráfico de drogas, associação de

moradores e outras organizações, a reflexão em torno das dinâmicas atuais de

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gestão deve ser feita comparativamente a essa recuperação histórica realizada no

trabalho. Por sua própria concepção, a UPP já aparece como uma importante

instituição de gestão desse território.

Possíveis alterações nas regulações e mesmo suas formas de aplicação

podem indicar transformações que beneficiem uma maior entrada do mercado

formal na favela. Aqui, usaremos como marco tanto as legislações locais para as

favelas do Rio de Janeiro, como os instrumentos previstos na constituição e Estatuto

da Cidade que poderiam incidir sobre esses territórios, mas que acabam sendo

mobilizados, ou não, a partir dos diferentes interesses vigentes em cada momento.

Estamos pensando, especialmente, na AEIS e decretos de uso e ocupação do solo.

A identificação de novos agentes e novas formas de apropriação do território,

expressas por meio da valorização imobiliária, da diversificação dos serviços, como

a instalação de novos hostels, restaurantes e bares, tem como objetivo apreender o

processo de ressignificação simbólica do território do qual o avanço da

mercantilização vem acompanhado.

Ao falar em descaracterização do território popular, queremos chamar

atenção para as mudanças nos padrões de sociabilidade, dos usos do espaço, na

imagem da favela, tanto para dentro, do ponto de vista dos novos e velhos

moradores, quanto para fora, ou seja, para a forma como a imagem da favela é

mobilizada – e vendida – por novos agentes que encontram ali um produto a ser

disponibilizado no mercado. Essa ressignificação é fundamental para uma nova

rodada de mercantilização da cidade, na qual a favela emerge como ativo em um

processo de valorização das suas áreas do entorno e do seu próprio território. A

questão de fundo aqui é: como a pobreza é ressignificada dentro desse processo de

mercantilização do território?

No entanto, diferente da forma de exposição, estaremos sempre pensando

essas quatro dimensões de forma relacional, a partir da perspectiva dos mútuos

movimentos de destruição, criação e manutenção das estruturas, instituições e

regulações herdadas, relacionadas ao processo de ressignificação simbólica do

território.

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Para alcançar esses objetivos, o trabalho de campo se apoiou na observação

participante e realização de entrevistas com os múltiplos agentes que conformam a

dinâmica atual do Vidigal: órgãos públicos, comunitários, ONGs, velhos e novos

comerciantes e moradores.

Durante seis meses, as visitas ao Vidigal ocorreram semanalmente, tanto

para a realização de entrevistas, quanto para a observação das dinâmicas do

território. Preferencialmente, focamos a observação na praça que dá acesso à favela

e nos bares, restaurantes e festas que se encontram no recorte territorial proposto

para a pesquisa. Aqui, pontos como o perfil dos frequentadores – faixa etária,

nacionalidade/naturalidade, cor e sexo – produtos comercializados nos

estabelecimentos e seus valores, as formas de acesso utilizadas pelo público, a

dinâmica do entorno e outros tópicos que pudessem chamar atenção foram alguns

dos elementos que pautaram o exercício de observação.

Se a reflexão do trabalho é feita problematizando o território do Vidigal como

um todo, o trabalho de campo será realizado a partir de um recorte territorial. Por se

tratar de uma favela de tamanho médio, com mais de 3 mil domicílios, contrastado

com o curto tempo para a pesquisa, avaliamos que seria necessário definir recortes

para a observação participante. Assim, através de visitas e conversas iniciais,

identificamos as áreas que podem ser consideradas exemplares desse novo

momento do Vidigal: toda a av. João Goulart, principal rua da favela, caminho que

leva à trilha para o Morro Dois Irmãos e onde se concentram os hostels e albergues,

e o Arvrão, área mais valorizada e procurada pelos agentes externos devido ao

apelo de sua vista.

Obviamente, esse recorte territorial não exclui um olhar atento para os outros

espaços da favela, para sua circulação de maneira geral e outros indícios que

possam ser considerados fundamentais para a compreensão do sentido dessas

transformações. A proposta do recorte visa, ao contrário, viabilizar a pesquisa em

campo, mantendo certo padrão e rigor.

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3.5 O debate sobre gentrificação e os territórios populares

Por fim, antes de partir para a reflexão sobre os elementos que atualmente

configuram as transformações socioespaciais do Vidigal, parece-nos importante

tecer algumas considerações em relação a uma literatura cada vez mais presente

nos estudos urbanos brasileiros, especialmente quando o assunto é a

mercantilização de territórios populares: a chamada gentrificação.

Importado de experiências internacionais, esse conceito tem sido utilizado, de

maneira muito geral, para expressar o fenômeno de enobrecimento de áreas

revalorizadas, ou recém-valorizadas, a partir da entrada do mercado e da realização

de melhoramentos urbanos sem o acompanhamento de dispositivos que garantiriam

a permanência dos moradores. Ou seja, o fenômeno aqui ficou conhecido como

“remoção branca”, a expulsão operada via mercado através da alta de preços.

Uma breve pesquisa nos trabalhos acadêmicos sobre processos de

valorização em territórios populares traz a tona o uso recorrente do conceito de

gentrificação como ferramenta analítica. Além disso, o termo também ganhou as

ruas, sendo amplamente veiculado pela imprensa e nos debates realizados por

aqueles que se sentem vítimas do atual fenômeno. Isso tudo pode ser visto como

expressão de mudanças significativas que têm afetado a dinâmica de nossas

cidades e influenciado a vida de seus moradores.

Recentemente “aportuguesada”, trata-se de um conceito em inglês,

gentrification, decorrente do também em inglês, gentry, este último, vindo do francês

arcaico, genterie. Do início – genterie faria referência à nobreza rural europeia que, a

partir do século XVI, teria começado a se apropriar das terras comunais e de

pequenas propriedades rurais. Gentry, por sua vez, é usado comumente para

designar uma classe favorecida tipicamente associada à aristocracia inglesa, uma

aristocracia fundiária (BATALLER, 2012).

A primeira referência ao termo gentrification é atribuída a Ruth Glass, em

1964, quando de seus estudos sobre Londres, ao comparar o processo daquele

momento com o hábito próprio da gentry de manter uma residência na cidade e uma

residência no campo. Em seguida, os primeiros estudos que mobilizaram o termo

utilizaram-no de modo a descrever a revalorização experimentada por alguns bairros

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centrais. Por toda complexidade que envolve o próprio processo que o conceito

pretende explicar, tanto quanto a diversidade que marca sua utilização nos

trabalhos, gentrificação tem sido classificada por alguns autores como “conceito

caótico” (BATALLER, 2012). Tentemos, então, sistematizá-lo.

De acordo com o geógrafo estadunidense Neil Smtih (2007), a gentrificação

pode ser entendida como uma nova fronteira de expansão urbana, tanto em sua

dimensão econômica quanto espacial, sendo a expansão geográfica expressa pela

diferenciação interna do espaço em diferentes escalas.

O elemento fundamental da teoria de Smith é o conceito de rent-gap –

diferença entre a renda obtida de uma determinada propriedade ou terreno e a renda

que poderia ser obtida com outro uso, ou seja, trata-se de uma especulação sobre o

uso do solo. Essa formulação aparece como elemento central na explicação da

gentrificação nas cidades estadunidenses estudadas pelo autor, que após três

décadas de suburbanização, começaram a passar por diferentes projetos de

“renascimento urbano” (HACKWORTH; SMITH, 2001).

A teoria desenvolvida por Smith (2007) permitiu explicar esse processo de

desinvestimento nas áreas centrais e expansão de um novo modelo de urbanização

que priorizava os investimentos nos subúrbios. Afetados por essa dinâmica, a

degradação dos centros urbanos chegou a tal ponto que a diferença obtida entre a

exploração do solo com a potencial exploração através de outro uso se torna tão

grande que a gentrificação aparece como “solução”. Ou seja, a gentrificação se dá

quando a diferença entre o uso atual e o uso potencial é suficientemente grande

para garantir o lucro através de novos investimentos na área.

Um segundo elemento fundamental na teoria do autor, responsável por fazer

de sua formulação uma das referências nos estudos da temática, diz respeito à

centralidade dada aos agentes do solo. Contrapondo-se aos trabalhos que

priorizavam a demanda, ou seja, que focavam nos atores individuais e sua procura

por novas moradias nos centros, Smith (2006) introduz os agentes do solo como

fundamentais na teoria do rent-gap, associando o papel central das municipalidades

e os interesses crescentes dos promotores privados de moradia, sem, contudo,

descartar as mudanças demográficas e nos padrões de consumo contemporâneas

dos processos de gentrificação estudados.

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Em trabalhos mais recentes, Smith procurou apontar uma suposta passagem

da gentrificação de questão pontual para um projeto sistemático mundial. De acordo

com o autor, ele não buscava construir um paradigma através do modelo

estadunidense, mas apontar as formas pelas quais a gentrificação evoluiria no

sentido de uma estratégia crucial para as municipalidades em acordo com o setor

privado, ou seja, ressaltar uma nova combinação de poderes e práticas que alinharia

o mercado financeiro mundial com os promotores imobiliários e o comércio local,

sem desconsiderar as formas e dinâmicas particulares que o fenômeno assumiria

em cada localidade, fruto da constituição de seus espaços urbanos (SMITH, 2006).

Segundo Alvaro Pereira (2014), a expressão espacial da gentrificação

perderia aderência quando Smith começa a tratar o fenômeno como estratégia

global e generalizada, uma vez que a própria suposição de uma gentrificação

generalizada pelo tecido urbano contradiz a hipótese do rent-gap, força motriz de

sua teoria. No entanto, o autor vai rebater esse argumento ao chamar atenção para

a questão da centralidade na teoria de Smith – ao não tratar a centralidade como

uma realidade estática, Smith ressaltava a constante redefinição das escalas

geográficas e a interação entre elas, fazendo com que os limites do que configuram

os centros das cidades não possam ser definidos por pontos fixos e imutáveis.

Assim, Pereira conclui, com base no trabalho do autor,

Nesse sentido, é plausível supor que, ao caracterizar a gentrificação como um fenômeno generalizado, Smith não tenha julgado tratar-se de um processo que atinja o tecido urbano em sua totalidade, nem de uma onda que se propague aleatoriamente, mas sim de uma prática que não está confinada aos centros tradicionais, manifestando-se num universo territorial mais abrangente e redefinindo ao longo de seu próprio curso a escala daquilo que é tido como centro urbano. A metáfora da “fronteira urbana”

reforça esse entendimento. (PEREIRA, 2014, p. 314).

O autor ainda aponta uma lacuna nos trabalhos de Smith no que diz respeito

a limitação de sua teoria em relação a identificação das causas que condicionam a

variação do potencial de renda. Aqui, o autor faz uma conciliação do trabalho de

Smith, focado na oferta, com as perspectivas culturais, focadas na demanda,

chamando atenção para a ressignificação simbólica de certas áreas da cidade, em

um processo de atribuição de valor econômico à efervescência cultural (PEREIRA,

2014)

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De outra perspectiva, Janoschka, Sequera e Salinas (2013) se debruçaram

sobre a temática da gentrificação pensando América Latina e Espanha em

contraponto aos casos anglo-saxões. Entendendo o fenômeno como a renovação de

áreas centrais com a expulsão dos mais pobres, os autores chamam atenção para a

diferença simbólica e material do fenômeno nessas regiões, colocando a

necessidade de um maior entendimento do que se chama de gentrificação a partir

de um diálogo crítico com o discurso anglofônico.

Assim fazendo, os autores pretendiam um estudo pós-colonial que buscasse

descentralizar o conhecimento sobre a gentrificação contemporânea, apontando a

complexidade e singularidade das experiências latinas e espanholas. Ou seja, trata-

se de um trabalho que envolve inovações e ressignificações do termo, disputa no

campo da produção de conhecimento, visando o desenvolvimento de uma teoria

urbana crítica.

Pensar a gentrificação a partir dessas localidades diz respeito a posição na

qual o fenômeno passa a ser visto, pautada nas especificidades do campo científico

latino-americano e espanhol. Os autores ressaltam a importância do reconhecimento

das especificidades das estruturas políticas, econômicas, sociais e administrativas

que influenciam a implantação da urbanização neoliberal e da gentrificação.

De maneira breve, o trabalho parte da ideia de que nos últimos 20 anos as

políticas neoliberais teriam produzido um modelo específico de urbanização na

América Latina, com a fragmentação e privatização da esfera urbana. O modo de

governança neoliberal nessas áreas expressaria, então, a especificidade do modo

de acumulação do capital urbano, nesse sentido, também os processos de

gentrificação seriam marcados pela trajetória da dependência latino-americana.

Os autores apontam a emergência do debate na América Latina, na qual a

discussão em torno da gentrificação é feita nas margens, enquanto o mainstream

continua a apontar os sucessos das “revitalizações” e “reabilitações” urbanas. Além

disso, a discussão do tema por aqui ainda seria feita, em grande parte, por

pesquisadores dos países do Norte, assim, termos como enobrecimento ou

elitização começariam a aparecer na literatura em uma tentativa de se diferenciar

dos parâmetros anglo-saxões.

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Buscando ressaltar a diversidade e particularidades que marcam o fenômeno

nos países latino-americanos, os autores pontuam alguns elementos centrais que

marcariam o fenômeno por aqui. A gentrificação simbólica seria uma primeira

perspectiva importante ao relacionar a herança arquitetônica dos centros das

cidades dos países latino-americanos com as dinâmicas de revalorização através de

sua ressignificação simbólica. Compreender a importância do comércio informal nos

países da América Latina também aparece como fator chave para entender as

políticas públicas que visam expulsar os vendedores informais das áreas centrais,

preparando simbolicamente os centros para a gentrificação.

Os autores também apontam a necessidade de inserir na análise os regimes

políticos supranacionais e transnacionais, como a UNESCO e seus programas

pretensamente neutros de desenvolvimento impostos aos países latinos, os

movimentos migratórios, a questão do turismo como transformador simbólico do

espaço urbano e mesmo as localidades diferentes as quais são aplicados todos

esses elementos devem ser pensados de maneira relacional, em um constante

movimento do olhar do local para o global.

Por fim, o surgimento de novos mercados imobiliários, seja através das

políticas de pacificação de favelas, dos diferentes programas de investimento em

melhoramentos urbanos e da própria agenda de megaeventos, aparece como

elemento fundamental para entender o fenômeno da gentrificação na América

Latina.

Ao colocar em relação todos esses elementos, os autores buscavam chamar

atenção para a gentrificação enquanto um fenômeno para além da questão

habitacional e de mercado imobiliário, envolvendo também a emergência de novas

relações de trabalho e um movimento mais amplo de ressignificação do espaço

público em termos de reestruturação social tendo por base princípios econômicos.

Há muito em comum entre essas perspectivas e muitas de suas indicações

podem nos ajudar a refletir sobre o contexto de transformações encontrado na favela

do Vidigal, uma vez que, mais do que concluir se podemos ou não falar em

gentrificação nesse caso, buscamos recursos para uma reflexão que possa nos

ajudar a apreender o sentido das transformações socioespaciais desse território.

Nesse sentido, a questão da valorização imobiliária, ressaltando o papel dos

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agentes imobiliários e do poder público, a dimensão de classe desses processos

contemporâneos de renovação urbana e a dimensão espacial, que flexibiliza a

noção de centralidade, são elementos presentes no debate da gentrificação que

podem nos ajudar a pensar o processo vivido na favela do Vidigal, como veremos no

próximo capítulo.

***

Ao longo desse capítulo nos dedicamos a refletir sobre um elemento

indispensável para compreensão das transformações socioespaciais vividas pelo

Vidigal hoje: a instalação da UPP. Construídas como territórios de violência pelos

discursos hegemônicos nas décadas anteriores – seja pelo Estado, pela grande

imprensa e pela própria academia – as favelas ficaram marcadas pelas narrativas do

tráfico de drogas e da criminalidade. Recuperar essa história foi fundamental para a

compreensão do surgimento da UPP como a grande solução para a segurança

pública carioca, legitimada, justamente, por esses discursos.

No momento em que o Rio de Janeiro despontava no mercado global de

cidades, a questão da segurança pública configurava sua maior fragilidade na

imagem vendida mundo a fora. A narrativa da violência precisava, então, ser

combatida e a ocupação das favelas por uma polícia de proximidade, com o objetivo

de levar a paz para territórios até então marcados pela “guerra”, surge como a

principal estratégia do poder público.

A partir da perspectiva da urbanização neoliberal, ancorada em uma nova

rodada de mercantilização da cidade, a UPP aparece não apenas como solução

para os territórios de favela em si, mas também como ativo de valorização imobiliária

dos bairros do entorno – consolidava-se ali a relação entre segurança e mercado,

tão comemorada pelas entidades do mercado imobiliário. A seletividade de sua

distribuição pelo território, coincidindo com as áreas mais ricas da cidade e com os

locais de concentração dos grandes investimentos atraídos pelos megaeventos

esportivos, confirma a tese da relação orgânica entre segurança e mercado sob a

perspectiva da neoliberalização.

O olhar para o Vidigal, ressaltando as particularidades de sua história, é

essencial para a compreensão das formas pelas quais as estratégias neoliberais se

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combinam com suas estruturas físicas, instituições de gestão e de regulação ali

herdadas. Em meio à imposição de um discurso que reduzia toda a vida na favela à

narrativa da violência, o Vidigal mantinha certas rotas de fuga, fruto de sua

localização e vista privilegiadas e uma série de inciativas culturais que marcaram

profundamente sua história – e que hoje vão sendo, pouco a pouco, transformadas

em ativos pelo mercado.

Por fim, foi apresentada a armadura teórica geral com a qual fomos a campo,

os princípios teóricos e hipóteses que estiveram guiando o olhar quando da

observação das dinâmicas atuais da favela do Vidigal, incluída aqui o debate a cerca

da gentrificação, hoje tão presente nos estudos urbanos sobre processos de

mercantilização de territórios populares, assim como a metodologia utilizada para tal.

No próximo capítulo chegamos ao Vidigal contemporâneo, aquele que

encontramos e vivenciamos em nosso trabalho de campo. Armados da perspectiva

histórica já realizada ao longo do trabalho, combinada com os instrumentos

analíticos apresentados, esperamos ter melhores condições de apreender o sentido

das transformações urbanas recentes do Vidigal, se estaríamos ou não vivenciando

tendências no sentido de uma descaracterização do território popular, não apenas

no Vidigal, mas nas favelas da zona sul no geral, representando, dessa forma, uma

das estratégias neoliberais adotadas na cidade do Rio de Janeiro de modo a

aprofundar os processos de mercantilização.

Ainda, partindo do pressuposto de que esse processo não ocorre sem

resistência, estaremos atentos as velhas e novas arenas de conflitos que se

configuram, tendo como principal elemento de disputa a mercantilização do território

e suas consequências na vida de todas e todos que ali vivem. Como já foi

ressaltado, acreditamos que o futuro do Vidigal dependerá da correlação de força

dos atores envolvidos, sendo essa uma disputa ainda sendo travada.

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4 O EMPREENDEDORISMO DITA O RITMO: A FAVELA DO VIDIGAL COMO

MERCADORIA

Faz sentido falar em urbanização neoliberal no Vidigal? Partindo da hipótese

de que o Rio de Janeiro, em sua forma contemporânea, pode ser considerada uma

cidade neoliberal, começamos a investigar as transformações socioespaciais na

favela do Vidigal a partir dessa perspectiva, buscando apreender o sentido dessas

transformações.

A recuperação histórica foi fundamental para que, agora, possamos avaliar as

formas pelas quais as estratégias neoliberais se combinam com o ambiente político-

cultural herdado. Ainda, a perspectiva da neoliberalização ofereceu uma importante

chave analítica para compreensão da UPP como política de segurança pública

inserida nesse contexto mais amplo da cidade e sua função na favela do Vidigal, em

particular.

A partir daqui, vamos nos debruçar de maneira mais cuidadosa sobre cada

ponto dessas transformações. De modo a facilitar a exposição e reflexão, o capítulo

será dividido com base nos elementos que configuram essa nova rodada de

mercantilização da cidade e de seus territórios: i) O processo de renovação urbana

do Vidigal; ii) Quem governa o Vidigal? Disputas em torno da gestão do território; iii)

Entre o clientelismo e o universalismo: para quem são as regras? e, por fim; iv) A

ressignificação simbólica do território.

4.1 O processo de renovação urbana do Vidigal

Interrogar as intervenções urbanas realizadas no território, sob a perspectiva

de um avanço das relações mercantis desenvolvidas ali, tem o objetivo de refletir

sobre o papel do Estado enquanto agente responsável por liberar novas porções do

território para exploração do mercado – seja através de mecanismos que apontem

no sentido de uma revalorização de espaços historicamente degradados, seja por

meios que possibilitem a valorização daqueles que estiveram às margens dessas

relações desde sua constituição, como seria o caso dos territórios de favela.

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Diferente de outras favelas da zona sul, como a Babilônia com o programa de

urbanização Morar Carioca Verde e o Cantagalo com o PAC Favelas, o Vidigal não

recebeu grandes obras de urbanização desde o fim das intervenções do Favela-

Bairro, em 1998. Depois de mais de uma década sem receber grandes

investimentos públicos, entre 2010 e 2015 foram realizadas importantes

intervenções na favela através da GEO-RIO66, órgão da Secretaria Municipal de

Obras responsável pela contenção de encostas. Nesse período, foram dois projetos

implementados, o primeiro viabilizado com recurso do município e o segundo

através de recursos do PAC, totalizando R$ 6,1 milhões em investimento.

De maneira geral, os projetos de contenção de encostas e redução de risco

(drenagem e barreira de impacto) seriam desenvolvidos em três áreas do Vidigal67,

duas delas ocupadas por moradias – as áreas conhecidas como Arvrão e Carlos

Duque. Na primeira, as obras foram concluídas e o Arvrão desclassificado enquanto

área de risco, já no segundo caso, o projeto previa a remoção total dos moradores,

apoiado em um auto de interdição para o local de 2003, suspenso por uma liminar

na justiça que impedia a derrubada das casas. Uma vez mais, os moradores da

Carlos Duque se organizaram e resistiram à remoção – como resultado, viram o

abandono do projeto para a área.

66

As informações relativas às intervenções da GEO-RIO foram obtidas em entrevista, no dia 5 de

março de 2016, com o geólogo Luiz José Brandão, responsável pelo estudo realizado para o Vidigal, e o engenheiro responsável pela obra, que não foi identificado. A entrevista foi concedida em resposta a um pedido de acesso à informação através da Lei Federal de Acesso à Informação nº 12.527/11. No total, foram enviados seis pedidos de informação para as secretarias municipais e apenas a GEO-Rio se disponibilizou para uma entrevista. 67

Existiria uma quarta área de risco dentro da favela, logo acima da Av. Niemeyer, prevista para

receber obras através da SMH. Apesar das inúmeras tentativas de solicitar informações junto a essa secretaria, não recebemos nenhuma resposta.

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Figura 14 - Localização das áreas Carlos Duque e Arvrão na favela do Vidigal

Fonte: Vidigal 100 Segredos / Reprodução do Facebook68

É interessante notar as diferentes consequências nesses dois casos, que, a

princípio, poderiam seguir caminhos muito semelhantes. O mapa acima mostra a

localização das duas áreas citadas – Carlos Duque e Arvrão. Como podemos notar,

ambas localizam-se nas partes altas do morro, garantindo o acesso à cobiçada vista

do Vidigal. A região da Carlos Duque possui fácil acesso através da Av. João

Goulart, principal via da favela, além de permitir um vista ampliada que alcança a

orla da praia de São Conrado, ativo muito valorizado pelo mercado que sobe o

morro.

Fora de risco, a região do Arvrão é, atualmente, a área mais cobiçada da

favela, onde se concentram alguns dos mais destacados entre os novos

empreendimentos: o primeiro hostel construído na favela, Alto Vidigal; o hotel do

badalado arquiteto Hélio Pellegrino, Mirante do Arvrão; o bar mais procurado pelo

público de fora da favela, Bar da Laje; além da Escola de Design do artista plástico

68

Disponível em:

https://www.facebook.com/552321321459957/photos/a.552384028120353.147767.552321321459957/1254393497919399/?type=3&theater. Acesso em 29 abr. 2016.

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Vik Muniz. No entorno, outros pequenos comércios que vivem na órbita do público

atraído por esses novos empreendimentos.

Já a região conhecida como Carlos Duque, também muito procurada por

compradores na sequencia da instalação da UPP69, se organizou frente à ameaça

de remoção70 e acabou sem a realização das obras, permanecendo como área de

risco. De acordo com Luiz Brandão, geólogo responsável pelo estudo da área, a

remoção dos moradores para a realização das obras seria uma opção menos

custosa e mais rápida, entretanto, com a repercussão do caso, a prefeitura teria

voltado atrás e optado por realizar as obras preservando os moradores.

Ainda segundo Brandão, a resistência dos moradores teria resultado no

atraso das obras, imobilizadas uma vez que o contrato com a Caixa Econômica

Federal, gestora do recurso que vinha através do PAC, vinculava a efetivação da

remoção para a liberação desse recurso. Findado o contrato, os moradores da

região da Carlos Duque ficaram sem as obras de contenção em sua localidade – e,

ao que parece, também sem a procura ostensiva de compradores. Atualmente,

apesar de já ter um projeto pronto para a região, a GEO-RIO alega não possuir

recursos para sua implementação.

As intervenções municipais na favela não se restringem as grandes

transformações em seu ambiente físico, mas também em melhorias na infraestrutura

e no oferecimento de serviços públicos, nesse sentido, algumas ações foram

realizadas no território sob o programa Rio+Social, presente nas áreas pacificadas.

De acordo com o site do programa71, desde 2009, diversas secretarias passaram a

atuar na favela: os programas Banho de Luz e Vamos Iluminar, através da

Secretaria Municipal de Conservação – Rio Luz, foram responsáveis pela

reformulação do sistema de iluminação pública do Vidigal, instalação de novos

pontos de luz e pela manutenção do sistema; o programa Mutirão de

Reflorestamento, da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, tem o objetivo de

recrutar plantadores na comunidade para plantar mudas em área degradas; a 69

Remoção, turismo e indignação no Vidigal. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=pbuCkl5Hyy8. Acesso em 29 abr. 2016. 70

Do chão não passa: 40 casas ameaçadas no Vidigal. Portal RioOnWatch, 7 dez. 2012. Disponível

em: http://rioonwatch.org.br/?p=4340. Acesso em 29 abr. 2016. 71

Todas as informações relativas aos programas implementados através do Rio+Social estão

disponíveis em: http://www.riomaissocial.org/territorios/vidigal/?secao=acoes. Acesso em 1 maio 2016.

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Defesa Civil instalou na favela o Sistema Alerta Rio, que aciona sirenes sempre que

o índice pluviométrico atinge níveis alarmantes, alertando a população para se dirigir

a um ponto de apoio.

A Secretaria Municipal de Esporte e Lazer foi responsável pela reforma da

Vila Olímpica do Vidigal, construída no âmbito do programa Favela-Bairro, e

atualmente utiliza seu espaço para o desenvolvimento do programa Rio em forma

Olímpica, com a realização de atividades esportivas, culturais e de lazer para idosos

e crianças.

As escolas municipais Almirante Tamandaré e Djalma Maranhão, localizadas

na favela, receberam o programa Escolas do Amanhã, através da Secretaria

Municipal de Educação, que desenvolve nas escolas um conjunto de ações

envolvendo educação, saúde, assistência social, desporto, arte e cultura.

Em relação a programas de distribuição de renda, a Secretaria Municipal de

Assistência Social oferece o Cartão Família Carioca como complementação da

renda para as famílias em situação de extrema pobreza (renda per capita abaixo de

R$ 108) beneficiadas pelo programa federal Bolsa Família, a secretaria também faz

o acompanhamento dessas famílias através do programa Família Carioca em Casa.

Por fim, a Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil implantou o programa

Estratégia Saúde da Família no Centro Municipal de Saúde Dr. Rodolpho Perissé,

localizado no Vidigal, com três equipes de Saúde da Família e três de Saúde Bucal,

que atendem as famílias da favela.

É importante lembrar que essas intervenções fazem parte do conjunto de

ações previsto pelo programa Rio+Social para as áreas pacificadas, no entanto, sua

efetividade e a qualidade da atuação não podem ser medidas sem o diálogo com os

moradores do território. Além disso, as informações disponibilizadas nos portais da

prefeitura relativas aos programas citados possuem um caráter promocional, com

pouco ou nenhum dado relativo a orçamento, cronograma de implementação e

atuação, equipe de profissionais envolvida ou mesmo um canal de diálogo onde

essas questões pudessem ser respondidas72.

72

Foram enviados pedidos de informação às secretarias, através da Lei Federal de Acesso à

Informação nº 12.527/2011, quanto ao orçamento desses programas e outras possíveis intervenções

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Já pelo governo do Estado, existe uma previsão de investimentos para o

Vidigal através do programa Saneamento nas Comunidades Pacificadas, a ser

viabilizado por meio de parceria público-privada, que “levará, por meio de parceria

com empresas, serviços de água e esgoto para essas regiões”73. Sobre o programa:

Nas comunidades pacificadas o setor privado ficará responsável por implantar, operar e atuar na área de forma total (água e esgoto). A Cedae fornecerá a água à empresa, que será a responsável por distribuir, operar e comercializar entre os clientes da comunidade. Da arrecadação das tarifas, 5% serão destinados a ações sociais, e outros 5% em investimentos institucionais para a comunidade. O programa é uma resposta do Estado ao cidadão, mostrando que está presente e ativo nas comunidades, preocupado com a saúde pública, com o meio ambiente e com a cidadania.

74

O programa pode ser lido como mais um reflexo da neoliberalização da

política urbana que se territorializa nas favelas. O aprofundamento da privatização

dos serviços urbanos, por meio das parcerias público-privada, já havia sido

anunciado por Harvey (1996) como elemento fundamental do empreendedorismo

urbano, que organiza a política urbana municipal do Rio de Janeiro desde o fim da

década de 1990.

Esse tipo de parceria entre o setor público e o privado, apesar de

historicamente presente na gestão pública no país, ganha novos contornos a partir

do Estatuto da Cidade, em 2001, responsável por criar novos instrumentos para a

concretização dessa parceria e, principalmente, após a promulgação da Lei das

Parcerias Público-Privadas, nº11.079, em 2004. De acordo com Fix (2000), a

associação entre o Estado e o capital passa a ser justificada pela crise fiscal que

inviabilizaria o financiamento das obras urbanas pelo Estado, passando este ao

papel exclusivo de “promotor” que deve apenas “criar condições para facilitar a

instalação de infraestrutura pela própria iniciativa privada.” (FIX, 2000, p. 10). Isso

nos parece ainda mais significativo quando mobilizado para o investimento em

serviços públicos básicos, como água e saneamento, que passam a se tornar mais

um setor de investimento para o capital em sua busca pelo lucro.

realizadas na favela, entretanto, dos poucos retornos, nenhum nos ofereceu as informações públicas solicitadas. 73

As informações foram obtidas através de solicitação por meio da Lei Federal de Acesso à

Informação, nº 12.527. As respostas a cerca das intervenções do Estado na favela do Vidigal, a partir de 2009, nos foram enviadas por e-mail. 74

Idem.

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Contudo, logo após o anúncio do programa pelo governo do Estado, a

associação de moradores convocou uma reunião “Contra a Privatização da Cedae”

para discutir as consequências do programa caso seja realmente efetivado. No dia

17 de fevereiro de 2016, na Pracinha do Vidigal, líderes comunitários da recém-

criada União Comunitária, organização que reúne alguns presidentes de associação

de moradores de favelas da cidade, já se reuniam para dar início a discussão.

Apesar da divulgação pelo Facebook e faixas distribuídas pelas ruas convidando

para a reunião, o evento foi bastante esvaziado. Estavam presentes na mesa

montada para o debate, além do presidente e diretores da associação do Vidigal,

representantes das favelas Santa Marta, Tabajaras, Prazeres e Fallet.

A preocupação dos lideres comunitários é resultado da experiência já vivida

por muitos deles com o serviço de luz prestado pela Light nas favelas, empresa

responsável pela distribuição de energia elétrica no Rio de Janeiro. Após a

regularização do serviço, na sequencia da entrada da UPP nos territórios,

moradores de diversas localidades começaram a receber contas de luz com valores

exorbitantes, muito acima de sua capacidade de pagamento e mesmo de consumo,

dado o tamanho das casas e a quantidade de eletrodomésticos, com valores que

chegaram à R$ 3.456,0075. Segundo relatado por diversos moradores, os problemas

começaram após a instalação dos medidores digitais, que dificultam a realização de

gatos na rede elétrica76. Paulo Cypa77, morador e professor da Vila Olímpica do

Vidigal, reconhece a necessidade de reeducar os moradores de favela,

acostumados ao uso desmedido de eletricidade por conta dos “gatos”:

Tem a desinformação do morador, o cara gastava muito mesmo, tem ar-condicionado, tem chuveiro, ele não sabe o consumo, às vezes a casa dele tá interligada com um monte de outras coisas que ele não sabe [...] precisa que as pessoas comecem a se reeducar na questão do consumo.

Entretanto, Cypa também se preocupa com as cobranças absurdas da Light:

“com o advento da UPP, a Light voltou pra cobrar o prejuízo dela de décadas”.

75

Conta de luz sobe cerca de 1000% e assusta moradores de favelas do Rio. Portal G1, 19 maio

2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/05/conta-de-luz-sobe-cerca-de-1000-e-assusta-moradores-de-favelas-do-rio.html. Acesso em 28 mai. 2016. 76

Medidores eletrônicos de luz causam polemicas em favelas do Rio. Carta Capital, 29 fev. 2016. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/especiais/infraestrutura/medidores-eletronicos-de-luz-causam-polemica-em-favelas-do-rio. Acesso em 28 mai. 2016. 77

Depoimento dado à autora em 20 mai. 2016.

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Parece-nos significativa a relação imediata feita pelos moradores entre a

qualidade do serviço prestado pela Light, empresa privada, com a preocupação do

que possa vir a acontecer no futuro com a privatização do serviço prestado pela

Cedae. No debate realizado no Vidigal, o discurso girou em torno da noção de direito

– direto ao acesso a um serviço público e de qualidade, passível de demandas e

reclamações por parte dos cidadãos. A Light, ao contrário, atualmente consegue

desligar a luz das casas inadimplentes direto da central, sem precisar ir até o local,

já em relação às contas exorbitantes, a orientação é pagar primeiro e reclamar

depois.

Além da necessidade de questionar as formas pelas quais essas intervenções

foram – e estão sendo – viabilizadas, é preciso observar, também, quem tem se

apropriado de seus benefícios. Em conversas informais, alguns moradores se

queixam quanto ao fato da UPP ter trazido um fluxo muito maior de visitantes para a

favela, sem que tenha havido uma melhoria compatível na infraestrutura capaz de

recebê-los sem causar transtornos para aqueles que moram ali. Também afirmam

que muitas das melhorias trazidas com a UPP, como a própria sensação de

segurança responsável por esse aumento no fluxo de pessoas circulando, não se

refletiu da mesma maneira no cotidiano dos moradores, que continuam sem

conseguir pegar um táxi para a favela – só sobem com os “gringos” – além de

permanecerem com os endereços taxados como “área de risco” em muitas lojas que

se negam a fazer entregas no local. Ainda, o aumento no custo de vida seria outra

consequência desse processo de abertura do Vidigal para o turismo sem medidas

que garantissem a segurança de seus moradores e os meios para continuar vivendo

em seu território.

Isso também fica muito evidente na percepção dos moradores do Vidigal em

relação à presença do Estado na favela, embora existam hoje diversos programas

do poder público atuando no território através do Rio+Social, a UPP é a presença

mais sentida pelos moradores, sempre mencionada quando interrogados sobre as

mudanças recentes vividas ali. Nesse sentido, a transformação mais significativa

lembrada pelos entrevistados diz respeito ao fim do porte ostensivo de armas pelo

tráfico de drogas que circula na favela, ponto consensual entre os moradores.

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Apesar das significativas intervenções realizadas no Vidigal nesse período

pós-UPP, chama atenção a inexistência de um amplo programa de urbanização de

favela, como o Morar Carioca ou PAC Favelas. Ao partirmos da hipótese da

urbanização neoliberal, em que um dos pilares desse processo de aprofundamento

da mercantilização dos territórios estaria nas mudanças no ambiente físico,

esperávamos encontrar maiores investidas nesse sentido.

A configuração espacial é um elemento central para a boa circulação e

acumulação de capital, alçando a produção do espaço urbano como uma atividade

fundamental do capitalismo em sua fase neoliberal (HARVEY, 2005). Por isso, ao

olhar para a favela do Vidigal, território historicamente desvalorizado, marcado pela

precariedade de sua urbanidade, esperava-se que a entrada do mercado ali viesse

condicionada a maior intervenção do poder público sobre seu ambiente físico.

Contudo, além de ser este um processo recente e ainda em andamento –

logo, passível de receber grandes obras infraestruturais em um futuro próximo –

parece-nos que o aprofundamento da mercantilização do território do Vidigal é um

processo protagonizado pelo próprio mercado, que se desenvolve sem a

necessidade de um estimulo maior por parte do Estado, diferente do que vem

acontecendo em outras favelas da zona sul já citadas, nas quais transformações

urbanas mais profundas estão sendo implementadas pelo poder público de forma a

atrair e facilitar a entrada de novos agentes econômicos.

Ou ainda, podemos nos questionar se um amplo programa de urbanização,

implementado e gerido pelo poder público, seria efetivamente de interesse do

mercado, afinal, programas como o Morar Carioca, em que está prevista a

construção de habitações populares em caso de necessidade de reassentamento,

acabam por garantir aos moradores certa segurança em relação à permanência na

favela urbanizada, além de impor mais restrições e controle às novas construções.

Nesse sentido, poderíamos entender a falta de um programa de urbanização como

sendo uma facilidade a mais para o mercado que sobe o morro, uma vez que

intervenções pulverizadas, como as que acontecem hoje no Vidigal, podem ser mais

facilmente apreendidas pelo mercado do que quando atreladas a um programa

amplo de urbanização – ou seja, talvez não haja esse tipo de programa na favela do

Vidigal por ser, justamente ela, a mais cobiçada pelo mercado.

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Por outro lado, a persistência de certos problemas de infraestrutura urbana

podem se configurar como verdadeiras barreiras aos processos de mercantilização,

como a questão da mobilidade no Vidigal. A principal via de acesso da favela,

responsável por garantir o deslocamento de seus quase 10 mil habitantes, está

completamente saturada – o transito intenso de pedestres, carros, motos, kombis e

caminhões faz da av. João Goulart palco de inúmeras confusões cotidianas.

Figura 15 - Av. João Goulart, Vidigal

Fonte: Patrícia Monteiro, 18/05/15.

Além de ser a porta de entrada e saída do Vidigal para automóveis, é na av.

João Goulart que se concentra boa parte do comércio da favela, especialmente

mercados, farmácias, bares e restaurantes, assim, além da circulação de moradores

e turistas, a avenida também possui um movimento intenso de caminhões de carga

e descarga, sem contar a fila de carros estacionados em quase toda sua extensão.

Devido aos inúmeros contratempos decorrentes dessa dificuldade de

circulação, a associação de moradores recorreu à vizinha favela da Rocinha, que

sob a gestão de Sidney Ferreira na Região Administrativa, já havia implementado

novas regras de circulação e estacionamento que teriam impactado de maneira

positiva sobre o transito na favela. Assim, no dia 25 de novembro de 2015, a

associação de moradores do Vidigal realizou uma reunião na Pracinha para discutir

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as medidas que poderiam ser adotadas ali visando à melhoria da circulação. Apesar

de terem sido convidados representantes da Secretaria de Ordem Pública (SEOP) e

da Secretaria Municipal de Transportes (SMT), apenas o administrador da RA da

Rocinha estava presente.

Apresentando os resultados da experiência na Rocinha, Sidney Ferreira

sugeriu propostas no sentido de restringir o horário para carga e descarga de

mercadorias, para o estacionamento na Avenida João Goulart, a proibição de

“guardar vagas” com cones ou qualquer outro objeto que impede o estacionamento

nos locais permitidos e, por fim, uma operação de recolhimento de carcaças, dado o

grande número de carros abandonados na favela. As medidas teriam como objetivo

garantir maior fluidez ao transito de carros na favela, além de trazer maior segurança

aos pedestres.

Apesar de terem sido apresentadas como sugestões, o presidente da

associação de moradores do Vidigal, Marcelo da Silva, anunciou que as medidas

começariam a ser aplicadas na segunda-feira seguinte. Os pontos polêmicos ficaram

em torno das restrições de estacionamento na favela, ponto bastante reclamado,

inclusive, pelos motoristas das kombis, que não teriam um lugar para estacioná-las,

mas também por muitos presentes que apontavam o grande número de moradores

que, atualmente, possuem carro de uso particular. Essa questão se agrava uma vez

que a favela se localiza no meio da Avenida Niemeyer, via estreita, de transito

intenso e sem local de estacionamento – os moradores do Vidigal teriam que

começar a deixar seus carros no Leblon antes de voltar pra casa. Sem conseguir

chegar a um consenso, a reunião terminou apenas com a operação de retirada das

carcaças agendada.

Essa questão é especialmente importante por se configurar em um possível

obstáculo concreto ao avanço da mercantilização do território do Vidigal, uma vez

que essas barreiras físicas à circulação de pessoas e mercadorias podem trazer

prejuízos ou demandar maiores investimentos do mercado que sobe o morro. No

entanto, esbarramos aqui em um ponto contraditório dessa relação, pois, se de um

lado, boa parte dos novos empreendedores do Vidigal utilizam a própria estrutura

física da favela como um ativo central de seu “produto” – seja pela hospedagem,

almoço ou pelos drinks e festas na exótica favela carioca – por outro lado, essa

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mesma estrutura pode se configurar em uma barreira para efetivação de sua

consolidação. Por se tratar de um processo ainda muito recente e em curso, são

muito mais as questões do que as respostas que nos auxiliam na reflexão em torno

do processo.

4.2 Quem governa o Vidigal? Disputas em torno da gestão do território

Um dos principais elementos caracterizadores da favela é a informalidade –

do solo e das construções. Enquanto um território que se constitui nas margens da

cidade formal, construído pelos seus próprios habitantes, as favelas emergem como

espaços onde também a gestão foi sempre objeto de disputa, na qual, muitas vezes,

o Estado saiu perdendo.

Apesar de “ainda estar longe de ser um bairro com o Leblon”78, o Vidigal

começa a incorporar alguns de seus elementos. Chama atenção o número de

imobiliárias e corretores imobiliários que passaram a atuar no seu território após a

instalação da UPP, além dos inúmeros anúncios de venda e aluguel de casas pelos

postes, algumas placas de imobiliárias começaram a dividir a paisagem. Todavia,

sua atuação ainda se restringe à dita área formal do Vidigal.

Em um território majoritariamente informal, a associação de moradores

exerce, também, uma função de cartório no qual as transações de compra e venda

são registradas. De maneira geral, as negociações são feitas diretamente entre

comprador e vendedor, que posteriormente recorrem à associação para o registro e

transferência da propriedade do imóvel – nessa transação, a associação fica com

5% do valor acordado. Contudo, a associação de moradores tem cada vez menos

participação nessas transações. Marcelo da Silva reconhece que, atualmente, são

muitas as compras de imóveis que não passam pela associação, ou, quando

passam, esse registro é feito muito tempo depois de efetivada a compra. Os motivos

são diversos, desde o aumento na frequência dessas transações após a instalação

da UPP, com pessoas comprando casas na favela para revender ou alugar, até a

presença maior de agentes imobiliários. Mesmo que as imobiliárias se concentrem

78

Fala de André Gosi, em depoimento dado à autora em 18 mar. 2016.

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na dita área formal da favela, seu impacto pode ser sentido por todo o território do

Vidigal como mais um elemento de sua valorização.

Nesse sentido, a própria diversidade social dos diferentes espaços que

constituem o território do “Vidigal” é uma questão que merece ser considerada.

Denomina-se Vidigal três diferentes áreas: (i) a favela, com maior adensamento de

casas e menor infraestrutura; (ii) o bairro, constituído por sua área formal, fora do

traçado da AEIS, onde se concentram os prédios e casas na subida para o morro;

ou ainda (iii) a Estrada do Vidigal, localizada à beira da Avenida Niemeyer, área de

alto padrão, com imóveis que ultrapassam a casa do milhão de reais79. Ao longo do

trabalho de campo e das entrevistas não percebemos o acionamento do nome

“Vidigal” para demarcar estas diferenciações socioespaciais, muito pelo contrário, ao

se referir ao Vidigal, os agentes parecem acionar a ideia de um único território,

mesmo se reconhecendo estas diferenças, como se o pertencimento ao mesmo

estivesse associado a um ativo positivo. Isto pode ser bem ilustrado no caso dos

hostels, que vendem a “experiência” de se hospedar na favela. Tudo leva a crer que

nem sempre foi assim, e que, em um passado recente, buscava-se identificar cada

um dos diferentes territórios: bairro do Vidigal, favela do Vidigal, Estrada do Vidigal.

Figura 16 - Anúncios de imóveis à venda no Vidigal

Fonte: ZAP Imóveis80

79

Os imóveis à venda que se localizam na área formal ou na Estrada do Vidigal podem ser

encontrados no portal Zap Imóveis, disponível em: http://www.zapimoveis.com.br/venda/imoveis/rj+rio-de-janeiro+zona-sul+vidigal/. Acesso em 20 jun. 2016. 80

Idem.

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99

Essa questão é importante tendo em vista que, apesar da proximidade

territorial, essas três porções do território sustentam dinâmicas muito distintas. A

Estrada do Vidigal é o extremo oposto da favela de mesmo nome, trata-se de uma

única rua, aos pés do morro e paralela à Av. Niemeyer, com grandes mansões e

nenhum comércio, excetuando aquelas que, também aqui, funcionam como hostels.

Mesmo assim, a circulação de pessoas é muito baixa, o pouco movimento fica por

conta da entrada e saída de carros das garagens.

Já a relação entre o Vidigal favela e bairro, contíguos em uma mesma

avenida, se dá de maneira mais porosa. Segundo Marcelo da Silva81, até o fim dos

anos 1990, existiam duas associações de moradores do Vidigal – uma para a favela

e outra para “as casas que pagam IPTU”. Mesmo que os limites físicos sempre

tenham sido muito difíceis de traçar, os moradores da área formal do bairro

reivindicaram por muitos anos essa distinção entre favela e área formal, até o

fortalecimento do tráfico de drogas submeter toda a área ao seu poder, quando,

então, só restou a associação da área de favela. Desde então, é uma mesma

associação para todo o Vidigal – com exceção da Estrada do Vidigal, que mantém

sua própria associação de moradores.

Contudo, também através da porosidade dessas fronteiras outras histórias

foram sendo criadas. Dessa proximidade territorial emergiu o ideário da proximidade

entre as classes, tão presente nas falas sobre o Vidigal. Segundo André Gosi82, no

fim da década de 1970 teriam começado a chegar os migrantes, tanto nordestinos,

que ocupavam a parte alta do morro, quanto aqueles que vinham dos bairros do

asfalto e ocupavam os prédios no início da av. João Goulart. Daí teria surgido a

possibilidade do encontro, do contato com pessoas “formadoras de opinião”, da

cultura, exiliados políticos que teriam ido morar no Vidigal por ser mais barato, mas,

ao mesmo tempo, próximo do Leblon e São Conrado. André se lembra dos

encontros na prainha do Vidigal, onde as “três camadas” sentavam lado a lado,

desde as “pessoas com mais dificuldade, a classe média e a classe alta”. Para

André, esses moradores que chegaram na década de 1970 encontram uma

população receptiva, “viviam como família” durante toda a década de 1980, sendo o

Nós do Morro um bom exemplo dos frutos desse encontro, que permitiu ao Vidigal

81

Depoimento dado à autora em 2 fev. 2016. 82

Depoimento dado à autora em 18 mar. 2016.

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um desenvolvimento de forma mais positiva, com mais proximidade com a cultura

“que te mostra o mundo com outros olhares”. Para André, “o melhor do Vidigal foi

nos anos 1980, melhor do que é hoje”83.

A lembrança é compartilhada pelo atual dono do restaurante Chez Yoyo,

localizado na Avenida João Goulart, em frente aos conhecidos “prédios dos artistas”,

três prédios de classe média alta, um ao lado do outro, com a vista para o mar

garantida. Yoyo84 afirma ter conhecido o Vidigal ainda em 1977, quando voltava do

exílio político junto com outros amigos, nesse período, muitos deles teriam ido morar

no Vidigal, tanto pela história de cultura do local, quanto pelo preço mais acessível.

Ainda segundo Yoyo, os “prédios dos artistas” teriam sido projetados para receber a

chamada “esquerda festiva”, na verdade, para Yoyo, a construção dos prédios teria

sido uma forma de afastá-los da burguesia que morava aos pés do morro. Já teriam

passado por ali importantes artistas nacionais como Caetano Veloso, Gal Costa,

José Wilker, Milton Nascimento, Lima Duarte e outros. Depois de rodar o mundo

com a esposa, Yoyo voltou a morar no Vidigal há um ano, quando então abriram o

restaurante, que conta com cardápio português e inglês. Para Yoyo, o Vidigal “é o

melhor lugar do Rio de Janeiro”.

Como vimos, a chegada da década de 1990 trouxe também a

profissionalização do tráfico de drogas ilícitas, tornando esses encontros cada vez

mais difíceis. Permaneceu, todavia, o imaginário de uma favela onde o rico e o

pobre convivem através de fronteiras porosas, transpassadas pela cultura da

música, do teatro e da arte, tão presentes no imaginário que constitui a história do

Vidigal. Atualmente, toda essa história é revivida e invocada por novos discursos

que buscam fazer dela um elemento singular da favela, passível de ser mobilizado

como um de seus atrativos, como veremos adiante.

Retornando a questão da gestão do território, ou territórios, a reflexão tem

como pano de fundo a pergunta: Quem decide? Do ponto de vista da gestão do

território do Vidigal, podemos destacar alguns atores que estiveram presentes de

maneira mais recorrente nessa disputa, desde a associação de moradores, o tráfico

83

Idem. 84

Depoimento dado à autora em 8 jul. 2016.

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de drogas, organizações comunitárias e o Estado, principalmente por meio da

polícia.

Ao recuperar a história de construção e consolidação da favela do Vidigal, é

possível perceber a importância da associação de moradores, especialmente nos

momentos que envolveram disputas diretas com o Estado. Enquanto organização

legítima de representação dos moradores85, a associação do Vidigal teve uma

atuação indispensável nos períodos em que viveram a ameaça de remoção – em

todas as vezes que os moradores do Vidigal enfrentaram a possibilidade do despejo,

foi por meio da associação que se deu a organização e mobilização dos moradores

e apoiadores, inclusive para levar o conflito para além do morro, recorrendo a outras

entidades, como a Pastoral de Favelas, que, como vimos, também teve importante

papel nessa batalha.

A partir dos anos 1990, as facções que disputavam o tráfico de drogas ilícitas

na cidade começam a fortalecer o seu domínio nos territórios de favela – no Vidigal

não foi diferente. Por muitos anos, o território esteve na mão do Comando Vermelho,

responsável por muitas das manchetes de jornal vistas anteriormente. Sobre esse

período, é consenso entre os moradores falar em “guerra” para se referir ao grau de

violência imposto ao cotidiano naqueles dias. André Gosi, diretor cultural da

associação de moradores, lembra: “a violência do poder paralelo também é terrível,

então a gente vem sofrendo com essa violência ao longo dos anos, há muitos anos,

aí você tem que ficar cego, surdo e mudo.”86. A gestão do território era feita aqui por

meio da força e da disseminação do medo, a partir do qual a grande maioria dos

moradores preferia o silêncio a qualquer tipo de disputa e confrontação.

Segundo o atual presidente da associação de moradores do Vidigal, Marcelo

da Silva87, a própria associação era dominada pelo tráfico de drogas, que colocava

na diretoria pessoas ligadas a eles ou, no mínimo, pessoas que não disputariam de

fato a gestão do território com o tráfico. No comércio de drogas ilícitas, onde

diversas facções são concorrentes, a disputa pelos pontos de tráfico, ou seja, por

85

As associações de moradores são constituídas pelos próprios moradores das localidades, através da criação de um estatuto, que deve ser reconhecido em cartório. As associações de moradores de favelas do Rio de Janeiro são, em sua maioria, organizadas através da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ). 86

Depoimento dado à autora em 18 mar. 2016. 87

Depoimento dado à autora em 2 fev. 2016.

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territórios, é elemento central no processo, logo, comandar a gestão das favelas,

decidir sobre as dinâmicas que conformavam esses territórios, era decisivo para a

manutenção do poder das facções.

Daí as dificuldades enfrentadas pela atual gestão de mobilizar os moradores

para além de questões pontuais e urgentes, Marcelo sempre ressalta o

esvaziamento das reuniões chamadas pela associação, de como os encontros

mensais do início da gestão deram lugar a reuniões esporádicas, normalmente

relacionadas a alguma demanda específica. Em sua visão, essa resistência estaria

em muito atrelada a esse passado recente no qual a associação de moradores se

misturava com o tráfico de drogas.

Não à toa, a ocupação policial permanente aparece como solução para um

Estado que tenta assumir o domínio a cerca das decisões sobre esses territórios.

Uma vez instalada a unidade de polícia pacificadora, sua atuação se estende para

muito além da segurança pública. A centralidade que a UPP assumiu na gestão do

Vidigal é notável, sempre presente nos debates e eventos realizados na favela como

um importante agente de gestão do território, sua capilaridade é expressa nas

próprias funções exercidas pelos policiais, muitas vezes atuando fora do escopo da

segurança pública.

Além do controle sobre as festas e eventos realizados no espaço público da

favela, tal como acontece em todas aquelas ocupadas pela UPP, o Vidigal parece

ter uma particularidade – um PM é o representante dos mototaxistas. Segundo nos

relatou o subcomandante da UPP, PM Berbat, e o presidente da associação

Marcelo, os mototaxistas, apesar de fundamentais para a dinâmica de transportes

na favela, manteriam algumas ligações com o tráfico através do transporte de

drogas. Com a pacificação, a diretoria da associação de moradores, também

recente, delegou à UPP a função de gerir essa categoria.

Do ponto de vista da associação, chegou-se a essa decisão tendo em vista o

histórico de envolvimento das outras gestões da associação com o tráfico, assim,

teriam achado melhor transferir essa função aos próprios policiais, mantendo a

associação distante dessa relação.

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Do ponto de vista da UPP, pode ser estratégico manter o controle sobre os

mototaxistas, pois, dessa forma, conseguiriam controlar uma atividade que não é

formalmente regularizada na cidade. Seria uma tentativa de criar uma ordem interna,

com o tabelamento do valor, por exemplo, mas não apenas. Segundo o PM Deivid88,

representante dos mototaxistas e responsável pela liberação das festas e eventos

nos espaços públicos da favela, a UPP controla e fiscaliza todos os mototaxis,

cadastra seus documentos e os do veículo para averiguação de pendências e da

“índole” dos mototaxistas. As reuniões do representante policial e os mototaxistas

acontecem uma vez por mês, com a presença do presidente da associação de

moradores. Também são feitas reuniões mensais abertas para todos os moradores

do Vidigal com a UPP.

As kombis, também fundamentais para a circulação interna da favela, são

legalizadas pela Secretaria Municipal de Transportes desde 2013, segundo Deivid,

resultado da cobrança do próprio comandante da UPP e, por isso, não passam pelo

controle dos policiais. Hoje, são 17 kombis que circulam pelo Vidigal fazendo o

transporte de passageiros.

Em relação aos eventos, os processos podem variar conforme o local de sua

realização. Para aqueles realizados nos espaços públicos da favela, os

organizadores precisam pedir a autorização da UPP, apresentando toda a proposta

do evento. Já as festas fechadas, que cobram ingressos de entrada, a exigência fica

restrita a notificação à UPP e a apresentação de documentos e alvarás requeridos

como em qualquer outra parte da cidade. No entanto, essa regra não se aplica para

o hotel e bares legalizados, que já possuem alvará de funcionamento, logo, não

precisam passar pelo crivo da UPP.

Perguntado sobre a relação da UPP com as demais secretarias e órgãos

públicos, Deivid foi enfático: “tudo que acontece dentro da comunidade o

comandante tá ciente”. A partir da demanda dos moradores, o comandante surge

como responsável, inclusive, por acionar e cobrar ações desses outros órgãos, além

de acompanhar as intervenções realizadas na favela. De acordo com o policial

Berbat, como braço do Estado e através de sua boa relação com a prefeitura, a UPP

88

Depoimento dado à autora no dia 18 mar. 2016.

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surge como ator central de intermediação na comunicação entre os moradores e o

Estado.

E não para por aí. Segundo o policial Deivid, os moradores acabam

recorrendo a UPP para quase todos os conflitos do cotidiano, desde reclamações de

barulho dos vizinhos às denúncias de obras irregulares, competência do POUSO.

Essa centralidade da UPP na vida da favela pode ser notada, inclusive, pelo intenso

movimento de entrada e saída de moradores na base da polícia. Nas palavras do

subcomandante Berbat89: “acaba que a gente virou, entre aspas, um governante

daqui”.

A afirmação soa ainda mais verdadeira quando o PM Deivid nos relata sobre

policiais que trabalham apenas em projetos sociais na favela, dando reforço escolar

dentro das escolas, aulas de música e esporte – o próprio Deivid é professor de jiu-

jitsu no Vidigal, ministra suas aulas em uma sala no 2º andar da associação de

moradores. Mas alguns desses policiais não exercem qualquer função relativa à

segurança pública, não oficialmente, mas tão somente atividades sociais com

crianças e adultos da comunidade – sem, contudo, deixarem de ser policiais.

É preciso entender a importância dessa relação, uma vez que se trata da

expressão da capilaridade do controle e domínio da UPP sobre a vida dos

moradores do Vidigal, os policiais estão dentro das escolas da favela, dentro da

associação de moradores, dentro da casa de muitos deles, controlando a rotina

desses moradores por meio de encontros semanais que não são mais mediados

pela farda e pelas armas desses agentes públicos de segurança.

Quando questionado sobre o papel da UPP frente às transformações vividas

hoje pelo Vidigal, Deivid reafirmou a relação direta entre a ocupação policial e a

abertura de novos comércios, entendendo a segurança como elemento fundamental

para seu funcionamento e para atração dos visitantes de fora da favela. Nesse

sentido, lembrou, inclusive, que o comandante escolheu um policial que fala inglês

para patrulhar a região de entrada da trilha do morro Dois Irmãos, com a tarefa de

auxiliar também os turistas estrangeiros. Entretanto, Deivid apontou como

consequência negativa o aumento nos custos de vida, refletido no valor dos imóveis

e dos aluguéis: “já ouvi mototaxi falando que teve que sair daqui porque não 89

Depoimento dado à autora em 17 fev. 2016.

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conseguia pagar aluguel, teve que morar em outro lugar, próximo, mas com custo-

benefício melhor”.

Em relação ao tráfico de drogas, Deivid é categórico ao afirmar que “hoje, o

tráfico no Vidigal é praticamente zero”. Para ambos os policiais entrevistados, o

sucesso do combate ao tráfico ali seria fruto da gestão do comandante da UPP, de

seu modo de trabalhar fundamentado na proximidade com os moradores. Resultado

disso são as baixas apreensões de drogas, esporádicas e em pequenas

quantidades, a última apreensão de armas já teria quase dois anos.

No entanto, em outubro de 2015, moradores gravaram um intenso tiroteio no

Vidigal, que chegou a ser noticiado pela imprensa90, na ocasião, o comando da UPP

negou o conflito. Segundo o subcomandante Berbat, o tiroteio aconteceu quando

traficantes vindos da Rocinha encontraram uma patrulha de policiais da UPP e

reagiram, mas, segundo Berbat, isso não configuraria uma tentativa de invasão por

traficantes da favela vizinha, apenas um incidente. A UPP segue sendo apresentada

no Vidigal como um programa que deu certo.

Esse aumento do poder da polícia no cotidiano da favela não é visto com

bons olhos por todos os moradores. Um representante da associação de

moradores91 foi enfático ao afirmar que o trabalho da UPP é o da segurança pública,

“tudo que acontece a UPP tem que resolver? Não, a comunidade tem que entender

que a UPP é segurança pública, tudo que tem a ver com segurança pública é UPP”,

e completa:

Eu particularmente sou contra a UPP, eu acho que é uma militarização e na realidade você não deixa de ser uma ditadura, que aí o regime deles se dá por uma comunicação ditatorial, né, a maneira deles de lidarem com as pessoas, entendeu? Eles são truculentos, e eles acham que é essa a maneira, isso aí vem do regime militar, isso aí é enraizado neles, que é um erro danado.

Para ele, as demandas comunitárias da favela devem ser respondidas pela

associação de moradores, entendida por ele como o órgão legítimo de gestão do

território do Vidigal: “a gente faz um trabalho de micro prefeitura”. A atual direção

afirma manter constante diálogo com os órgãos da prefeitura, apresentando as 90

Moradores relatam intenso tiroteio no Vidigal, zona sul do Rio. Portal G1, 29 out. 2015. Disponível

em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/moradores-relatam-intenso-tiroteio-no-vidigal-zona-sul-do-rio.html. Acesso em 13 jun. 2016. 91

Dada a delicadeza do assunto, optamos por preservar sua identidade. Depoimento dado à autora

em 18 mar. 2016.

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muitas demandas da favela e cobrando ações efetivas. Acredita que as

necessidades são as mesmas desde o Favela-Bairro, uma vez que, sem nenhum

controle ou planejamento, as favelas nunca teriam parado de crescer, se expandindo

sem o acompanhamento de melhorias em infraestrutura e serviços básicos.

A associação de moradores também mantém uma equipe de mediação de

conflito atuando há dois anos, normalmente procurada para resolver questões

domésticas, como briga entre vizinhos ou casais. O modelo é bem parecido com o

modelo de mediação de conflito da UPP – e era esse o objetivo. De acordo com

André Gosi92, diretor cultural da associação de moradores, a associação trabalha

buscando a cada dia ganhar mais legitimidade ente aos moradores, por isso, estão

sempre correndo para resolver os problemas que aparecem na favela, desde uma

complicação na luz, um problema na calçada ou entre vizinhos, para que, assim, não

se precise mais recorrer a UPP para todo tipo de demanda – a gestão do território

do Vidigal está em constante disputa.

No entanto, isso não significa que haja um antagonismo entre eles. A

associação procura fazer seu trabalho em constante parceria com os policiais da

UPP, por isso, estes estão sempre representados nos debates realizados pela

associação na Pracinha, não importa qual seja o tema. Ao longo do trabalho de

campo, estivemos algumas vezes nesses encontros e a figura do policial é presença

garantida, desde os debates sobre gentrificação à questão da mobilidade. Para

André: “o que faz a UPP dar certo é a comunidade abraçar isso, abraçar a

pacificação”, mas o objetivo é que a polícia tenha cada vez menos espaço, que seja

uma transformação que envolva os moradores, até “virar um bairro normal, um bairro

como o Leblon”93.

Outra instituição pública que, teoricamente, teria a atribuição de gestão do

território do Vidigal é o POUSO – Posto de Orientação Urbanística e Social. Criado

ainda no âmbito do programa Favela-Bairro, os postos foram instalados nas favelas

beneficiadas pelo programa com a atribuição de promover a regularidade urbanística

92

Depoimento dado à autora em 18 mar. 2016. 93

Depoimento dado à autora em 18 mar. 2016.

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do território, indo desde a preservação das áreas públicas, a fiscalização das

construções dentro das normas previstas pela AEIS, até a emissão do habite-se94.

Em 1999 o POUSO era instalado no Vidigal. Segundo José Airton95,

engenheiro responsável pelo órgão na favela, o ambiente de trabalho ali sempre foi

extremamente precário. Atualmente, a equipe é formada por cinco pessoas: José

Airton, três arquitetas e um agente comunitário que se concentram em uma pequena

sala no prédio comercial logo no início da Av. João Goulart. A sala não possui

internet ou sequer cadeira para todos eles.

Entre idas e vindas, José Airton atende o Vidigal desde o início da atuação do

POUSO no território, no entanto, afirma que o trabalho pouco avançou nesse

período. Desde os anos 2000 trabalham para finalizar o reconhecimento dos

logradouros que, segundo o engenheiro, depois de um longo trabalho junto aos

moradores para identificação das ruas tal como elas são reconhecidas na favela,

dentro da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) esse processo foi

completamente desrespeitado e nomes aleatórios de frutas foram atribuídos às ruas,

em um processo que gerou a revolta dos moradores e dos próprios funcionários do

POUSO atuando no campo, o que acabou impedindo a finalização do processo.

José Airton também ressaltou a dificuldade de executar o trabalho com uma

equipe tão reduzida, uma vez que boa parte de sua atividade se dá no porta a porta,

em um trabalho de fiscalização e regularização dos imóveis para a concessão do

habite-se. Nesse sentido, entra em conflito com a associação de moradores que,

paralelamente – e anteriormente – ao trabalho do POUSO, também atua liberando

obras e reformas na favela mediante o pagamento de uma taxa à associação. O

problema, de acordo com José Airton, é que nem sempre essas intervenções

aprovadas pela associação estão em consonância com as regulações previstas para

a área.

De maneira geral, as pessoas que iniciam obras e reformas na favela devem

procurar o POUSO para abrir um processo de vistoria para que a obra seja

regularizada – etapa raramente cumprida. Quando procurados, a equipe do POUSO

94

Mais informações disponíveis em: http://www.rio.rj.gov.br/web/smu/exibeconteudo?article-id=139912. Acesso em 20 jun. 2016. 95

Depoimento dado à autora em 25 jan. 2016.

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orienta sobre os parâmetros urbanísticos, mas não possui responsabilidade técnica

sobre a obra, podendo exercer apenas o poder de embargo quando esses

parâmetros não são cumpridos. Uma vez que a obra é embargada, o morador entra

com recurso no próprio POUSO e, caso o embargo não seja respeitado, é aplicada

uma multa e o pedido de licença de obra é indeferido, ficando a cargo da SEOP

fazer a demolição da obra. Entretanto, mesmo o embargo parece ter pouca

efetividade, segundo André Gosi96, apesar da favela não comportar mais nenhuma

construção, novas casas nunca pararam de ser construídas na favela.

No mais, a equipe deveria circular pelo território fazendo as vistorias e

orientações, além da realização de atividades educativas referentes à regularização

urbanística e seus benefícios – para José Airton, a valorização da casa através do

habite-se é um dos argumentos que utiliza junto aos moradores. Na prática, com

uma capacidade restrita de atuação, o POUSO responde apenas as demandas que

chegam até eles, seja pelos moradores que procuram regularizar suas casas ou por

meio das denúncias. Como vimos, foi por meio de denúncias que o POUSO

embargou as obras do hotel Mirante do Arvrão e da Escola de Design Vik Muniz,

entretanto, os tramites para regularização, nesse caso, não passaram pelo posto do

POUSO.

Ao longo desse tópico, buscamos, brevemente, mapear os principais agentes

– novos e velhos – responsáveis pela gestão do Vidigal. O Estado parece ter tido

pouca atuação na gestão desse território ao longo de toda historia de construção e

consolidação da favela, posição essa ocupada, majoritariamente, pela associação

de moradores e pelo tráfico de drogas. No entanto, com o avanço da urbanização

neoliberal sobre a cidade do Rio de Janeiro, e da reestruturação urbana da qual ela

vem acompanhada, o Estado entra nesse território de maneira contundente por meio

da ocupação militar, assumindo um papel central em sua gestão. Nesse contexto, o

processo de neoliberalização se desenvolve na favela com o apoio do Estado, que

atua de forma a garantir a difusão das regras impessoais do mercado para um

território até então atravessado por outras formas de gestão e regulação.

Assim, além de poder dizer “quem” é o principal agente da gestão do

território, nos parecia fundamental saber também “como” essa gestão é feita. O

96

Depoimento dado à autora em 18 mar. 2016.

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protagonismo do braço armado do Estado, ancorado em um discurso de conciliação,

parece ter o objetivo de garantir uma sensação de segurança para aqueles que são

de fora da favela. O discurso da pacificação, nas favelas da zona sul

particularmente, tem como objetivo principal permitir que elas sejam exploradas pelo

mercado como mais um ativo para sua reprodução – seja pela valorização

imobiliária do entorno, dos imóveis de dentro da favela, ou mesmo enquanto um

produto em si. Como veremos mais a frente, a ressignificação simbólica da favela do

Vidigal atua tanto para fora – como produto ‘favela’ vendido nos canais de televisão,

nas roupas de marca, nas festas com ingressos caros – quanto para dentro, na

venda de uma “experiência” a ser consumida. Dessa forma, também podemos nos

questionar se as favelas da zona sul não se tornam, elas próprias, um ativo da

valorização do entorno não apenas pela “pacificação”, mas também por toda a

marca “cool” e “descolada” que elas acrescentam aos bairros nas quais estão

localizadas.

4.3 Entre o clientelismo e o universalismo: para quem são as regras?

Theodore, Peck e Brenner (2009) vão falar de duas tendências fundamentais

na reestruturação neoliberal: de um lado, o desmantelamento de formas

institucionais e a desregulação contraditória da economia, de outro, a criação de

novas modalidades de regulação institucional e gestão estatal, em um processo de

destruição criativa de instituições e marcos regulatórios.

À primeira vista, se entendidas como uma “fórmula” de reestruturação, esse

argumento não se aplica ao Vidigal. Desde a declaração de parte do território como

AEIS, em 1998, e a publicação do decreto que define os padrões de uso e ocupação

do solo para aquela área, nenhuma nova legislação foi publicada, ou seja, não

existiria qualquer indício de mudança nos marcos regulatório no sentido de

beneficiar maior acesso ao mercado nos territórios de favela.

No entanto, mais do que pensar estritamente no movimento de destruição-

criação, aqui nos parece mais útil pensar em termos de aplicação-não aplicação das

regulações ou da gestão discriminada de marcos regulatórios que, ao contrário,

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deveriam ser aplicados de maneira uniforme sobre dado território, garantindo a

imparcialidade das regras.

A princípio, a delimitação de Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) tem

como objetivo reconhecer as particularidades dos assentamentos urbanos informais,

permitindo sua inserção na política urbana municipal por outra via que não a da

remoção. Formulada no âmbito da redemocratização, a AEIS faz parte dos

instrumentos urbanísticos pensados a partir da ideia que apontava a necessidade de

reconhecer e legalizar a “cidade real”, flexibilizando os parâmetros urbanísticos nos

territórios construídos às margens da urbanização formal (ROLNIK, 2000). Com isso,

buscava-se a redução do déficit habitacional e a melhoria da infraestrutura urbana

para a população de baixa-renda, prioritariamente.

Decretada em 1998, a AEIS do Vidigal (Lei nº 2704/1998) só recebeu os

parâmetros urbanísticos em 2011, através do Decreto 33352/2011, de uso e

ocupação do solo. O decreto traz a delimitação precisa da AEIS, de suas áreas

públicas e privadas, o número máximo de pavimentos permitidos (máximo de 3), as

áreas impróprias para ocupação e o formulário para o licenciamento de obras e a

concessão de habite-se. Ainda, o decreto proíbe novas construções que não sejam

de iniciativa do próprio poder público, quando da necessidade de reassentamento ou

obras de urbanização, ou mesmo reformas que envolvam a construção de novas

unidades habitacionais no imóvel – o objetivo é regularizar, mas também impedir a

expansão da favela.

Para entender a importância das regulações e o impacto de sua gestão,

achamos interessante iniciar com uma história muito conhecida e lembrada entre os

moradores: a compra de casas no Vidigal pelo alemão Rolf Glaser.

Já em 2008, antes mesmo do anúncio do programa das UPPs, começou a

circular pela imprensa a notícia de um alemão que estava comprando casas no

morro do Vidigal, 17 até aquele momento, situadas em sua maioria na área do

Arvrão97. As compras eram feitas pelo empresário por meio de sua ONG Vidigal

Feliz e tinha o objetivo de montar um verdadeiro complexo turístico na favela. Em

97

Alemão aposta em pousada em favela do Rio. O Estado de S. Paulo, 22 nov. 2008. Disponível em:

http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,alemao-aposta-em-pousada-em-favela-do-rio,282132. Acesso em 24 maio 2016.

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2009, já eram cerca de 40 casas sob a propriedade de Rolf, que também passou a

morar no local, na parte baixa da favela. Em entrevista ao jornal, Rolf descreveu seu

objetivo:

Quero criar infraestrutura que faça o turista gastar dinheiro no Vidigal, para empregar pessoas e fazer com que a comunidade se desenvolva. Não gosto dessa coisa de tour em favela, onde o visitante entra, vê a miséria e vai embora.

98

Na mesma matéria, Rolf afirmava ter optado pelo Vidigal por sua vista, que

pode ser apreciada de quase todas as casas, mas que concentraria os

investimentos no Arvrão, parte alta do morro, onde seriam construídos o hotel e

casas para turistas. Para o restante da favela, falava na construção de lavanderias,

padarias, ateliê de moda, hostel, loja de sucos e bistrô, com isso, esperava que as

próprias famílias residentes na favela começassem a adaptar suas casas para

também receber os visitantes. Segundo o próprio Rolf, o investimento total teria sido

de R$ 1,1 milhão e esperava que as obras ficassem prontas até o fim daquele ano,

contando, para isso, com o apoio de um de seus arquitetos, Hélio Pellegrino:

Esse projeto vai quebrar o paradigma de casa grande e senzala no Rio. Vou

seguir o exemplo do que foi feito em Positano, na Itália, cuja topografia é

parecida. Comprei madeira de demolição e me inspirei no centro antigo do

Rio.99

No entanto, ainda no fim de 2009, o projeto foi encerrado e Rolf começou a

vender os imóveis recém-adquiridos. Segundo o próprio empresário, o principal

motivo da desistência seriam as dificuldades colocadas pela prefeitura, que teria

embargado as obras, afirmando, inclusive, que algumas das casas seriam de

propriedade da Cedae100.

Outro ator importante daquele momento é o Gerônimo101, morador do Vidigal

e o agente imobiliário local responsável por fazer as negociações para Rolf junto aos

moradores. Segundo Gerônimo, em três meses o alemão teria comprado 47 casas,

com planos de fazer do Vidigal uma “favela modelo”. Naquele momento, as casas

98

Alemão monta complexo turístico no Vidigal. O Estado de S. Paulo, 28 fev. 2009. Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,alemao-monta-complexo-turistico-no-vidigal,331501. Acesso em 24 maio 2016. 99

Idem. 100

Empresário desiste de projeto no Vidigal. O Estado de S. Paulo, 28 out. 2009. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,empresario-desiste-de-projeto-no-vidigal,457501. Acesso em 24 maio 2016. 101

Depoimento dado à autora em 31 mar. 2016.

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variavam entre R$ 5 a 20 mil. Quando as obras começaram, Eduardo Paes (PMDB)

entrava na prefeitura do Rio de Janeiro, não demorou muito para o novo prefeito

começar a colocar impedimentos às ambições do alemão e as obras serem

embargadas.

Marcelo da Silva, atual presidente da associação de moradores do Vidigal,

também se recorda da história, mas afirma que o empresário também encontrou

certa resistência do tráfico de drogas, que chegou inclusive a invadir algumas das

casas do alemão. Gerônimo também afirmou que esse foi o principal motivo para a

desistência do projeto por Rolf, pois quando suas casas começaram a ser invadidas

por homens do tráfico, o alemão foi aconselhado a vender para que não fosse

envolvido em acusações de tráfico de drogas.

A mesma história é contada por muitos moradores que se lembram do alemão

e relembram do caso ao fazer um paralelo com as transformações vividas

atualmente na favela. Apesar de não ter saído do papel, ou pelo menos não como

imaginado por Rolf, até hoje a associação de moradores do Vidigal possui o projeto

idealizado por ele.

As informações que temos sobre esse caso são as que podem ser

encontradas na imprensa e através dos relatos dos moradores, por isso, é difícil

saber com certeza quais foram os principais motivos que frustraram a instalação do

complexo turístico no Vidigal naquele momento, ou mesmo quais foram os

argumentos da prefeitura para o embargo das obras. Contudo, é interessante notar

que as construções foram feitas antes do decreto que define os padrões urbanísticos

da AEIS, também antes da instalação da UPP na favela. Por isso, a pergunta aqui é:

o que mudou, do ponto de vista da regulação, depois da instalação da UPP?

Mais uma vez, a UPP aparece como ponto de inflexão para compreender as

transformações socioespaciais vividas pelo Vidigal. Logo após a pacificação da

favela, novos empreendimentos começaram a se instalar ali, principalmente hostels,

bares e restaurantes, em sua maioria, voltados para atrair e atender os mesmos

turistas esperados por Rolf Glaser.

Apesar da mudança no contexto, alguns atores são os mesmos que

compartilharam a aspiração do empresário alemão naquele momento e acabaram

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dando prosseguimento aos seus planos, mesmo que, agora, de forma fragmentada.

Gerônimo é uma das principais figuras dessa história, desde o início dos anos 2000,

“quando a maré ainda era meio braba aqui”, procura investidores que queiram

aplicar seu dinheiro em casas ou negócios no Vidigal, foi assim que acabou

trabalhando com Rolf nas compras das casas e abrindo uma pequena imobiliária na

favela em 2007.

No entanto, seus negócios começam a decolar quando o projeto do alemão é

retirado de cena – sob sua responsabilidade ficou a venda das 47 casas. Ele explica

sua forma de trabalhar:

Rolf colocava um preço, ‘Gerônimo eu quero R$ 50 mil’, se eu vendesse por R$ 70 mil era meu, se eu vendesse por R$ 80 mil era meu, se eu vendesse por R$ 55 mil era meu. Então eu queria valorizar o máximo possível pra poder ganhar o máximo possível (...) se eu pego esse anel com você a R$ 10 eu não posso te dar R$ 9,99, eu tenho que te dar R$ 10. Agora, se amanhã você souber que eu vendi esse anel por R$ 100 e te dei R$ 10, eu não fiz nada de errado com você.

102

Foi a partir dos ganhos nessas transações que começou a fazer seus próprios

investimentos na favela – e que adquiriu certa fama entre os moradores: “as

pessoas às vezes ficaram entendendo que eu participei de alguma coisa errada”. A

maioria das casas foi vendida para estrangeiros, o momento já não era mais de

“guerra” e o início do programa da UPP com a previsão de instalação no Vidigal já

começavam a valorizar os imóveis na favela. Atualmente, Gerônimo é dono de uma

fábrica de gelo, um hostel, restaurante de comida japonesa e um recém-construído

flat com um bar e espaço para festas na laje.

Gerônimo vê o Vidigal como um condomínio mal administrado, mas mais

seguro que o restante da cidade103. Mesmo frente a tantas transformações, não vê

risco no Vidigal deixar de ser um território popular, para ele, as pessoas que estão

investindo ali teriam “muito conhecimento” e trabalham para o crescimento da favela,

com isso, os próprios moradores estariam fazendo melhorias em suas casas,

investindo em novos comércios e contribuindo para fazer do Vidigal “uma favela

modelo”. Ainda, para Gerônimo, todo esse movimento de novas pessoas, comércios

e serviços na favela funciona como uma espécie de barreira contra a volta do

domínio do tráfico de drogas, mesmo que o projeto da UPP seja encerrado. 102

Idem. 103

Na época da entrevista, Gerônimo estava concorrendo à presidência da associação de moradores

do Vidigal. As eleições aconteceram em junho e a chapa atual permaneceu na gestão.

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Outra figura que esteve envolvida no projeto de Rolf e atualmente também

mantém negócios no Vidigal é o arquiteto Hélio Pellegrino. Então responsável por

alguns dos projetos previstos pelo alemão, acabou comprando uma das casas

situadas no Arvrão junto com o empresário Antonio Rodrigues, dono da rede de

bares Belmonte. Segundo matéria da ADEMI/RJ, os dois teriam investido cerca de

R$ 1,5 milhão na construção do hotel Mirante do Arvrão, de dois andares, com um

bar e 11 quartos104.

No entanto, o hotel também enfrentou o embargo de suas obras. De acordo

com o engenheiro responsável pelo POUSO do Vidigal, José Airton105, o motivo teria

sido a falta da licença de obra, o que resulta no embargo e encaminhamento do

caso para a Secretaria Municipal de Urbanismo. Segundo o engenheiro, “a entrada

da UPP fortalece a vinda do “bacana” que vem, faz obra e acha que por ser favela

não vai ser incomodado por prefeitura, que não precisa se preocupar com água, luz”.

Mais uma vez ressaltando a precariedade da estrutura do POUSO para o bom

acompanhamento das obras na favela, afirmou que nesses casos de obras de

pessoas de fora, com maior poder aquisitivo e rede de contatos, é possível perceber

uma celeridade no processo, inclusive passando por cima de algumas burocracias, o

que nunca é possível nos casos dos moradores. Para a obra do hotel, Hélio

Pellegrino teria conseguido a licença “por cima”.

José Airton ainda chama atenção para o fato do Arvrão ser a localidade do

Vidigal onde mais se concentram obras embargadas, onde se localizam as “obras

especulativas”, de pessoas de fora da favela. Desde 2007, período em que o

engenheiro começou a atender o Vidigal, foram cerca de 200 obras embargadas em

toda a favela, em sua maioria, por se tratar de obras novas – entram nesse rol o Bar

da Laje e a Escola de Design do artista plástico Vik Muniz. No entanto, o decreto de

uso e ocupação do solo acaba deixando brechas, uma vez que proíbe novas

construções no sentido de criação de solo, mas ao permitir reformas, abre a

possibilidade de derrubar o imóvel para a construção de um novo no mesmo local.

Dessa forma, a paisagem urbana da favela do Vidigal, ao menos em algumas

porções desse território, tem se alterado de maneira significativa.

104

Vidigal terá hotel de charme cinco estrelas. ADEMI/RJ, 9 maio 2012. Disponível em: http://www.ademi.org.br/article.php3?id_article=47980. Acesso em: 24 maio 2016. 105

Depoimento dado à autora em 25 jan. 2016.

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De maneira geral, o que essas histórias nos contam é que a pretensa difusão

de um novo padrão de relação entre Estado, mercado e sociedade, fundado na

impessoalidade e em um maior controle do poder público por meio de mecanismos

democráticos, a gramática política que Edson Nunes (2007) chamou de

“universalismo de procedimentos”, não teria sido efetivado na favela do Vidigal.

A princípio, a regulamentação da AEIS, aliada a atuação do POUSO,

apontaria no sentido de garantir essa difusão do universalismo de procedimentos em

termos de regulamentação urbanística na favela, definindo, de maneira clara e

transparente, as regras para construção e reformas na favela, os procedimentos

para a regularização e as sanções previstas em caso de descumprimento.

Segundo o atual Plano Diretor do Rio de Janeiro (2011), artigo 207, todo

território demarcado como Área de Especial Interesse Social demanda um plano de

urbanização, construído com a participação da sociedade civil, que contemple as

diretrizes, índices e parâmetros urbanísticos para o uso e ocupação do solo, um

diagnóstico do território e da população, projetos e intervenções urbanísticas

necessárias para infraestruturação da área, instrumentos aplicáveis para a

regularização fundiária, formas de participação da população na implementação e

gestão das intervenções, formas de integração dos diferentes agentes públicos

atuantes, fontes de recursos, atividade de geração de emprego e renda e, por fim,

um plano de ação social106. Apesar de sua demarcação como AEIS desde 1998,

esse plano nunca foi feito no Vidigal.

Assim, com a ausência do plano de urbanização – e os vazios e brechas

deixados pelo decreto de uso e ocupação do solo, única diretriz de desenvolvimento

urbano para a favela – as regras deixam de ser transparentes, permitindo a

manutenção de relações clientelistas, com negociações individualizadas que, no

geral, beneficiam a apropriação do território pelo mercado.

106

Disponível em: http://smaonline.rio.rj.gov.br/legis_consulta/36170Lei%20Compl%20111_2011.pdf.

Acesso em 27 ago. 2016.

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4.4 A ressignificação simbólica do Vidigal

A ressignificação simbólica do Vidigal passa por uma combinação de práticas

e discursos que apontam para a emergência de novas formas de ver e viver naquele

território, devendo ser entendida a partir de sua relação com os demais elementos

das transformações socioespaciais vividas pela favela. Recentemente, todo esse

processo passou a ser chamado de “gentrificação”, inclusive, por aqueles que mais

têm sentido seus efeitos, ou seja, os moradores da favela do Vidigal.

No primeiro semestre de 2014, a associação de moradores do Vidigal, junto a

outras organizações que atuam no território107, realizaram um ciclo de debates108

com o objetivo de pensar o futuro da favela frente as grandes transformações que

estão enfrentando. Os temas dos quatro encontros foram: (i) especulação imobiliária

e o aumento dos preços no Vidigal; (ii) que Vidigal você quer no futuro?; (iii) os

novos empreendedores: o que os novos empresários pretendem pra comunidade?;

(iv) O poder público tem a palavra: o que o poder público pretende para o Vidigal?.

Realizados uma vez por mês, os encontros conseguiram mobilizar um grande

número de moradores interessados em discutir as questões propostas. Foram feitas

desde apresentações históricas e mais acadêmicas sobre o processo de construção

das favelas como locais de moradia acessíveis aos trabalhadores, até aquelas

baseadas na própria experiência cotidiana da favela, que tenta traduzir as mudanças

recentes que passam a ser sentidas. Nos dois primeiros encontros, o debate girou

em torno das consequências decorrentes do aumento de estrangeiros e pessoas de

fora visitando e morando na favela, sendo destacados pontos positivos e negativos

desse processo. Todavia, o ponto central do debate girou em torno do aumento dos

custos de vida no local, uma consequência desse processo que tem afetado,

notadamente, aqueles que moram de aluguel109.

Nos dois últimos encontros, o debate centrou-se nos atores “de fora” – os

novos comerciantes e o poder público. Apesar dos diversos convites enviados,

107

Estavam envolvidas na organização do evento: Fórum Intersetorial do Vidigal, Albergue da

Comunidade e Comunidades catalisadoras. 108

Vidigal debate gentrificação no primeiro “Fala Vidigal”. RioOnWatch, 31 mar. 2014. Disponível em:

http://rioonwatch.org.br/?p=10952. Acesso em 23 jun. 2016. 109

Mais informações no vídeo realizado pela organização do evento junto aos moradores: Fala Vidigal! Os moradores refletem sobre a gentrificação. 4 maio 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bdlrpTsIllE. Acesso em 23 jun. 2016.

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117

apenas dois dos “novos empreendedores” estiveram presentes: um dos sócios do

Hotel Mirante do Arvrão e o representante da Escola de Design Vik Muniz. Este

último concentrou sua fala em torno dos objetivos e expectativas para o projeto –

uma escola de arte e tecnologia para crianças, gratuita, autofinanciada e sem

patrocinadores externos – mas afirmou não estar seguro quanto a sua recepção

entre os moradores, chamando atenção para o episódio do embargo e de um

assalto à obra que teria acontecido recentemente. Já o sócio do luxuoso hotel

Mirante do Arvrão ressaltou o caráter “verde” do empreendimento e sua opção por

empregar, majoritariamente, moradores da favela.

Quando questionados sobre os possíveis impactos de seus empreendimentos

para o processo de gentrificação na favela, o representante de Vik Muniz afirmou

não ver como a escola poderia trazer impactos nesse sentido, já que se tratava de

um projeto educativo voltado para atender crianças e jovens moradores do Vidigal –

sem considerar, assim, o impacto midiático e simbólico trazido por uma escola

associada a um dos mais conhecidos artistas plásticos brasileiros contemporâneos.

O sócio do hotel, por sua vez, reconheceu que a UPP trazia mais segurança para

empreendedores externos e que isso teria um impacto nas dinâmicas da favela,

mas, ao mesmo tempo, também motivaria a abertura de novos comércios pelos

próprios moradores.

No entanto, assim que a fala foi aberta aos presentes, muitos moradores

criticaram os dois empreendimentos ali representados, estendendo seus

descontentamentos para além deles. As críticas foram no sentido de apontar o

impacto das obras dos novos empreendimentos para o entorno, o enorme fluxo de

pessoas atraído por esses empreendimentos e, especialmente, o tratamento

diferenciado que receberiam dos órgãos públicos frente aos moradores. De maneira

geral, estava colocada a desigualdade da distribuição dos bônus e ônus dessas

transformações.

Outra crítica recorrente foi em relação aos mototáxistas e os valores

diferenciados da passagem para moradores e turistas, que acaba privilegiando estes

últimos em detrimento dos primeiros. Segundo relatos de alguns moradores –

confirmados por nós em algumas cenas vividas em campo – desde que o número de

turistas na favela começou a crescer, especialmente após a instalação da UPP, os

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118

mototáxistas começaram a cobrar preços exorbitantes dos visitantes, principalmente

dos estrangeiros, variando entre R$ 10,00 e R$ 50,00 o trajeto que normalmente era

feito a R$ 3 para os moradores. Com a possibilidade de ganhar mais fazendo o

mesmo caminho, muitos dos mototáxistas passaram a privilegiar os turistas,

deixando moradores na volta do trabalho em longas filas de espera para voltar para

a casa. A situação ficava especialmente complicada aos finais de semana, com as

festas realizadas no Arvrão.

Outro ponto interessante desse encontro foi a disputa que se deu entre o

Vidigal ser considerado uma favela ou um bairro. Enquanto o sócio do hotel afirmava

ver o Vidigal como qualquer outro bairro da cidade, outros moradores reivindicavam

o termo favela, apontando as particularidades de seu território, principalmente suas

fragilidades.

Por fim, o último encontro abriu a fala para representantes do poder público.

Estavam presentes: POUSO, Rio+Social, UPP, Light, Guarda Municipal e a

Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. Foram feitos muitos

questionamentos em relação a uma suposta parcialidade da fiscalização do POUSO,

que beneficiaria os novos moradores, críticas à UPP pelo cerceamento dos espaços

de festas tradicionais da favela, reclamações do tráfego no Vidigal e das contas

exorbitantes da Light.

Refletindo sobre o encontro a partir do viés adotado nessa pesquisa, todo o

evento nos pareceu muito interessante, desde a escolha de gentrificação como

categoria capaz de dar conta das mudanças recentes que têm impactado o território

do Vidigal às discussões e questionamentos levantados pelos moradores, que

passaram por muitos dos pontos que são objeto de reflexão em nossa pesquisa.

Mesmo que a categoria gentrificação ainda seja mobilizada de forma um pouco

difusa, com certa confusão a cerca dos fenômenos que ela pretende nomear, nos

parece relevante a sua utilização como elemento chave de entendimento pelos

moradores.

Em artigo recente, Santos Junior e Novaes (2015), utilizam a categoria

gentrificação ao discorrer sobre alguns dos impactos territoriais do ajuste espacial

neoliberal na cidade do Rio de Janeiro. Para os autores, esse processo em curso na

cidade se concentraria, notadamente, em três regiões: Barra da Tijuca, Zona

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119

Portuária e Zona Sul. Esta última, região na qual se localiza e se relaciona o objeto

de estudo desse trabalho, o ajuste neoliberal estaria relacionado ao fortalecimento

de sua centralidade, tanto por meio da valorização do entorno das favelas, quanto

desses territórios favelados em si, especialmente de suas localizações privilegiadas,

capaz de atrair um público de maior poder aquisitivo. Não à toa, a escolha do Vidigal

para esse trabalho.

Centrando-se nas formas pelas quais o processo de urbanização neoliberal

se desenvolve na zona sul, os autores lançam mão do conceito de gentrificação, tal

como formulado nos trabalhos do geógrafo Neil Smith. Como visto anteriormente,

quatro elementos são fundamentais para caracterização dos processos de

gentrificação em territórios populares: i) a questão de classe, relacionada à mudança

dos detentores da terra urbana que passa por um processo de elitização, no qual

classes populares são substituídas por outras de maior poder aquisitivo; ii) o

diferencial da renda da terra, ou rent-gap, decorrente tanto das características

locacionais da terra, quanto pelo seu valor mais baixo frente a outras áreas centrais

da cidade; iii) a gentrificação como estratégia de renovação urbana, na qual o

Estado assume um papel central na medida em que cria as condições para a

atuação do mercado, seja por ajuda financeira ou por políticas públicas de

renovação urbana e, por fim; iv) a dimensão espacial, relacionada à generalização

da gentrificação, tanto no que diz respeito à sua ocorrência em várias cidades do

mundo, não mais restrita aos países centrais, mas também em termos de extensão

do fenômeno no território, ou seja, para além da reabilitação da moradia pela classe

média, a gentrificação estaria atuando, também, sobre todo um novo modo de vida,

envolvendo mudanças significativas nas áreas de lazer e consumo dos bairros

(SANTOS JUNIOR; NOVAES, 2015).

A partir desses elementos, vamos fazer um breve exercício de reflexão

pensando o caso das mudanças socioespaciais vividas pelo Vidigal buscando

identificar possíveis processos gentrificadores impulsionando essas transformações.

No que diz respeito à questão de classe, ou a substituição das classes populares por

aquelas de maior poder aquisitivo, é difícil mensurar seu impacto no Vidigal. Apesar

de ser uma fala constante dos moradores, não encontramos meios possíveis de

quantificar o número daqueles que já deixaram a favela, o porquê de terem saído e

por quem foram substituídos. Por outro lado, facilmente encontramos estrangeiros

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120

morando na favela e histórias de antigos moradores que saíram por não

conseguirem mais se sustentar ali, especialmente aqueles que moravam de aluguel.

Paulo Cypa110, morador e professor da Vila Olímpica do Vidigal, volta um

pouco na historia tentando chamar nossa atenção para a dimensão dessas

mudanças. De acordo com Cypa, a maior mudança estaria acontecendo na

população – do Largo do Santinho pra cima, estima que entre 70 e 80% dos

moradores sejam descendentes de nordestinos, isso porque, uma vez consolidada a

parte de baixo das favelas nos anos 1970 e 1980, as pessoas não queriam subir

para um local sem pavimentação e estrutura, assim, os nordestinos que migravam

em busca de trabalho, recém-chegados na cidade com pouco ou nenhum recurso,

foram se instalando por ali. O resultado disso poderia ser sentido, inclusive, na forma

de falar dos moradores dessa parte da favela, com gírias e termos diferentes dos

habituais entre os cariocas, exibindo as marcas dessa migração.

Com a entrada da UPP, esses moradores começaram a dividir a vizinhança

com pessoas vindas da Rússia, da Chechênia, da Espanha, que mal falam o

português, transformando os encontros e as vivências em um verdadeiro “choque

cultural”, que se reflete, inclusive, nas transformações arquitetônicas que começam

a ser percebidas na favela:

A gente vê muito vidro dentro da comunidade, nós temos uma janelinha de madeira onde o cara tem uma janelinha de blindex né?! Então, há uma nova cara, mas aí afasta um pouco aquele morador que é um cara mais simples, que é um cara mais humilde. A gente brinca com o seguinte: você quer assustar o pobre você põe porta de vidro, o estabelecimento que tem porta de vidro o cara fica reticente pra entrar, Casas Bahia não tem porta de vidro, Ponto Frio não tem porta de vidro, você botou porta de vidro você seleciona seu público e a gente tá vendo bastante isso aqui também.

111

A própria mudança arquitetônica surge como evidência do movimento de

chegada de novos moradores com maior poder aquisitivo, no entanto, frente à falta

de dados quantitativos desse processo, parece-nos complicado afirmar que

estaríamos vendo um processo de substituição de classes no território, assim,

parece mais interessante, nesse momento, falar em uma tendência à substituição de

classes populares por aquelas de maior poder aquisitivo.

110

Depoimento dado à autora em 20 mai. 2016. 111

Idem.

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121

O segundo elemento que caracterizaria o processo de gentrificação está

relacionado à teoria do rent-gap. Como visto anteriormente, o rent-gap se expressa

na diferença da renda obtida de determinada propriedade ou imóvel com a renda

que poderia ser obtida por meio de outro uso, ou seja, esse diferencial de renda

existe quando a diferença entre o uso atual e o uso potencial é suficientemente

grande para garantir o lucro através de novos investimentos na área. Pensando o

caso do Vidigal, André Gosi explica esse processo de maneira muito simples:

“Imagine que a cidade tá espremida, Leblon e Ipanema não se constrói mais nada,

nem Copacabana, zona sul, o cara não quer sair daqui de perto, aí vê um gancho

desse aqui, as pessoas vendendo, o cara compra né?” 112.

A princípio, aplicar a teoria do rent-gap para os territórios de favela esbarra

em uma primeira barreira histórica. Tendo sido elaborada a partir da experiência de

cidades dos países do Norte, o diferencial de renda seria fruto do movimento

histórico de abandono dos centros rumo aos subúrbios. O processo de

suburbanização vivido por muitas dessas cidades teve como consequência a

desvalorização das áreas centrais e sua ocupação pelas classes trabalhadoras.

Uma vez que os subúrbios se consolidam, esse processo é mais uma vez invertido –

para Smith, em decorrência, principalmente, do diferencial de renda – e os

investimentos voltam aos centros por meio de diferentes projetos de renovação

urbana. As favelas brasileiras, por sua vez, nunca foram territórios valorizados, ao

contrário, surgem nas margens da cidade formal – nas porções do território

desinteressantes para o mercado, a classe trabalhadora carioca fez sua morada,

com o olhar displicente, e conivente, do Estado.

No entanto, se pensarmos as favelas da zona sul em sua relação com o

entorno, um território altamente elitizado e saturado de construções, parece-nos

mais fácil compreender o movimento do mercado em direção às favelas situadas na

região. Neste contexto, as favelas da Zona Sul se caracterizam como espaços

desvalorizados, tanto em razão de serem territórios ocupados pelas classes

populares, como pela violência promovida pelo tráfico de drogas, promovendo

igualmente a desvalorização relativa dos espaços situados no seu entorno. As

favelas da Zona Sul se configurariam, assim, em territórios desvalorizados, com

112

Depoimento dado à autora em 18 mar. 2016.

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122

expressivo diferencial de renda em relação ao território da zona sul no qual se

situam, passíveis de serem apropriados e convertidos em ganhos imobiliários.

Como vimos, o avanço da urbanização neoliberal no Rio de Janeiro vem

muito impulsionada pela realização dos megaeventos esportivos na cidade, desde a

Copa do Mundo aos Jogos Olímpicos. Nesse contexto, grandes investimentos

nacionais e internacionais são atraídos para a cidade e, boa parte deles, absorvidos

na própria reestruturação urbana justificada em nome da preparação da cidade para

receber esses megaeventos (COMITÊ POPULAR..., 2015).

Assim, as favelas localizadas na zona sul, uma vez “pacificadas”, surgem

como territórios atrativos ao mercado, sendo possível vislumbrar um diferencial de

renda significativo na transformação de seu uso atual, enquanto local de moradia

para a classe trabalhadora, para o potencial, como mais um polo turístico na zona

sul da cidade. Isso é especialmente possível para o caso do Vidigal, com sua vista

para a orla das praias e um imaginário cultural e artístico com capacidade de dotar

esse território de especificidades que passam a ser contabilizadas como ativos de

sua própria valorização. Nas palavras de Pereira (2014), trata-se da “atribuição de

conteúdo econômico a elementos simbólicos presentes em determinados

fragmentos urbanos como fundamento da ativação de rendas potenciais latentes.”

(PEREIRA, 2014, pg. 309).

O terceiro elemento caracterizador dos processos de gentrificação está

relacionado ao papel central do Estado enquanto responsável por garantir os meios

de atuação do mercado. Nesse sentido, como buscamos mostrar ao longo do

trabalho, a UPP surge como elemento fundamental ao garantir a segurança

necessária capaz de atrair novos empreendedores e visitantes, assim como as

intervenções urbanas realizadas pelo poder público, também apropriadas pelo

mercado no sentido de otimizar suas condições de atuação dentro do território.

Apesar da dificuldade de mensurar os impactos dessas transformações em

termos de valorização imobiliária na favela do Vidigal, uma vez que não há registros

formais e acessíveis dessas transações, é possível nos aproximarmos desses dados

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123

ao olhar para os movimentos de valorização do bairro do Leblon e mesmo da área

formal do Vidigal (Tabela 1), também contabilizada pelo ZAP Imóveis113:

Tabela 1 – Valorização Imobiliária do Leblon e Vidigal (2008-2015)

Leblon Vidigal

Mês de

referência

Valor do m²

(R$)

Valorização

em relação a

2008 (%)

Valor do m²

(R$)

Valorização

em relação a

2008 (%)

Set / 2008 11.252,49 xx 2.372,74 xx

Set / 2009 12.408,30 10,27 3.161,63 33,25

Set / 2010 14.982,28 33,15 7.050,49 197,15

Set / 2011 16.310,29 44,95 6.317,33 166,25

Set / 2012 15.997,13 42,17 8.870,68 273,86

Set / 2013 15.322,74 36,17 9.318,15 292,72

Set / 2014 13.973,17 24,18 9.991,72 321,10

Set / 2015 13.386,00 18,96 8.757,00 269,07

Fonte: http://www.zap.com.br/imoveis/fipe-zap-b/114

A partir dos dados da tabela, é possível perceber que desde 2009, quando do

início do programa das Unidades de Polícia Pacificadora, tanto o Leblon como o

Vidigal começam a sofrer movimentos de valorização de imóveis. No entanto,

enquanto esse movimento é intensificado para o Vidigal a partir de 2012, com a

instalação da unidade de polícia pacificadora na favela, no Leblon a valorização

imobiliária começa a sentir pequenas quedas. Apesar de não conseguirmos

mensurar esse movimento para a área de favela, são muitas as histórias e

depoimentos a cerca do salto nos valores de imóveis também para cima do morro, é

comum moradores mais antigos afirmarem que, atualmente, não se compra mais

113

Os dados apresentados pelo índice FIPE/ZAP baseiam-se apenas em imóveis localizados nas áreas formais da cidade e disponíveis para venda no site Zap Imóveis, por isso, em alguns meses a amostragem é muito pequena, ficando restrita a dois ou três imóveis, especialmente no caso do bairro do Vidigal. No entanto, apesar de seus limites, achamos interessante o exercício enquanto possibilidade de nos aproximarmos do movimento de valorização imobiliária sentido pelos moradores de favelas situadas na zona sul. 114

Valores atualizados e tabulados pela autora, com base na variação de: ORTN/OTN/BTN/TR/IPC-

r/INPC. Disponível em: http://www.tjmg.jus.br/data/files/E0/53/AC/DC/10D4051088CF93050D4E08A8/Fatores_Atualiz_Monet_1015.pdf.

Observação: os dados do m² da Favela do Vidigal e do Bairro do Leblon para setembro de 2011 são referentes ao mês de outubro de 2011, em razão da inexistência de informações para o Vidigal no mês de setembro deste ano.

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124

casa na favela por menos de R$ 100 mil. Essa valorização, impulsionada pelo

aumento da procura de pessoas de fora, também parece impactar, de maneira

significativa, os valores dos aluguéis.

Nesse contexto, a dimensão simbólica surge relacionada a um duplo

movimento de ressignificação do território, tanto para dentro, impactando

significativamente os hábitos de consumo e áreas de lazer da favela, como para

fora, com a ressignificação do próprio termo ‘favela’. Pensando o Vidigal, chama

atenção o número de novos bares, restaurantes e, notadamente, hostels que

passaram a compor a paisagem da favela. Atualmente, podemos identificar 17

hostels funcionando no Vidigal115, recepcionando centenas de turistas nacionais e

internacionais.

“Muita coisa no Vidigal é vanguarda”. Para Armando116, que há sete meses

deixou Porto Alegre para abrir um hostel no Vidigal, essa é uma das principais

qualidades da favela. Armando e a esposa decidiram mudar para a cidade e abrir

um novo comércio, em pouco tempo buscando locais para o novo empreendimento

se depararam com os altos custos dos imóveis na cidade – até conhecerem o

Vidigal, que une a “vanguarda”, com uma localização privilegiada, a vista para o mar

de tirar o fôlego, um ambiente cultural agitado, o “acolhimento da comunidade”, além

de preços mais acessíveis se comparado aos bairros da zona sul. Em pouco tempo,

alugaram o imóvel, que já funcionava como hostel, e se mudaram para a favela.

Hoje, o casal gerencia o Varanda’s Vidigal, um hostel de sete quartos e um grande

deck para festas debruçado sobre o mar. Seu público majoritário são jovens e

estrangeiros que pagam R$ 60,00 a diária (na baixa temporada) pela estadia na

favela.

“O Vidigal inspira segurança, é o lugar mais seguro do Rio de Janeiro”117.

Para o dono do Hostelzinho, a UPP foi fundamental para as transformações que

estão sendo vividas pelo Vidigal em sua história mais recente. Há dois anos

comandando um hostel que promete se diferenciar dos demais pelo ambiente

familiar, organização e o foco nos turistas brasileiros, Luiz afirma que conseguiu

115

A identificação foi feita pela internet, através de sites especializados em busca por acomodação, nas páginas dos hostels no facebook e também ao longo do trabalho de campo. 116

Depoimento dado à autora em 10 mar. 2016. 117

Depoimento dado à autora em 20 mai. 2016.

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quebrar a resistência inicial dos moradores frente a mais uma pessoa de fora da

favela abrindo uma acomodação para turistas. Para Luiz, toda potencialidade do

Vidigal estava travada pela violência do tráfico de drogas, por isso, vê a UPP como

uma política “excelente”, e o aumento no custo de vida como uma consequência

colateral: “o cara que bota um aluguel a mil reais ali no barraco é seu vizinho que

morou a vida inteira contigo, não fui eu que cheguei. Aí se você não tem condição de

pagar mil reais e eu tenho, a culpa não é minha, entendeu?118”.

“Muito mais que um hostel”. É assim que o estadunidense Adam119, um dos

donos do hostel Favela Experience, apresenta o seu projeto. Há dois anos no

Vidigal, Adam também atua na Rocinha e em outras cinco favelas na cidade

trabalhando com um turismo que ofereça “uma experiência mais profunda”. Formado

em empreendedorismo, Adam alia a hospedagem com outras atividades na favela:

aulas em parcerias com ONGs, oficina de alimentação viva com uma moradora da

favela, trilha com um guia local, etc.. As diárias variam de R$30,00 em quartos

coletivos a R$140,00 no quarto individual.

O hostel se localiza no imóvel de uma das mais tradicionais ONGs do Vidigal,

Ser Alzira de Aleluia. Como nos explicou Adam, a organização passava por grandes

problemas financeiros quando a conheceu: “faltava sustentabilidade financeira,

negócio é mais rentável que uma ONG”, a partir daí, a organização alugou parte de

seu imóvel para o hostel, que atualmente também ajuda na gestão financeira da

organização, sendo, inclusive, responsável pelo seu financiamento integral.

Na favela da Rocinha, Adam já conta com uma rede de moradores que

alugam suas casas como hospedagem para turistas interessados em viver uma

“experiência mais profunda” da vida na favela, sua ideia é desenvolver o mesmo no

Vidigal. Afirma ter escolhido o Vidigal como a “base” de seu projeto por ser uma

favela mais segura e aberta culturalmente, lugar ideal para a criação de um modelo

de turismo capaz de ser replicado em todas as favelas do Rio de Janeiro. Em

relação ao impacto dessas transformações nas dinâmicas da favela, Adam afirma

que há certo exagero nas reclamações por parte dos moradores, vê como

“invenção” os relatos de aumentos abusivos nos valores de aluguel e como

118

Idem. 119

Depoimento dado à autora em 8 jul. 2016.

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irresponsabilidade dos próprios moradores a venda de suas casas por valores muito

acima da média, uma ação que prejudicaria a própria comunidade.

“Vendemos uma experiência”120. Segundo Carolina, colombiana gerente do

Hotel Mirante do Arvrão, é assim que os altos custos das diárias são justificados

pelos donos do hotel. O empreendimento, projetado pelo famoso arquiteto Hélio

Pellegrino, possui catorze suítes e um quarto coletivo, o menos procurado pelos

turistas. As diárias vão de R$ 70,00 no quarto coletivo, R$ 200,00 nas suítes, até R$

700,00 na suíte principal.

Os cariocas compõem o público majoritário do hotel, a gerente estima que

entre 70 e 80% das reservas são feitas por moradores do Rio de Janeiro em busca

de um fim de semana na favela mais badalada da cidade. De acordo com Carolina,

poucas vezes aparecem turistas que reservaram o hotel sem saber que se

localizava na favela, ao contrário, a busca é justamente pela localização – e pela

vista, todas as suítes têm varadas voltadas para o mar.

120

Depoimento dado à autora em 21 jan. 2016.

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Figura 17 - Suíte principal do Hotel Mirante do Arvrão

Fonte: Reprodução da internet / TripAdvisor121

A grande presença dos cariocas também pode ser explicada pelas festas

realizadas no local. O bar localizado no hotel – que, de início, fazia parte da rede

Belmonte – é frequentemente alugado por produtoras de eventos para a realização

de festas, com ingressos que variam entre R$ 80,00 e R$ 150,00.

Notadamente, tanto o serviço de hospedagem quanto as festas realizadas no

hotel visam um público de fora da favela, com maior poder aquisitivo. Nesse sentido,

os anúncios e propagandas do Mirante do Arvrão são todos voltados para fora,

ainda segundo Carolina, grande parte dessa visibilidade vem de forma indireta, já

que o espaço é constantemente alugado para gravações e sessões de fotos para

propagandas, também a presença constante de artistas conhecidos contribui para a

disseminação dessa imagem cool do hotel e, também, da favela122.

A mesma ideia vale para o badalado Bar da Laje, localizado em frente ao

Mirante do Arvrão123. Marco Brandão, dono do bar, é empresário de artistas da

121

Disponível em: https://www.tripadvisor.com.br/Hotel_Review-g303506-d6435126-Reviews-

Hotel_Mirante_Do_Arvrao-Rio_de_Janeiro_State_of_Rio_de_Janeiro.html. Acesso em 24 maio 2016. 122

Uma curiosidade: no dia em que fomos recebidas no hotel por Carolina, fazia uma semana que o

antigo proprietário tinha ido visita-los, queria conhecer no que tinha se transformado sua antiga casa. Atualmente, o ex-morador do Arvrão mora na favela vizinha, Rocinha. 123

O imóvel onde atualmente funciona o bar também passou pelas transações de Gerônimo, agente

imobiliário e empreendedor local. Na venda das 47 casas de Rolf, este imóvel foi vendido à R$ 7 mil

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maior rede de televisão do Brasil, que estão constantemente visitando o Vidigal e

frequentando as festas aos finais de semana. O bar se destaca das casas e

comércios do entorno não apenas na arquitetura, mas também pelos produtos

oferecidos e seu alto custo – no cardápio, podemos encontrar pratos como “tartar de

salmão”, “tornedor de filé mignon” e “ceviche de peixe branco”, com preços variando

de R$ 35,00 a R$ 69,00. Tudo isso, com o apelo da vista mais cobiçada da favela.

Figura 18 - Bar da Laje, favela do Vidigal

Fonte: Reprodução do Facebook124

Tal como no Hotel, o Bar da Laje diz vender algo mais do que as bebidas e

comidas oferecidas em seu cardápio, trata-se da própria experiência de subir o

morro e conhecer uma das mais bonitas favelas da cidade. Toda a propaganda do

bar gira em torno do apelo à sua localização na favela do Vidigal, com a exuberante

vista para o mar. Com isso, o próprio deslocamento para chegar ao bar passa a

compor um atrativo a mais dessa “experiência”, além de possuir uma Kombi própria

para o transporte de seus clientes (no valor de R$ 5,00 por passageiro), o bar

também estimula seus visitantes a subir de mototáxi, que de serviço básico dos

moradores passa a ser mais um item do turismo que sobe o morro.

para um morador do Vidigal que, em menos de cinco anos depois, o revendeu para o atual proprietário por R$ 180 mil. 124

Disponível em: https://www.facebook.com/bardalaje.rio/photos. Acesso em 22 ago. 2016.

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Figura 19 - "Vem viver essa experiência!!!!"

Fonte: Reprodução do Facebook125

Com isso, o fluxo de visitantes na favela é cada vez maior, não apenas para

fazer a famosa trilha do morro Dois Irmãos, mas em busca de toda uma gama de

serviços que começam a surgir visando esse público de fora. Foi assim que um

francês recém-chegado no Rio de Janeiro e em busca de um local para abrir um

comércio na zona sul acabou na favela. Tendo em vista os preços muito altos dos

imóveis, François126 acabou alugando um ponto no início da av. João Goulart há três

anos, onde hoje funciona um bar e temakeria. François ressalta a segurança do

Vidigal e a vista para o mar como suas características mais atrativas, mas reconhece

que parte dessa grande movimentação de turistas na favela se deve ao calendário

de megaeventos esportivos que se encerra com os Jogos Olímpicos de 2016. Não à

toa, François já faz planos de voltar à Europa.

A partir desses exemplos, fica evidente o papel central do empreendedorismo

no marco do processo de urbanização neoliberal que se desenvolve no Rio de

Janeiro, responsável por fazer da favela do Vidigal não apenas um ativo de

valorização e atração de negócios para dentro da favela, mas por transformar a

125

Disponível em: https://www.facebook.com/bardalaje.rio/photos/a.1506279086273041.1073741829.1438314233069527/1787864511447829/?type=3&theater. Acesso em 10 ago. 2016. 126

Depoimento dado à autora em 19 ju. 2016.

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própria favela em uma mercadoria a ser consumida por um público até então alheio

a ela.

Ainda, o empreendedorismo não está apenas nesses agentes do mercado de

fora que passam a empreender a favela como negócio, mas na própria difusão dos

valores de mercado entre os moradores do Vidigal, nesse sentido, ONGs e

empresas, por meio de “ações sociais”, têm papel fundamental através da realização

de cursos, palestras e oficinas voltadas para a formação de novos empreendedores

na favela.

Exemplar desse tipo de prática, o grupo Favela Holding foi criado em 2013

com o objetivo de promover o “desenvolvimento das favelas e de seus moradores”.

O Favela Holding reúne um conjunto de empresas de diversos segmentos que

buscam incentivar e potencializar o empreendedorismo nas favelas por meio de

parcerias entre comerciantes locais e grandes empresas. De acordo com o site do

grupo, sua “visão é ser reconhecida como a maior criadora mundial de negócios nas

favelas”.

Com sede em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, a formação do grupo

é uma iniciativa de Celso Athayde, fundador da CUFA – Central Única de Favelas,

que previa o investimento de R$1,5 bilhão em projetos nas favelas cariocas até

2017. Dentre suas parcerias estão grandes empresas nacionais e internacionais,

como a P&G, TIM, Tok&Stok, entre outras, e seu desejo é ver os projetos sendo

replicados em outros Estados, sempre em territórios de favela 127.

Uma pesquisa produzida pelo Instituto Data Popular, em parceria com a

CUFA – Central Única das Favelas, afirma que existiriam 3,8 milhões de pessoas

com vontade de empreender nas favelas brasileiras128. Reflexo disso, segundo a

Sebrae, o número de formalização de negócios dentro das favelas estaria em

constante crescimento. Nas palavras do diretor presidente do Sebrae Nacional:

O empreendedorismo é a possibilidade de ascensão dessas pessoas. Há 10 anos, a ideia de estabilidade era ter um emprego público. Hoje, como a

127Favela S/A. Revista Isto É Dinheiro, 21 jun. 2013. Disponível em: http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/negocios/20130621/favela-s-a/142878.shtml. Acesso em 1 set.

2016. 128

Pesquisa revela dados sobre empreendedorismo nas favelas. iMasters, 4 mar. 2015. Disponível

em: http://imasters.com.br/noticia/pesquisa-revela-dados-sobre-empreendedorismo-nas-favelas/. Acesso em 1 set. 2016.

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131

maioria dessa população é mulher, ela prefere estar mais próxima da comunidade para também poder dar conta dos serviços da casa e dos filhos

129.

No Vidigal esse processo é notório, são muitos os moradores que atualmente

se arriscam abrindo pequenos negócios. A dona do hostel VidigalHouse é um

exemplo desse empreendedorismo local, a jovem moradora do Vidigal investiu todo

seu dinheiro na adaptação de sua casa para hospedagem, como resultado, foi

premiada pela Agência Estadual de Fomento (AgeRio) como empreendimento de

sucesso em comunidades pacificadas130. Não é a única – moradores do Vidigal têm

se arriscado tanto nos negócios tradicionais, como a barraquinha de churrasco na

entrada da favela, o quiosque na pracinha, salão de beleza, mas também em

serviços até então inexistentes na região, como um spa e uma gráfica de arte e

design131, reflexo de um público local também em transformação.

Todo esse processo de mudanças no Vidigal vem, em boa medida, apoiado

em um processo de ressignificação simbólica – parcial – do próprio termo ‘favela’.

Parcial porque a descaracterização de algumas favelas enquanto território popular

seria fundamental para transformar esses territórios em uma mercadoria de

consumo para classes mais altas, ao mesmo tempo em que as distancia dos demais

territórios de favelas, que continuam sendo estigmatizados como locais de pobreza e

violência.

Assim, territórios de favelas começam a fazer parte do cenário das novelas da

maior emissora de televisão do país. Em poucos anos, foram incontáveis gravações

de filmes, séries e novelas que usaram favelas como cenário, tanto assim que, no

início de 2015, estreava a novela “Babilônia”132, em referência a favela carioca

situada no bairro do Leme, zona sul da cidade.

A imprensa tem um papel fundamental nesse processo. Aliada aos setores

econômicos e políticos responsáveis pela reestruturação urbana da cidade, ela

cumpre o papel de difundir o imaginário da ‘favela’ cool, point dos jovens cariocas de

classe média e alta, além de compor mais um ponto na rota turística carioca. Nesse 129

Idem. 130

Disponível em: http://www.agerio.com.br/index.php/br/portal-pld/161-01-11-14. Acesso em 2 set. 2016. 131

Empreendedores de UPPs levam bistrô e spa a comunidades do Rio. Jornal Extra, 8 dez. 2013. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/economia/empreendedores-de-upps-levam-bistro-spa-comunidades-do-rio-11001224.html. Acesso em 2 set. 2016. 132

http://gshow.globo.com/novelas/babilonia/. Acesso em 30 jun. 2016.

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132

sentido, as novelas do horário nobre surgem como importantes porta-vozes desse

movimento: “A novela de Manoel Carlos se inspirou numa tendência de jovens de

classe média alta, muitos moradores da zona sul carioca, que passaram a realizar

festas da moda nas comunidades pacificadas como Vidigal e Morro Dona Marta”133.

O termo ‘favela’ e ‘Vidigal’ também começam a aparecer em nomes de festas

e marcas de roupa voltadas para grupos de maior poder aquisitivo, como mais uma

evidência do processo de ressiginificação simbólica em curso, fundamental para a

própria concretização das transformações socioespaciais implementadas na favela.

Figura 20 - Anúncio da marca Osklen: T-Shirt ‘Favela’ – R$ 89

Fonte: Reprodução / Internet134

133

Acostumados com famosos, moradores do Vidigal criticam gravações de novela. Portal UOL, 15 abr. 2014. Disponivel em: http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/04/15/acostumados-com-famosos-moradores-do-vidigal-criticam-gravacoes-de-novela.htm. Acesso em 30 jun. 2016. 134

‘Favela’: camiseta da Osklen vira polêmica na internet. LeiaJa, 29 dez. 2015. Disponível em:

http://www.leiaja.com/cultura/2015/12/29/favela-camiseta-da-osklen-vira-polemica-na-internet/. Acesso em 4 jun. 2016. As camisetas não estão mais à venda no site da loja.

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133

Figura 21 - Anúncio da marca Osklen: T-Shirt ‘Vidigal’ - R$ 127

Fonte: Reprodução / Internet

135

No entanto, todo esse processo é atravessado por conflitos e disputas que

também impactam as dinâmicas na favela. Para André Gosi136, se, por um lado, o

turismo tem o lado positivo de melhorar a renda de toda a comunidade, trazendo

informação e conhecimento, por outro, ele teria como consequência a perda da

identidade: “perdemos o carnaval, a música, algumas pessoas são expulsas, o

Vidigal tá sofrendo com isso, algumas pessoas não resistem”. E emenda: “Não sou a

favor da gentrificação, gostaria que a comunidade ficasse um pouco mais,

obviamente que a cidade vive em constante em movimento, hoje a gente passa por

um movimento”137.

Da mesma forma que André, acreditamos que as transformações vividas pelo

Vidigal ainda estão em curso, passíveis de mudanças e influências de variáveis que

não estão totalmente sob o controle do Estado, ou mesmo do mercado que aposta

alto na mercantilização desse território. Mudanças de governo, crises econômicas e

a volta de narrativas que focalizam a violência urbana, entre outros conflitos

urbanos, podem ser fatores de enfraquecimento desse projeto ainda em disputa.

***

135

Disponível em: http://store.osklen.com/t-shirt-pet-vidigal-mc.html. Acesso em 4 jun. 2016. 136

Depoimento dado à autora em 18 mar. 2016. 137

Idem.

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134

Ao longo desse capítulo buscamos identificar e refletir a cerca dos principais

elementos que constituem as transformações socioespaciais em curso na favela do

Vidigal. A partir do referencial teórico discutido ao longo do trabalho, voltamos o

olhar para as dinâmicas que atravessam esse território através do trabalho de

campo, que consistiu em visitas semanais à favela ao longo de seis meses, tanto

para entrevistas quanto para a observação participante.

Dessa forma, a discussão girou em torno daquilo que entendemos como

sendo os vetores fundamentais dessa transformação: a renovação urbana do

Vidigal, as disputas e mudanças na gestão do território, possíveis alterações e

manipulações dos instrumentos de regulação e, por fim, a dimensão simbólica. O

objetivo era interpelar a teoria sobre a urbanização neoliberal a partir da prática, da

experiência cotidiana por meio da qual essas mudanças são vividas e

materializadas.

A partir dessa experiência, exposta ao longo do capítulo, podemos afirmar

que, dentre os aspectos que caracterizam a urbanização neoliberal, a dimensão

simbólica é a mais evidente na favela do Vidigal, ou seja, no processo de

aprofundamento da mercantilização desse território popular, a ressignificação

simbólica é a transformação mais forte.

Essa transformação atua de forma a ressignificar a precariedade do território

de forma a fazê-la compor a totalidade da experiência que se vende para fora – não

basta ir ao bar na favela, é preciso subir de mototáxi, passar pelas vielas e ver as

casas do alto da sacada do hotel. Ainda, há uma ressignificação, parcial, como

vimos, do próprio termo ‘favela’, de forma a distanciar as favelas que interessam ao

mercado dos demais territórios favelados, esses sim, locais de violência e

criminalidade.

Esse é um processo que se desenvolve de uma maneira particular na favela

do Vidigal, impulsionado por sua localização e características particulares que

facilitam a apropriação do seu território por agentes do mercado de fora da favela.

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135

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em 2016, o Rio de Janeiro encerrou um ciclo de quase dez anos

recepcionando megaeventos, um período marcado por enormes transformações no

tecido urbano da cidade que impactaram de diferentes formas a vida dos cariocas,

especialmente das classes mais pobres.

Desde 2009, foram mais de 22 mil famílias removidas de suas casas e pelo

menos 15 comunidades completamente apagadas do mapa, em uma verdadeira

política de realocação dos pobres na cidade (COMITÊ POPULAR..., 2015). Aqui,

ficou evidente o ataque a territórios populares localizados em áreas valorizadas ou

de expansão do mercado imobiliário. A chave de leitura do processo estava óbvia,

era a remoção, ou seja, o próprio Estado assumiu o papel de expropriador dessas

famílias, limpando as áreas que passavam a ser apropriadas pelo mercado que se

reproduz na (re)construção do espaço urbano.

É nesse contexto que se insere a motivação desse trabalho, mas de uma

outra perspectiva. Em um processo de reorganização do território da cidade, em que

a classe trabalhadora perdia porções de terras centrais para o capital, a reflexão em

torno dessas disputas acabou dando maior enfoque à luta contra a remoção. Não à

toa. Contudo, algumas favelas da zona sul pareciam viver processos distintos,

mesmo quando a ameaça da remoção esteva presente, como aconteceu nas favelas

Santa Marta, Estradinha, Babilônia e Vidigal, ela vinha acompanhada de outras

estratégias de apropriação por agentes do mercado, notadamente, através do

aprofundamento da mercantilização desses territórios, com a difusão dos valores de

mercado entre a população. Ou seja, o avanço do mercado formal e os impactos de

sua ofensiva nesses territórios começou a nos chamar atenção.

Entendendo o Vidigal como o caso mais exemplar desse movimento do

mercado rumo a determinadas favelas, foi preciso voltar um pouco atrás e retomar a

própria construção do espaço urbano carioca e os caminhos através dos quais as

favelas foram sendo formadas e consolidadas, especialmente as particularidades

que marcaram a história daquelas que emergiram em meio a região mais valorizada

da cidade, à beira da praia, construída, desde o início, para abrigar as classes mais

altas da sociedade.

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Os padrões de atuação do poder público nas favelas cariocas também

mudaram muito ao longo do tempo e suas alterações foram marcando esses

territórios de distintas maneiras. Para os moradores do Vidigal, dois momentos são

fundamentais para a compreensão de sua história – a tentativa de remoção em

1977, que acabou frustrada graças à organização dos moradores e o apoio de

artistas e intelectuais de fora do morro; e o crescimento do tráfico de drogas ilícitas,

ainda no fim da década de 1980, e a onda de violência da qual ele vem

acompanhado.

Recuperar as narrativas hegemônicas que marcaram as favelas como locais

de violência e criminalidade foi essencial para compreender o surgimento da UPP

como a grande solução para a segurança pública carioca no contexto dos

megaeventos esportivos. Quando os olhos do mundo se voltaram para cá, o governo

do Estado estava “retomando” territórios até então comandados por facções

criminosas – era a inauguração de uma nova era na cidade, agora “pacificada”,

pronta para receber turistas do mundo todo.

Distribuídas de forma bem seletiva pela cidade, as UPPs cumprem diferentes

papéis nas favelas em que estão situadas. No caso do Vidigal, ela garantiu a

segurança necessária para que novos atores se instalassem na favela mais balada

da cidade, em busca de sua vista exuberante aliada a uma localização privilegiada:

bares, restaurantes, hostels, casas de festas, atores e atrizes, nacionais e

internacionais – todo mundo começou a subir o morro.

O mercado imobiliário é outro entusiasta do programa de pacificação, uma

vez que as instalações das UPPs tiveram como consequência a imediata

valorização dos imóveis de seu entorno. Sob a urbanização neoliberal, a relação

entre segurança e mercado se dá de maneira orgânica.

Os impactos desse processo começaram a ser sentidos tanto na

transformação física do território, com novas construções e reformas – permitidas

através das brechas deixadas por um decreto de uso e ocupação do solo que regula

para alguns, mas libera para outros – quanto no aumento dos preços na favela,

desde o valor do imóvel aos produtos no mercadinho, são muitas as histórias de

antigos moradores que se mudaram por não conseguir mais se sustentar ali.

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137

Contudo, a dimensão simbólica parece ser o elemento central desse

processo, a base que tem legitimado e impulsionado todas as transformações

materializadas no território. As narrativas da violência dão lugar aos discursos que

colocam as favelas – ou pelo menos parte delas – como lugares atrativos para

turistas e cariocas “descolados”, mas também para novos empreendedores. Em

torno do apelo da localização e da vista para o mar, combinada com o histórico

cultural da boemia, vai se transformando a precariedade da favela, de suas ruas e

formas de locomoção, de suas casas e sua própria cultura em uma experiência a ser

consumida – quase todo final de semana tem festa com samba ou funk na laje, com

ingressos variando entre R$ 80,00 e R$ 100,00.

De maneira geral, a hipótese de um processo que aponta para a

descaracterização do Vidigal enquanto um território popular está ancorada nesses

elementos, descritos de maneira mais rigorosa ao longo do trabalho. As aceleradas

mudanças que a favela vem vivenciando sinalizam o processo de elitização do

território por meio do aprofundamento de sua mercantilização, hipótese que faria

ainda mais sentido se olharmos para as dinâmicas que perpassam a cidade como

um todo, no qual as áreas de interesse do mercado, com potencial de valorização,

passaram a receber grandes investimentos e intervenções, de modo a efetivar esse

potencial. No caso do Vidigal, seu território pode ser lido como uma lacuna em meio

a uma área altamente valorizada, logo, como uma área de expansão para o

mercado.

No entanto, como já ressaltamos algumas vezes, esse é um processo ainda

em curso e em disputa. Desde a instalação da UPP, novos conflitos passaram a

emergir na favela, seja pelo incômodo com uma nova vizinhança, acusada de fazer

subir os preços, ou no exercício cotidiano de pegar um mototáxi e perdê-lo para um

turista, no barulho dos visitantes aos finais de semana, na sujeira deixada pelas

festas – daí surgem novos campos de disputas e diferentes reivindicações, que

chamam atenção para a identidade, cultura local, para os “crias” da favela e seus

códigos. Há um movimento de retomada da história da favela, a lembrança dos anos

de “guerra”, em que nenhum desses que hoje sobem e se instalam na favela

aguentariam viver.

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Atualmente, os moradores discutem gentrificação e “remoção branca”,

questionam as intenções dos novos empreendedores, cobram um retorno para a

comunidade, ou seja, existe uma disputa pelo sentido dessas transformações. É

quase unanimidade o reconhecimento de que a UPP retirou o porte de armas

ostensivo da rua, que o aumento no fluxo de visitantes traz mais renda para a favela,

permitindo que novos comércios sejam abertos por moradores, no entanto, também

conseguem ver os impactos negativos dessas transformações e, em suas

experiências cotidianas, estão disputando seu sentido.

Contudo, essas disputas internas não são os únicos elementos capazes de

barrar, ou enfraquecer, essa nova rodada de mercantilização do território. Existem

outros dois fatores que devem ser levados em consideração e que podem funcionar

como verdadeiras barreiras à ofensiva do mercado formal para dentro da favela: a

pobreza persistente e a violência urbana.

Se, de um lado, as alterações no ambiente físico da favela vão se

materializando, principalmente, na avenida principal e na área do Arvrão, basta

entrar um pouco mais para ser perder nas vielas adensadas do Vidigal, com terrenos

servindo como depósitos de lixo, cachorros correndo entre galinhas e casas mais

precárias. A parte mais “atrativa” do Vidigal é, na verdade, uma pequena porção do

seu território, no mais, o Vidigal ainda é, caracteristicamente, um território popular.

A permanência da pobreza, mesmo que fetichizada por um mercado que

tentar fazer dela parte do “combo” de experiências na favela, pode se constituir em

uma barreira ao processo de elitização do território. A questão aqui é: até que ponto

é possível ressignificá-la?

Além disso, como ressaltado anteriormente, a própria permanência de

problemas estruturais, como a questão da mobilidade, se constitui em outro

empecilho ao pleno desenvolvimento do mercado. A acessibilidade restrita a uma

única via já se mostra insuficiente para atender o número de pessoas e mercadorias

que circulam pela favela atualmente, são constantes os problemas e

congestionamentos na avenida João Goulart. Ainda, o pouco número de vagas e o

transporte restrito aos mototáxis e kombis também podem se tornar uma dificuldade

para um número crescente de visitantes.

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139

Por fim, há de se considerar a violência, ou ao menos a volta de sua narrativa

hegemônica como um elemento enfraquecedor desse processo. Como citado

anteriormente, as UPPs já vêm enfrentando problemas e resistências há alguns

anos. No entanto, ao contrario do esperado, mesmo antes da realização dos Jogos

Olímpicos trocas de tiros voltaram a acontecer com certa frequência em muitas das

favelas ocupadas pela UPP, inclusive na zona sul. Ainda em 2015 a disputa com o

tráfico de drogas pelo domínio do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho voltou a se

fortalecer138 e, em 2016, os tiroteios se intensificaram na favela da Babilônia e

Chapéu-Mangueira139.

A volta dos discursos em torno da violência nas favelas não prejudica apenas

os novos processos de elitização desse território, mas atinge, novamente, a

valorização dos imóveis do entorno. Atualmente, é comum ouvir de moradores

receios e boatos sobre o fim do projeto depois dos Jogos Olímpicos, uma

possibilidade que aparece ainda mais palpável frente à crise econômica do governo

do Estado, que decretou “estado de calamidade pública” em março de 2016140.

Mais uma vez, é importante ressaltar – trata-se de um processo em curso que

vai depender da correlação de forças dos atores envolvidos. Atualmente, o território

do Vidigal está sendo disputado como uma nova fronteira de expansão para o

mercado formal que, através da ressignificação da favela, de seu território e de suas

próprias particularidades, tenta abrir uma nova frente na qual a favela emerge como

mercado e mercadoria.

A resistência vai se conformando nos botecos, nos mercadinhos

improvisados, no adensamento de casas, no som alto dos vizinhos, na confusão do

trânsito. A resistência estará nos limites do próprio processo de ressignificação da

138

Moradores do Cantagalo fecham rua de Ipanema após tiroteio. Diário do Sudoeste, 8 abr. 2015. Disponível em: http://www.diariodosudoeste.com.br/brasil/2015/04/moradores-do-cantagalo-fecham-rua-de-ipanema-apos-tiroteio/1355287/. Acesso em 2 set. 2016. Tiroteio em Ipanema assusta moradores e comerciantes. Estadão Online, 25 mai. 2015. Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,tiroteio-em-ipanema-assusta-moradores-e-comerciantes,1693441. Acesso em 2 set. 2016. 139

Tiroteio na Babilônia, Rio, deixa um morador ferido. Portal G1, 18 mar. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/03/tiroteio-no-morro-da-babilonia-rio-deixa-um-morador-ferido.html. Acesso em 2 set. 2016. Tiroteio assusta moradores da Babilônia, na zona sul do Rio. O Globo Online, 23 mar. 2016. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/tiroteio-assusta-moradores-do-morro-da-babilonia-na-zona-sul-do-rio-18944089. Acesso em 2 set. 2016. 140

Rio decreta estado de calamidade pública devido à crise financeira. Agência Brasil, 17 jun. 2016.

Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-06/rio-decreta-estado-de-calamidade-publica-devido-crise-financeira. Acesso em 2 set. 2016.

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precariedade que ainda marca as favelas cariocas, inclusive o Vidigal. Também está

no protagonismo dos moradores que começam a discutir sobre essas

transformações e assumir as rédeas desse “desenvolvimento”, exercendo na prática

suas reivindicações pelo direito à cidade.

Reivindicar o direito à cidade no sentido que aqui proponho equivale a reivindicar algum tipo de poder configurador sobre os processos de urbanização, sobre o modo como nossas cidades são feitas e refeitas, e pressupõe fazê-lo de maneira radical e fundamental. (HARVEY, 2014, p.30)

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