conflito entre a filosofia e a poesia
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Breve reflexão sobre a emancipação da filosofia que se deu dentro da sua própria casa...TRANSCRIPT
Conflito entre a Filosofia e a Poesia na Grécia Antiga
Se se pode falar de um conflito entre a poesia e a filosofia, é necessário
reconhecer de antemão que havia originalmente uma base comum a ambas. O conflito
surgiu da distinção entre poeta, profeta e sábio, que coexistiam na figura do xamã.
Inicialmente, pressupunha-se que todo o conhecimento que estava para lá dos sentidos
era revelado a pessoas com dons intelectuais e artísticos especiais.
Tais pessoas têm contacto com o mundo invisível, relacionam-se com os deuses
e têm acesso ao passado, ao presente e ao futuro. Tanto o profeta, inspirado por Apolo,
como o poeta, inspirado pelas Musas, estão nesta condição, mas também Platão, quando
se diz arrebatado pelo amor à verdade que está acima dos céus. Mesmo antes de Platão,
Parménides está na linha dos profetas e poetas, quando diz que a verdade, intemporal e
imutável, lhe era revelada.
Quando se dá a distinção entre poeta e vidente, este fica com a tarefa de prever o
futuro e aquele preocupa-se em narrar os feitos do passado. Assim, a epopeia narra os
feitos heróicos, onde o mito e a história se misturam. Os deuses participam das
aventuras dos heróis. Antes desta era lendária, encontramos a era mítica, onde a
Teogonia de Hesíodo apresenta as gerações dos deuses e as dinastias divinas, antes do
aparecimento do homem. Anterior a esta, a era cosmogónica, da criação do mundo.
Nesta altura não é possível distinguir factos de ficções, poesia de história. Contudo, a
poesia de Homero, com a sua genialidade, conferiu aos poetas seguintes uma autoridade
equiparada aos sacerdotes das sociedades civilizadas.
Na Grécia, a especulação teológica não estava ligada ao culto, nem o templo era
o centro cultural, como acontecia noutras civilizações antigas. Por isso, as obras de
Homero e de Hesíodo não eram de carácter sagrado e os poetas puderam modificar e
corrigir a teologia homérica e hesiódica, à medida que a evolução social trouxe novos
ideais de conduta dos ser humano e ao mesmo tempo que se desenvolveu uma
concepção filosófica da divindade.
Desta forma, os filósofos influenciaram os poetas, pois criticavam racionalmente
a teologia dos primeiros poetas. Por sua vez, estes mantiveram um certo
conservadorismo, a fim de manter a dimensão mítica e imaginativa da poesia.
Como os poemas homéricos tinham um papel fundamental na educação e na
cultura grega, os deuses do panteão grego mantiveram-se, sem terem desaparecido ou
sofrido grandes alterações, apesar das mudanças socio-políticas. No entanto, no século
VI a.C., surgiu uma nova religião, com mistérios de outra ordem, e os filósofos iónicos
afirmavam um carácter divino da Natureza, concebendo uma substancia primordial,
imanente no Universo. Porém, o Panteísmo, se se constituiu religião, apenas foi como
religião universal e a Natureza nunca foi objecto de culto. As cidades-estado
continuaram a prestar culto às suas divindades de tradição homérica.
Xenófanes criticou o antropomorfismo dos deuses de Homero e Hesíodo.
Contudo, não se pode saber se ele negava a sua existência ou se exercia o seu direito de
poeta de modificar a teologia dos poetas antigos. Para ele, os deuses, se são eternos, não
podem nascer nem morrer. Esta posição é completamente oposta a todas as teogonias.
Opunha-se também às acções vergonhosas que Homero e Hesíodo atribuíam aos deuses.
Por fim, negava que as artes tivessem sido dadas pelos deuses, porque o homem
encontrou sempre melhores formas de viver.
O deus de Xenófanes é eterno, não teve começo, é uno, limitado, de forma
esférica. Este deus identifica-se com o mundo, logo, não há uma cosmogonia, uma
substância divina que abarque tudo (o infinito de Anaximandro tinha características
divinas e era origem do mundo perecível). Outra característica do deus de Xenófanes é
não ter necessidade de se mexer, pois a força do seu pensamento move tudo. Não
estabelece nenhuma relação com o homem, o que significa que não é um ser moral e
não dispõe de nenhum meio de comunicação com o homem. Não é nenhum objecto de
culto.
Heráclito, por sua vez, chegou a outra conclusão, assemelhando-se, porém a
Xenófanes, ao reivindicar para si o conhecimento profético. O deus de Heráclito é como
um fogo”sempre vivo” e “sempre agonizante”, transformando constantemente os
elementos do mundo. Não se contrapôs ao antropomorfismo e à imoralidade dos deuses
de Homero e Hesíodo, mas pelo facto de estes não perceberem que o amor não pode
existir sem a discórdia, a paz sem a guerra, o dia sem a noite, ou seja, não concebe a
existência de uma divindade acima dos contrários. Para deus tudo é bom, só para os
homens é que há coisas justas e injustas.
A afirmação de que o Logos estava nele e na Natureza assemelha-o ao profeta. O
Logos não é uma sabedoria popular, mas uma inteligência, comum a tudo e a todos, e
com uma existência física., o fogo. Este fogo também está no homem. Esta noção estará
presente noutros sistemas filosóficos que afirmam que a inteligência humana é uma
parcela da inteligência divina. Porém, não aceita que esta faculdade divina se manifeste
através do sonho, como acreditava a tradição órfico-pitagórica e a crença popular. Para
ele, quando alguém está a dormir, a inteligência fica isolada da inteligência superior,
mantendo-se viva apenas pela respiração. A inteligência humana é, então, parente da
inteligência divina. Se assim é, Heráclito também é poeta. No entanto, de uma forma
distinta do poeta inspirado pelas Musas, dotado de uma inteligência que se separou da
inteligência divina, manifestada no que é racional e não no que é irracional.
Já Parménides separou o Ser Uno de todos os atributos de vida, pois é
inconsciente e imóvel. Não é propriamente um deus e a única qualidade divina que
possui é o seu carácter imperecível, quando diz que o Ser não pode surgir do Não Ser e
não pode nunca deixar de ser. No seu poema, considera a cosmogonia e a teogonia
como meras opiniões dos mortais e apresenta a sua própria versão da história que,
segundo ele, é mais próxima da verdade do que as versões de Hesíodo e Anaximandro.
A verdade revelada não dá lugar nem a qualquer religião, nem a qualquer espécie de
filosofia natural.
A partir daqui, os caminhos separam-se. Leucipo e Demócrito reduzem o Ser
Uno a uma infinidade de átomos que se movimentam num vácuo infinito. Estes átomos
são imperecíveis, mas não têm vida e estes filósofos não explicam como é que eles se
movimentam no vácuo e forma estruturas complexas. Apesar do Atomismo explicar a
organização dos corpos materiais, não explica a existência da consciência e da vida,
reduzindo a Natureza aos átomos e ao vácuo como realidades últimas.
Em contrapartida, Empédocles e Anaxágoras, apesar de afirmarem a
imortalidade e a imutabilidade dos seus elementos naturais, tiveram necessidade de
distinguir uma substância separada da Natureza, com extensão no espaço, invisível,
inatingível, com consciência e atributos anímicos: Amor/Discórdia e o Espírito,
respectivamente. São forças cósmicas, uma espécie de deuses filosóficos, apesar de não
haver nenhuma sugestão para que sejam venerados ou para que substituam os deuses
tradicionais.
O Amor e a Discórdia de Empédocles são invisíveis, mas podem ser percebidos
pelo homem e essa força que opera no homem é a mesma que opera em toda a Natureza.
Tal como Xenófanes, critica o antropomorfismo dos deuses, pois o seu deus é sobre-
humano, um espírito sagrado.
O Espírito de Anaxágoras não tem atributos morais. Move-se e faz mover todas
as coisas, porque conhece-as. É ele que dá ordem ao estado originário das coisas e todas
as criaturas vivas têm uma parte deste Espírito. Os socráticos referir-se-iam a este
Espírito como uma inteligência do artista, que planifica uma ordem sobre a matéria
desordenada.
Ou a ordem do mundo seria obra do acaso, como no Atomismo, ou seria
organizada por uma inteligência superior. Diógenes de Apolónia, no século V,
retomando a doutrina de Anaxímenes, identificou a substância primordial com o Ar.
Contudo, para ele, o ar tem características do Espírito de Anaxágoras, pois tem
conhecimento de todas as coisas e, por isso, fá-las mover, dispondo-as da melhor forma
possível. Para além disso, as almas das coisas vivas são compostas por pequenas partes
de ar, o que o torna uma espécie de Deus.
Assim vemos como os filósofos criticaram sobretudo o antropomorfismo dos
deuses. Os poetas não podiam abdicar das personalidades olímpicas, apesar de
emendarem a sua imoralidade, e os filósofos estavam livres das aventuras míticas dos
deuses. O deus filosófico é o poder imortal e imperecível que organiza e dá consciência
e vida ao mundo. A Unidade é a sua característica fundamental e concorda com os
primeiros sistemas monísticos, que afirmavam que a natureza das coisas (s) ou a
origem () do mundo ordenado é um elemento único. Mesmo depois de
Parménides, quando o elemento primordial se separou em múltiplos elementos, o motor
divino manteve uma existência separada e, por isso, uma unidade.
O filósofo também é poeta, porque acredita que o seu pensamento está ligado à
consciência cósmica. Através do seu pensamento, atinge uma realidade superior, oculta
aos sentidos e, assim, o νους substitui os antigos sonhos e visões.
Tanto o filósofo natural como o poeta debruçam-se sobre a cosmogonia e sobre a
teogonia. É natural que os filósofos do século VI fossem influenciados pelos poetas
antigos, pois os seus poemas faziam parte da cultura, da educação e da religião. Porém,
foram-se cada vez mais afastando, à medida que se tornavam racionalmente
inaceitáveis.
Epicuro, ao tratar dos deuses, dos átomos e do vácuo, recorre ao testemunho
antigo dos sonhos, mas invoca a capacidade de, pela força do espírito, alcançar o
invisível com o pensamento. Assim, o filósofo, profeticamente, apreende factos auto-
evidentes e justifica-os com um raciocínio inexorável.
Duarte Costa