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CONEXÃO ISTAMBUL-BERLIM: PARCERIA OTOMANO-ALEMÃ NO EXTERMÍNIO DOS ARMÊNIOS
Pedro Bogossian-Porto1
Quem se lembra hoje do extermínio dos armênios?
A frase acima teria sido dita por Adolf Hitler em 1939, antes da invasão da Polônia, como
forma de ressaltar que os registros históricos de suas conquistas tratariam não do “lado
derrotado”, mas apenas do “lado vencedor”. Ironicamente, embora faça menção a um
“esquecimento coletivo” a respeito das perseguições aos armênios, essa é possivelmente a
citação mais frequentemente lembrada pelos descendentes dessa população sobre os massacres
ocorridos durante a Primeira Guerra Mundial. A relevância dessa passagem, especificamente,
para a memória coletiva armênia pode ser explicada por pelo menos duas grandes razões: a
primeira delas é que, diferentemente do que ocorreu com as vítimas do nazismo, não há em
relação ao genocídio dos armênios um reconhecimento internacional e tampouco um esforço
coletivo de recordação desses eventos; a segunda é que ela é entendida como uma evidência,
ainda que de maneira subliminar, da conivência e da responsabilidade da Alemanha na
realização de mais um genocídio.
Neste trabalho eu pretendo analisar a aliança entre os Impérios Otomano e Alemão
durante a Primeira Guerra e o registro que essa parceria produziu na memória coletiva dos
descendentes dos armênios, para os quais os alemães não apenas tinham conhecimento dos
massacres mas foram também cúmplices dos otomanos nessas perseguições. Compreender a
real magnitude da participação alemã no extermínio dos armênios é relevante para melhor
interpretar a comparação frequentemente realizada pelos armênios entre o genocídio ocorrido
durante a Primeira Guerra Mundial e aquele produzido durante a Segunda Guerra Mundial.
Os resultados da associação com o genocídio dos judeus e outras minorias na Alemanha
nazista são facilmente compreensíveis se observarmos que o nazismo é um dos assuntos mais
analisados por pesquisas históricas, ao passo que o genocídio dos armênios é um tema até hoje
relativamente pouco estudado – à exceção, evidentemente, dos círculos que discutem a história
de conflitos, em geral, ou desse grupo étnico, em especial. Outro aspecto que ajuda a explicar
1Doutorando em Antropologia e Sociologia na Université Paris 7 – Paris Diderot e bolsista de doutorado pleno
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
a tentativa de aproximação entre os dois casos é o fato de que a classificação do massacre dos
armênios como “genocídio” não é algo consensual, enquanto que a respeito do genocídio dos
judeus não existe qualquer controvérsia – é sintomático, nesse sentido, que muitos Estados
tenham estabelecido legislações específicas para criminalizar declarações que negam esse
crime. Posicionar os armênios na mesma categoria dos judeus implicaria, portanto, em não
apenas estimular a produção de estudos a respeito dessa população mas também proteger a sua
memória contra as narrativas que negam ter havido tal massacre.
O texto será dividido em duas partes. Na primeira delas eu pretendo analisar o discurso
dos armênios, mormente dos descendentes das vítimas do genocídio, a respeito da colaboração
entre alemães e otomanos, de modo a compreender os mecanismos construção dessa memória.
Na segunda parte, discutirei os termos da aliança entre os dois impérios durante a Primeira
Guerra e as possíveis implicações dessa aliança nas perseguições e nos massacres dos armênios.
A pesquisa se apoia, por um lado, na observação participante e na história oral a respeito da
população armênia no Brasil e, por outro, em fontes documentais e na pesquisa historiográfica
produzida acerca das relações entre otomanos e alemães.
1. Presença da Alemanha na memória do genocídio armênio
A perseguição e o massacre dos armênios que viviam dentro do Império Otomano
ocorreram entre 1915 e 1922, em um período em que a comunidade internacional se via
envolvida com os efeitos da Primeira Guerra Mundial. Na época não existia ainda o termo
“genocídio” e, por essa razão, os massacres foram definidos sob a vaga categoria de “crime
contra a humanidade” – o termo “genocídio” seria cunhado pelo jurista polonês Raphael
Lemkin durante os anos 1930, como forma de designar a violência desmedida praticada durante
a Primeira Guerra; entretanto, ele ganharia força na comunidade internacional apenas após a
Segunda Guerra Mundial, no contexto de julgamento dos crimes do nazismo (Jones, 2011).
Vítimas de uma política de perseguição e extermínio, parte da população armênia conseguiu
fugir do Império Otomano e obteve asilo nos protetorados da região (como Síria e Palestina),
mantidos por potências europeias, ou em outras partes do mundo (Estados Unidos, França,
Canadá, Argentina, Brasil…).
Conforme tentei demonstrar em um trabalho anterior (Bogossian-Porto, 2016), o episódio
do genocídio ficou profundamente marcado na memória coletiva da população armênia e se
tornou, até hoje, um dos principais pilares da identidade armênia entre aqueles que sobrevieram
aos massacres e entre seus descendentes, fato que pode ser compreendido como um resultado
da força traumática desses acontecimentos. Politicamente dominantes no Império Otomano, os
turcos desempenhariam nessa trama o papel de antagonistas, responsáveis pela perseguição e
pelo extermínio dos armênios. Todavia, junto ao “elemento turco”, é marcante também nessa
memória a presença dos agentes alemães, que teriam não apenas incentivado a eliminação da
população armênia mas também providenciado as bases teóricas (os fundamentos científicos)
de tal ação e as condições materiais para que ela fosse realizada. Assim, não raras vezes os
alemães são descritos pelos armênios no Brasil ou em outras partes da diáspora como os
verdadeiros artífices do genocídio realizado a partir de 1915, “a mente por trás dos massacres”.
A ênfase dada pelos armênios à parceria feita entre turcos e alemães pode ser
compreendida como um resultado da associação, consciente ou não, mas feita a posteriori, entre
o genocídio dos armênios realizado durante a Primeira Guerra Mundial e o genocídio dos judeus,
ocorrido durante a Segunda Guerra. Ela se explica pela transposição das teorias que
fundamentaram o nazismo para o período anterior, como se essas teorias já constituíssem a base
da ação alemã durante o governo do imperador Guilherme II. Evidentemente, na maioria dos
casos esse é um processo teleológico realizado pela memória coletiva, que reproduz a imagem
da Alemanha como um Estado genocida sem, no entanto, fundamentar essa classificação com
dados históricos relativos ao próprio período.
A associação entre os dois genocídios apresenta, porém, outra questão sensível para as
comunidades armênias: a discussão a respeito do reconhecimento internacional dessas
perseguições como um genocídio. Diferentemente do genocídio dos judeus, no caso armênio
não há consenso a respeito da aplicabilidade do conceito definido por Lemkin e, portanto,
diversos Estados recusam-se a utilizá-lo para descrever os extermínios ocorridos durante a
Primeira Guerra1. O alvo primevo das reivindicações dos armênios é a Turquia, principal
herdeira do Império Otomano e que não apenas se recusa a aceitar o uso de tal categoria mas
também criminaliza a ação de todos que o façam. Caso fossem aceitos pela comunidade
internacional como vítimas de um crime da mesma magnitude do genocídio dos judeus, os
armênios teriam um grande reforço em sua luta pelo reconhecimento e poderiam dispor desse
1O curto espaço não me permite fazer aqui uma discussão aprofundada a respeito da aplicabilidade do conceito de
“genocídio” para o caso armênio, mas minha compreensão acompanha a de especialistas no tema que
concordam com o uso desse termo. A esse respeito, ver, por exemplo: Bloxham (2005) ou Power (2004).
poderoso instrumento de pressão sobre o Estado turco. A combinação dos dois grupos como
vítimas dos mesmos algozes seria uma maneira de produzir essa identificação.
Apontar os mecanismos empregados pela memória coletiva armênia para associar
armênios e judeus ou para posicionar alemães e turcos dentro de uma mesma categoria não
significa, no entanto, afirmar que essa narrativa não dispõe de fundamentos concretos. A aliança
militar entre alemães e otomanos na guerra de 1914-1919 é um dado indiscutível e não se pode
subestimar a influência do Império Alemão na formulação de políticas de seu aliado levantino.
Cumpre, portanto, lançar um olhar mais acurado sobre tais políticas e sobre os efeitos concretos
dessa parceria.
2. Envolvimento direto dos alemães nos massacres
Ainda que a participação alemã no genocídio dos armênios constitua parte da narrativa
mítica sobre o genocídio – utilizando-se aqui a definição de mito desenvolvida por Roland
Barthes, segundo a qual o mito não é algo que necessariamente se opõe à verdade e sim uma
narrativa que serve para produzir consensos dentro de uma população (Barthes, 1957: 21) – é
possível apontar, a partir das fontes de época, elementos que justificam a produção dessa
narrativa. Os registros da participação de diplomatas e altos oficiais alemães nas decisões da
“Sublime Porta”2 seriam importantes indícios, mas podemos citar também textos de intelectuais
que, décadas antes das atrocidades cometidas pelo nazismo, denunciavam já essa presença
alemã – sem risco, portanto, de terem sido cometidos anacronismos nesse sentido.
Um desses trabalhos é a obra de René Pinon, publicada em 1916, na Revue des deux
mondes. Sob o título “La suppression des Arméniens: méthode allemande, travail turc”, o artigo
descreve a aplicação pelo Império Otomano da doutrina de superioridade racial supostamente
elaborada por intelectuais alemães e que justificaria o extermínio de etnias inteiras, dentre as
quais a armênia. Segundo Pinon, os alemães não apenas nutririam desprezo pelos armênios mas
também os viam como um obstáculo para as suas pretensões expansionistas no interior do
Império: “nessas condições, a Alemanha tem interesse no desaparecimento dos armênios por constituírem
um grupamento nacional e político forte o suficiente para aspirar ao menos a uma autonomia administrativa”
2A expressão, comumente utilizada na época, remete à porta do palácio do sultão otomano, diante da qual os
embaixadores estrangeiros faziam fila para ser atendidos. Metonimicamente, passou a ser utilizada como
referência ao próprio Império Otomano.
(Pinon, 1916: 6 – tradução livre).
Outra importante fonte histórica sobre o assunto são os registros de Henri Morgenthau,
embaixador estadunidense no Império Otomano no início da Primeira Guerra. Beneficiado pela
posição de neutralidade de seu governo durante os três primeiros anos da guerra, Morgenthau
abasteceu o ocidente com valiosas informações a respeito da colaboração oferecida pelos
alemães para o extermínio dos armênios no interior do Império (Morgenthau, 2012). Ao
contrário dos diplomatas ingleses, franceses e russos, que foram expulsos do Império tão logo
a Guerra foi declarada, Morgenthau permaneceu em Istambul e manteve-se informado das
ações do governo inclusive no interior do território otomano, onde o acesso de jornalistas era
restringido pelas autoridades. Isso permitiu ao embaixador repassar ao governo de Washington
as queixas que lhe faziam os grupos atuantes na região, especialmente os grupos de missionários
que desde o século XIX desenvolviam ações em diversas partes do Império. Não obstante, o
governo estadunidense recomendou ao embaixador que buscasse ajuda em fontes privadas no
lugar de esperar uma atitude mais enérgica do governo de Washington, então interessado em
manter relações cordiais com o Império.
As principais fontes a respeito da participação direta de alemães no genocídio dos
armênios, no entanto, foram analisadas por Vahakn Dadrian em seu livro “German
Responsability in the Armenian Genocide”. A partir de documentos obtidos nos arquivos
alemães, o autor revela a comunicação entre oficiais do exército e entre altos membros da
diplomacia acerca de tais perseguições, o que corrobora os relatos de que as autoridades alemãs
tinham total conhecimento das medidas tomadas no interior do Império. Nos relatórios
reproduzidos por Dadrian, Hans von Wangenheim, embaixador alemão no Império Otomano,
relata, por exemplo, que “the Armenians of the convoy from Mardin were let be slaughtered
just like sheep” (12 de julho de 1915) ou que “by its policy of deportation and relocation, the
Turkish government is delivering up the Armenians to the [clutches of] a policy of annihilation”
(16 de julho de 1915) (apud Dadrian, 1996: 21). De acordo com os documentos recolhidos pelo
autor, os diplomatas estrangeiros chegavam a sofrer ameaças quando tentavam intervir a favor
das vítimas, como foi o caso do vice-cônsul Max Erwin von Scheubner Ritcher, advertido pelo
governador de Erzroum de que “unless he changed his attitude in the matter of Armenian
deportations, he, the governor, 'cannot guarantee your safety here', in Erzroum” (1996: 24).
Esses registros produzidos pela burocracia alemã ajudam a questionar a narrativa oficial
mantida pelo governo – e, mais ainda, a versão sustentada pelo governo otomano – de que as
autoridades não tinham conhecimento do extermínio de armênios que se realizava fora de
Istambul. Contudo, Dadrian demonstra que não apenas o generalato alemão era constantemente
alimentado de informações como também que os altos oficiais participavam diretamente da
elaboração das políticas de extermínio. O principal exemplo trazido pelo autor é o do General
Fritz Bronsart, Chief of the Ottoman General Staff (posição hierárquica imediatamente inferior
ao Ministro da Guerra Otomano), que determinou inúmeros processos de deportação, a despeito
de ter amplo conhecimento dos massacres que acompanhavam tais deportações (1996: 23-5).
A leitura do material analisado por Vahakn Dadrian demonstra que existem fundamentos
na narrativa que iguala armênios e judeus na condição de objeto de uma política de extermínio
apoiada pelas autoridades alemãs. Isso não significa, obviamente, igualar a Alemanha dos anos
1910 com aquela do período entre-guerras, da qual diferia em incontáveis aspectos políticos,
econômicos, sociais, etc; mas é preciso reconhecer que os dois processos históricos apresentam
semelhanças que ultrapassam as reivindicações de caráter preponderantemente político, como
poderia ser interpretada a luta pelo reconhecimento do genocídio.
Embora sejam múltiplas as evidências da conivência e mesmo da participação alemã no
genocídio dos armênios, é necessário por outro lado não atribuir demasiada importância a essa
colaboração e tampouco compreendê-la como algo excepcional. Essa parceria deve ser
observada à luz do pragmatismo preponderante em um cenário de conflito armado entre as
principais potências mundiais. Assim, se a Alemanha exerceu uma política de tolerância e de
colaboração em relação às decisões internas da Sublime Porta, a atuação dos outros agentes de
peso na cena internacional não foi diferente.
França e Inglaterra, que se encontravam no lado oposto ao do Império Alemão, por longos
meses haviam tentado atrair o Império Otomano para sua aliança, a despeito dos massacres
realizados pelo governo do sultão Abdul Hamid, entre 1894 e 1896, ou pelo dos Jovens Turcos,
em 1909 – o que demonstra que “preocupações humanitárias” não eram um diferencial na
agenda internacional dessas potências europeias. Sob a ótica do Império Alemão, portanto,
repreender seus aliados otomanos trazia o risco de melindrá-los e lançá-los nos braços da
Entente Cordiale.
Conforme ressaltei anteriormente neste texto, os Estados Unidos, outro ator importante
na cena internacional, ignoraram as recomendações de seu próprio embaixador e mantiveram
relações normais com o Império Otomano durante os massacres. A situação aqui pode ser
considerada mais grave do que aquela de França e Inglaterra, uma vez que, devido à sua posição
de neutralidade até 1917, os estadunidenses mantiveram sua representação diplomática,
missionários e jornalistas em território otomano, portanto tinham ainda mais condições de
denunciar os massacres.
Ademais, mesmo a posição alemã não deve ser tomada de maneira absoluta, pois muitas
autoridades recusavam-se a colaborar com a política de extermínio empreendida pelo governo
otomano. O caso do vice-cônsul von Scheubner Ritcher, também já citado aqui, é apenas um
exemplo da resistência a seguir tal política: ao seu lado, poderíamos destacar inúmeros
missionários responsáveis pelo salvamento de armênios ou o caso de Armin Wegner, que servia
no exército alemão e cujas fotografias são o mais importante registro visual dos massacres. É
necessário, assim, compreender em sua verdadeira complexidade a atuação dos alemães
instalados no interior das fronteiras otomanas.
A narrativa que identifica os alemães junto com os otomanos como algozes dos armênios
durante a Primeira Guerra Mundial pode, portanto, ser motivada por razões políticas, visto que
ela os aproximaria dos judeus e, consequentemente, conferir-lhes-ia força na sua luta pelo
reconhecimento do genocídio de que foram vítimas – que é um importante item na agenda das
comunidades armênias espalhadas pelo mundo. Todavia, a análise das fontes de época, como a
correspondência oficial da diplomacia da Alemanha, revela que o discurso da participação desse
país não é totalmente desprovido de embasamento e tampouco anacrônico; é preciso apenas
ponderar a real medida dessa participação. A declaração realizada pelo governo alemão em
2016 de que o país reconhece não apenas o genocídio dos armênios mas também a sua própria
responsabilidade nesse genocídio parece um importante movimento nesta direção.
Bibliografia:
Barthes, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 1957.
Bloxham, Donald. The great game of genocide: imperialism, nationalism, and the destruction
of the Ottoman Armenians. Oxford: Oxford University Press, 2005.
Bogossian-Porto, Pedro. “Os primeiros cristãos do mundo: pertencimento religioso e identidade
coletiva na diáspora armênia.” Horizontes Antropológicos 21, no. 43 (Jun. 2015): 157–82.
Dadrian, Vahakn N. German Responsibility in the Armenian Genocide: A Review of the
Historical Evidence of German Complicity. Watertown, Mass: Blue Crane Books, 1996.
Jones, Adam. Genocide: a comprehensive introduction. 2nd ed. New York: Routledge, 2011.
Morgenthau, Henry. A História do Embaixador Morgenthau. São Paulo: Paz e Terra, 2012.
Pinon, René. La suppression des Arméniens: méthode allemande, travail turc. Paris: Perrin,
1916.
Power, Samantha. Genocídio: a retórica americana em questão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.