condições históricas da reprodução social karl marx

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2. CONDI<;OES HISTORIC AS DA REPRODU<;AO SOCIAL * Quando estudamos urn pills determinado, do ponto de vista da economia politica, comec;amos por sua populac;ao, a divisao desta em classes, seu estabelecimento nas cidades, nos campos, na orIa maritima; os diferentes ramos da produc;ao, a exportac;ao e a importac;ao, a pro- duc;ao e 0 consumo anuais, os prec;os das mercadorias etc. Parece mais correto comec;ar pelo que ha de concreto e real nos dados; assim, pois, na economia, pela populac;ao, que e a base e sujeito de todo 0 ato social da produc;ao. Todavia, bem analisado, este metoda seria falso. A populac;ao e uma abstrac;ao se deixo de lado as classes que a compoem. Estas classes sao, por sua vez, uma palavra sem sentido se ignoro os elementos sobre os quais repousam, por exemplo: o. trabalho assaIaria- do, 0 capital etc. Estes supoem a troca, a divisao do trabalho, os prec;os etc. 0 capital,porexemplo, nao e nada sem trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, prec;os etc. Se comec;asse, portanto, pela populac;ao, elaboraria uma representac;ao ca6tica do todo e, por meio de uma determinac;ao mais estrita, chegaria analiticamente, cada vez mais, a conceitos mais simples; do concreto representado chegaria a abstrac;oes cada vez mais tenues, ate alcanc;ar as determinac;oes mais simples. Che- gado a este ponto, teria que voltar a fazer a viagem de modo inverso, ate dar de novo com a populac;ao, mas desta vez nao com uma re- presentac;ao ca6tica de urn todo, POreJ;llcom uma rica totalidade de determinac;oes e relac;oes diversas. 0primeiro constitui 0 caminho que foi historicamente seguido pela nascente economia politica, Os econo- mistas do seculo XVII, por exemplo, comec;am sempre pelo todo vivo: a populac;ao, a nac;ao, 0 EStddo, varios Estados etc., mas terminam sempre por descobrir, por meio da analise, certo numero de relac;oes " Reproduzido de MARX, K. "Posfacio." In: Contribuit;iio a Critica da Economia Politica. Trad. por Florestan Fernandes. Sao Paulo, Ed. Flama, 1946. p. 219-31. I 'l \ i I I I gerais abstratas que san Jeterminantes, tais comoa divisao 00 trabalho, o dinheiro, 0 valor etc, Estes elementos isolados, uma vez que sanmais ou menosfixados e abstraldos, dao origem aos sistemas economicos. quese elevam dosimples, tal comoTrabalho, Divisao do Trabalho, Necessidade, Valor de Troca, ate 0 Estado, a Troca entre as Nac;6es e oMercado Universal. 0 ultimo metodo e manifestamente 0 metodo cientificamente exato. 0 concreto e concreto, porque easintese de muitas determina<;6es, isto e, unidade do diverso. Por isso, 0 concreto aparece no pensamento como 0 processo da sintese, como resultado, nao como ponto de partida, embora seja 0 verdadeiro ponto de partida e, portanto, 0 ponto de partida tambem da percepc;ao e da representac;ao. No primeiro metodo, a representa<;ao plena volatiliza-se na determina- <;aoabstrata; no segundo, as determinac;6es abstratas conduzem a repro- duc;ao do concreto por meio do pensamento. Assim e que Hegel chegou a ilusao de conceber 0 real como resultado do pensamento que se absorve em si, procede de si, move-se por si; enquanto 0 metodo que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto nao e senao a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-Io mentalmente como coisa concreta. Porem isto nao e, de nenhum modo, o processo da genese do proprio concreto. A maiS\. simples categoria economica, suponhamos,por exemplo, 0 valor de troca, pressup6e a popula<;ao, uma populac;ao que produz em determinadas condi<;6es e tambem certo tipo de familias, de comunidades ou Estados. Talvalor nunca poderia existir de outro modo senao como relaC;ao unilateral- -abstrata de urn todo concreto e vivo ja determinado. Como categoria, ao contrario, 0 valor de troca leva consigo uma existencia antedi1uviana. Para a consciencia - e a consciencia filoso- fica e determinada de tal modo que, para ela, 0 pensamento que concebe e 0 homem real, e 0 mundo concebido e, como tal, 0 unico mundo real - para a consciencia, pois, 0 movimento das categorias aparece como o verdadeiro ato de produ<;ao - que apenas recebe urnimpulso do exterior - cujo resultado e 0 mundo, e isto e exato porque (aqui temos de novo uma tautologia) a totalidade concreta, como totalidade de pensamento, como uma concrec;ao de peosamento, e, na realidade, urn produto do pensar, do conceber; nao e de nenhum modo 0 prodllto do conceito que se engendra a si mesmo e que concebe separadamehte e acima dapercep<;ao e da representac;ao, mas e elaborac;ao dapercep- <;ao e da representac;ao em conceitos. 0 todo, tal como aparece no cerebro, como urn todo mental, e um produto do cerebro peosaote, que seapropria domuodo da unica maneiraem que 0 pode fazer, maneira que difere do modoartfstico, religioso e pnitico de se apropriar dele. 0

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Page 1: Condições Históricas Da Reprodução Social Karl Marx

2. CONDI<;OES HISTORIC AS DAREPRODU<;AO SOCIAL *

Quando estudamos urn pills determinado, do ponto de vista daeconomia politica, comec;amos por sua populac;ao, a divisao desta emclasses, seu estabelecimento nas cidades, nos campos, na orIa maritima;os diferentes ramos da produc;ao, a exportac;ao e a importac;ao, a pro-duc;ao e 0 consumo anuais, os prec;os das mercadorias etc. Parece maiscorreto comec;ar pelo que ha de concreto e real nos dados; assim, pois,na economia, pela populac;ao, que e a base e sujeito de todo 0 ato socialda produc;ao. Todavia, bem analisado, este metoda seria falso. Apopulac;ao e uma abstrac;ao se deixo de lado as classes que a compoem.Estas classes sao, por sua vez, uma palavra sem sentido se ignoro oselementos sobre os quais repousam, por exemplo: o. trabalho assaIaria-do, 0 capital etc. Estes supoem a troca, a divisao do trabalho, os prec;osetc. 0 capital, por exemplo, nao e nada sem trabalho assalariado, semvalor, dinheiro, prec;os etc. Se comec;asse, portanto, pela populac;ao,elaboraria uma representac;ao ca6tica do todo e, por meio de umadeterminac;ao mais estrita, chegaria analiticamente, cada vez mais, aconceitos mais simples; do concreto representado chegaria a abstrac;oescada vez mais tenues, ate alcanc;ar as determinac;oes mais simples. Che-gado a este ponto, teria que voltar a fazer a viagem de modo inverso,ate dar de novo com a populac;ao, mas desta vez nao com uma re-presentac;ao ca6tica de urn todo, POreJ;llcom uma rica totalidade dedeterminac;oes e relac;oes diversas. 0 primeiro constitui 0 caminho quefoi historicamente seguido pela nascente economia politica, Os econo-mistas do seculo XVII, por exemplo, comec;am sempre pelo todo vivo:a populac;ao, a nac;ao, 0 EStddo, varios Estados etc., mas terminamsempre por descobrir, por meio da analise, certo numero de relac;oes

" Reproduzido de MARX, K. "Posfacio." In: Contribuit;iio a Critica da EconomiaPolitica. Trad. por Florestan Fernandes. Sao Paulo, Ed. Flama, 1946. p. 219-31.

I

'l\iIII

gerais abstratas que san Jeterminantes, tais como a divisao 00 trabalho,o dinheiro, 0 valor etc, Estes elementos isolados, uma vez que san maisou menos fixados e abstraldos, dao origem aos sistemas economicos.que se elevam do simples, tal como Trabalho, Divisao do Trabalho,Necessidade, Valor de Troca, ate 0 Estado, a Troca entre as Nac;6es eo Mercado Universal. 0 ultimo metodo e manifestamente 0 metodocientificamente exato. 0 concreto e concreto, porque e a sintese demuitas determina<;6es, isto e, unidade do diverso. Por isso, 0 concretoaparece no pensamento como 0 processo da sintese, como resultado,nao como ponto de partida, embora seja 0 verdadeiro ponto de partidae, portanto, 0 ponto de partida tambem da percepc;ao e da representac;ao.No primeiro metodo, a representa<;ao plena volatiliza-se na determina-<;aoabstrata; no segundo, as determinac;6es abstratas conduzem a repro-duc;ao do concreto por meio do pensamento. Assim e que Hegel chegoua ilusao de conceber 0 real como resultado do pensamento que seabsorve em si, procede de si, move-se por si; enquanto 0 metodo queconsiste em elevar-se do abstrato ao concreto nao e senao a maneira deproceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-Iomentalmente como coisa concreta. Porem isto nao e, de nenhum modo,o processo da genese do proprio concreto. A maiS\.simples categoriaeconomica, suponhamos,por exemplo, 0 valor de troca, pressup6e apopula<;ao, uma populac;ao que produz em determinadas condi<;6es etambem certo tipo de familias, de comunidades ou Estados. Tal valornunca poderia existir de outro modo senao como relaC;ao unilateral--abstrata de urn todo concreto e vivo ja determinado.

Como categoria, ao contrario, 0 valor de troca leva consigo umaexistencia antedi1uviana. Para a consciencia - e a consciencia filoso-fica e determinada de tal modo que, para ela, 0 pensamento que concebee 0 homem real, e 0 mundo concebido e, como tal, 0 unico mundo real- para a consciencia, pois, 0 movimento das categorias aparece comoo verdadeiro ato de produ<;ao - que apenas recebe urn impulso doexterior - cujo resultado e 0 mundo, e isto e exato porque (aqui temosde novo uma tautologia) a totalidade concreta, como totalidade depensamento, como uma concrec;ao de peosamento, e, na realidade, urnproduto do pensar, do conceber; nao e de nenhum modo 0 prodlltodo conceito que se engendra a si mesmo e que concebe separadamehtee acima da percep<;ao e da representac;ao, mas e elaborac;ao da percep-<;ao e da representac;ao em conceitos. 0 todo, tal como aparece nocerebro, como urn todo mental, e um produto do cerebro peosaote, quese apropria do muodo da unica maneira em que 0 pode fazer, maneiraque difere do modo artfstico, religioso e pnitico de se apropriar dele. 0

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objeto concreto perrnanece em pe antes e depois, em sua independenciae fora do cerebro ao mesmo tempo, isto e, 0 cerebro nao se comport asenao especulativamente, teoricamente. No metodo tambem te6rico [daeconomia poHtica], 0 objeto - a sociedade - deve, pois, achar-sesempre presente ao espirito, como pressuposi<;ao.

Porem, estas categorias simples nao tern tambem uma existenciaindependente, hist6rica ou natural, anterior as categorias mais concre-tas? 9a depend. 1 Hegel, por exemplo, come<;a corretamente suaRechtsphilosophie pela posse, como a tiIais simples rela<;ao juridica dosujeito. Todavia, nao existe posse anterior a famlIia e as rela<;6es entresenhores e escrayos, que sao rela<;6es muito mais concretas ainda.Como compensa<;ao, seria justo dizer que existem famlIias, tribos, quese limitam a possuir, mas nao tern propriedade. A categoria mais sim-ples aparece, pois, como rela<;ao de comunidades de famlIias ou detribos com a propriedade. Na sociedade primitiva aparece como arela<;ao mais simples de urn organismo desenvolvido, mas subentende-sesempre 0 substrato mais concreto, cuja rela<;ao e a posse. Pode-seimaginar urn selvagem isolado que possua coisas. Mas neste caso aposse nao e uma rela<;ao juridica.

Nao e exato que a posse evolua historicamente ate a famlIia. Aposse sempre pressup6e esta "categoria juridica mais concreta" . Entre-tanto, restaria sempre 0 seguinte: as categorias simples sao a expressaode rela<;6es nas quais 0 concreto menos desenvolvido tern podide serealizar sem haver estahelecido ainda a rela<;ao mais complex a, que seacha expressa mentalmente na categoria concreta, enquanto 0 concretomais desenvolvido conserva a mesma categoria como uma rela<;aosubordinada.

o dinheiro pode existir, e existiu historicamente, antes que exis-tisse 0 capital, antes que existissem os Bancos, antes que existisse 0,trabalho assalariado. Deste ponto de vista pode-se dizer que a categoriasimples pode exprimir rela<;6es dominantes de urn todo pouco desenvol-vido ainda, rela<;6es que ja existiam antes que 0 todo tivesse sedesenvolvido n' dire<;ao que e expressa em uma categoria mais completa.,Neste sentido, as leis do pensamento abstrato que se eleva do maissimples ao complexo, correspondem ao processo hist6rico real.

De outro lado, pode-se dizer que ha forrnas de sociedade muitodesenvolvidas, embora historicamente nao tenham atingido ainda sua

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maturidade, nas quais se encontram as formas mais elevadas da econo-mia, tais como a coopera<;ao, uma divisao do trabalho desenvolvida,sem que exista nelaso dinheiro; 0 Peru,por exemplo.

Tambem nas comunidades eslavas 0 dinheiro e a troca que 0

condiciona desempenham urn papel insignificanteou nulo, mas apare-cern em suas fronteiras,nas' suas rela<;6es comas outras comunidades.Alem disso, e urn erro situar a .troca no interior das comunidades comoelemento que as constitui originariamente. A principio surge antes nasrela<;6es reciprocas entre as distintas comunidades do que nas rela<;6esentre os· membros de uma mesma e (mica comunidade.

Alem disso, embora 0 dinheiro tenha desempenhado oportunamen-te, e por toda parte, desde os antigos, urn papel como' elemento d~mi-nante, nao aparece na Antigtiidade senao em na<;6es desenvolvldasunilateral mente em deterrninado sentido, e ainda na Antigiiidade maiscuIta, entre os gregos e os roman os, nao atinge' seu completo desenvol-vimento, supondo completo 0 da modema sociedade burguesa, senaono periodo de dissolu<;ao. Esta simpHssima categoria aIcan;a historica-mente, portanto, seu ponto culminante somente nas condi<;6es maisdesenvolvidasda sociedade. E 0 dinheiro nao entrava (?), de nenhummodo, em todas as rela<;6es economicas; assim, no Imperio Romano,na epoca de seu perfeito desenvolvimento, perrnaneceram como funda.,.m~ntais 0 imposto e 0 emprestimo em frutos naturais. 0 sistema dodinheiro,propriamente falando, encontrava-se ali completamente desen-volvido unicamente no .exercito, e nab tinha participa<;ao na totalidadedo trabalho.

De modo que, embora a categoria mais simples tenha podidoexistir historic~mente antes que. a mais cbncreta, nao pade precisamentepertencer em .seu pleno desenvolvimento, intemo e externo, senao aforma<;6es sociais compostas (?), enquanto que a categoria mais con.,.creta se achava plenamente desenvolvida em uma forma de sociedade,menosavan<;ada.

o traQalho e uma categoriainteiramentesimples. E tambem aconcep<;ao do trabalhoneste sentido geral - como, trabalho em geral- e muito antiga. Entretanto, concebido economicamente sob esta'simplicidade, 0 trabalho euma categoria .tao modem a como 0 sao ascondi<;6eS'que engendram esta abstra<;ao. Por exemplo, 0 sistema mo.,.netarib coloca a riqueza sem exce<;aoobjetivamente ainda ( ... ) 2 no

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dinheiro. Deste ponto de vista, houve urn grande progresso quando 0sistema manufatureiroou comercial colocou 0 manancial da riquezanao noobjeto, mas na atividade subjetiva - 0 trabalho comercial emanufatureiro. Contudo, concebia-a ainda no sentido restrito de uma.atividadeprodutora de dinheiro. Em rela<;ao com este sistema, 0 dosfisiocratas (urn novo progresso) e assim: estabelece uma forma determi-nada de ..trabalho - a agricultura - como criadora de riqueza, e 0

proprio' objeto nao aparece ja sob 0 disfarce do dinheiro, mas comoproduto em geral, como resultado geral do trabalho. Mas este produto,de conformidade com as limita<;oes da atividade, e sempre urn produtonatural. A agricultura produz a. terra, produz par excellence. 3 Pro-grediu-se imensamente quando Adam Smith repeliu todo carater deter-minado da atividade que cria a fiqueza, quando [estabeleceu] 0 trabalho

: simplesmente; nao 0 trabalho manufatureiro, nao 0 comercial, nao' 0

agricola, mas tanto uns quanta os outros. Com a generalidade abstratada atividade que cria a riqueza, temos agora a generalidade do objeto

· determinado C0Il,10 riqueza, 0 produto em geral ou, uma vez mais, 6trabalho' em geral, mas como trabalho passado realizado. A dificuldadee importforicia desta transi<;ao prova-o 0 fato de que 0 proprio AdamSmith torna a cair, de quando em quando, no sistema fisiocratico.Poderia parecer agora que, deste modo, se teria encontrado unicamentea expressao abstrata da rela<;ao mais simples e m'ais antiga em queentram os homens - em qualquer. forma de sociedade - enquantosac ·produtores.Isto e certo em urn sentido. Mas nao em outro.

A indiferen<;a em rela<;ao a urn genero determinado de trabalhopressupoe uma totalidade muito desenvolvida de generos de tnibalhosreais, nenhum dos quais domina os demais. Tampouco se produzemas abstra<;oes mais gerais senao onde existe 0 desenvolvimento concreto

·mais rico, onde uma coisa aparece como comum a muitos individuos,comum' a todos. Entao ja nao pode ser imaginada somente sob uma

· forma particular. De outro lado, esta abstra<;ao do trabalho em geralnao e mais que 0 resultado de uma totalidade concreta de trabalhos.A indiferen<;a em rela<;ao ao trabalho determinado corresponde a umaforma de sociedade na qual os indivlduos podem passar com facilidadede urn trabalho a outro e ria qual 0 genero determinado de trabalho efortuito, e, portant~, e-lhes indiferente. Neste caso 0 trabalho se ternconvertido, nao so categoricamente, mas realmente em urn meio deproduzir ~iqueza em geral, deixando de se confundir com 0 individuo

como um objetivo especial. Este estado de coisas e 0 mais desenvolvidona forma de existencia mais modern a da sociedade burguesa - nosEstados Unidos. Assim, pois, neste caso,' a abstra<;ao da categoria"trabalho", "trabalho em geral", trabalho sans phrase, { ponto de par-tida da economia· modern a, torna-se, pela primeira vez, praticamentecerta. De modo que a abstra<;ao mais simples, que coloca em primeirolugar a economia modern a e que express a uma rela<;ao antiga e validapara todas as formas de sociedade, nao aparece, entretanto, como prati-camente certa nesta abstra<;ao senao como categoria da mais modern asociedade. Poder-se-ia dizer que tudo 0 que surge nos Estados Unidoscomo urn produto hist6rico ocorre entre os russos, por exemplo _trata-se desta indiferen<;a em rela<;ao ao trabalho determinado _como uma disposi<;ao natural. Em primeiro lugar, ha uma diferen<;aenorme entre os barbaros aptos para serem empregados em qualquer.coisa e civilizados que se dedicam eles proprios a tudo. E, alemdisso,praticamente, a esta indiferen<;a em rela<;ao ao trabalho determinadocorresponde, nos russos, 0 fato de que se encontram submetidos tradi-cionalmente a urn trabalho bem determinado, do qual s6 as influenciasexteriores podem arranca-los.

Este exemplo mostra, de uma maneLra clara, como ate as categoriasmais abstratas, apesar de sua valida de - precisamente por causa desua natureza abstrata - para todas as epocas, sao,. contudo, no queha de determinado nesta abstra<;ao, do mesmo modo, 0 produto decondi<;oes hist6ricas, e nao possuem plena validez. senao para estascondi<;oes e dentro dos limites destas mesmas condi<;oes.

A sociedade burguesa e a organiza<;ao historica da produ<;ao maisdesenvolvida, mais diferenciada. As categorias que exprimem suascondi<;oes, a compreensao de sua propria organiza<;ao, a torn am aptapara abarcar a organiza<;ao e as rela<;oes de produ<;ao de todas asformas de sociedade desaparecidas, sobre cujas rulnas e elementos seacha edificada, e cujos vestigios, nao ultrapassados ainda, leva arras-tando, enquanto que tudo 0 que fora antes apenas indicado se desen-volveu, tomando toda sua significa<;ao etc. A anatomia do homem ea chave da anatomia do mono. 0 que nas especies animais inferioresindica uma forma superior, nao pode, ao contrario, ser compreen dida

. senao quando se conhece a forma superior. A economia burguesafornece a' chave da economia antiga etc. Porem,. nao conforme 0

metodo dos economistas, que fazem desaparecer todas as diferen<;as

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hist6ricas e veem a forma burguesa em todas as formas de sociedade.Pode-se compreender 0 tributo, 0 dfzimo, quando se compreende arend a territorial. Mas, nao se deve identifica-Ios.

Como, alem disSb, a sociedade burguesa nao e, em si, mais doque uma forma antagonica do desenvolvimento, certas relac;oes perten-centes a formas anteriores nela s6· pbderao ser novamente encontradascompletamente esmaecidas ou mesmo disfan;adas; por exemplo, a pro-priedade comuna!. Se e certo, portanto, que as categorias da economiaburguesa ocorrem em todas as demais formas de sociedade nao se devetomar isto senao cum grano salis. Podem ser contidas, desenvolvidas,esmaecidas, . caricaturadas, mas sempre essencialmente distintas. Achamada evolu<;ao historica descansa em geral no fato de que a ultimaforma considera as formas ultra passadas como graus que conduzem aela, sendo capaz de criticar-se a si mesma alguma vez, e somente emcondic;oes muito determinadas - aqui nao se trata, e obvio, dessesperfodos historicos que se descobrem a si proprios - inclusive comotempos de decadencia. A religiao crista nao pode ajudar a tomar.compniensfvel, de uma maneira objetiva, .as mitologias anteriores senaoquando sua crftica de si mesma esteve, ate certo ponto, dynamei, isto e,acabada .. Deste modo, a econcimia burguesa so chegou a compreendera sociedade feudal, antiga, oriental, quando a sociedade burguesa come-c;ou a criticar-se a si mesma. Precisamente porque a economia burguesanao prestou atenc;ao a mitologia e nao se identificou simplesmente como passado, sua crftica da [sociedade] anterior, especialmente da feudal,com a qual ainda tinha que lutar diretamente, se assemelhou a crfticaque 0 cristianismo fez do paganismo ou 0 protestantismo do catolicismo.

Quando se estuda a marcha das categorias economicas e, em geral,qualquer ciencia social historica, sempre convem recordar que 0 sujeito- a sodedade burguesa modema, neste caso - se encontra determinadona mentalidade tanto quanta na realidade, e que as categorias, portanto,exprimem form as de vida, determinac;oes de existencia, e amiude so-mente aspectos isolados desta sociedade determinada, deste sujeito, eque, por isso, a [economia poHtica] nao aparece tambem como cienciasenao unicamente a partir do momenta em que trata dela como tal.Deve-se recordar este fato, porque da imediatamente uma direc;aodecisiva para a divisao que .lleprecis a fazer.

Parece muito natural, pol' exemplo, que se comece pela rend aterritorial, a propriedade rural,porque se encontra ligada a terra, fontede toda produc;ao e vida, e a agricultura, primeira forma deproduc;aoe~ tbdas as sociedades, por pouco solidificadas que se ac.hem.. E,

contudo, nada mais falso do que isto. Em todas as formas de sociedadese encontra uma produc;ao determinada, superior a todas as demais, ecuja situac;ao aponta sua posic;ao e sua Influencia sobre as outras. :f:uma iluminac;ao universal em que atuam todas as cores, e as quaismodifica em sua particularidade. :f: urn eter especial, que determina 0

peso espedfico de todas as coisas as quais poe em relevo.Consideremos, por exemplo, os povos pastores (os simples povos

cac;adores ou pescadores nao chegaram ao ponto em que comec;a 0

verdadeiro desenvolvimento). Neles existe certa forma esporadicadeagricultura. A propriedade rural encontra-se determinada por ela. Estapropriedade e comurn, e conserva mais ou menos esta forma, conformeaqueles povos se aferrem mais ou menos as suas tradic;6es; por exemplo,a propriedade rural entre os eslavos. Onde predomina a agricultura,praticada por povos estabelecidos - e este estabelecimento ja constituiurn grande progresso - como na sociedade antiga e feudal, a industria,com sua organizac;ao e as form as da propriedade quelhe correspondem,mantem tambem maiores ou menores trac;os caracteristicos da proprie-dade rural; [a sociedade] ou bem depende inteiramente da agricultura,como entre os antigos roman os, ou imita, como na Idade Media, aorganizac;ao do campo nas relac;oesda cidade. 0 proprio capital -enquanto nao seja simples capital dinheiro - possui, na Idade Media,como utensHio (?) tradicional, este. carater de propriedade rural.

Na sociedade burguesa acontece 0 contrario. A agricultura trans-forma-se mais e mais em simples ramo da industria e e dominadacompletamente pelo capital. A mesma coisa ocorre com a rendaterritorial. Em todas as formas em que domina a propriedade rural, arelac;ao com a naturezae preponderante. Naquelas em que reina 0

capital, 0 qile prevalece e 0 elemento social produzido historicamente.Nao se compreende a renda territorial sem 0 capital; entretanto, com-preende-se 0 capital sem a renda rural. 0 capital e a potencia econo-mica dil sociedade burguesa, que domina tudo. Deve constituir 0 pontoinicial e 0 ponto final e ser desenvolvido antes da proprieda<;le rural.Depois de ter considerado separadamente urn e outro, deve-se estudarsua rela<;ao reciproca. Seria, pais, impraticavel e erroneo colocar ascategorias economicas na ordem segundo a qual tiveram historicamenteuma ac;ao determinante. A ordem em que se sucedem se acha determi-:nada, ao contrario, pela rela<;ao que tern umas com as outras nasociedade burguesa modema, e que e precisamente, 0 inverso do queparece ser uma relac;ao natural ou do que' corresponde a serie da evo-lu<;ao historica. .Nao se trata do lugar que as rela<;oes economic as

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ocupem, historicamente, na sucessao das diferentes formas da sociedade.Menos ainda de sua serie "na ideia" (Proudhon), que nao passa deuma representac;ao falaz (?) do movimento historico. Trata-se de suaconexao organica no interior da sociedade burguesa modema.

A nitidez (caniter determinado abstrato) com que os povos comer-ciantes - fenfcios, cartagineses - aparecenim no mundo antigo, pro-vem, precisamente, da propria supremacia dos povos agricultores. 0capital, como capital comercial ou capital dinheiro, aparece nestaabstrac;ao justamente onde 0 capital nao e ainda um elemento prepon-derante das sociedades. Os lombardos, os judeus, ocupam a mesmaposic;ao em relaC;ao as soCiedades medievais que praticam a agricultura.

Ainda pode servir de exemplo do papel distinto que as mesmascategorias desempenham em diferentes graus da sociedade, 0 seguinte:as sociedades por ac;6es, uma das ultimas form as da sociedade burguesa,aparecem tambem, em seus comec;os, nas grandes companhias comer-ciais privilegiadas, desfrutadoras dos monopolios.

o conceito da riqueza nacional em si insinua-se no espfrito doseconomistas do seculo XVII sob a forma - e esta representac;aopersiste em parte nos do seculo XVIII - de que a riqueza nao se criasenao para 0 Estado, e. que a potencia do Estado e proporcional a estariqueza. Tambem esta era uma forma inconscientemente hipocrita soba qual a riqueza e a produc;ao da mesma se expressavam como finalidadedos Estados modern os, e nao se Ihes considerava senao como meiospara chegar a este fim.

A divisao deve, docomec;o, ser feita de maneira que [se de-senvolvam], em primeiro lugar, as determinac;6es gerais abstratas, quepertencem mais ou menos a todas as formas de sociedade, mas nosentido exposto anteriormente. Em segundo lugar, as categorias queconstituem a organizac;ao interior da sociedade burguesa,sobre as quaisrepousam as classes fundamentais. Capital. Trabalho assalariado. Pro-priedade rural. Suas rela<;:6es redprocas. Cidade e campo. As tresgrandes classes· sociais. A troca entre estas. Circulac;ao. Cr6dito(privado). Em terceiro lugar, a sociedade burguesa compreendida soba forma de Es~ado. 0 Estado em si. As classes "improdutivas". Im-postos. Dfvidas do Estado. () credito publico. A populac;ao. As colonias.Emigra<;:ao. Em quarto lugar, relac;6es internacionais da produc;ao.Divisao internacional do trabalho. Troca internacional. Exportac;ao eimportac;ao. Curso do cambio. Em quinto lugar, 0 mercado mundial eas crises.

ProdUfiio. - Meios de produfiio e relafoes de produfiio.Relafoes de prodw;iio e de distribuifiio. - Formas do Estado e dapropriedade em sua relafiio com a produfiio e a distribui<;iio. --:"Relafoes juridicas. - Relafoes familiares.

Nota Bene - relac;ao dos pontos que precis am ser mencionadosaqui e que nao devem ser esquecidos:

1) A guerra e desenvolvida antes que a paz. [Deveria expor]como pela guerra e nos exercitos etc., certos fenomenos economicos, taiscomo 0 trabalho assalariado, 0 maquinismo etc., sac desenvolvidosantes que no interior da sociedade burguesa. No exercito e especial-mente visfvel a· rela<;:aoda forc;a produtiva e dos meios de comunica<;:ao.

2) Relac;ao do metodo idealista de escrever a Historia tal comose tern feito ate agora e 0 metodo realista. Particularmente a chamadaHistoria da CivilizaC;ao, que e a Historia da religiao e dos Estados.

A esta altura, poder-se-a dizer alguma coisa sobre as diferentesmaneiras de se escrever a historia ate agora. 0 modo chamado objetivo.o subjetivo (moral e outros). 0 modo filos6fico. .

3) Fatos secunddrios e tercidrios. Em geral, relac;6es de produc;ao;derivadas, transmitidas, nao originais. Aqui entram em jogo as relac;6esinternacionais.

4) Sobre 0 materialismo desta concepc;ao. Rela<;:ao com 0 mate-rialismo natutalista.

5) Dialetica dos conceitos, forc;a produtiva (meios de produ<;:ao) e·rela<;:6esde produ<;:ao, dialetica, cujos limites se deve determinar e quenao elirnina a diferen<;:areal.

6) A rela<;:aodesigual entre 0 desenvolvimento da produc;ao ma-terial e a produ<;:ao antiga, por exemplo. Em geral, 0 progresso naodeve ser cOilcebido da maneira abstrata habitual. Em relac;ao a arte,

. ·esta desproporc;ao nao. e ainda tao import ante nem tao diffcil de apreen-der como nas rela<;:6espnitico-sociais; por exemplo, a rela<;:aoda culturados Estados Unidos com'a da Europa. 0 ponto realmente difkil queprecisa ser discutido e 0 de saber como evoluirao de uma maneira de-sigual (?) as relac;6es de produc;ao e as relac;6es juridic as que delasderivanr:-·'Assim, por exemplo, a rela<;:aoentre 0 direito privado romano(quantoao direito criminal e publico nao parece tao certo) e a,produc;ao modema. .

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7) Esta concepc;ao aparece como a de .utna evoluc;ao necessaria.'Mas justificac;ao do acaso. Varia 5 (A liberdade, e tambem outrascoisas). (Influencia dos meios de comunicac;ao). Falando com pro-priedade, a Historia Universa.l nem sempre aparece na Historia como.result ado da Historia Universal.

8) As determinac;oes naturais subjetivas e objetivas, tribos, rac;asetc., devem constituir, como e justo, 0 ponto de partida. .

Quanto a arte, ja se sabe' que os perfodos de florescimento deter-minados nao estao, absolutamente, em relac;ao com 0 desenvolvimentogetal da sociedade nem, portanto, com a base material, oesqueleto, decerta modo, de sua organizac;ao. Por exemplo, os gregos, comparadoscom os modern os, ou, ainda, Shakespeare. Em relac;ao a certOS generosde arte, a epopeia, por exemplo,admite-se que jamais podem produzir-seem sua forma cllissica, fazendo epoca no mundo, desde 0 momenta em .que a produc;ao artistica aparece como tal; isto e, no interior do dominioda propria arte, algumas manifestac;oes importantes nao saopossiveissenao em urn grau inferior da evoluc;ao da arte. Se isto e certo,referindo-se .a relac;ao dos diferentes generos de arte no interior dodominie da propria arte, nao se pode estranhar que tambem oseja arespeito da relac;ao do dominio todo da arte com 0 desenvolvimento geniIda sociedade .. A dificuldade consiste somente na formulac;ao geral destascontradic;Oes. Assim que se especificam, explicam-se. Consideremos,por exemplo, a relac;ao da arte grega e depois a de Shakespeare com ostempos atuais. A mitologia grega, como se sabe, nao somente era 0

arsenal da arte grega, mas sua terra alimentadora tambem. A concepc;aoda natureza e das relac;oes sociais, que se.acham no fundo da imaginac;aogrega e, portanto, da arte grega, e por acaso compativel com as ma-quinas automaticas, as estradas de ferro, as locomotivas e 0 telegrafodetrico? Que representa Vulcano ao ladode Roberts & C.in, Jupiterdos para-raios .e Hermes do credito mobiliario? Toda a mitologiasubmete e domina e model a as forc;as da natureza, na imaginac;ao epara a imaginac;ao, e desaparece, portanto, quando se chega a domina-lasrealmente. Que epresenta a Fama em relac;ao a Printing House Square. 6A arte grega pressupoe a mitologia grega, istQ e, a natureza e a propriasociedade modelada ja de uma maneira inconscientemente artistic a pelafantasia popular. Esses sac seus materiais .. Nao uma mitologia qualquer,nao qualquer transformac;ao inconscientemente artistica da natureza

(compreendendo esta ultima tudo que e objeto, logo, tambem, a socie-'dade). A mitologia egipcia jamais pOde ceder 0 solo ou 0 seio maternapara criar a arte grega. Mas, em todo caso, era necessaria uma mitolo-gia. A arte grega nao podia surgir, em nenhum caso, em uma sociedade

. que exclui toda relac;ao mitologica com a natureza, que exige do artistauma. imaginac;ao que nao se apoie na mitologia.

De . outro ponto de vista, e possivel a existencia de Aquiles aoaparecer a polvora e 0 chumbo? A ll£ada inteira e compativel com amaquina impressora? Nao desaparecem, necessariamente, os cantos, as'lendas, e a Musa diante da regreta do tipografo? Nao se desvanecemas condic;oes necessarias da poesia epica?

o difkil nao e compreender que a arte grega e a epopeia se achemligadas a certas form as do desenvolvimento social, mas que aindapossamproporcionar gozos esteticos e sejam consideradas, em c.ertoscasos, como norma e nlodelo inacessiveis.

Urn homem nao pode voltar a ser crianc;a sem retornar a infancia.Mas nao se satisfaz com a ingenuidade da crianc;a e nao deve .aspirara reproduzir, em urn nivel mais elevado, a sinceridade da crianc;a? Naorevive, na natureza infantil,o carater proprio de cada epoca em suaverdade natural? Por que a infancia social da humanidade, no maisbelo de seu florescimento, nao deveria exercer uma eterna atrac;ao,como uma fase desaparecida para sempre? Ha meninos mal-educadose meninos envelhecidos. Muitas nac;oes antigas pertencem a esta cate-goria. Os gregos eram meninos normais. Oencanto que encontramosem sua arte nao esta em contradiC;ao com 0 carater primitive da socie-dadeem que essa arte se desenvolveu. :E, ao contrario, sua produc;ao;poder-se-ia dizer melhor que se acha indissoluvelmente ligada ao fatode que as condic;oes sociais imperieitas em que nasceu, e nas quaisforc;osamente tinha que nascer, nao poderiam retornar nunca mais.

5 Assim estii escrito no original.6 Tipografia do jornal Times.