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As questões envolvidas: Macro e Micro Estrutura 1 Márcia Dadalti CONDIÇÕES DE VIDA: VIVER NA “COMUNIDADE SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS”, EM MARÍLIA- SÃO PAULO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em xxxxx. Área de xxxx, da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp, para obtenção do título de mestre. Orientador: Botucatu 2006

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As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 1

Mrcia Dadalti

CONDIES DE VIDA: VIVER NA COMUNIDADE SAGRADO CORAO DE JESUS,

EM MARLIA- SO PAULO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em xxxxx. rea de xxxx, da Faculdade de Medicina de Botucatu Unesp, para obteno do ttulo de mestre.

Orientador:

Botucatu 2006

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As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 2

Ficha catalogrfica

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 3

Dedicatria

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 4

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 5

Agradecimentos

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 6

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 7

sumrio

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 8

RESUMO________________________________________________ 1001. AS QUESTES ENVOLVIDAS: DO PESSOAL AO MACRO-

ESTRUTURAL_________________________________________

1.1 Apresentao: a trajetria pessoal em direo C.S.C.J.........

1.2 Este mundo to desigual...........................................................

1.3 Base material da sociedade na conformao das condies de vida e sade de uma populao favelada............................

1.4 Ter um abrigo: de necessidade direito fundamental X a favela.........................................................................................

1.5 Questes de famlia e gnero: outras esferas fundamentais nas condies de vida e sade.................................................

1.6 Refletir sobre a sade e a doena: questo bsica para a vida............................................................................................

2. OBJETIVO____________________________________________ 3. A PESQUISA: SUA CONCEPO ________________________

3.1. PRIMEIRAS RESPOSTAS PARA O PROBLEMA COLOCADO______________________________________ 3.1.1. O cenrio ........................................................................

3.1.2. Populao de estudo.......................................................

3.1.3. Coleta de dados..............................................................

3.1.4. Anlise dos dados...........................................................

4. OS PERSONAGENS: O VIVIDO E O PENSADO______________

4.1 Quem so e o que fazem..........................................................

4.2 O espao fsico..........................................................................

4.3 A favela enquanto a Casa do Homem....................................

4.4 Viver na favela: hoje e o amanh ..................................................

5. PALAVRAS FINAIS_____________________________________ 6. REFERENCIA _________________________________________ 7. ANEXOS _____________________________________________

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 9

APRESENTAO

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 10

A trajetria pessoal em direo Comunidade Sagrado Corao de Jesus

Podemos considerar como ponto de partida para esta jornada

o envolvimento, desde quando estudante de enfermagem, com as questes

contrastantes apresentadas pela realidade brasileira. Ao longo do tempo, a

prtica profissional foi acentuando ainda mais essas inquietaes, e durante

sete anos como assistente de ensino no curso de enfermagem, pudemos

vivenciar esse complexo mundo de desigualdades atravs do

relacionamento contnuo e freqente com uma populao moradora em rea

de favela, que faz parte de uma microrea da rea de abrangncia de uma

Unidade Bsica de Sade. Esta rea tem sido um dos cenrios de ensino-

aprendizagem para a formao profissional do enfermeiro, cenrio real da

prtica profissional, pois o currculo visa formao de um profissional

crtico e reflexivo que possibilite sua interveno em uma dada realidade.

Em 1999, iniciou-se um processo de desenvolvimento de um

programa inter-setorial, envolvendo a Prefeitura de Marlia, a Faculdade de

Medicina de Marlia (FAMEMA) e representaes da sociedade civil,

denominado Projeto UNI (Uma Nova Iniciativa: Universidade, Servio de

Sade e Comunidade), financiado pela Fundao Kelloggs.

O programa apoiou a construo de um projeto integrado

que contemplasse a relao sade e desenvolvimento social, direcionando

aes comunitrias para o enfrentamento de fatores que determinam as

precrias condies de vida e sade de uma parcela da populao. Dada a

existncia de atividades da FAMEMA junto favela Comunidade Sagrado

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 11

Corao de Jesus (C.S.C.J), buscou-se fortalecer a comunidade para que

fosse a prpria articuladora do processo de desfavelamento. Em 2000 teve

incio a discusso desta problemtica com a Prefeitura Municipal, que apoiou

a causa, estabelecendo parceria com o projeto UNI, tendo a colaborao

dos estudantes e docentes do curso de Enfermagem. Providenciou-se toda

documentao pessoal das famlias para o cadastramento no programa e,

em 2002, foi assinado um convnio com a Companhia do Desenvolvimento

Habitacional Urbano do governo do Estado de So Paulo (CDHU).

No incio de 2004, iniciaram-se as obras pelo sistema de

mutiro, e as famlias dedicavam horas de trabalho na construo das

casas. As primeiras casas foram entregues em julho de 2005.

Desse modo, foi-nos possvel acompanhar a complexidade

da vida dessas famlias durante quase uma dcada, e, concomitante ao

atendimento de enfermagem realizado, a vivncia contribuiu para identificar

as contradies de uma sociedade capitalista, o modo de viver dessas

pessoas, excludas de necessidades humanas bsicas, em que o

desemprego, a pobreza, suas concepes e representaes interferem no

processo sade-doena.

Dar voz aos moradores, aos excludos, trazer o pensado e o

vivido por quem mora numa situao peculiar e , tambm, um dos passos

de um processo de transformao subjacente para quem trabalha na rea

social. Essa tem sido a direo desse projeto de mestrado no campo da

sade coletiva.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 12

Resumo

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 13

Condies de vida: viver na Comunidade Sagrado Corao de Jesus, em Marlia - So Paulo.

Vive-se num pas de muitos contrastes em todos os setores. Com ampla

extenso territorial, terras frteis e riquezas naturais, livre de algumas das

grandes catstrofes naturais, o pas caracteriza-se pela m distribuio do

produto do trabalho social global. A partir dessa distribuio desigual, volta-

se o olhar para uma maneira especfica de se viver, isto , em agrupamento

denominado favela, ambiente que oferece um grande contraste com o

esperado em termos de qualidade mnima de vida. Diante de um cenrio de

crises econmicas e polticas cclicas, no qual o Estado deixa a desejar

quanto distribuio do bem-estar social, as redes de solidariedade e

sociabilidade scio-familiar ganham fora e destaque. Elas representam,

para as camadas populares, a condio de sobrevivncia, em que a famlia

ampliada e o grupo de conterrneos so possibilidades de aumento da

renda, afeto, emprego, moradia, sade, etc.

Sendo considerada a favela uma das maiores expresses da violncia

urbana, o objetivo deste trabalho analisar as condies de vida das

famlias moradoras na favela da Comunidade do Sagrado Corao de Jesus,

utilizando-se de abordagens quantitativa e qualitativa, e recorrendo-se s

entrevistas estruturadas para um conhecimento mais aprofundado.

Tem-se uma populao jovem, com uma parcela significativa de adultos em

fase produtiva, no alfabetizados e desprovidos de emprego, estando uma

parte expressiva deles excluda do mercado formal de trabalho. Esses

fatores contribuem para a perpetuao do ciclo da pobreza entre as

geraes. De outro lado, v-se que, embora as condies geogrficas no

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 14

sejam favorveis e as moradias se apresentem em situaes muitas vezes

subumanas, pelo ngulo das famlias, que em sua maioria se caracterizam

como nucleares, o ambiente apresenta uma vasta rede de relaes sociais

primrias necessrias para a sobrevivncia. Dependendo da rede de

relaes sociais desenvolvida e da avaliao que tm dos outros, a favela

torna-se um lugar bom para se viver, mesmo com obstculos, principalmente

em relao s precrias condies da moradia e a falta de privacidade,

considerando o nmero de cmodos e as pessoas que nela habitam. Nessa

situao de precariedade, a associao e a solidariedade esto presentes

para essas pessoas enfrentarem condies crticas de sobrevivncia,

compartilhando os escassos e intermitentes recursos para conseguirem se

impor em grupo s circunstncias que certamente as fariam sucumbir como

indivduos isolados.

Analisar as condies de vida das famlias da CSCJ em todas as suas

peculiaridades e profundidades equivale a aproximar o estranho, desvendar

o outro to estranho na aparncia, mas no na essncia, pois se trata,

sobretudo, de seres humanos. Resultados diferentes de um nico processo

de desenvolvimento, a favela, com seus moradores, criada e recriada

como o paradoxo da sociedade capitalista ao lado de condomnios fechados

de alto luxo. Apenas com a participao contnua de todos os atores sociais

na definio de suas escolhas, nos locais onde se formam e adquirem

significados, que se teria oportunidade de insero social, criando-se

novos valores e nova tica que, amplamente compartilhados poderiam

passar a orientar uma nova ordem. Essa constatao, resultado da anlise

feita, representa o passo inicial de um longo processo de mudana.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 15

AS QUESTES ENVOLVIDAS: MACRO E MICRO ESTRUTURA

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1.1. Este mundo to desigual

Oh mundo to desigual, tudo to desigual, . De um lado este carnaval, de outro a fome total, ......

(Gilberto Gil)

A msica refletindo a vida; a vida, fonte de inspirao para a

msica. Nessas poucas linhas da composio, o autor retrata um dos

contrastes, a fome, que, inter-relacionado a outros, sero focos de ateno

deste trabalho: as pssimas condies de moradia e as conseqncias

oriundas das mesmas.

Diante de tal premissa, faz-se necessrio ampliar o olhar

para o modo de vida das pessoas, buscando e propondo mudanas que

possam resultar em melhora na qualidade de vida da populao menos

favorecida.

Vive-se num pas com muitos contrastes em todos os setores

e, como questiona Manzini-Covre (1989), ao lado de toda extenso territorial

que comporta terras frteis e riquezas naturais, livre das grandes catstrofes

naturais, tem-se um pas onde menos se realiza a distribuio do produto do

trabalho social global. A partir da constatao dessa distribuio desigual,

volta-se o olhar para uma maneira especfica de se viver, isto , em

agrupamento denominado favela que oferece um grande contraste com o

esperado em termos de qualidade mnima de vida.

Essa maneira precria de se viver e ocupar espaos de

riscos sade e vida pode ser considerada uma das maiores expresses

de violncia urbana, em que, alm da excluso social externa imposta pela

sociedade capitalista, tambm se tem que sobreviver s lutas travadas

internamente dentro desse espao (Cohen, 2004).

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 17

1.2. Base material da sociedade na conformao das condies de vida e sade de uma populao favelada

Quando seu moo, nasceu meu rebento/No era o momento dele rebentar/J foi nascendo com cara de fome/E eu no tinha nem nome pra lhe dar/Como fui levando no sei lhe explicar/Fui assim levando ele a me levar/E na sua meninice ele um dia me disse/Que chegava l/Olha a, ai o meu guri...

(Chico Buarque)

Ao se viver numa sociedade capitalista com a formao de

classes sociais ocupando posies diametralmente opostas em relao

produo, tem-se, entre as vrias conseqncias, a apropriao desigual

dos bens e servios produzidos. Marx (1983) j havia demonstrado que o

modo de produo capitalista determina a necessidade da reproduo da

fora de trabalho e que esta no vista como uma unidade social

homognea, porque se estrutura em setores produtivos cuja importncia

definida pelo estgio das foras produtivas. Desse modo, com o

desenvolvimento cientfico e tecnolgico, a reproduo social de grupos

sociais em setores no importantes, do ponto de vista do capital, ser

afetada por inseres diferenciadas e que hoje se manifestam na existncia

contrastante de condies de vida e sade to precrias e frgeis quanto

aquelas to ricas e poderosas.

Por outro lado, Marx e Engels mostraram que o Estado

emerge da contradio entre o interesse individual ou da famlia e o

interesse comum de todos os indivduos. Constitui expresso poltica da

classe dominante, uma instituio socialmente necessria para cuidar de

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 18

tarefas sociais para que a comunidade sobreviva, devendo intermediar os

conflitos entre os diversos interesses.

Numa situao em que a acumulao do capital passa a ser

a fora motriz da sociedade, o papel do Estado torna-se fundamental para,

tambm, atender as necessidades sociais. H momentos em que se torna

um Estado intervencionista a fim de concretizar o processo de concentrao

e centralizao capitalista. Em outros, discute-se sua sada medida que as

relaes de mercado tendem a regular as relaes econmicas.

Simultaneamente, deve se direcionar para o atendimento tanto dos direitos

de cidadania como os da justia social quando os movimentos sociais

comeam a pressionar. O seu desafio tem sido evitar o confronto entre

capital e trabalho, tendo-se excludo das decises polticas, no Brasil, a

maior parte da populao trabalhadora at o final dos anos 80.

A consolidao do capital monopolista no pas acabou por

levantar a bandeira dos direitos sociais, porque a poltica de excluso

adotada teve, como conseqncias, o aumento do desemprego e a limitao

do acesso aos bens de consumo e servios fundamentais vida. De acordo

com Dowbor (1998), o Estado deve reparar uma particularidade do

capitalismo por meio de consistentes polticas sociais, pois eficiente

organizador da produo, mas gerador de desequilbrios de distribuio.

Como analisa o autor, reproduo do capital e reproduo social se

contrapem. De um lado, fala-se no processo de crescimento econmico

centrado nas atividades produtivas; de outro, de um processo que engloba

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 19

tanto a produo como os servios sociais, alm das vrias atividades de

gesto do desenvolvimento, como planejamento e segurana, entre outros.

Esse conceito mais ampliado procura romper a tripartio

que se fez entre a economia, produo de riquezas e o social, que est em

atraso no processo, buscando reduzir as contradies, a misria, o

abandono e a excluso, atravs de polticas de compensao para um

desenvolvimento socialmente justo, economicamente vivel e

ambientalmente sustentvel.

Segundo Gomez et al (2002), o Estado tem novos desafios:

ser indutor, normativo, regulador atuante, com a grande misso de viabilizar

servios pblicos essenciais como sade, educao, habitao e amparo

contra a excluso social para a populao mais vulnervel social e

economicamente. Deve ser capaz de estabelecer polticas para diminuir o

desemprego e promover a reduo das desigualdades e, essencialmente,

resgatar sua legitimidade e credibilidade na implementao de polticas

inibidoras da excluso social. Esta, alm da extrema privao material,

desqualifica seu portador, consumindo-lhe a qualidade de cidado, de sujeito

e de ser humano, que tem desejos, vontades que o identificam e o

diferenciam.

Segundo Paim (1997), com a estruturao das classes

sociais nas etapas do desenvolvimento capitalista, as pessoas tem

apresentado formas diferentes de insero na estrutura ocupacional

disponvel que conforma o mercado de trabalho (ou delas so excludos),

bem como um dado modo de vida. Sendo assim, o perfil epidemiolgico da

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 20

populao, enquanto componente da situao de sade, determinado, de

um lado, pela estrutura de produo (insero na estrutura ocupacional), ou

seja, pelo processo e as condies de trabalho e, de outro, pela estrutura de

consumo (modo de vida) que, dependendo da renda obtida, conforma as

condies e o estilo de vida. Portanto, o estudo das condies de vida de

determinados grupos sociais deve levar em considerao no s a

distribuio da renda e o poder aquisitivo na esfera do consumo individual,

mas tambm certas aes estatais que buscam garantir o atendimento de

necessidades consideradas bsicas para a sobrevivncia como, por

exemplo, sade, saneamento, educao, alimentao e nutrio, lazer,

segurana, entre outras.

Do ponto de vista da economia poltica da sade, Prata

(1994) considera a existncia de relaes econmicas que criam

desigualdades na renda, na riqueza, e na sade. Conceitua desigualdade

como a relao entre desenvolvimento e justia social, por meio da

distribuio de renda, educao, moradia, servios (de sade,

abastecimento de gua e saneamento ambiental), acesso ao emprego, aos

bens de consumo, terra, bem como ao poder de deciso e de influncia

social.

Drachler et al. (2003) definem desigualdade social em sade

como sendo as diferenas socialmente produzidas e moralmente injustas, na

qualidade de vida e no modo de ser e agir dos indivduos e grupos sociais.

Assim, para aqueles com piores condies socioeconmicas, os que vivem

em favelas ou em zona rural, a sade tende a ser pior. Na dimenso

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 21

socioeconmica, os diferentes modos de insero do indivduo no processo

de produo so as principais produtoras de desigualdade social,

determinando a formao das classes sociais, tendo como uma das

conseqncias, a discriminao o estigma sobre o trabalhador manual, os

moradores de favela e o pobre. Essas desigualdades de oportunidades

impem formas de agir, estilos de vida e comportamentos pessoais que

afetam diretamente a sade e, por outro lado, tambm tem interferncias

nas relaes sociais dessas pessoas, ou seja, com amigos, na famlia, na

escola, no trabalho, e na comunidade.

No caso brasileiro, uma outra esfera a ser considerada na

determinao das condies de vida a migrao. Segundo Durhan (1973),

a migrao rural-urbana, especialmente nos meados do sc. XX, quando o

Brasil intensifica a produo industrial, pode ser concebida como um

fenmeno de mudana scio-cultural, em que ocorre a mudana dos

padres de comportamento vivenciados nas comunidades rurais, para que

haja uma adaptao s condies urbanas de vida. A autora tambm mostra

que o trabalho a questo central do processo de integrao dos migrantes

rurais a uma sociedade urbano-industrial, cabendo famlia promover a re-

elaborao das representaes e participao em um novo contexto scio-

cultural.

A populao crescente de trabalhadores rurais nas cidades

um aspecto de transformao do sistema scio-econmico, afetando a

cidade e o campo.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 22

A mudana do trabalhador rural para a cidade d-se pela

necessidade/ expectativa de melhorar de vida. Com essa migrao, as

pessoas deixam de fazer parte de um conjunto de relaes pessoais

permanentes para integrar-se em outro conjunto de relaes que eram

espordicas e passam a ser permanentes. Quando o migrante decide mudar

para a zona urbana, geralmente a escolha feita pela proximidade das

relaes sociais.

Nessas situaes, a famlia, como estratgia de

sobrevivncia, no se atm mais questo da manuteno da propriedade

da terra, como ocorreu no meio rural brasileiro em determinado perodo

histrico, mas, passa a viver o enfrentamento da pobreza no meio urbano. A

rede de parentesco em comunidades fechadas relatada tambm por

Almeida e DAndrea (2004). Os parentes, alm dos conterrneos e vizinhos

que se ajudam mutuamente, formam uma estrutura que pode ser mobilizada

em caso de necessidade.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 23

1.3. Ter um abrigo: de necessidade a direito fundamental X a favela

(...) Mais um dia nis nem pode se alembr/Veio os homes com as ferramenta/O dono mando derrub/Peguemo tudas nossas coisas/E fumos pro meio da rua/Preci a demolio/Que tristeza que nois sentia/Cada tubua que caa/ Doa no corao/Mato Grosso quis grit/Mais em cima eu falei/Ao homes t com a razo/Nis arranja outro lug/S se conformemo/Quando o Zeca falo/Deus d o frio/Conforme o coberto(...)

Adoniram Barbosa

A partir da insero econmica, Valadares (2000) destaca

outro aspecto importante a ser considerado, isto , que o ser humano

constitudo de memria e convvio produzidos pelo espao e tempo do

cotidiano, elementos fundamentais na vida humana. Assim, a casa do

homem lugar de presena e de construo de histrias. No h cidadania

que sobreviva ao desabrigo.

Segundo Ward (1976), se nao deixa seus cidados em

moradia pobre, insalubre e abaixo do padro, isso significa que governo e

povo no deram aos lares a ateno, a importncia e a prioridade de justia,

humanidade e dignidade de que necessitam. Para o autor, problemas sociais

como violncia, delinqncia, lares desfeitos, velhice intranqila, entre

outros, desaparecero se for proporcionada ao cidado uma habitao

digna. Para que um pas seja considerado desenvolvido, dever ser capaz

de suprir a necessidade de habitao de forma adequada, tendo as casas

pelo menos um cmodo para cada membro da famlia.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 24

O sonho de possuir uma casa prpria uma forma de

adquirir estabilidade e aceitao social, ter uma casa significa ter identidade

social, referncia espacial na estrutura da sociedade (Cannone 2002).

Para Rybczynski (2002), a palavra home (lar) reuniu os

significados de casa e famlia, de moradia, abrigo e afeio, mas tambm

tudo que estivesse dentro ou fora dela.

Damatta (1985) refere que casa e rua so palavras que

no dizem respeito apenas aos espaos geogrficos ou algo fsico

comensurvel, mas sim a entidades morais, esferas de ao social,

domnios culturais institucionalizados e, por isso, so capazes de despertar

emoes, reaes, leis, oraes, msicas e imagens esteticamente

inspiradas.

Carpintro (1990) refere que, com a casa tem uma funo

social como agente formador do ambiente moral, a distribuio interna da

casa adquire relevncia. A sala considerada a parte mais importante da

casa, pois onde aps um dia de trabalho, a famlia pode se encontrar. Ao

lado dever ficar a cozinha, como uma forma de aproximar a mulher do

controle da casa e dos cuidados com os filhos. Quanto aos dormitrios,

constitui-se no espao privado dos pais separados dos filhos. O quintal um

espao fundamental para os filhos brincarem, caso contrrio, vo para a rua,

alm da lavagem da roupa que a se processa.

No espao da casa satisfazem-se as necessidades fsicas,

biolgicas e culturais, tornando-se, ela prpria, uma necessidade para o

desenvolvimento das relaes individual e coletiva. Todos os sentimentos, e

as expectativas com relao s pessoas esto nesse espao, assim a casa

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 25

um espao que significa projetos e desejos individuais dentro de um

projeto coletivo que a sociedade (Carpintro 1990).

Durante o processo de consolidao do desenvolvimento

capitalista, os homens lutaram pela conquista dos direitos civis, polticos e

sociais, medida que, simultaneamente, a injustia e a desigualdade foram

se acirrando com um modo de produo antagnico nas suas relaes de

produo. Em tal contexto, estabeleceu-se o consenso de que,

independente do nvel econmico e social, o ser humano tem direito a um

ambiente sadio, adequado ao desenvolvimento da vida. Definido como um

princpio, emerge o artigo XXV da declarao UNIVERSAL DOS DIREITOS

DO HOMEM:

"todo homem tem direito a um padro de vida capaz de assegurar a si e a sua famlia sade e bem estar, inclusive alimentao, vesturio, habitao, cuidados mdicos e os servios sociais indispensveis, e direito a segurana em caso de desemprego, doena, invalidez, viuvez, velhice e outros casos de perda dos meios de subsistncia em circunstncias fora de seu controle" (ONU, 1948).

A Assemblia Geral das Naes Unidas, reunida em

Estocolmo, em 1972, estabeleceu princpios comuns de orientao

humanidade e aprovou a Declarao sobre o ambiente humano. O primeiro

princpio estabelece que:

O homem tem direito fundamental liberdade, igualdade e ao desfrute de condies de vida adequada, em um ambiente de qualidade que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem estar, e portador solene da obrigao de proteger e melhorar o meio ambiente para as geraes presentes e futuras. A esse respeito, as polticas que promovem ou perpetuam a segregao racial, a discriminao, a opresso e a dominao estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas (ONU, 1972).

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 26

Na amplitude da idia de condies de vida adequada

que a trajetria da conquista dos direitos sociais no Brasil desenvolve, com o

movimento da reforma sanitria (final da dcada de 1970), um novo

entendimento do processo sade-doena e uma nova organizao dos

servios de sade, que culminaram com a implantao do Sistema nico de

Sade (SUS) em 1988.

A reforma sanitria, segundo Mendes (1993), foi

considerada um processo modernizador e democratizante para que se

pudesse atender a sade dos cidados, abordando trs aspectos

fundamentais: A) ter um conceito abrangente de sade que estabelecesse a

relao entre sade e condies de vida, meio ambiente, habitao,

alimentao, trabalho, lazer, renda, educao, justia social e acesso a

servios de sade. B) erigir a sade como direito de cidadania e dever do

Estado. C) propor uma reformulao do Sistema Nacional de Sade, com a

criao de um Sistema nico de Sade que tivesse, como princpios, a

universalidade de acesso, integralidade das aes, descentralizao e

participao popular.

A Declarao de Direitos que compe a Constituio

Brasileira passou a se caracterizar como um dos mais avanados textos

constitucionais do mundo, principalmente no que se refere aos direitos no

campo da sade, ao considerar a sade um direito de todos e dever do

Estado (Bosi, Affonso, 1998) e de outro lado, por reconhecer as

determinaes mais amplas que incidem sobre a sade, conforme o artigo

3 da lei n 8.080 de 19 de setembro de 1990:

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 27

Sade tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, alimentao, a moradia, o saneamento bsico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educao, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e servios essenciais; os nveis de sade da populao expressam a organizao social e econmica do pas.

Morita (2002) refere que a conquista da sade, como direito

de cidadania, est num processo de construo repleta de confrontos dos

diferentes interesses, ainda que, pelo texto constitucional, o Estado

capitalista brasileiro reconhea o direito da populao sade, como

condio inerente cidadania. Se existe o direito, existe o dever, no caso,

do prprio Estado, de assegurar e proporcionar sade.

Apesar das determinaes da declarao de Direitos

Humanos e das Constituies Federal e do Estado de So Paulo, que

dizem, estabelecem que todo ser humano tem direito a uma vida digna, h

no Brasil 921.782 domiclios em favelas, o equivalente a 5,5 milhes de

pessoas, em torno de 3,5% da populao brasileira (Bremacker, 2001).

Tanto as favelas quanto os cortios so tipos de moradia tradicionalmente

considerados precrios (Genevois, Costa, 2001) e que demandam uma

poltica habitacional. Genevois e Costa, baseados na Pesquisa de

Condies de Vida (Fundao Seade SP), consideram moradias

precrias aquelas ... construdas com material imprprio (barracos), as que

esto localizadas em loteamento no-planejado (favelas) e as que obrigam

seus ocupantes a dividir equipamentos e instalaes sanitrias

indispensveis, como cozinha, banheiro e tanque de lavar roupas (cortios)

(Genevois, Costa, 2001, p.74). O barraco, segundo a mesma pesquisa,

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 28

aquela moradia construda inteira ou parcialmente com material adaptado,

ou seja, no-apropriado a uma habitao (...) quando o material utilizado na

construo da moradia todo ou em parte adaptado, ou seja, material

reutilizado, de qualquer tipo: alvenaria, madeira, placa, zinco, papelo,

plstico, etc., as portas e janelas so aberturas precrias e no h

acabamento na casa (Genevois, Costa, 2001, p.77).

Os mesmos autores destacam os domiclios rsticos

conforme descritos pela Fundao IBGE, como aqueles cuja construo

predominantemente feita por material improvisado, ou seja, paredes de taipa

no-revestida, madeira aproveitada ou material de vasilhame; piso de terra,

madeira aproveitada, palha, sap ou material de vasilhame (Genevois,

Costa, 2001, p.77).

Reis et al (1989) definem favela como sendo aglomerados

humanos em que a relao espao-populao pequena, de maneira a

concentrar, numa determinada rea, um nmero de indivduos superior ao

que ela poderia comportar sob condies razoveis de vida. Este espao

ocupado por pessoas de condies scio-econmicas muito baixas e que

possuem cuidados higinicos bsicos precrios por falta, quase sempre, de

gua, esgoto e luz.

Como se percebe, as denominaes precrias ou rsticas

e a prpria definio de barraco do conta de um tipo de moradia que no

oferece conforto, dadas as condies de insalubridade. Genevois e Costa

(2001) ressaltam que tambm representam risco de contaminao por

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 29

doenas, alm de risco de desmoronamento, o que demandaria sua

construo em locais adequados.

Almeida e DAndrea (2004:106), sob uma outra perspectiva,

analisam os vnculos societrios que se estruturam na favela Paraispolis

como uma estratgia de enfrentamento das condies adversas, sejam

materiais e espirituais, criando um capital social baseado no vnculo entre

as pessoas e no nas prprias pessoas.

Considerando a situao desvantajosa de se morar numa

favela, e considerando que ela est presente na realidade brasileira, volta-se

o olhar para o municpio de Marlia, no estado de So Paulo, que no foge

regra, por ser plo de desenvolvimento, atrair fluxo migratrio e ter favelas.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 30

1.4. Questes de famlia e gnero: outras esferas fundamentais nas condies de vida e sade

Famlia, famlia Papai, mame, titia

Famlia, famlia Almoa junto todo dia

Nunca perde essa mania

Tits

A partir desse quadro mais amplo no qual se estruturam

classes e grupos sociais diferenciados, volta-se a ateno para a esfera

mais prxima do sujeito, isto , sua famlia. Ela o espao que forma a

estrutura psquica, emocional e social, no qual as geraes se defrontam e

os dois sexos estabelecem suas diferenas e relaes de poder (Wrigley,

1979). Portanto, uma relao social que assume, como resume Chau

(1980), formas, funes e sentidos diferentes em decorrncia das condies

histricas e da situao de cada classe social na sociedade.

De acordo com ries (1979), modelos de estrutura familiar

do passado ajudam a compreender o atual, tendo-se como marcos as

famlias aristocrticas e camponesas dos sculos XVI e XVII, as da classe

trabalhadora que surge com a revoluo industrial e a burguesa, nos

meados do sculo XIX. O modelo de famlia nuclear burguesa, que se

desenvolve no sculo XX em reas urbanas e se estende enquanto

concepo de famlia para todas as classes sociais, tinha uma rgida diviso

dos papis sexuais, no qual ao cnjuge masculino cabia a autoridade e

sustento da famlia. A viso sobre o cnjuge feminino era a de uma pessoa

menos racional e capaz, que se preocupava apenas com a casa, com a

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 31

criao dos filhos, devendo satisfazer as necessidades do marido, no se

importando com as mudanas polticas e econmicas a seu redor.

Simultaneamente, os filhos tornaram-se importantes para os pais, surgindo

um novo grau de profundidade emocional e intimidade na relao entre os

pais e filhos dessa classe.

No perodo contemporneo, com o desenvolvimento do

capitalismo, fundem-se a antiga classe trabalhadora fabril e o novo

proletariado. O padro burgus em que o pai possua os meios de produo

que transmitia aos filhos fica limitado apenas a uma parcela pequena e as

grandes companhias ocupam lugar das pequenas unidades fabris e lojas de

varejo. As novas necessidades da economia capitalista acarretam mudanas

nas famlias, tornando-se, estas, unidades de consumo e de produo de

valores de uso.

De acordo com Carvalho (2002), espera-se que a famlia

possa proporcionar cuidados, proteo, aprendizado dos afetos, vnculos e

um espao para construo de identidades, para incluir-se socialmente na

comunidade e sociedade, sendo capaz de promover a qualidade de vida dos

seus componentes. A famlia pode fortalecer ou acabar com suas prprias

potencialidades e possibilidades, dependendo do seu contexto de vida.

Diante de um cenrio de crises econmicas e polticas

cclicas, no qual o Estado deixa a desejar quanto distribuio do bem-estar

social, as redes de solidariedade e sociabilidade scio-familiar ganham fora

e destaque. Elas representam para as camadas populares a sua condio

de sobrevivncia, em que a famlia ampliada e o grupo de conterrneos so

possibilidades de aumento da renda, afeto, emprego, moradia, sade, etc.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 32

A famlia, portanto, tem um papel importante na poltica

social, sendo beneficiria, parceira, prestadora de servios de proteo e

incluso, favorecendo a preveno de riscos de isolamento social, devido

ausncia do trabalho. Esta solidariedade pode ser adquirida quando a

famlia entende que ela prpria necessita de proteo para poder gerar

proteo.

Segundo Szymanski (2002), quando a famlia se distanciava

do modelo nuclear burgus, historicamente construdo, era considerada

desestruturada ou incompleta, sendo valorizada sua estrutura e no a

qualidade de suas relaes. Para a autora, cada famlia constri sua cultura,

com seus cdigos, suas normas e regras, sua linguagem, ritos e jogos.

Desta forma, aps uma concepo construda a partir do cotidiano das

famlias, ela mostra que em qualquer arranjo em que as pessoas que

convivem possuam ligao afetiva, como um casal e filhos, ou uma mulher,

a afilhada e filho adotivo, a relao de cuidados significa um compromisso; a

especializao de funes termina com a mudana na estrutura da famlia.

Bilac (2002) refere que houve um avano, visto que se

pensava a famlia sob a perspectiva da reproduo da fora de trabalho,

para pens-la na perspectiva da reproduo social. Foi o pensamento

feminista que trabalhou o conceito de reproduo na esfera especfica da

vida social, organizada pelas relaes de gnero e na diviso sexual do

trabalho, articulada e diferente da esfera da produo de bens e servio.

Segundo Bilac, tanto do ponto de vista funcionalista quanto do ponto de vista

marxista, a famlia como instituio vem perdendo suas funes e

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 33

importncia social, considerando-se a crise do esvaziamento da instituio

familiar que no poderia referenciar ou organizar a reproduo.

Para Sarti (2002), com o capitalismo, a famlia deixou de ser

uma unidade de produo, passando a constituir uma unidade de consumo

para a organizao da vida material. As mudanas ocorridas na famlia

contempornea esto ligadas perda do sentido da tradio. Assim, o que

era vivido a partir de papis pr-estabelecidos passa a ser projeto individual

tendo implicaes em suas relaes. Relata que esse movimento foi

impulsionado pelas mulheres por meio do controle da reproduo, o que lhes

possibilitou reformular o seu papel na esfera privada e a sua participao na

esfera pblica. Considera, porm, que os pobres que vivem nas cidades no

se inserem nesta dimenso individualizada da identidade social. Para isso,

haveria necessidade de condies sociais de educao e de valores sociais

que esto fora do seu mundo de referncias culturais. Conseqentemente,

mantm a tradio como referncia para sua sobrevivncia, em que

fundamental a solidariedade dos laos de parentesco e de vizinhana.

Nessa situao da construo de uma rede de solidariedade

tambm deve ser considerado o papel da mulher e, mais ainda, na condio

de moradora de favela.

Segundo Neves (1998), em trabalho desenvolvido com um

grupo de mulheres nesta mesma comunidade (CSCJ), a mulher est sempre

em desvantagem, pois assume toda a educao dos filhos e os afazeres da

casa, alm do trabalho fora de casa. Os homens apenas trabalham fora,

quando possuem emprego.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 34

Entendendo-se as relaes de gnero como diviso sexual

das atividades socialmente construdas, interessa salientar que homens e

mulheres constituram-se como sujeitos e estruturaram sua prtica de um

ponto de vista masculino e feminino. Conforme Saffioti (1992), as relaes

de gnero no resultam da existncia de dois sexos, macho e fmea, o vetor

direciona-se, ao contrrio, do social para os indivduos que nascem. Tais

indivduos so transformados, atravs das relaes de gnero, em homens e

mulheres, cada uma destas categorias-identidades excluindo a outra

(Saffioti, 1992, p.187).

A literatura na rea da sade constata que para a mulher

so delegadas as questes de sade na famlia, como apontaram Boltanski

(1979) e Fonseca (1999), e que as preocupaes com o cuidado do corpo e

as representaes sobre sade-doena so quase sempre obtidas junto s

mulheres (Ferreira, 1998; Paim, 1998, Oliveira, 1998).

A partir deste quadro de referncias, indaga-se: quais so os

elementos existentes na favela, enquanto objeto de estudo, cuja

identificao e anlise contribuiriam para uma compreenso mais

aprofundada dessa populao, visando a uma melhoria da qualidade de

vida? Para responder a isso, pretende-se analisar as condies de vida das

famlias moradoras na favela da Comunidade do Sagrado Corao de Jesus,

as quais esto vivendo um processo de desfavelamento. Tais condies

formam os temas de relevncia que recobrem uma sociedade saudvel.

Assim, conhecer a situao da moradia, do acesso aos bens materiais e

servios, entre outros, ser objeto de reflexo na medida em que isso

interfere nas condies de sade.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 35

1.5. Refletir sobre a sade e a doena: questo bsica para a vida

(...) Eu vi o nome da favela/Na luxuosa Academia/Mas a favela para dot/ morada de malandro/E no tem nenhum valor/No tem dotores na favela/Mas na favela tem dotores/O professor se chama bamba/Medicina na macumba/Cirugia, l, samba.

Assis Valente

Destaca-se que o impulso dado s atividades de Ateno

Primria Sade desde os finais dos anos sessenta, especialmente aps a

Conferncia de Alma-Ata, com alguns eixos norteadores como a

participao social, a utilizao de estratgias baseadas no saber popular, a

recuperao de aes baseadas em redes sociais, grupos de apoio e auto-

cuidado entre outros, favorece uma aproximao estratgica junto a um

conjunto social. No importa se um grupo domstico, ou um grupo

ocupacional, ou um grupo de idade; trata-se de identificar os indivduos

concretos para perceb-los como membros genricos de um modelo scio-

cultural e, atravs de suas falas, de suas reflexes, ressignific-los como

cidados (Menndez, 1998).

Nesse sentido, a procura de uma concepo de sade-

doena tambm busca compreender o processo de vida dos homens ao

longo da histria.

Segundo Albarracn (2001), os homens sempre buscaram um

significado e explicaes para sade e doena que pudessem estabelecer

uma relao de causa e efeito para resolver o problema, surgem, ento, com

o tempo, os modelos explicativos elaborados com o fim de compreender

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 36

tanto os elementos do processo sade e doena como os objetos utilizados

para interveno, os saberes, os atores sociais envolvidos e as finalidades

perseguidas. Esses modelos foram elaborados a partir do modo de pensar,

sentir e agir da populao, revelando assim diferentes interpretaes do

processo de adoecer e curar. Essa construo de modelos que expliquem

sade e doena caracterstica da histria da humanidade, devido

necessidade de adaptao do homem s novas formas de viver,

considerando os avanos da tecnologia e cincia. Por conseguinte, nos

diferentes grupos de populao, os conceitos de sade e doena no so

iguais e estticos, pois esto relacionados com o modo como os indivduos

esto socialmente organizados, participam e se envolvem no processo

cultural. De acordo com Chamm (1996, p. 61):

A sade no decorrer da histria dos homens, foi sempre um bem e, por isso, mereceu constante preocupao, no sentido de tornar-se geradora de modas, de modos de fazer e de existir, de conflitos, dualidades e controle social. No decorrer desse tempo, modelos de sade foram sendo criados, interpretados e recriados, quando necessrio, provocando igual processo de transformao nas maneiras de sentir, pensar e agir da populao usuria dos mais variados recursos de sade disponveis, segundo as relaes entre o mgico e o necessrio, estabelecendo entre os que serviam e os que eram servidos, uma relao tambm to mgica quanto necessria, intermediada pelo corpo, destes sujeitos, depositrio do estado de sade ou de doena. Alm do processo de transformao das mentalidades, so ainda levados em considerao os processos de construo, desconstruo e de evoluo do imaginrio e das representaes sociais vivenciados pelos sujeitos e seus corpos. A evoluo dos conhecimentos e o avano cientifico e tecnolgico so enfocados tambm como fontes modelares e comunicativas no sentido de ditar regras ao corpo que a humanidade porta socialmente neste sculo.

As concepes de sade-doena esto expressas de forma

diferenciada na sociedade, dependendo da viso de mundo de quem fala e

da posio social que ocupa nas relaes de produo. Portanto, em uma

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 37

sociedade capitalista, as condies de vida e de trabalho, ou sejam, as

diferentes classes e as desigualdades existentes na distribuio de riquezas,

qualificam de maneira diferente a concepo de sade-doena que

marcada por essas contradies que caracterizam o sistema. (Minayo,

1999).

Tambm de acordo com a mesma autora, estar doente para

a classe trabalhadora representa a incapacidade para trabalhar tendo

relao com a economia, com a criao de mais-valia e possibilidade de

acumulao capitalista. Portanto as expresses sade a maior riqueza,

sade tudo, o maior tesouro, etc, so representaes em que o corpo

se transformou no nico gerador de bens.

A concepo de sade-doena est relacionada maneira

como o ser humano, durante a sua existncia, foi se apropriando da

natureza, buscando formas de suprir suas necessidades e assim

transformando-a (Fracolli, Bertolozzi 2001). As autoras, tendo como

referencial a Teoria da Determinao Social do Processo SadeDoena,

relacionam o modo de viver das pessoas e a forma de organizao da

sociedade com a sade ou doena, ou seja, dependem da insero dos

indivduos no sistema de produo para que possam ter mais ou menos

acesso s necessidades essenciais para sobrevivncia. Desta forma,

diferentes grupos scio-econmicos possuem diferentes riscos de adoecer e

morrer, resultado do processo histrico da sociedade na qual se inserem.

Outros estudos mostram que, dependendo do contexto

cultural dos diferentes grupos sociais, as representaes sobre sade e

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 38

doena tm caractersticas prprias e, conhec-las, poderia contribuir para

melhorar o sistema de sade (Boltanski, 1979; Alves e Minayo (orgs.), 1994;

Duarte e Leal (orgs.), 1998; Alves e Rabelo (orgs.), 1998). Assim, voltar o

olhar sobre esse aspecto significa avanar na compreenso da vida na

favela.

Face aos aspectos referenciados, considera-se a importncia

do estudo proposto visando o movimento a uma nova sociedade.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 39

2. OBJETIVO

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 40

Tem-se como objetivo descrever e analisar as condies de

vida das famlias moradoras na favela Comunidade do Sagrado Corao de

Jesus.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 41

3. A PESQUISA: SUA CONCEPO

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 42

Trata-se de um estudo de caso que tem por objetivo

aprofundar a descrio de determinada realidade para conhec-la em seus

traos caractersticos, suas gentes, seus problemas, seus valores, de forma

que com os resultados obtidos, conforme Trivios (1987), seja possvel

formular hipteses para encaminhamento de outras pesquisas.

Simultaneamente, esses resultados devem orientar aes de mudanas nas

situaes identificadas como problemas.

Nesta investigao utilizaram-se as abordagens quantitativa

e qualitativa, as quais, segundo Minayo (1999), so perspectivas

complementares quando se pretende conhecer uma determinada realidade.

Corroborando com esta idia, a abordagem quantitativa supe uma

populao de objetos de observao comparveis entre si, enquanto os

mtodos qualitativos enfatizam as especificidades de um fenmeno em

termos de suas origens e de sua razo de ser (Haguette, 1997).

Trata-se, ...de uma abordagem interessada no microssocial,

baseada em palavras, histrias e narrativas cujo interesse a dimenso

subjetiva, aplicando o mtodo indutivo (MercadoMartinez, 2004, p.35). Para

isso recorreu-se s entrevistas estruturadas e observao direta, tcnicas

privilegiadas para obteno de informao.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 43

3. 1. PRIMEIRAS RESPOSTAS PARA O PROBLEMA COLOCADO

3. 1. 1. O Cenrio

Marlia localiza-se na regio centro-oeste do Estado de So

Paulo e possui uma populao de 198.719 habitantes. Segundo pesquisa

anterior, levantou-se que no municpio h 17 favelas, 1.307 domiclios com

5.980 pessoas, sendo 3.045 do sexo masculino e 2.935 do sexo feminino,

50,92% e 49,08% respectivamente (Carvalho; Carvalho, 2003).

O abastecimento de gua do municpio executado por uma

autarquia municipal e 99% dos domiclios esto ligados rede de

abastecimento, sendo que 95% dos domiclios esto ligadas s redes

coletoras de esgoto. A Rede Municipal de Educao possui um total de 27

Escolas de Educao Infantil (EMEI), 18 Escolas de Educao Fundamental

(EMEF) e 04 Berrios. A Rede Estadual conta com 33 Unidades de Ensino

(Fundamental e Mdio), 02 Unidades de Educao Supletiva e 01 Unidade

de Supletivo Profissionalizante. A Rede Particular conta com 32 Unidades de

Ensino (Infantil, Fundamental e Mdio) e 02 Unidades de Educao

Especial. Tambm possui duas Universidades, uma Fundao de Ensino

Superior e uma Autarquia Estadual de Ensino Superior. Na rea de

Assistncia Social, o Municpio possui programas voltados populao de

rua, crianas e adolescentes (Casa do Pequeno Cidado), aos idosos

(Centro do Idoso) e s mulheres vtimas da violncia (Casa Abrigo). O

Municpio considerado Plo Nacional na rea Alimentcia, devido grande

nmero de indstrias voltadas produo de massas, balas, doces e

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 44

biscoitos, com participao em torno de 17% da produo nacional do

gnero. A rede de ateno bsica sade do municpio constituda por: 24

unidades de sade da famlia, 13 unidades bsicas de sade, 03 servios de

pronto atendimento, 01 policlnica, 01 banco de leite humano, 01 equipe de

programa interdisciplinar de internao domiciliar, 01 ncleo de sade do

trabalhador, 01 unidade de preveno e educao em sade, 01 ncleo de

vigilncia sade, 01 centro de atendimento psicossocial, 01 unidade

central de assistncia farmacutica (Marlia ,[200-?]).

Esta pesquisa enfoca uma micro-rea pertencente rea de

abrangncia da Unidade Bsica de Sade Planalto, denominada

Comunidade Sagrado Corao de Jesus (CSCJ), localizada na zona sul, no

municpio de Marlia SP, sendo considerada de risco ambiental.

Anteriormente denominada Favela Risca Faca, a mudana de nome

ocorreu em 1994, quando um grupo de voluntrios desenvolvia um trabalho

na comunidade. Aos sbados, havia reunio com um grupo de mulheres

para que as mesmas contassem suas histrias de vida, seus sonhos e suas

esperanas. Num desses encontros, as participantes do grupo relataram o

incmodo que sentiam com o nome da favela, e a discriminao dela

decorrente. Foram sugeridos vrios nomes, sendo escolhido por elas o de

Comunidade do Sagrado Corao de Jesus, posteriormente bem aceito por

toda a comunidade, com o consentimento da parquia mais prxima.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 45

3.1.2. Populao de estudo

Para caracterizao das condies de vida foram includas

nesta investigao todas as sessenta e duas (62) famlias que compem a

Comunidade do Sagrado Corao de Jesus.

Para o conhecimento aprofundado das condies de vida

dessa populao foram investigadas onze (11) famlias, selecionadas por

critrios de amostragem que refletiram as mltiplas dimenses da totalidade

das famlias existentes na CSCJ.

Os critrios de incluso utilizados foram:

Tempo de moradia na comunidade: um primeiro (E1) e o

mais recente morador (E2) -2 famlias.

Tipo de moradia: um de alvenaria (E3), um de material

aproveitado (E4), e um de madeira (E5) -3 famlias.

Uma famlia inscrita na pastoral da criana (E6) -1 famlia.

Uma famlia que recebe auxlio bolsa do governo (E7) -1

famlia.

Uma famlia com renda (E8) e outra sem renda (E9)

advinda de trabalho formal ou informal -2 famlias.

Uma famlia nuclear, composta por um casal e seus filhos

(E11) -1 famlia.

Uma famlia com outros arranjos (E10) na qual no se

encontra mais o ncleo original -1 famlia.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 46

Estes critrios de incluso das famlias na investigao

foram elaborados a partir dos aspectos abaixo relacionados:

a) A famlia mais antiga na favela desenvolveu uma ampla

rede de relaes sociais, valores, prestgio, alm de

hbitos e costumes.

b) O mais recente morador no teve tempo necessrio de

se socializar nas regras da favela, favorecendo a

adaptao na nova vila.

c) A famlia que mora em casa de alvenaria tem

motivaes diferentes daquela que habita um barraco de

madeira, e da que possui um barraco de material

reciclado (papelo, etc.)

d) A famlia atendida pela pastoral da criana est

recebendo normas e preceitos de um estilo de vida.

e) A famlia atendida por alguma bolsa do governo

responde a regras definidas, o que leva socializao

de seus membros segundo alguns valores mais amplos,

socialmente aprovados.

f) A famlia que tem renda destaca-se no acesso a bens

que uma sem renda no consegue, o que desenvolve

representaes diferenciadas sobre oportunidade,

trabalho e a vida em geral.

g) A famlia nuclear e aquela com outros arranjos

vivenciam situaes diferentes em relao :

privacidade, total de rendimentos; organizao do

espao; higiene, e outras.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 47

3. 1. 3. Coleta de dados

As informaes referentes caracterizao das condies

de vida foram levantadas a partir de dados secundrios obtidos junto s

fichas de Cadastro Familiar da Secretaria de Higiene e Sade de Marlia,

ficha A (anexo 1).

A tcnica de entrevista, utilizando-se de um roteiro

estruturado (anexo 2), permitiu trazer tona a fala de um grupo social que,

segundo Minayo (1999), revela as condies estruturais, os sistemas de

valores, normas e smbolos, trazendo, na magia de transmitir, as

representaes de grupos determinados atravs de um porta-voz, em

condies histricas, scio-econmicas e culturais especficas. Para cada

famlia includa foi selecionado um morador adulto que, no ato da entrevista,

possusse disponibilidade de tempo. As entrevistas foram gravadas e

posteriormente transcritas na ntegra, gerando-se, assim, os dados para

anlise.

Foi utilizado o termo de consentimento livre e esclarecido

(anexo 3) em que os participantes, esclarecidos sobre os princpios ticos

para o desenvolvimento do estudo, assinaram.

O projeto de pesquisa foi submetido aprovao do Comit

de tica em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Marlia, conforme

Resoluo do Conselho Nacional de Sade n 196/96. Por fim, solicitou-se

autorizao para a realizao das entrevistas junto Secretaria Municipal de

Higiene e Sade de Marlia, por meio do Comit de tica em Pesquisa da

instituio.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 48

3. 1. 4. Anlise dos dados

A anlise dos dados possui trs finalidades, segundo Minayo

(1999). A primeira estabelecer uma compreenso dos dados coletados, em

seguida, responder s questes formuladas e/ou pressupostos da pesquisa

e, por fim, ampliar o conhecimento sobre o tema em estudo, articulando-o ao

contexto cultural do qual faz parte.

Para a caracterizao das condies de vida das famlias foi

utilizada anlise descritiva quantitativa, por meio de uma anlise univarivel

que, segundo Medronho (2002), aquela na qual apenas uma varivel

objeto de ateno, devendo-se descrever a distribuio de cada varivel na

amostra examinada. Desta forma, ser apresentada uma anlise univariada

com nmeros absolutos e freqncia simples.

A partir de fontes primrias constitudas pelas entrevistas,

abre-se um espao para a anlise qualitativa, medida que a fala dos

sujeitos entrevistados, ao ser transcrita de maneira literal, fornece um texto

escrito e, como tal, pode ser recopiado, arquivado e classificado

(Maingueneau, 2001). O discurso obtido submete-se a algumas regras: o

plano do texto est definido e o discurso, orientado para uma finalidade, qual

seja, registrar informaes que permitam identificar aspectos que atendam

os objetivos pretendidos. A partir da produo de um locutor (seu discurso),

tem-se um dos domnios da aplicao da anlise de contedo que, segundo

Bardin (1977), deve realizar a descrio objetiva, sistemtica e quantitativa

do contedo manifesto da comunicao. Para isso, seguem-se as etapas: a)

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 49

pr-anlise; b) explorao do material; c) tratamento dos resultados, a

inferncia e a interpretao.

Na primeira fase (pr-anlise), visando-se organizao do

material e reconhecimento das idias iniciais, foi realizada, uma leitura

flutuante do texto. Na fase de explorao, o material foi submetido a um

estudo aprofundado, orientado pelos objetivos e referencial terico. A partir

de um agrupamento por temas, recortou-se o texto, agregando discursos

similares e classificando-os, o que possibilita atingir uma representao do

contedo para posterior categorizao. Na fase de tratamento dos

resultados, aps apreenso da mensagem contida nas entrevistas, sero

construdas categorias empricas, conforme proposta por Minayo (1999).

A leitura das entrevistas foi orientada, ento, por vrias

questes: trajetria de vida, avaliao das condies de moradia, transporte,

alimentao, lazer, sade, violncia, e outras, para se obterem informaes

sobre que espao em foco, com a hiptese de que a vivncia na favela

intensifica representaes sobre um estilo de vida muito prprio.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 50

4. OS PERSONAGENS: O VIVIDO E O PENSADO

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 51

4.1. CONDIES DE VIDA DAS FAMLIAS

Viver implica o atendimento de algumas necessidades

bsicas para a prpria reproduo social. Neste sentido, a abordagem dessa

comunidade se estrutura para o levantamento dos seguintes dados:

distribuio por idade, acesso escola, alfabetizao, condio de atividade,

arranjo familiar, distribuio de gua, esgoto, destino do lixo, eletricidade,

tipos de casa e nmero de cmodos.

4.1.1 Quem so e o que fazem

Na Comunidade Sagrado Corao de Jesus encontram-se

sessenta e duas famlias (oito famlias j no se encontram mais residindo

na favela no momento da entrevista), num total de 276 pessoas, cuja

distribuio por idade e sexo pode ser vista na Tabela 1. A populao

jovem, pois at os 19 anos, encontram-se 56,52% da populao local, sendo

que o segundo maior grupo composto pelos que tm de 20 a 49 anos

(38,40%), e os de mais de 50 anos so apenas 5,07%. interessante

destacar que os menores de um ano compem apenas 1,08%, enquanto os

pr-escolares (1 a 4 anos) e os escolares de ( 5 a 9 anos) j compem um

grupo mais expressivo (11,6% e 17,4%, respectivamente).

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 52

TABELA 1- Distribuio da populao por sexo e faixa etria da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS-Planalto no ano de 2004.

FAIXA ETRIA FEMININO MASCULINO TOTAL %

< 1 ANO 1 2 3 1,1 1 A 4 16 16 32 11,6 5 A 9 17 31 48 17,4

10 A 14 24 15 39 14,1 15 A 19 20 14 34 12,3 20 A 49 52 54 106 38,4 50 A 59 4 4 8 2,9 60 A 69 2 3 5 1,8

> 69 1 1 0,4

TOTAL 137 49,64 139 50,36 276 100,0 Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

Uma questo que se destaca nessa distribuio

populacional a possibilidade do aumento da vulnerabilidade1 dessas

famlias, considerando-se a presena maior de crianas, adolescentes e

jovens, dado o aumento do volume de recursos necessrios para a

satisfao de suas necessidades bsicas. A presena de idosos tambm

aumentaria a vulnerabilidade, mas nessa favela seu nmero no

expressivo, embora as famlias que os abriguem, devam enfrentar

problemticas especficas.

1 A vulnerabilidade de uma famlia representa o volume adicional de recursos que ela requer para satisfazer suas necessidades bsicas, em relao ao que seria requerido por uma famlia-padro (Barros et al., 2003, p.8)

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 53

TABELA 2- Distribuio da populao menor de 15 anos que tem acesso escola por faixa etria na micro rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto no ano de 2004

FAIXA ETRIA FORA DA ESCOLA

n %

FREQENTA ESCOLA

n %

TOTAL

n % < 1 ano 3 100,0 - 3 100,0

1 a 4 31 96,9 1 3,1 32 100,0 5 a 9 21 43,7 27 56,3 48 100,0

10 a 14 1 2,6 38 97,4 39 100,0

TOTAL 56 46,0 66 54,0 122 100,0 Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

Na tabela 2, verifica-se que mais da metade (54%) das

crianas at 14 anos tem acesso instituio escolar, sendo que a quase

totalidade dos que tm entre 10 e 14 anos est freqentando a escola

(97,4%). Em relao s crianas fora do sistema escolar, chama-se a

ateno para a oferta reduzida de equipamentos sociais aos mais jovens,

especialmente as creches, que recebem crianas at 4 anos, e prescola

para os que tm entre 5 e 6 anos. As mes apontam que uma das

dificuldades a distncia entre a favela e a creche mais prxima, alm da

dificuldade de obteno de vagas, consideradas praticamente inexistentes

para essas faixas de idade.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 54

TABELA 3 - Distribuio da populao de 15 anos e mais segundo condio de alfabetizao na micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto no ano de 2004.

FAIXA ETRIA

ALFABETIZADOSn %

NO ALFABETIZADOS n %

TOTAL n %

15 a 19 33 21,5 1 0,7 34 22,1 20 a 49 90 58,5 16 10,4 106 68,8 50 a 59 3 2,0 5 3,3 8 5,2 60 a 69 2 1,3 3 2,0 5 3,3

> 69 - - 1 0,7 1 0,7

TOTAL 128 83,1 26 16,9 154 100,0 Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

Face pergunta se sabiam ler e escrever, observou-se que,

das 154 pessoas com 15 anos e mais, 83% consideraram-se alfabetizadas

enquanto cerca de 17%, no alfabetizados. Chama-se ateno, no entanto,

para a presena de adultos entre 20 e 49 anos no alfabetizados, que no

atendem s necessidades do desenvolvimento de atividades ou

oportunidades relacionadas ao acesso ao trabalho. A taxa de analfabetos da

CSCJ de quase 17%, maior do que a taxa existente no Brasil e regio

sudeste, 11,6% e 5,4% respectivamente ( IBGE 2003).

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 55

TABELA 4- Distribuio da Populao por condio de atividade na micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS-Planalto no ano de 2004.

EMPREGO N %

APOSENTADO 3 1,1 DESEMPREGADO 78 28,3 OCUPADO 50 18,1 NO SE APLICA* 145 52,5

TOTAL 276 100,0 *NSA: crianas, donas de casa e estudantes Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

Nesta comunidade, o nmero dos que afirmaram ser

desempregados (28,26%) elevado, comparando-se aos ocupados

(18,12%), frente a um grande contingente (52,54%) de donas de casa,

estudantes e crianas que no esto ocupadas. Na CSCJ considerou-se na

condio de ocupado tanto o trabalhador formal quanto o informal, ou seja,

aquele que faz bicos ou trabalho eventual, ou so autnomos, no tendo

renda fixa.

Os 276 moradores esto agrupados em 62 unidades

familiares com seguintes caractersticas: predomnio de famlias nucleares

(69,4%), isto , composta pelo casal original e filhos; seguidas de famlias

com outros arranjos (20,9%), e seis pessoas morando sozinhas (9,7%).

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 56

TABELA 5- Distribuio segundo arranjo familiar na micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS-Planalto no ano de 2004.

Tipo de famlia N %

unipessoal 06 9.7 nuclear 43 69.4 Outros arranjos* 13 20.9

Total 62 100

Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto. * qualquer outra situao em que no haja mais um ou mais cnjuge original, inclusive novos casamentos com filhos trazidos de outros matrimnios, ou pelo falecimento ou abandono de um ou dos dois cnjuges.

4.1.2. O Espao Fsico

A rea de abrangncia da Unidade Bsica de Sade

Planalto, na qual se situa a favela Comunidade Sagrado Corao de Jesus,

apresenta vrias barreiras geogrficas: terreno em declive, eroses, ruas

sem pavimentao, solo bastante mido com grande quantidade de minas

de guas, localizadas ao lado de valas de esgoto a cu aberto. Na micro-

rea CSCJ, o abastecimento de gua provm de duas fontes: poo/nascente

e da rede. A maior parte das casas/barracos (55%) abastecida por gua da

rede pblica e 45% da que provm de poos/nascentes. As moradias com

abastecimento da rede utilizam essa gua geralmente para cuidar dos

afazeres domsticos, e para consumo, usam a gua da mina no tratada.

Estas minas no so devidamente tampadas alm de ficarem ao lado de

valas de esgoto.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 57

4555

0102030405060708090

100%

po/nasc rede

Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

GRFICO 1- Distribuio dos domiclios segundo o abastecimento de gua

da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS-Planalto em 2004.

Cerca de 77.5% do esgoto da micro-rea CSCJ est a cu

aberto, 6.5% em fossa e apenas 16% est ligada rede coletiva pblica.

Apenas as casas na rua principal possuem rede de esgoto, sendo que, nas

restantes, o esgoto sai da casa a cu aberto, passando por toda a rea,

deixando o terreno mido, escorrendo at um crrego localizado ao final da

favela. Os domiclios, em sua maioria, no possuem banheiro. Assim, as

pessoas utilizam os banheiros comunitrios, que so casinhas de madeira

com um buraco no cho.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 58

77,5

6,516

0102030405060708090

100

%

Cu aberto Fossa Rede

Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

GRFICO 2- Distribuio dos domiclios segundo o destino do esgoto da

micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto em 2004.

Cerca de 27% dos barracos no so servidos por coleta de

lixo, sendo, s vezes, mais fcil jog-lo em terrenos e valas prximas; 5%

dos barracos costumam queim-lo e, em 68%, ocorre coleta porque esto

prximos s ruas principais de acesso favela.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 59

27

68

5

0102030405060708090

100%

Cu aberto coleta queima/enterra

Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

GRFICO 3 Distribuio dos domiclios segundo o destino do lixo em

relao ao nmero de famlias da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto em 2004.

Cerca de 8% das casas no possuem energia eltrica e 92%

possuem, sendo esta obtida por meio de ligaes clandestinas. As famlias

sem energia eltrica costumam utilizar velas para iluminao, o que provoca

constantes queimas de moblias, e representa um perigo permanente.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 60

92

8

0102030405060708090

100%

Com energia Sem energia

Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

GRFICO 4 Distribuio dos domiclios segundo eletricidade nas casas da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto em 2004.

As casas da comunidade so 24% feitas de tijolo/adobe,

32% de madeira, 5% mista e 39% de material reaproveitado. As casas

mistas so constitudas de tijolo e madeira, e as de material reaproveitado

so de madeira velha, plstico, lona, lata e papelo.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 61

3239

5

24

0102030405060708090

100%

Madeira Mat. Aprov. Mista Tijolo/Adobe

Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

GRFICO 5 Distribuio dos tipos de casa da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto em 2004.

Considerando as condies de habitabilidade, o tamanho da

moradia se torna importante quando se parte da premissa de que so quatro

as funes bsicas num domiclio familiar: repouso, estar, preparao de

alimentos e higiene. Dependendo do nmero de cmodos, aqui

considerados quaisquer compartimentos de uma casa, tem-se uma

indicao sobre a adequao do espao s atividades familiares (Troyano et

al., 1991). Na tabela abaixo, verifica-se que estas funes no esto sendo

exercidas em locais apropriados:

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 62

TABELA 5 - Distribuio do nmero de cmodos das moradias das famlias da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto no ano de 2004.

Nmero de cmodo (s) Total de famlias %

1 10 16,1 2 21 33,9 3 09 14,5 4 15 24,2 5 05 8,1 6 02 3,2

Total 62 100,0 Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.

Chama a ateno o fato de que famlias residindo em

barracos com 1 e 2 cmodos somam 50% de todas as famlias e que,

acrescentando-se esse nmero ao das que habitam em trs (14,51%), torna-

se evidente a distncia que esto de um padro aceitvel de habitabilidade.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 63

4.2. QUE ESPAO ESSE?

A construo desse espao est baseada na trajetria at a

favela, na descrio de como viver na favela segundo aspectos como

condies de moradia, rede social, acesso alimentao, pensar a sade,

violncia, lazer e como sobreviver com to poucos recursos.

4.2.1. A favela enquanto a CASA DO HOMEM

Para Rodrigues (2001), morar uma das necessidades

bsicas dos indivduos, pois no possvel viver sem ocupar um espao.

no interior da casa que se realizam outras necessidades - onde se dorme,

tem-se privacidade, alimentao, higiene pessoal, podendo ser local de

trabalho para subsistncia. Mas, para alm da casa, no caso da favela, ela

prpria constitui um espao social de sobrevivncia, tornando-se a casa do

homem.

Num pas capitalista que no distribui sua riqueza de forma

equnime, como discutido anteriormente, h dificuldade de se pagar aluguel,

de possuir uma casa prpria, entre outras, que colocam certa parcela da

populao na condio de favelado.

As famlias mais antigas na Comunidade Sagrado Corao

de Jesus chegaram no comeo dos anos 80 e, ao longo destes mais de

vinte anos, seus filhos constituram novas famlias no mesmo local,

reproduzindo a pobreza, mas, constituindo um grupo de relaes primrias

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 64

cuja intensidade dada pela proximidade do parentesco. Como mostrou

Durhan (1973), a famlia e os parentes constituem um importante ponto de

apoio e referncia para a adaptao e ajuste. Nas entrevistas realizadas,

ficou evidente o papel da famlia como suporte, sendo o aluguel pago antes

da mudana para a favela, um fator presente e certamente decisivo no

relato das trajetrias de vida. Em alguns depoimentos, a mudana para a

favela ocorreu como um projeto familiar: sair do local de origem se deveu

ao desejo de melhoria no padro de vida que se estendeu aos familiares

mais prximos. Por outro lado, como indicaram Almeida e DAndrea (2004),

ter um ponto de apoio, um ponto de chegada estvel, isto , um familiar j

instalado, facilita a deciso de mudana para a favela.

... a n eu fiz meu barraquinho, falei pra minha filha, ela pagava aluguel n, tinha muita criana...voc vai junto ca me e nois faiz um cmodo pra voc perto da me... e nis tamos tudo aqui e meus filho foi casando tambm, e j foi ficando tudo aqui perto nesse meiozinho, ento eu gosto de morar aqui, adoro esse lugar aqui, onde cabei de criar meus filho (E1). Ah.. um pouco bo, mas se o povo daqui fosse mais unido...Os vizinho tem uma parte legal mas outras no (E2).

Como se percebe, E1 vive h longo tempo na CSCJ, na

realidade 20 anos, tempo suficiente para que seus filhos estabelecessem

suas prprias famlias no mesmo espao numa ntida reproduo das

condies de vida, o que no impede uma valorao altamente positiva de

morar na favela. Portanto, essa possibilidade de sobrevivncia das

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 65

geraes que se agrupam no local, que parece estar subjacente

representao favorvel acima.

J E2 sendo o mais recente morador, 01 ano na CSCJ,

ainda tem uma avaliao parcial sobre o morar nesse espao, como se

percebe em sua fala, considerando-se que o estabelecimento de diferentes

relaes sociais, de amizade, de vizinhana, etc., depende de inmeros

fatores, inclusive tempo de conhecimento do outro.

se eu fosse pagar aluguel como que eu ia sobreviver, no tem como sobreviver, ento no to ruim morar aqui...(E9).

De outro lado, contingncias materiais determinam

necessidades, inclusive de afirmao positiva sobre o morar na favela, como

em E9.

A explorao da mo de obra no campo tambm foi uma

causa da migrao dessas pessoas para a favela, associada a outros

fatores, como podemos observar nos relatos abaixo:

Morava na fazenda,.....a o homem no pagava direito, ficava muito longe pra as criana estuda, .....a meu filho falou: vamo l a senhora arruma um servicinho e a senhora arruma um lugarzinho e vai mora l (E1) A meu pai veio um dia aqui e falou: l na fazenda no ta dando certo, porque o pouco que tava ganhando, estava sendo pouco. A comeou a poca de muita chuva......a eu falei: pai l no ta dando pro senhor, ento vem pra c, a ele veio mora aqui.(E6)

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 66

Segundo Rodrigues (2001), a favela surge com a

necessidade de onde e como morar, sendo produto de vrios processos

como a expropriao dos pequenos proprietrios rurais e da

superexplorao da fora de trabalho no campo, levando no apenas a

migraes rural-urbanas, mas tambm urbana-urbanas. O empobrecimento

da classe trabalhadora e o preo da terra urbana, sendo inacessveis para

a maior parte dos trabalhadores, tornam a favela uma expresso da luta

pela sobrevivncia.

Dada as condies histricas, a lgica capitalista

contrria vida associativa e coletiva s quais os moradores devem

recorrer, advindo disso algumas das contradies da vida em favela. Na

explicao de Sawaia (1990, p.47), na favela, as pessoas vivem muito

prximas, todas se conhecem, mas nem sempre se gostam. No se

entreamam, se entredependem e muitas vezes entretemem.

...a gente se conhece todo mundo que mora aqui perto, tem amizade de bem com todo mundo...(mas) aqui...uns toma uns arco, ce j no dorme em paz, outro j grita, ce j tem que acorda fora de hora...uns reclama bem dos outros...mas o povo se combina da maneira que pode, n... (E11). tambm tem muita coisa boa, tem vizinhos bons, tem uns que no bom, no todo lugar tambm que maravilhoso, mas d para viver... (E8).

Assim, dependendo da rede de relaes sociais

desenvolvidas, da avaliao que uns tm dos outros, a favela um lugar

bom para se viver, mesmo com obstculos, principalmente em relao s

precrias condies da moradia e falta de privacidade, considerando o

nmero de cmodos e as pessoas que nela habitam. Na famlia em que j

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 67

no se encontra o ncleo original (E 10), podemos perceber dificuldades, em

relao ao espao fsico, como falta de privacidade, de organizao e de

convivncia, comuns tambm a outros moradores:

Eu gosto daqui, um lugar calmo, mas o que me incomoda que a casa no s minha, s tem um cmodo e fica muito difcil pra dormir, a gente dorme tudo amontoado e quando o sr. J. chega bbado as menina j no gosta (E10). ...meu irmo veio morar comigo, a reparti minha casa no meio, ento fiquei com 3 cmodos, quando vem a chuva molha tudo e entra gua aqui dentro....mas eu acho que a casa boa, s o pobrema que no pode chover (E6).

Mesmo com uma avaliao negativa sobre a infra-estrutura

no local, as diferentes famlias valorizam a rede de relaes sociais

desenvolvida:

A gente conhece todo mundo que mora aqui, tem amizade, de bem com todo mundo. O ruim daqui um monte de coisa que falta, no tem asfalto, quando chove vira aquele barreiro.... (E11). ...eu tenho esse pessoal aqui como uma famlia, sabe...os pessoal no me aborrece, no briga com a gente n. O pessoal so muito honesto com a gente, ningum fica falando da vida de ningum, ento eu adoro muito o pessoal daqui (E1).

As trs falas a seguir so de famlias que moram em

diferentes tipos de moradia como alvenaria (E3), material reaproveitado

(E4) e madeira (E5), mas que apesar das dificuldades e precariedades de

suas casas, gostam do lugar e das pessoas:

O bom daqui que mais sossegado, a casa s tem um cmodo mais boa, tenho minhas planta, a horta que ajuda muito (E3).

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 68

A casa que no boa n, fia. Quando chove, a chuva ta l em So Paulo aqui j t chovendo, chove tudo dentro,...nis que fizemo, eu e meu fio. O patro deu as tbuas, as teias e nois feiz esses dois cmodos... banheiro pra necessidade l traz, de buraco (E4). Quando chove vira uma barrera, um brejo, as teias va tudo, entra muito vento ...Mas eu adoro esse lugar que foi abenoado por Deus, considero todo mundo meus fio e amigo, todo mundo me chama de v e me respeita (E5).

Em caso de necessidade, a rede de parentesco e de

vizinhana forma uma estrutura de ajuda, desenvolvendo-se grupos de

intercmbio e relaes de troca. Numa situao de precariedade,

associao e solidariedade devem estar presentes para se enfrentarem

condies crticas de sobrevivncia. Conforme Sawaia, uma situao na

qual se deve compartilhar recursos escassos e intermitentes para lograr

impor-se em grupo s circunstncias que certamente os fariam sucumbir

como indivduos isolados. Para a autora, na vida em situao de misria,

... preciso socializar a desgraa, solidarizar-se na troca de favores entre

os pares (SAWAIA, 1990, p. 47).

... passei por uma fase difcil n...de no ter mesmo o que por no fogo, no ter mesmo de jeito nenhum. Ento assim, uma irm do lado, ou a outra pra ajudar... (E8) s vezes tem as condies de ter n, s vezes a gente passa por dificuldade. Ento j procurei a Assistente Social, j procurei os Vicentinos e eles sempre me forneceram... (E11). ... mas o povo se combina da maneira que pode, n, quando um precisa o outro ajuda, quando um t podendo tambm ajuda o outro e a ns vamos levando assim devagar, at chegar l n (E 7). Fiz aniversrio e ganhei tanto parabns que foi uma bno, do povo todo, ento eu adoro o pessoal daqui pra mim uma famlia que eu tenho (E1).

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 69

Alm da troca entre os pares, formando vnculos entre

parentes, vizinhana e conterrneos, existem as instituies religiosas, da

sade e do terceiro setor que formam redes sociais por meio das quais

circulam benefcios materiais. Como ressaltaram Almeida e DAndrea (2004),

algumas vezes esses benefcios se traduzem em forma de informaes e

contatos, sendo que, alm de afetivos, contribuem para a integrao

socioeconmica e atenuam a condio de vulnerabilidade.

Olha, eu quero agradecer faculdade. Antes no vinha ningum para olhar a gente. A comeou a vir os alunos. Eu amei vocs aqui, dando ateno que ningum dava, vieram aqui de corao, de peito aberto, no com medo da gente, porque os outros pensam que a gente que mora na favela bicho... (E8). A funcionria do posto me conhece e, quando eu no tenho comida, ela ajuda a arrumar o arroz, feijo porque eu no tenho capacidade de sair pedindo...(E3). A pastoral da criana ajuda, pesa as crianas, faz leite, almoo, ns rezamos tudo certinho, faz fila e ela distribui...(E9). A pastoral da criana pesa todo ms, vem d leite, d bolacha, ensina a gente te educao, explica vrios tipos de coisa pra gente aprend (E6).

Observamos a ampla rede de relaes sociais primrias que,

sejam de parentesco e vizinhana, sejam de entidades religiosas e

instituio de ensino, se complementam enquanto estratgias de

sobrevivncia, como identificamos inclusive nos relatos das famlias

atendidas pela pastoral da criana (E6 e E9) e a que recebe auxlio do

governo (E7), oferecendo diferentes tipos de apoio: do material ao

emocional, compartilhando-se tristezas e alegrias. Nesse sentido, viver na

favela fazer parte dessa rede, garantindo uma identidade social para

aquele que j vtima em potencial da sociedade capitalista.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 70

4.2.2. Viver na favela e pensar sobre a sade, alimentao, violncia e lazer.

Como se viu, a trajetria de vida das pessoas da

Comunidade Sagrado Corao de Jesus marcada pela migrao (em

alguns casos rural-urbana; em outros, urbana-urbana), luta pela

sobrevivncia, fome, falta de dinheiro, desemprego, enfim, pela falta de

acesso s necessidades essenciais da vida. Nesta condio marcada pela

carncia, no se estranha que representaes sobre a sade e doena

valorizem a dimenso biolgica. De um lado, porque uma das formas

tradicionais de compreenso da sade, embora no deixe de ser uma viso

reducionista, seja pelas condies de vida que no permitem um olhar mais

amplo, seja pela ideologia mdica que vem privilegiando esta determinao

orgnica em relao social e psicolgica.

Ah... sade pr mim uma pessoa que num doente, que num tem nada. Mas tamem muito difcil n, porque ... tem uma gripinha ali mas isso normal.... E 1. ..... porque eu acho que assim se for pr gente fic doente a gente fica em qualquer lugar, num tem lugar pr ficar n, a gente fica em qualquer lugar... E7.

Do outro lado, encontra-se a incorporao, mesmo que

fragmentada, de noes vindas de uma medicina cientifica. Isto se deve a

extenso do campo de normatividade da medicina ( Donnangelo, 1978,

p.33), processo pelo qual a pratica mdica, ao tomar as diferentes classes

sociais como seu objeto, divulga suas concepes e representaes de

sade, e os meios para obt-las. Identifica-se, na explicao a seguir, a

participao dos servios de sade e outros que desenvolvem a puericultura:

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 71

Ah, a sade higiene, limpeza n, tem que ter cuidado com tudo n, inda mais a gente tendo criana n, em tudo tem que estar pensando n, e deixar tudo as coisa limpinha, fazer tudo da maneira adequada n, alimento fervido, bem lavado, a comida bem lavada tambm, perfeita, ter um lugar limpo E11.

No entanto, mesmo com a expanso da racionalidade

mdica, para dar um sentido aos acontecimentos na vida lana-se mo de

um estoque de experincias anteriores, transmitidas pela tradio, que

funcionam como um cdigo de referncia (Souza, 1999). Segundo Schutz:

O homem na vida diria tem a qualquer momento um estoque de conhecimento mo, que lhe serve como um cdigo de interpretao de suas experincias passadas, presentes e determina suas antecipaes das coisas futuras. Este estoque de conhecimento a mo tem sua histria particular. Foi constitudo de e por atividades anteriores da experincia de nossa conscincia, cujo resultado tornou-se agora posse nossa, habitual (Schutz, 1979 apud Souza, 1999).

Nesse aspecto que tratamento mdico e tradio religiosa

combinam-se de forma inter-relacionada para o enfrentamento do dia-a-dia,

evidenciando a fora de um pensamento mgico-religioso que vem

acompanhando a cultura humana:

sade eu nem sei respond isso a ce sabe! Porque graas a Deus que feiz eu viv, toda semana eu tava no mdico, vivia... toda hora tinha uma coisa. Faiz um ano que graas a Deus eu num sei o que que um mdico. Eu num fui mais. E sabe que uma hora acord e a gente fala ah meu Deus, me ajuda que amanhea o dia logo e por a v passando o dia intero. Agora eu t precisando de i mas sei l, continua assim( E5).

Para a classe trabalhadora estar com sade ter

condies de trabalhar, sobretudo em uma sociedade capitalista, em que a

fora de trabalho a nica maneira de sobreviver conforme podemos

observar no relato abaixo:

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 72

Pr mim ter sade a gente precisa de te um pouquinho pra gente trabalh, pra gente cresc na vida, fica numa situao melhor, n? Pr mim ter sade essa parte a... Luta por um ideal pr gente consegui uma coisa melh pros menino. No s o sucesso da gente mas como pros filho da gente, n. Pr mim sade isso ( E6) .

Numa viso mais ampla, englobando a relao pessoal e a

boa alimentao, alm de se ter condies para o trabalho, fatores esses

relacionados s condies de vida, a representao abaixo bastante clara:

t sade assim, a gente n, guent convers, a gente t comendo bem graas a Deus n, pod trabai, a gente vai num lugar a num sente nada... (E3).

Percebeu-se, portanto, a existncia de um conceito ampliado

de sade que envolve seus determinantes sociais, embora em muitos

depoimentos esteja mais presente a percepo biolgica do corpo

organicamente saudvel, da ausncia de doena e do acesso ao mdico

que asseguraria a sade. A experincia de sade individual, por outro lado,

muito marcada pela presena da doena ou sua inexistncia e negao.

A viso medicalizada de sade, na qual a nfase se d no

tratamento mdico, levanta questes de acesso ao sistema pblico de

sade. Para os moradores da CSCJ h um difcil acesso e descaso, que os

levam a se utilizar de estratgias prprias para conseguirem ser ouvidas,

alm de reclamarem da demora do governo em relao aos benefcios e da

eterna espera por um atendimento digno, que possa resolver seus

problemas.

As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 73

Nis feiz um cadastro l pelo.... como que ?.... Espao Cultural at hoje, vai faz treis mes j. Ouo vai vim, vai vim, vai vim at hoje nada. E ns esperano esse dinheiro porque nis precisa n, porque tem criana, as criana tem vontade e o governo v d, v d, v d. Ai vai no posto remdio j cheg? Num cheg ainda, tem que esper, tem que esper, esper, tudo tem que esper. S promete, s promete. Foi um monte de gente at hoje nis t esperando, vai faz treis ms j (E2). O posto resolve, no sempre, mas resolve. s vezes no tem mdico, t faltando mdico...Tem dia que tem mdico, dia que no tem mdico... Dia de segunda no tem nem pediatra nem clnico.... A fica esse rolo a... Mas quando tem, resolve a situao da gente (E 4).

No posto de Sade, no Planalto, e se no ti