condessa de ségur - joão que chora e joão que ri

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur Infanto-Juvenil Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. Composto e impresso por 1

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

João que Chora e João que Ri

Condessa de Ségur

Infanto-Juvenil

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

Composto e impresso porPrinter Portuguesa, Indústria Gráfica, Lda. Mem Martins - SintraPara A Editorial Pubblica, Com Sede Na Avenida Poeta Mistral 6-b -

1000 LisboaSetembro de 1986

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

A Minha Neta

MARIA TERESA DE SÉGUR

Há muito que esperas o teu livro mas, primeiro, estavam os teus

irmãos, primos e primas, mais velhos do que tu.

Finalmente, chegou a tua vez. Espero que JOÃO QUE RI te faça rir;

não me parece que JOÃO QUE CHORA te faça chorar.

Tua avó muito amiga,

CONDESSA DE SÉGUR

(ROSTO PCHINE )

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

A partida

HELENA - A trouxa está quase pronta, Joãozinho. Só faltam os livros.

JOÃO - E não hão-de pesar muito, mamã. Aqui estão eles.

A mãe pegou nos livros que João lhe estendia e leu: Manual do

cristão. Conselhos práticos para as crianças.

HELENA - Não são muitos, realmente. Mas são bons.

JOÃO - Mamã, quando estiver em Paris, hei-de fazer o possível para

ver o padre que escreveu estes livros.

HELENA - Fazes tu muito bem. Basta ler os livros para se saber que

ele é bom. E também é evidente que gosta de crianças.

JOÃO - Assim que chegar a Paris e a casa do Simão, já não tenho

medo.

HELENA - Também não há razão para ter medo na estrada, filho.

Quem é que havia de te fazer mal? E porquê?

JOÃO - É que há pessoas que não são boas, mamã; e algumas são,

até, más.

HELENA - Não digo que não, mas não és tu o primeiro que vai

procurar trabalho a Paris. E não lhe acontece mal não é verdade? Lá

estão Deus e Nossa Senhora para te protegerem.

JOÃO - Eu também não disse que tinha medo. Só disse que há

pessoas que não são boas. Não é uma grande verdade?

HELENA - Sim, sim, toda a gente o sabe. Mas não te vais pôr a

chorar por isso. Eu não quero que chores.

JOÃO - Esteja descansada mãe. Serei valente como o Simão, que se

foi embora sem sequer voltar a cabeça para trás. Tenho quase catorze

anos. Bem sei que é preciso coragem. Farei como o Simão.

HELENA - Está bem, meu filho. És bom e valente. E o primo Joanico?

Virá esta tarde ou amanhã de manhã?

JOÃO - Não sei, mamã. Há três dias que o não vejo.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

HELENA - Então vai a casa da tia saber se ele está pronto para partir

amanhã de madrugada.

João deitou a correr. Helena ficou à porta a olhá- lo. Quando deixou

de o ver, voltou para dentro, juntou as mãos num gesto de desespero,

caiu de joelhos e exclamou por entre lágrimas:

- Meu filho, meu querido Joãozinho! Também ele tem que partir e

deixar-me. Também ele vai correr mil perigos nesta viagem! Meu filho,

meu querido filho!. . . E eu tenho de esconder o meu desgosto, as minhas

lágrimas, para o encorajar! Devo parecer insensível à sua ausência,

quando o meu coração estremece de inquietação e de dor! Pobre filho! A

miséria obriga-me a mandá-lo para junto do irmão. Deus da bondade,

protegei-o! Maria, Mãe de Misericórdia, não o abandoneis, velai por ele!

A pobre mulher continuou a chorar durante algum tempo, depois

levantou-se, lavou os olhos, vermelhos de lágrimas, e esforçou-se por

parecer calma e tranquila quando João voltasse.

João andou rapidamente até à curva do caminho, enquanto a mãe o

podia avistar. Quando lhe pareceu que ela já o não via, parou, olhou

tristemente a estrada que acabava de percorrer, tudo o que o rodeava, e

pensou que, na manhã seguinte, passaria ali pela última vez. E pôs-se,

também, a chorar.

Mas depressa reagiu. Limpou os olhos, procurou distrair-se,

pensando no irmão de quem era muito amigo, e quando chegou a casa da

sua tia Mariana já estava bem-disposto. Quando ia a entrar deteve-se,

assustado e surpreendido. Ouvia gritos, gemidos, soluços. Transpôs a

porta. Sua tia estava sozinha e parecia descontente, mas decerto não fora

ela quem soltara os gritos e os gemidos que acabava de ouvir.

- És tu, Joãozinho? Que queres?

JOÃO - A mamã mandou-me saber se o Joanico estava pronto para

amanhã, minha tia. E se ele ia ficar esta noite lá a casa ou se ia amanhã

de madrugada, para partirmos juntos.

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TIA - Eu não posso com este rapaz. Há uma hora que está a berrar;

não quer obedecer-me. Já lhe disse mais de dez vezes que fosse ter

contigo. Andam as pedras? Assim anda ele. Ouve-lo gemer e chorar?

JOÃO - Então onde é que ele está, minha tia?

TIA - Está lá fora, atrás da casa. Vai procurá-lo, Joãozinho, e vê se

consegues trazê-lo.

João saiu, deu a volta à casa. Não viu ninguém nem ouviu mais nada.

Chamou:

- Joanico!

Mas Joanico não respondeu. Entrou novamente em casa.

TIA - Então, convenceste-o a ir contigo?

JOÃO - Não o vi, minha tia. Olhei para todos os lados, mas não o

encontrei.

TIA - Ora essa! Onde foi ele meter-se?

A tia saiu, deu a volta à casa, chamou e, como João, não encontrou

ninguém.

- Acaso terá fugido para te não acompanhar amanhã?

João estremeceu à ideia de fazer sozinho uma viagem tão comprida e

de andar sozinho em Paris, nessa cidade tão grande (tinha escrito o

irmão) que não era possível percorrê- la num só dia. Mas depressa se

dominou e resolveu encontrar o primo, ainda que tivesse de o procurar

toda a noite.

Ele e a tia continuaram a procurar, sem resultado.

- Grande mau - murmurava ela. - Detestável criança! Se tu vais sem

ele, Joãozinho, e ele me aparece depois da tua partida, eu não o recebo,

pode ele ter a certeza.

Enquanto a tia falava, João, que procurava por toda a parte, lembrou-

se de espreitar num velho canil e viu o Joanico agachado lá ao fundo.

- Aqui está ele, aqui está ele! - gritou João. Vamos, Joanico, anda cá.

Joanico não se mexeu.

- Espera, eu o obrigo a sair do seu esconderijo

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- disse a tia, encantada com a descoberta de João. Baixou-se, agarrou

as pernas de Joanico e puxou até conseguir tirá-lo. Logo que se viu cá

fora, Joanico recomeçou os gritos e os gemidos.

JOÃO - Joanico, sê razoável! Eu também vou e vês- me, porventura, a

gritar e a chorar como tu? Se é preciso partir, de que serve chorar? Que

fazes aqui? Nada. E em Paris vamos tornar a ver o Simão, que nos dará

de comer. Ele nos arranjará trabalho para não sermos uns vadios sem

préstimo para nada. E aqui, que é que nós fazemos? Comemos o pão da

mamã e da tia. Tu bem vês! Não sejas mau. Diz adeus à tia e vem comigo.

O vizinho Gregório deu à mamã um rico bolo e uma garrafa de vinho para

nos fazer um bom jantar; e o Daniel deu-nos um coelho que matou.

O rosto do Joanico animou-se. As lágrimas desapareceram,

aproximou-se do primo e disse:

- Quero ir contigo.

A tia aproveitou esta boa ocasião para lhe dar a trouxita enfiada num

pau. E os dois pequenos saíram.

JOANICO - Estou muito contente por não ouvir mais a tia Mariana

resmungar e gritar. Ela é muito má.

JOÃO - Ouve, Joanico, tu não tens razão para dizer que a tia Mariana

é má! Ela fala-te alto de mais, é certo, mas também tu a contrarias muito

e não lhe obedeces.

JOANICO - Bem sei. Ela queria que lhe fosse fazer as compras à

noitinha, mas eu tinha medo.

JOÃO - Medo de ir a cem passos buscar pão ou de ir ao fim do quintal

buscar lenha!

JOANICO - Não gosto de sair sozinho à noite. É superior às minhas

forças: tenho medo.

JOÃO - E porque choravas tu, se gostas de ir? E porque te escondeste

tão bem, que só por acaso te encontrei?

JOANICO - Porque tenho medo daquilo que desconheço. Tenho medo

dessa grande cidade.

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JOÃO - Não te entendo! Se tens medo, não há nada que te alegre? Se

tu próprio dizias que estavas mal em casa da tia, e que estavas contente

por ir?. . .

JOANICO - É isso mesmo: antes quero estar mal na terra, e saber

como e porque estou mal, do que ir por essas estradas fora e não saber

para onde vou nem que desgraças me esperam.

JOÃO - Que parvo! Porque pensas tu em desgraças?

JOANICO - Porque, faça-se o que se fizer, esteja-se onde se estiver,

viva-se como quer que seja, sofre-se sempre. Eu bem o sei.

JOÃO (rindo) - Então sabes mais do que eu. A minha vida é boa, estou

mais vezes feliz do que infeliz, contente que descontente, e sinto-me com

coragem para ir até Paris.

JOANICO - Bem sei! Tens mãe! Eu não tenho senão tia.

JOÃO - Mais uma razão para eu chorar por deixar a mamã, e tu

rires, visto que a tua tia não morre de amores por ti! Mas tu resmungas e

choras! Entre as duas coisas prefiro rir a chorar.

Joanico respondeu com um suspiro e uma lágrima. João não disse

mais nada. Caminharam em silêncio e chegaram à porta de Helena. Um

cheirinho a coelho e a bolo reanimou Joanico.

HELENA - Finalmente, Joãozinho! Estava inquieta por não voltares.

Trazes o Joanico? Muito bem! Mas que cara de enterro, pobre Joanico!

Que é que tens? Diz! Vamos, fala. Não tenhas medo.

Joanico baixou a cabeça e pôs-se a chorar.

JOÃO - Tem pena de partir. No entanto, ele dizia a todo o instante

que não tinha pena de deixar a tia. Nesse caso, porque é que chora?

HELENA - Realmente, porque choras? E diante de um coelho e de

um bolo! Sê razoável, Joanico! Vamos, acabou-se, venham ajudar-me a

preparar o jantar. E que rico jantar.

JOANICO (suspirando) - É o último que cá como, minha tia!

HELENA - O último! Deixa-te disso! Vocês hão-de voltar carregados

de bolos e de coelhos, e tu hás-de comê-los cá em casa com o Joãozinho.

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Ele é corajoso! Olha para a cara dele, tão alegre. O quê? Tens os olhos

vermelhos, Joãozinho! Que é isso? Um argueiro num olho?

João olhou para a mãe. Os seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Quis sorri, falar, mas o sorriso era um esgar e a voz não lhe podia sair da

garganta.

A mãe inclinou-se para ele, abraçou-o, e saiu para ir buscar lenha,

disse ela. Quando voltou, a boca sorria, mas os olhos tinham chorado.

Poisaram apenas um instante, com ansiedade, no rosto do filho esperando

que ele não se apercebesse do seu enorme desgosto.

Joãozinho observava-a, também com tristeza. Cruzaram os seus

olhares. Ambos compreenderam a dor que sentiam, o esforço que faziam

para a dissimular, e a necessidade de se incutirem, mutuamente,

coragem.

- Deus é bom, mamã. Ele nos protegerá! disse João, comovido. - E

que felicidade ter-me ensinado a escrever! Escrever-lhe-ei sempre que

tenha dinheiro para uma carta.

HELENA - E o senhor abade prometeu-me um postal todos os meses.

Mas agora temos aqui o nosso coelho que está a pedir: comei-me!

E sentaram-se à mesa.

- Belo coelho! - disse João, engolindo o último bocado.

- Que pena não haver mais! - suspirou Joanico.

- E com que prazer vocês comerão amanhã o que ficou! - disse

Helena, sorrindo.

JOÃO - O que ficou? Ainda há alguma coisa?

HELENA - Olá, e um bom bocado. As duas pernas, uma para cada

um.

JOÃO – Mas, como foi isso? A mamã não comeu?

HELENA - Ai não, não comi! Não sou tão tola que não saboreie

semelhante petisco.

Dizia a verdade: tinha saboreado, realmente, visto ter-se servido da

cabeça e das patas. João quis ainda que ela explicasse que porção de

coelho comera, mas ela interrompeu-o.

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- Basta de comer e conversar, meus filhos. Agora arrumemos tudo e

preparemos a cama. Joanico dormirá contigo, Joãozinho. Mas antes de

deitar, filhos, vamos à igreja pedir a Deus e a Nossa Senhora que

abençoem a vossa viagem.

JOÃO - E depois vamos dizer adeus ao senhor abade.

HELENA - Sim, filho. É uma boa ideia que muito me agrada.

Era quase noite, mas não tinham muito que andar. A igreja e o

presbitério ficavam a cem passos. Os três caminhavam em silêncio. A

mãe, de coração confrangido com a partida do filho, João, pesaroso por a

mãe ficar só, e Joanico, pensando, com pavor, nos perigos da viagem e

nos túmultos de Paris.

Chegaram à igreja. A porta estava aberta. Helena entrou com as

crianças e os três ajoelharam diante do altar da Virgem. Helena e João

rezaram e choraram, mas em silêncio. Joanico suspirava e pedia pão, boa

viagem e feliz entrada em casa de Simão.

Estava a mãe a rezar quando sentiu apertarem-lhe docemente o

braço e uma voz infantil dizer-lhe baixinho:

- Basta, mamã, basta. Tenho fome.

Helena voltou-se vivamente e viu uma rapariguinha. A obscuridade

não deixava distinguir-lhe as feições. Inclinou-se para ela.

- Eu não sou a tua mamã, minha filha - disse-lhe.

A pequena recuou com medo e pôs-se a gritar:

- Mamã, mamã, acudam-me!

João e Joanico levantaram-se, surpreendidos, quase assustados.

Helena agarrou a pequenita pela mão e saíram da igreja.

HELENA - Onde está a tua mamã, minha filha? Eu levo- te a ela.

PEQUENITA - Não sei, estava ali.

HELENA - Sabes aonde ela foi?

PEQUENITA - Não sei. Ela disse: “Espera-me “ e eu esperei.

HELENA - Talvez esteja em casa do senhor abade. Vamos lá procurá-

la.

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Daí a dois minutos estavam em casa do sacerdote, que interrogou

Helena acerca da rapariguinha.

HELENA - Não sei quem é, senhor abade. Acabo de a encontrar na

igreja, onde estávamos a rezar; andava à procura da mãe, e eu pensei que

ela estivesse em sua casa.

ABADE - Não vi ninguém. É singular! Como te chamas, minha filha? -

perguntou ele, acariciando a face da pequena.

PEQUENITA - Tenho fome. Quero comer.

O abade foi buscar pão, e um copo de leite. A pequena comeu e

bebeu avidamente.

Entretanto, Helena explicou ao padre que vinha pedir-lhe a bênção

para a viagem que os pequenos iam empreender.

ABADE - Quando partem?

HELENA - Amanhã de madrugada, senhor abade.

ABADE - Amanhã, já?! Eu vos abençoo de todo o coração, meus

filhos. Não se esqueçam de pedir a Deus e a Nossa Senhora que vos

auxilie nas vossas dificuldades, nas vossas privações, nos vossos perigos e

nas vossas mágoas. Eles são os vossos melhores e mais poderosos

protectores. E quanto a esta menina, Sra. Helena, leve-a para casa até

que a mãe a venha buscar. Eu mando-a lá, se ela vier cá a casa. Fique

descansada.

- E vós, meus filhos - continuou ele, abrindo uma gaveta - aceitai uma

recordação minha que vos protegerá durante a viagem e toda a vida.

Tirou da gaveta dois cordões com medalhas da Virgem Santa e pô-

los ao pescoço de João e de Joanico, que os receberam de joelhos, e

beijaram a mão do bom abade.

A pequena chorava! Helena suspirou.

Que hei-de eu fazer a esta criança? - pensava ela. - Não tenho meios

para a manter. Não vou separar-me do meu pobre Joãozinho para tomar o

encargo de uma estranha. Mas eu sou bem tola em me estar a inquietar.

Deus, que ma põe nas mãos, me dará com que a sustentar, se a mãe não

vier procurá-la.

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Ainda com este pensamento, Helena não se inquietou mais. Deitou-a

aos pés da sua cama e cobriu-a com roupinha velha.

- É a nossa última noite feliz, mamã - disse João, abraçando-a antes

de se deitar.

- Não, meu filho, a última não. Deixemos passar o tempo, que passa

muito depressa, e nós nos juntaremos de novo. Dorme Joãozinho. É

preciso levantar cedo amanhã.

A pequenita já estava a dormir. Joanico estava quase. João

adormeceu pouco depois. Só a mãe velava, chorando e rezando.

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1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.

Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

O encontro

No dia seguinte, de madrugada, Helena levantou-se, fez dois

embrulhos com o farnel, meteu-os na trouxa da roupa e tratou do

pequeno-almoço. Ao pão seco, que era o habitual, juntou uma chávena de

leite quente. Por isso, quando os pequenos se levantaram, esta esplêndida

refeição dissipou a tristeza de João e as inquietações de Joanico.

A pequena dormia ainda.

Chegou o momento da separação. A tristeza apertava o coração de

todos. Helena abraçou dez vezes, cem vezes o seu querido Joãozinho.

Abraçou Joanico, abençoou os dois e mostrou a João algumas moedas que

tinha na algibeira.

- Os nossos amigos de Kérantré mandaram-te este peculiozinho, em

paga dos pequenos serviços que lhes prestaste, Joãozinho. O senhor

abade também aí pôs a sua moeda.

João quis agradecer, mas as palavras não lhe saíam da garganta.

Abraçou a mãe ainda com mais força, soluçou um instante e soltou-se-lhe

dos braços. Limpou os olhos e, como o irmão, pôs-se a caminho de sorriso

nos lábios e sem voltar a cabeça para lançar um último olhar à mãe e à

casa.

Agora compreendo - pensava ele - porque é que o Simão andava tão

depressa e não se voltou para nos ver e sorrir. Ele chorava e queria

ocultar as lágrimas à mamã.

Enquanto João se afastava rapidamente de tudo o que lhe era

querido e se encorajava, Joanico seguia-o a custo, choramingava,

chamava o companheiro, que o não ouvia, tremia por ficar para trás e

desolava-se por deixar uma tia que não estimava e uma região de que não

tinha pena, a fim de ir para uma cidade que detestava pela sua vastidão e

para junto de um primo que mal conhecia.

Tenho a certeza de que o Simão não se quer ralar comigo - pensava

ele. - Só há-de querer saber do João. Eu ficarei para o canto, sem

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ninguém que trate de mim. Como sou desgraçado! O João é muito mais

feliz. Está sempre alegre, sempre contente. Toda a gente gosta dele,

todos lhe dizem amabilidades. E a mim ninguém me olha sequer; e

quando, por acaso, me falam, é para chamarem chorão, desenxabido,

aborrecido e outras coisas assim. E querem que eu seja alegre? Tenho

motivos para isso, realmente? Tenho as algibeiras cheias! Dois francos

que o senhor abade me deu! E João tem tanto dinheiro que nem lhe sabe

a conta! Todos lhe deram, disse a tia. Eu sou muito desgraçado! Nada de

bom me acontece!

Reflectindo e afligindo-se assim, Joanico atrasou o passo, sem dar

por isso. Quando voltou a si, levantou os olhos, olhou para diante, para

trás, à direita, à esquerda, e não viu o primo João. O medo foi tamanho

que as pernas lhe tremeram. Obrigado a parar, nem sequer teve

forças para o chamar.

Passado um bocado, deitou a correr para alcançar João. Numa das

voltas do caminho viu confusamente uma capelinha à beira da estrada e

ia passar adiante, sempre correndo, soprando e suando, quando ouviu

chamarem-no.

Reconheceu a voz de João e parou, alegre mas surpreendido, porque

o não via.

- Joanico - repetia a voz de João – vem estou aqui.

JOANICO - Onde estás tu? Não te vejo.

JOÃO - Na capela de Nossa Senhora.

- Ora essa! - disse Joanico, entrando. – Que fazes aí?

- Rezo - respondeu João. - Rezo e sinto-me consolado. Parece que

Nossa Senhora também confortou a mamã. Vejo sinais de lágrimas nos

teus olhos, pobre Joanico. Vem rezar e ficarás consolado como eu.

JOANICO - Por quem queres tu que eu reze? Não tenho mãe.

JOÃO - Reza pela tua tia, que te recolheu durante três anos.

JOANICO - Oh! A minha tia! Não vale a pena.

JOÃO - Não é bem assim, Joanico. Mas reza então por ti, se não

queres rezar pelos outros.

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JOANICO - Por mim? É inútil. Eu sou infeliz e faça o que fizer, hei-de

sê-lo sempre. Além de que tudo me é indiferente.

JOÃO - Tu és infeliz porque queres. A não ser eu ter mãe e tu não,

estamos nas mesmas condições. Eu considero-me feliz e tu lastimas-te

por tudo.

JOANICO - Nós não estamos nas mesmas condições: tu tens não sei

quanto dinheiro e eu só tenho dois francos.

JOÃO - Se a tua infelicidade consiste só nisso, depressa a faço

desaparecer, pois vou dividir o dinheiro contigo.

JOANICO (um pouco envergonhado) - Não, eu não disse isso. Não to

peço nem o queria.

JOÃO - Quem pede e quer sou eu. Nós vamos juntos, chegaremos

juntos e juntos ficaremos. É justo que gozemos juntos a bondade dos

nossos amigos.

E sem esperar mais, João tirou da algibeira a velha bolsa de couro

cheia de moedas que a mãe lhe tinha dado. Sentou-se à porta da capela,

obrigou Joanico a sentar-se ao pé dele, esvaziou a bolsa e começou a

divisão:

- Um franco para ti, um franco para mim.

E continuou assim, até que deixou nas mãos de Joanico metade do

seu tesouro.

Joanico agradeceu ao primo, um pouco confuso. Agarrou no dinheiro

e meteu-o na algibeira.

- Tenho mais dois francos do que tu - disse ele.

JOÃO - Como, se eu dividi ao meio?

JOANICO - Porque eu tinha dois francos que me deu o senhor abade.

JOÃO - Ah! É verdade! Estás mais rico do que eu. Bem vês que não és

tão infeliz como dizias.

JOANICO - Não sei. Eu tenho enguiço. Pode vir um ladrão e levar

tudo o que tenho.

- Nem tu supunhas ser tão bom profeta – disse uma voz forte por

detrás das crianças.

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Voltaram-se e viram um homem novo, alto, forte, de barba preta, que

os observava com atenção.

João deu um salto e ficou em frente do desconhecido.

JOÃO - Não quero crer que seja capaz de nos despojar. Somos dois

pobres rapazes, que nos vimos obrigados a deixar a terra para irmos

procurar o pão de cada dia a Paris, porque as nossas familias não têm que

nos dar. Aqui está tudo o que eu tenho.

O desconhecido agarrou no dinheiro.

DESCONHECIDO - E com que viverás tu, quando chegares a Paris?

JOÃO - Deus me dará com quê, como sempre tem feito.

- E tu - disse o desconhecido, voltando-se para Joanico - que tens tu

para me dar?

JOANICO (caindo de joelhos e chorando) – Eu tenho apenas o

indispensável para não morrer de fome, meu senhor. Misericórdia para o

meu pobre dinheiro! Misericórdia pelo amor de Deus!

DESCONHECIDO - Nada de misericórdia para o ingrato, o poltrão, o

ambicioso, o invejoso. Ouvi tudo. Dá cá depressa.

O desconhecido meteu a mão na algibeira de Joanico e tirou os dez

francos e vinte e cinco cêntimos que lá estavam.

Joanico atirou-se ao chão, a chorar.

- Meu senhor - disse João, impressionado ele próprio com as lágrimas

do primo - tenha dó dele. Dê-lhe o dinheiro.

DESCONHECIDO - Porque lho hei-de dar a ele e não a ti?

JOÃO - Porque eu tenho coragem e ele não.

DESCONHECIDO - És um rapaz valente. Vamos conversar. Para

onde vais?

JOÃO - Para Paris, meu senhor.

DESCONHECIDO - E como hás-de tu lá chegar sem dinheiro?

JOÃO - Oh! isso não me inquieta. Assim como o encontrei, posso

também ter a sorte de encontrar alguém que nos auxilie.

O desconhecido sorriu e não pôde deixar de dar uma palmada

amigável na face de João.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

DESCONHECIDO - Parece que o teu companheiro está sempre

aterrorizado.

João - Tem tido uma vida difícil e por isso tem medo quando surgem

algumas contrariedades.

DESCONHECIDO - Como se chamam?

JOÃO - O meu nome é João e o do meu primo é Joanico.

DESCONHECIDO - Eu acompanho-os durante algum tempo para vos

evitar contrariedades. Toma, João, toma oito francos e vinte e cinco

cêntimos. E mais vinte francos que te dou para a viagem. E tu, chorão,

poltrão, toma os teus dez francos e vinte e cinco cêntimos, com a

condição de não receberes nada do João. Se eu sei que lhe aceitas mais

alguma coisa, tens de te haver comigo. Sigam-me, vou dar-lhes de comer

em Aubray, que é perto.

JOÃO (com os olhos brilhantes de alegria e gratidão) - O senhor é

muito bondoso. Estou-lhe muito reconhecido. Não sei como lhe

agradecer, meu senhor.

DESCONHECIDO - Comendo com apetite a refeição que te vou dar.

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O ladrão desmascara-se

As crianças seguiram o desconhecido. João agradecendo a Deus e a

Nossa Senhora o encontro com um ladrão tão bom, tão rico e tão

generoso, e Joanico lastimando o seu enguiço e invejando a boa sorte de

João.

Durante o percurso de légua que separava a capela da cidade, o

ladrão procurou fazer falar as crianças, sobretudo João, que lhe agradava

singularmente. Joanico, descontente por não ter tido, como o primo, uma

gratificação do ladrão, mal respondia e queixava-se da fadiga, do calor e

do comprimento da viagem.

DESCONHECIDO - Eu não te obrigo a seguir-me, choramingas. Fica

para trás, se queres.

JOANICO - Pois fico! Para os lobos me comerem!

DESCONHECIDO - Os lobos! No mês de Junho, à hora do Sol!

JOANICO - Não há Sol que os detenha. Os lobos não têm medo do

Sol. Ainda não há muito tempo que vi dois em Kermandio.

DESCONHECIDO - Tomaste cães por lobos, com certeza.

Após alguns instantes de silêncio, o desconhecido pôs-se a perguntar

a João pela mãe. O interesse que ele parecia ligar à conversa deu ânimo a

João, que disse:

- Quer o senhor prestar-me um grande favor?

DESCONHECIDO - Da melhor vontade, se puder, amigo. Mas porque

me fazes esse pedido, se mal me conheces?

JOÃO - Porque o senhor tem cara de boa pessoa. E porque vejo que

se interessa por mim, e é muito capaz de obsequiar de novo um pobre

rapaz como já obsequiou.

DESCONHECIDO (sorrindo) - Muito bem, meu amigo. Que favor é

que tu queres que te faça?

JOÃO - Olhe, meu senhor: é receber os vinte francos que me deu e

levá-los à minha mãe. Diga-lhe que é o seu Joãozinho que lhos manda, e

que foi o senhor quem lhos deu.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

E João procurava a bolsa para tirar a moeda de ouro.

DESCONHECIDO - Espera, rapaz, deixa estar os vinte francos, não

há pressa. E diz-me: se eu sou um ladrão, não tens medo que te roube o

teu dinheiro?

JOÃO - Oh! Não! Primeiro, o senhor não é um ladrão, visto que dá em

vez de tirar. E depois, o senhor podia ser um ladrão para toda a gente,

que nunca o seria para mim.

DESCONHECIDO - Porquê?

JOÃO - Porque o senhor me fez bem. A gente dedica-se às pessoas a

quem faz bem, e depois não gosta de lhes fazer mal.

DESCONHECIDO - Escuta, Joãozinho, cumprirei da melhor vontade o

teu pedido, mas eu não sei onde hei-de encontrar tua mãe.

JOÃO - Em Kérantré, meu senhor. Pergunte pela viúva Helena, mãe

de um rapazito chamado João. Toda a gente lhe diz quem é.

DESCONHECIDO - Mas eu não sei onde é Kérantré, meu amigo.

JOÃO - Como? Não conhece Kérantré? Pergunte em Kérispère.

DESCONHECIDO - Também não sei onde é Kérispère.

JOÃO - Não conhece Kérispère, ao pé de Auray e de Sant'Ana?

DESCONHECIDO - Não conheço nada disso.

JOÃO - Nem o santuário da Senhora Sant'Ana?

DESCONHECIDO - Nem o santuário.

JOÃO - Nem a fonte milagrosa da Senhora Sant'Ana?

DESCONHECIDO - Nem a fonte da Senhora

Sant'Ana.

JOÃO - Mas o senhor não é daqui?

DESCONHECIDO - Não. Cheguei ontem à tarde. Estou em Auray, no

hotel, e andava a passear, a ver a região, que acho bonita, quando te vi

entrar para a capela. Fui atrás de ti e pus-me a um canto. Rezaste com

tanto fervor e choraste tão amargamente, que logo me interessei por ti.

Tu falavas alto, quando rezavas, e o que disseste aumentou o meu

interesse. Depois, chegou o teu primo. Ouvi a vossa conversa, fiz de

ladrão para vos dar uma liçhão de prudência: nunca se deve contar

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

dinheiro nas estradas, nem nas estalagens, nem diante de desconhecidos.

Vim cá a estes sítios para visitar a igreja de Sant'Ana, que vai ser feita de

novo. Quero ver o velho santuário antes de o deitarem abaixo e tudo o

mais de interesse na região.

JOÃO - Então eu tinha razão! O senhor não é um gatuno! Logo vi pela

aparência. Mas, meu senhor, visto que fica por estes sítios, pode, da

mesma maneira, dar à minha mãe os vinte francos que aqui estão.

João estendeu-lhe os vinte francos. O desconhecido pareceu hesitar,

depois agarrou neles, meteu-os na algibeira e apertou a mão de João,

dizendo:

- Serão entregues. Está prometido.

- Obrigado, meu senhor - respondeu João, todo contente.

Chegaram à cidade eram dez horas. O desconhecido levou-os ao

hotel onde estava hospedado e mandou-lhes dar um almoço simples, mas

abundante. Quando a refeição terminou, o desconhecido levantou-se.

- João - disse ele - quando estiveres em Paris, hás-de ir visitar-me.

Vou dar-te a minha direcção. Estarei lá dentro de oito dias. Para onde

vais tu morar?

JOÃO - Não sei nada, meu senhor; será o que Deus quiser.

DESCONHECIDO - Onde mora o teu irmão Simão?

JOÃO - Na Rua de St.º Honório, n.º 263.

DESCONHECIDO - Está bem, não me esquecerei. Mostra-me a tua

bolsa para eu ver se o dinheiro está certo.

João apresentou-lha, sem desconfiança.

- João - disse o desconhecido - queres dar-me um presente?

JOÃO - Com todo o prazer, meu senhor, se tivesse alguma coisa para

lhe dar.

DESCONHECIDO - Pois bem, dá-me a tua bolsa. Dar-te-ei uma das

minhas.

JOÃO - Da melhor vontade, se faz gosto nisso. Infelizmente ela não é

muito nova. Foi o senhor abade que a deu à mamã para a minha viagem,

para eu ter onde guardar o dinheiro.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

O desconhecido guardou a bolsa depois de a ter esvaziado.

- Espera-me - disse ele - volto já.

Não tardou a voltar com uma bolsa de cabedal cinzento, com fecho

de aço. Guardou o dinheiro de João num dos compartimentos, meteu no

outro o papel com o seu nome e morada, e entregou-o a João, dizendo-lhe

muito baixo, com medo que Joanico ouvisse:

- Os vinte francos vão noutro compartimento separado. Não digas

nada ao Joanico, próíbo-te.

JOÃO - Obedecer-lhe-ei para lhe provar o meu reconhecimento, mas

preferia que os guardasse para a minha pobre mamã.

- A tua mãe tê-los-á na mesma; tranquiliza-te. Chut! Não digas nada.

Adeus, Joãozinho, boa viagem.

O desconhecido apertou a mão a João e fez um gesto de despedida a

Joanico. Entregou-lhes ainda um pequeno embrulho e separou-se das

duas crianças, uma das quais não lhe agradava nada, enquanto a outra

lhe inspirava vivo interesse.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

A carroça e Kersac

João e Joanico caminharam algum tempo, sem dizer palavra.

- Ouve lá, João - disse por fim Joanico - quantos dias julgas tu que

serão precisos para chegarmos a Paris?

JOÃO - Não sei. Ainda me não lembrei de os contar.

JOANICO - Quantas léguas andaremos nós por dia?

JOÃO - Para aí cinco ou seis.

JOANICO - Mas isso não nos diz quantas léguas são daqui a Paris.

JOÃO - Podíamos ter perguntado ao senhor ladrão, ele ter-nos-ia dito.

JOANICO - Ele não sabe mais do que nós. Esta gente rica viaja de

carro e não sabe calcular distâncias.

Em frente de uma casa por onde tinham de passar, estava uma

carroça com o cavalo atrelado. Um homem saiu da casa e preparava-se

para subir para a carroça. João correu para ele, tirou delicadamente o

chapéu e perguntou:

- O senhor pode dizer-nos quantas léguas são daqui a Paris?

HOMEM - Daqui a Paris! Mas tu não vais até Paris, pois não, rapaz?

JOÃO - Perdão, meu senhor; eu e o Joanico vamos para lá para nos

juntarmos a Simão e ganharmos a nossa vida porque na aldeia não há

onde trabalhar; e nós queríamos saber se era muito longe, e quantos dias

nos faltam para lá chegar.

HOMEM - Ó meu Deus! Mas vocês terão de ir a pé?

JOÃO - Perdão, meu senhor; assim é preciso. Nós não temos meios

para ir numa bela carroça como o senhor.

HOMEM - Mas, desgraçadinhos: vocês sabem que daqui a Paris são

cento e vinte léguas?

JOÃO - É muito! Mas lá chegaremos, da mesma maneira. Muito

obrigado, meu senhor. Desculpe tê-lo incomodado.

HOMEM - Nada de incómodos, meu amigo. Mas, agora me lembro,

eu vou para Vannes. Subam para a carroça. O vosso caminho é este, e

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

sempre adiantam quatro léguas, porque vocês não estão a mais de uma

légua de Auray.

JOÃO - Mil vezes obrigado, meu senhor; não é para recusar.

HOMEM - Então subam depressa e partamos. Não posso demorar-

me.

João subiu rapidamente e obrigou a subir Joanico, que não tinha dito

uma palavra. João sentou-se ao pé do dono do carro, Joanico colocou-se

no canto mais afastado. O bom homem que acabava de recolher os

pequenos viajantes fustigou os cavalos e partiram a trote. João estava

encantado, nunca tinha andado tão depressa, Joanico parecia assustado.

Agarrava-se com todas as forças às grades da carroça. O condutor voltou-

se e olhou para Joanico.

HOMEM - O teu companheiro parece mudo!

João riu com vontade.

JOÃO - Mudo! Isso sim! Tem a língua bem desembaraçada. Não diz

nada, porque tem medo.

HOMEM - Medo de quem?

JOÃO - Não sei, meu senhor. Ele está sempre com medo. Joanico,

responde a este senhor, que tem a gentileza de se interessar por ti.

JOANICO - Que queres tu que eu diga? Não posso conversar quando

estou com medo.

JOÃO - Vê? Eu bem dizia.

HOMEM - E de que tens tu medo, palerma?

JOANICO - Tenho medo do seu cavalo, que corre a toda a brida, e

tenho medo de si também. Sei lá quem o senhor é!

HOMEM - O quê? Garoto velhaco! Então eu tenho a bondade de te

recolher na estrada, e tu atreves-te a insinuar que eu sou um maroto, um

ladrão, um assassino, talvez? Se não fosse o teu companheiro, fazia- te já

descer e deixava-te ir a pé que era bem o que merecias.

JOÃO - Perdoe-lhe, meu senhor! Ele não sabe o que diz quando tem

medo. É assim mesmo. Assusta-se com tudo e tudo lhe desagrada.

HOMEM - Não é como tu, não. Pareces-me um rapaz corajoso.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOÃO - Ora! Sou como Deus me fez e a minha mãe me educou. O

mérito não é meu. O pobre Joanico, meu senhor, anda um pouco

deprimido, um pouco tímido, porque lhe morreu a mãe, que era minha tia,

isso é que o tem azedado.

HOMEM - Tanto pior para ele. Eu nem o quero ver. Aquela cara não

me agrada mesmo nada. E quanto ao que este garoto dizia, que não sabia

quem eu era, vou dizer-to a ti. Sou proprietário ao pé de Sant'Ana. Vou a

Vannes comprar porcos, e chamo-me Kersac.

JOÃO - Obrigado, Sr. Kersac. Tivemos sorte em o encontrar. É uma

caminhada que nos poupa.

KERSAC - Posso fazer-te mais alguma coisa. Demoro-me duas horas

em Vannes. Aí pelas duas horas, sigo para Malansac, que fica seis léguas

adiante. Posso levá- los até lá. Será mais um avanço.

JOÃO (todo contente) - Mil vezes obrigado, meu senhor. Se tivermos

muitos encontros como o de hoje, não tardaremos a chegar a Paris.

Agradece também, Joanico.

KERSAC - Deixa-o em paz. Não preciso de agradecimentos dele. É

por ti que faço isto, não é por ele.

João bem fez sinal a Joanico, mas não obteve uma palavra. Kersac

percebeu, sem o mostrar, o manejo de João e a sua inquietação. Sorriu e,

para se divertir a excitar as súplicas mudas de João, voltava-se de quando

em quando e lançava a Joanico olhares descontentes. João julgou ver

cólera nos olhos ameaçadores de Kersac e esforçou-se por lhe desviar a

atenção, fazendo amáveis observações acerca da beleza do cavalo, que

era bom mas nada belo. Depois sobre a comodidade do carro, que os

sacudia fortemente e sobre o encanto da paisagem, que era uma planície

árida.

Chegaram assim a Vannes. Kersac desatrelou o cavalo. João

ofereceu-se para o levar para a cavalariça, dar-lhe aveia e limpá-lo.

KERSAC - Tu sabes limpar um cavalo?

JOÃO - Penso que sim. Já linpei mais do que um na estação de

Kérantré.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

KERSAC - Muito bem, meu rapaz, prestas-me um grande favor,

porque tenho pressa de tratar do negócio dos porcos. Espera-me aqui,

voltarei dentro de duas horas. Depois da aveia, dá de beber ao cavalo.

JOÃO - Sim, senhor, eu sei. E depois de beber, dou-lhe feno.

KERSAC - Isso mesmo. Até já.

João apressou-se a levar o cavalo para a cavalariça.

- Vamos, Joanico - disse ele - vem-me ajudar. Tu limpas de um lado e

eu limpo do outro.

JOANICO - Limpar o cavalo de um homem tão mau? Mais depressa

lhe batia. Tu, que és o favorito, podes ajudá-lo, mas eu não tenho nada

que lhe agradecer.

JOÃO - Vamos, Joanico, não o faças por ele. Fá-lo por mim, para me

ajudares.

JOANICO - Não quero. Tu és muito amigo dele.

JOÃO - E como não hei-de ser amigo dele se nos poupa doze léguas

de caminho?

JOANICO - Que é que lhe custa deixar-nos subir para o carro?

JOÃO - Não digo que não. Mas, assim mesmo, foi bom, e muitos não

pensariam em tal.

Joanico estendeu-se em cima de um monte de palha que estava a um

canto da cavalariça, e deixou o primo tratar, sozinho, do cavalo. Quando

acabou, João sentou-se ao pé de Joanico.

Desfez o embrulho que a mãe lhe tinha dado, tirou uma perna de

coelho e um pedaço de pão.

- O bolo fica para a noite - disse ele.

Dividiu o coelho com Joanico, deu-lhe uma fatia de pão, agarrou-se à

outra e começaram a modesta refeição. Quando acabaram de comer,

ficaram com sede, e João encarregou-se de ir pedir água. Entrou na sala

da estalagem e viu uma mulher a pôr a mesa. Cumprimentou-a e

perguntou se lhe podia dar água, a ele e ao seu companheiro.

MULHER - Água, para quê, meu amigo?

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOÃO - Para beber, minha senhora. Comemos e queríamos um copo

de água, se faz favor.

MULHER - Não queres antes vinho? Vou dar-te uma garrafa dele,

quando se tem andado muito, é melhor do que a água.

JOÃO - Muito obrigado, minha senhora. Nós não andámos muito, o

Sr. Kersac trouxe-nos no carro. Agradeço-lhe muito a sua bondade, minha

senhora. Mas. . . mas. . . para dizer a verdade, nós não temos dinheiro.

MULHER - Nem eu esperava que tu pagasses, meu amigo. Dou-to da

mesma maneira, porque me pareces um rapaz bom e honesto.

A mulher agarrou uma garrafa que estava em cima da mesa e deu-a

a João, com um copo.

João agradeceu muito e correu a mostrá-la a Joanico. Os dois rapazes

regalaram-se com a bebida e estenderam-se na palha, à espera de Kersac.

Este voltou à hora marcada, atrelou o cavalo muito à pressa, e partiram a

trote.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

O desastre

KERSAC - Deste-me sorte, rapaz! Fiz um negócio magnífico com os

meus leitões.

JOÃO - É Deus que o recompensa, meu senhor, da caridade que teve

connosco.

KERSAC - E é por isso que digo que me trouxeste sorte.

JOÃO - Só eu não, senhor. Metade foi o Joanico.

KERSAC - Oh! Oh! Julgas isso? Não tem cara de quem dâ sorte. Olha

para ele: dorme que nem um rato e mesmo a dormir se aborrece e se

zanga.

João voltou-se. Com efeito, Joanico tinha uma expressão tão irntada e

maçada, que ele não pôde deixar de rir. A sua alegria comunicou-se a

Kersac, que estava de bom humor, devido ao negócio dos leitõezinhos, e

os dois riram tão alto que Joanico acordou e pôs-se a olhar à sua volta.

- Que aconteceu? Porque é que estão a rir?

Por única resposta continuaram às gargalhadas, o que Joanico achou

de mau gosto. Voltou a deitar-se e a fechar os olhos, mas, de vez em

quando, abria-os para lançar um olhar irritado, que não fazia mais do que

excitar o riso de João e Kersac.

O cavalo trotava sempre. Kersac reparou que ele tinha bom pêlo, que

estava bem limpo e bem tratado.

- Sabes, rapaz, que me agradas muito? – disse ele a João. - Gostava

que ficasses comigo.

JOÃO - Oh! É impossível, meu senhor.

KERSAC - Porquê?

JOÃO - E o Joanico?

KERSAC - Ah É verdade O demónio do Joanico! Muito gostaria de

ver-te livre dele.

JOÃO - Ele não me incomoda, meu senhor, pelo contrário, eu sei que

lhe sou preciso.

KERSAC - Já ele não pode dizer outro tanto.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Escuta, João - continuou Kersac depois de alguns instantes de

reflexão. - Queres tu fazer uma coisa? Não vás para Paris, fica comigo. Eu

serei um bom patrão para ti. Olharei pela tua mãe. E recambiarei o teu

Joanico para casa dele.

JOÃO - O senhor é muito bom. Estou-lhe muito reconhecido, mas não

posso aceitar.

KERSAC - Porquê?

JOÃO - Porque a minha mãe me mandou para Paris. Meu irmão

Simão espera-nos lá aos dois. Tenho de obedecer à mamã. Não sei que

razões ela tem para nos mandar ao Simão. Ela não gostaria, talvez, que

eu fosse para a sua casa sem a consultar. E, depois, o pobre Joanico, que

seria dele sem mim?

KERSAC - Ficava na terra!

JOÃO - Mas, meu senhor, nem a minha tia nem a minha mãe têm com

que o sustentar. Ele precisa de trabalhar como toda a gente e na nossa

terra não encontramos trabalho.

KERSAC - Então não falemos mais nisso. Talvez eu volte a encontrar-

te mais tarde e sem o Joanico. Ele continua a dormir, o preguiçoso.

Joanico não dormia e tinha ouvido tudo. A generosidade de João

comoveu-o. Prometeu a si próprio fazer-lhe a vontade, no futuro, e não

ser mais aborrecido como até ali.

A viagem decorria alegremente para João, que conversava com

Kersac a respeito da região que percorriam. Ele respondia

amigavelmente e insistia constantemente, no desejo de o ter ao seu

serviço.

João agradecia e repetia o estribilho:

- E o Joanico?

Kersac já não podia com tanto Joanico, e este pagava-lhe na mesma

moeda.

Chegaram a Malansac. João ofereceu-se a Kersac para tratar do

cavalo outra vez. Kersac aceitou. Eram quase oito horas, mas ainda

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

estava claro. Logo que Kersac, ajudado por João, acabou de tratar do

cavalo, propôs um passeio pelos arredores da cidade.

- Tenho as pernas entorpecidas por ter vindo sentado todo o

caminho. Se quiseres vamos ver os arrabaldes, dizem que são bonitos.

João aceitou com alegria. Teve vontade de dizer: “ E Joanico? ”

Mas não ousou. Ele via a antipatia de Kersac por seu primo.

Partiram. Joanico ficou na estalagem e, procurando tornar-se útil

como João, ofereceu-se para dar de beber ao cavalo quando ele acabasse

de comer a aveia. Kersac ficou surpreendido com o oferecimento, mas

aceitou porque João lhe dirigiu um olhar e um gesto suplicantes.

- Realmente - disse ele - poderemos passear mais tempo, se não

tivermos a preocupação do cavalo.

E saíram. Estava um tempo magnífico. Era a hora do pôr-do-sol. O

calor tinha passado, os campos eram bonitos. Andaram muito tempo,

conversando sobre diversas coisas.

Depois, voltaram para a cidade. Nisto, ouviram o galope precipitado

de um cavalo. Quando se aproximou, Kersac reconheceu que era o dele.

Atirou-se para o meio da estrada para lhe cortar a passagem e agarrar o

freio, mas o cavalo ia à desfilada. Não obstante a sua força, Kersac não o

pôde deter, e viu-se no chão, arrastado e em risco de ser pisado.

Perante a iminência do perigo, João lançou-se para a frente do cavalo

e, como na aldeia vira uma vez fazer pendurou-se-lhe nas ventas, o que

fez com que ele parasse imediatamente.

Kersac quis levantar-se, mas tornou a cair. Tinha um pé torcido.

João começou por prender a uma árvore o animal esbaforido e

tremente, e correu para Kersac que estava pálido e prestes a desmaiar.

Próximo da estrada havia uma fonte. João correu para ela, ensopou o

lenço na água fresca e límpida, e humedeceu a testa de Kersac. Voltou à

fonte mais duas vezes. Apenas à terceira vez, Kersac abriu os olhos e

tornou a si.

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Apertou a mão a João e tentou levantar-se. Só o conseguiu com

grande dificuldade e depois de várias tentativas. Sustinha-se de pé,

apoiado à bengala, mas não podia andar.

- Não experimente, não experimente, meu senhor - disse João. - Vou

acalmar o cavalo, depois trago-o ao pé de si, e se puder subir para ele,

estamos salvos.

Kersac encontrava-se à beira do valado que limitava a estrada. João

soltou o cavalo, acariciou-o, falou-lhe com meiguice, ofereceu-lhe um

punhado de erva e, enquanto o animal comia, obrigou-o a descer o

valado, deteve-o em frente de Kersac e manteve-o seguro enquanto

Kersac procurava montá-lo. Não o conseguiu porque não podia fazer

força com o pé torcido.

JOÃO - Deite-se atravessado em cima do cavalo, meu senhor, e

depois passe para cá a perna magoada.

Kersac seguiu o conselho de João e ficou muito bem sentado no dorso

do animal. João obrigou-o a subir o valado com precaução, e conduziu-o

pelo freio. Chegaram a Malansac à noite. A primeira coisa que Kersac viu

foi o Joanico meio escondido atrás da porta da cavalariça.

- Anda cá, maroto! - gritou-lhe Kersac. Joanico bem quis fugir; mas,

por onde havia de passar? E depois? Acabaria por se encontrar em

presença de Kersac. Tomou o partido de obedecer. Avançou até à cabeça

do cavalo.

KERSAC - Porque deixaste fugir o cavalo? Como foi isso?

JOANICO (tremendo) - Eu não tive culpa, meu senhor!

KERSAC - Não tiveste culpa? Mentiroso! Responde: como se soltou o

cavalo?

JOANICO - Levei-o a beber, meu senhor; ele não queria sair do

bebedouro. Puxei-o, depois dei-lhe com o chicote. Depois começou aos

saltos e aos coices. Dei-lhe com o chicote com mais força, para o ensinar

e ele empinou-se. Depois tive medo de que ele quebrasse a corda que eu

segurava e dei-lhe uma chicotada na barriga. Depois ele partiu a corda

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como eu já receava, e deitou a correr por aí fora como um raio, sem que

eu conseguisse detê-lo.

KERSAC - Ah! Velhaco! Torna a bater no cavalo, e eu dou-te uma

lição de que te hás-de lembrar toda a vida. Se não tivesse o pé torcido,

por tua culpa, dava-te uma sova que te fazia dançar até amanhã. Vai-te

embora e não apareças mais na minha frente, pássaro agoirento.

Joanico não esperou que lho repetisse. Ele também tinha pressa em

fugir aos olhares coléricos de Kersac, e refugiou-se no canto mais escuro

da cavalariça.

João havia chamado gente, para ajudarem Kersac a descer do cavalo.

Como era alto e forte, tiveram dificuldade em o levar para um quarto do

rés-do-chão que, felizmente, estava vago.

Depois de o doente se encontrar convenientemente instalado, João

sentou-se numa cadeira ao pé dele.

KERSAC - Então, que fazes tu aí? Não te vais deitar como o Joanico?

JOÃO - Vou-me deitar ao pé do senhor; dormirei muito bem numa

cadeira.

KERSAC - Estás doido? Passar a noite numa cadeira? Por causa da

torcedela de um pé? Vai-te deitar.

JOÃO - Mas o senhor não se pode levantar nem fazer-se ouvir. Se de

noite lhe falta alguma coisa?

KERSAC - Que queres tu que me falte? Vou dormir até de manhã.

Vai-te embora, boas noites.

João não disse nada, soprou a vela e fingiu que saía. Mas tornou a

entrar, sem fazer barulho, estendeu-se em cima de três cadeiras e não

tardou a adormecer.

A meio da noite João foi acordado pela extraordinária agitação de

Kersac, que gemia, se voltava, soprava como um búfalo, e que acabou por

dizer a meia- voz:

- Não devia ter mandado embora o João. Talvez ele me aliviasse.

- Estou aqui, meu senhor - disse João, aproximando-se da cama de

Kersac.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

KERSAC - Como? Tu aqui? Desde quando?

JOÃO - Não cheguei a sair. Apenas fingi. Mas o senhor sofre. Que

posso fazer para o aliviar?

KERSAC- Dói-me horrivelmente o pé, João. Que se há-de fazer agora,

a meio da noite? Toda a gente está deitada. É preciso esperar que seja

dia.

JOÃO - Enquanto esperamos pelo dia, que ainda vem longe, talvez

possa aliviá-lo. Quando havia alguma entorse lá na aldeia, era a mamã

que chamavam e ficavam curados em pouco tempo. Vai ver; vou esfregar-

lhe o pé torcido como a mamã fazia e me ensinou. Daqui a meia hora já

não dói nada.

Apesar da resistência de Kersac, que não tinha fé no remédio, João

apossou-se do pé do doente e, embora estivessem às escuras, deu a

massagem com êxito, porque, ao fim de três quartos de hora, o pé,

desinchado, já não doía, e Kersac dormia profundamente. Logo que João

viu o efeito obtido, cobriu com precaução o pé, deitou-se de novo, e

dormiu tão bem que só acordou com o barulho que faziam na casa.

Era dia havia muito tempo. O relógio da sala bateu dez horas. João

saltou para o chão e viu Kersac a olhar para ele.

KERSAC - Estava com pressa de te ver acordado, meu amigo, para te

agradecer o bem que me fizeste. Dormi de um sono só, depois que me

tiraste as dores.

JOÃO - Sente-se, realmente, bem?

KERSAC - Palavra que sinto. Tenho ainda uma dorzita, mas não é

nada comparado com o que sentia ontem. Sabes que és um médico

famoso?

JOÃO - É preciso dar-lhe outra fricção, senão o inchaço volta.

KERSAC - Tudo o que tu quiseres. Confio na tua massagem!

João agarrou o pé do doente, e começou a esfregá-lo. Depois de um

quarto de hora, Kersac tentou levantar-se, dizendo que se sentia

completamente curado, mas João quis continuar e não parou senão

quando o pé, inteiramente desinchado, já não doía absolutamente nada.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Kersac levantou-se, pousou o pé no chão com receio, hesitante, mas

não sentindo nada senão fraqueza, quis calçar-se. João disse-lhe que era

preciso ligar o pé, quando não, o artelho podia entortar e o inchaço

aparecer. Foi pedir uma ligadura à dona da estalagem e ligou,

habilmente, o pé de Kersac.

JOÃO - Agora, o meu senhor pode andar.

KERSAC - Parece-te? A mim parece-me de mais.

JOÃO - O senhor experimente. Vai ver.

Kersac experimentou, primeiro muito devagarinho, depois mais

afoitamente. Por fim, apoiou-se no pé como antes do desastre.

- É maravilhoso! É admirável! É que não sinto absolutamente nada,

somente o incómodo.

Começou a andar. Desceu ao pátio, entrou na cavalariça e, com

grande surpresa, encontrou Joanico que tratava do cavalo, e tinha tido a

boa ideia de lhe dar aveia para o entreter durante o trato.

KERSAC - Como?! Muito bem, Joanico! Não esperava ver-te tão

diligente. Continua, meu rapaz, João curou-me tão bem com a sua

massagem, que, daqui a uma hora, regresso à minha herdade de

Sant'Ana.

Depois, voltando-se para João, continuou:

- Lastimo muito não te levar comigo mas não te esquecerei. E tu,

pelo teu lado, não te esqueças de Kersac.

Depois de tomarem o pequeno- almoço, Kersac levantou-se para dar

de beber ao cavalo, mas João não o deixou, com medo de que fatigasse o

pé ainda sensível. À espera da hora de atrelar, João pôs-se a falar com

Kersac.

- Sr. Kersac - disse-lhe ele - se tiver oportunidade, mande notícias

nossas à minha mãe, sim? Dar-me-á muito prazer.

KERSAC - Não, meu amigo, não lhas mando. Irei dar-lhas

pessoalmente.

- Pessoalmente? Ah! como lhe agradeço! Pobre mãe! Vai ficar tão

contente! O senhor pergunta pela Sra Helena Dutec, e logo lhe ensinam.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

É na estrada: uma casinha isolada, revestida de hera. E depois, faça o

favor de dizer à minha mãe que me escreva e me dê notícias suas.

Estimarei muito recebê-las.

Eram horas de engatar. João ajudou Kersac pela última vez! No

momento de se separarem, Kersac disse aos dois primos:

- Lembrou-me agora uma coisa: subam para o carro. Vou levá-los à

estação do caminho de ferro. Abreviarão a viagem.

JOÃO - Como?

KERSAC - Subam. Eu te explicarei pelo caminho.

Quando o cavalo já ia a trote, Kersac começou a explicar:

- Ouve o que eu quero fazer. Lembras-te de que fiz um bom negócio

de leitões em Vannes. Vou tirar do meu ganho a pequena quantia

necessária para pagar o teu bilhete e o de Joanico, para Paris. Fico mais

tranquilo. Eu não gostava de te saber pelas estradas, com tão pouco

dinheiro, com uma viagem tão grande diante de ti, e exposto a encontrar

qualquer maroto. Uma pobre criança não pode defender-se.

João agradeceu a Kersac, sem compreender muito bem o favor que

ele lhe prestava, mas adivinhando que era muito importante. Kersac

explicou- lhe as paragens do comboio e as imprudências que era preciso

evitar. Certificou-se de que ainda havia que comer nos embrulhos

trazidos de Kérantré e de Auray, e de que as suas bolsas estavam

suficientemente fornecidas de dinheiro.

Chegaram à estação. Kersac deu o cavalo a guardar a um rapaz da

estalagem, comprou bilhetes para João e Joanico e disse- lhes que os não

perdessem, porque, nesse caso, teriam de pagá-los segunda vez. Ele

conhecia os empregados e recomendou João e Joanico ao revisor do

comboio que os levava. Abraçou João, apertou a mão a Joanico e pediu ao

revisor que lhes desse lugares bons e os vigiasse durante o caminho e à

chegada.

João, surpreendido com o que via e ouvia, pensou menos na

separação de Kersac. Ouviu-se o apito e o comboio pôs-se em andamento.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Visita a Kérantré

Enquanto João e Joanico avançavam com uma velocidade que jamais

tinham calculado, Kersac dirigia-se para casa tão depressa quanto o

cavalo podia. Chegou a Vannes e demorou-se duas horas para regularizar

a compra dos leitõezinhos.

Retomou, em seguida, o caminho de Kérantré e não tardou a chegar

e a encontrar a casa de Helena, que reconheceu à primeira vista, depois

da descrição que João lhe tinha feito.

Vendo à beira do caminho, junto de um bosque, uma casita revestida

de hera, parou o cavalo e dirigiu-se a uma linda rapariguinha de cinco a

seis anos, que brincava em frente da casa:

- Não é aqui que mora a viúva Helena Dutec?

A pequenita levantou-se, olhou, sorriu e respondeu:

- Não sei, meu senhor.

- Como, não sabes? Não moras aqui?

PEQUENA - Sim, senhor. Estou muito contente, não penso mais na

mamã.

KERSAC - Sabes onde é a casa do Joãozinho?

PEQUENA - Sim, meu senhor. É aqui. Eu durmo na cama dele. Foi a

mamã do João que disse.

KERSAC - Mas não é a Sra Helena Dutec que mora aqui?

PEQUENA - Não sei, meu senhor.

KERSAC - Ela é que é tua mamã, penso eu, visto que dormes na

cama do teu irmão.

PEQUENA - Eu não tenho mamã e o João não é meu irmão.

KERSAC - Diacho da rapariga! Não compreendo nada do que ela diz.

Deve ser esta a casa do João. Será mais rápido descer e ir ver.

Kersac desceu, prendeu o cavalo a uma das árvores que estavam

perto da casa e entrou. Como não viu ninguém, atravessou toda a casa

acabando por sair por uma porta traseira, que dava para um quintalzito.

Avistou uma mulher a sachar um canteiro de couves.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

KERSAC - Minha boa senhora: sabe onde mora a Sra Helena Dutec?

A mulher ergueu-se rapidamente.

HELENA - Sou eu, senhor. Vem buscar a pequenita?

KERSAC - De maneira nenhuma. É a senhora que procuro. Prometi-o

ontem ao meu bom Joãozinho, e venho dar-lhe notícias dele.

HELENA - Entre, entre, meu senhor. Muito estimo vê-lo e ouvi-lo

falar do meu filho.

E grossas lágrimas lhe caíam dos olhos, enquanto fazia entrar Kersac

e procurava um banco para ele se sentar.

HELENA - O senhor desculpe recebê-lo tão mal.

KERSAC - Estou aqui muito bem, minha senhora. Deixei João e

Joanico ontem de manhã, em Malansac, a quinze léguas daqui. Ficaram

muito bem.

- Quinze léguas! - gritou Helena. - Como puderam eles andar tanto?

Vi ontem um senhor que os deixou em Auray às dez horas da manhã!

KERSAC - Para dizer a verdade, ajudei-os um pouco. Tenho uma

propriedade perto de Sant'Ana. Eu ia para Vannes e mandei-os subir para

a carroça. De Vannes fui a Malansac. Isto poupou-lhes mais seis léguas.

Aí dormimos. Meti-os no caminho de ferro. Devem ter chegado a Paris

esta manhã, às quatro horas.

HELENA - Já! A Paris! Como é possível?

KERSAC - Eu explico-lhe, Sra Helena. A esta hora estão eles com

Simão.

Kersac contou-lhe tudo o que se passara entre ele, João e Joanico,

sem nada omitir.

Quando acabou e explicou que tinha pago os bilhetes do caminho de

ferro, Helena não se conteve. Comovida e reconhecida, agarrou nas mãos

de Kersac e apertou-as nas suas contra o coração.

HELENA - Que Deus o abençoe, meu querido senhor! Que ele lhe

pague tudo o que fez pelo meu Joãozinho e pelo Joanico!

KERSAC - Oh! Quanto a esse, minha querida senhora, não tem nada

que me agradecer, porque não foi por ele nem por caridade que o tratei

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

como ao nosso Joãozinho, mas para ser agradável a este. Tem um bom

filho, Sra Helena, e sinto muita vontade de lho pedir.

HELENA - Para quê, meu senhor?

KERSAC - Para o ter em casa, na herdade.

HELENA - Ele é ainda muito novo, meu senhor.

O irmão mandou-o ir para um serviço mais fácil. Quando for mais

velho, então terei muito gosto que vá para a casa do senhor.

KERSAC - E quem é esta pequena? João não me falou nela.

HELENA - Ele não a conhece, por assim dizer, meu senhor.

Helena deu um bocado de pão à criança e contou a Kersac o seu

encontro com a pequenita, na véspera da partida de João.

KERSAC - Não se inquiete com a pequenita, minha boa senhora, eu

darei providências.

HELENA - O senhor! Mas não me conhece! Pode julgar. . .

KERSAC - Conheço, conheço. Já a conhecia antes de a ver, e agora

conheço-a como se fossemos velhos amigos. Voltarei a vê-la. Percorro

muitas vezes a região, em negócios da minha propriedade. Passarei por

sua casa todas as vezes que tenha tempo. Até à vista!

Kersac cumprimentou Helena amigavelmente, acariciou a pobre

pequenita abandonada, pela qual já se interessava e foi soltar o cavalo.

Subiu para a carroça, e afastou-se rapidamente.

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O encontro dos irmãos

E João e Joanico? Onde estavam? Que faziam? Tinham chegado a

Paris perto das quatro horas da madrugada, refeitos e encantados. Ao

descerem da carruagem não sabiam para onde haviam de ir, ainda era

noite. O revisor do comboio, que era bom homem, encontrou-os na sala

de espera, para onde tinham seguido os passageiros, e perguntou-lhes

para que sítio se dirigiam.

JOÃO - Para casa de meu irmão Simão. Mas é muito cedo, e depois,

ele espera-nos só daqui a um mês e nós não conhecemos o caminho.

REVISOR - Sabes onde ele mora?

JOÃO - Sim, senhor. Na Rua de St. Honório nº 263.

REVISOR - Pois bem, fiquem aqui até às cinco horas. A essa hora vão

para casa de Simão. Mas sozinhos nunca atinariam com o caminho. Aqui

têm três francos que me deu o Sr. Kersac para vocês não os gastarem,

porque comeriam os farnéis e beberiam água. Destes três francos tiram

um franco e cinquenta cêntimos para pagar o carro onde os vou meter.

Mas agora deixo-os, que tenho que fazer. Esperem-me aí.

João e Joanico sentaram-se num banco. João divertia-se muito a ver

os que iam e vinham. Observava tudo e por tudo se interessava. Joanico

bocejava e suspirava.

JOANICO - Que será de nós, João, no meio de todo este barulho?

Certamente não encontramos Simão. E, nesse caso, para onde havemos

de ir? Que faremos nós?

JOÃO - Porque não havemos de encontrar Simão, se ele mora na Rua

de Stº Honório, nº 263?

JOANICO - Mas se o não encontramos?

JOÃO - Procuramo-lo.

JOANICO - Procuramo-lo onde? A quem perguntamos?

JOÃO - Logo se encontra alguém que nos ajude a procurá-lo. Além de

que estás sendo ingrato para Deus, Joanico. Vê como ele nos tem

protegido. Aquele bom senhor ladrão que nos deu dinheiro. . .

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOANICO - A ti, a mim não.

JOÃO - Não é a mesma coisa? Bem sabes que o que é meu é teu.

Depois, o bom senhor que tivemos a sorte de encontrar, o Sr. Kersac, que

foi para nós um verdadeiro Deus. Trouxe-nos doze léguas na carroça.

JOANICO - Porque queria conversa. . .

JOÃO - De maneira nenhuma. Foi por bondade. Depois fez-nos cear

com ele e pagou a nossa dormida.

JOANICO - Devia ser cara a dormida! Um bocado de palha na

cavalariça.

JOÃO - E temos melhor em casa? Depois, pagou-nos a viagem.

Graças a ele, chegámos a Paris em vinte e quatro horas, em vez de trinta

dias. É incrível.

JOANICO - Sim, a isso não há nada que dizer. É realmente uma boa

coisa. Mas, que havemos de fazer se não encontrarmos o Simão?

JOÃO - Ah! Lá vens tu com a mesma história! Já te disse: nós

procuraremos e acabaremos por encontrá- lo.

Joanico não parecia muito tranquilo e recomeçou a gemer quando o

revisor entrou.

- Estão aí? Está bem! Venham comigo. Depressa, que não posso

demorar-me.

Saiu precipitadamente, seguido pelas crianças, que o não largavam

de vista, tanto medo tinham de o perder. Chegaram à praça da estação

que deita para o Passeio Montparnasse. O revisor mandou-os subir para

uma carruagem e disse ao cocheiro que os levasse à Rua de Stº Honório,

nº 263. Para maior precaução, acrescentou:

- Dê-me o seu número. Se acontecer alguma coisa às crianças, você

será o responsável. Tenha cuidado!

COCHEIRO - Esteja descansado, senhor. Não haverá novidade. Dizia

o senhor. . .

REVISOR - Rua de Stº Honório, nº 263.

O cocheiro retomou o seu lugar.

- Adeus senhor e muito obrigado - gritou João ao revisor.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

A carruagem pôs-se a caminho. As crianças olhavam, admiradas.

Tudo parecia magnífico, apesar da hora matinal, do silêncio das ruas e da

falta de movimento. Quando o carro parou diante do número 263 da Rua

de Stº Honório, julgavam que tinham passado apenas alguns minutos.

- Vamos, desçam, já chegámos - disse o cocheiro, abrindo a

portinhola.

João desceu, pagou como tinha recomendado o revisor, e os dois

rapazes encontraram-se em frente de uma porta fechada, sem saberem o

que haviam de fazer para entrar.

- Bate à porta - disse o Joanico.

João bateu, Joanico bateu, mas a porta não se abriu.

- Chama - disse Joanico.

- Simão! - gritou João. - Somos nós, abre a porta!

Gritaram, chamaram, mas a porta não se abriu.

- Que vai ser de nós, meu Deus? - bradava Joanico, prestes a chorar.

JOÃO - Não te aflijas! É porque ele está ainda a dormir. Esperemos.

Acabará por acordar e abrir a porta.

Depois de esperarem cinco minutos que lhes pareceram cinco horas,

recomeçaram a bater e a chamar Simão.

Por fim, uma janela abriu-se: um homem gordo, de cabelos grisalhos,

deitou a cabeça de fora.

- Que demónio de barulheira é esta? Que lembrança: virem acordar

as pessoas tão cedo! Quem procuram? Que é que querem?

JOÃO - Peço-lhe mil desculpas, meu senhor; nós não queríamos

incomodá-lo. Nós chamávamos meu irmão Simão, que mora aqui.

PORTEIRO - E como querem que ele os ouça, se mora no quinto

andar?

JOÃO - Eu não sabia, meu senhor; peço-lhe desculpa. Se o senhor

quiser, nós esperamos.

PORTEIRO - Agora que estou acordado e levantado, não preciso que

esperem. Entrem e subam.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Chegados ao cimo da escada, viram três portas diante deles: à

direita e à esquerda e em frente.

- Bate - disse Joanico.

JOÃO - Bater, onde? Como há-de ser? Tenho medo de enfadar alguém

se bato a uma porta que não seja a do Simão.

JOANICO - Meu Deus! Que será de nós?

JOÃO - Não te aflijas. Vou chamar o Simão! Simão! - chamou ele a

meia-voz.

Abriu-se uma porta e apareceu um rapaz.

- Simão! - gritou João.

E lançou-se-lhe ao pescoço,

SIMÃO - És tu, João! E tu Joanico! Louvado seja Deus! Precisava

tanto de ver alguém lá da terra! Entrem, vamos conversar enquanto me

visto. Não os esperava tão cedo. A mamã tinha mandado dizer que vocês

só cá estariam daqui a um mês.

JOÃO – Certamente. Não devíamos chegar antes. Mas nós viajámos

como príncipes! De carruagem! Eu te contarei.

Entraram num quarto pequeno, asseado, claro e bastante alegre.

Enquanto Simão lavava a cara e se vestia, João e Joanico, que

inspeccionavam tudo deram notícias da terra e contaram todas as suas

aventuras.

Depois de muito conversarem e rirem e de se abraçarem mais de dez

vezes, João perguntou:

- E que vais tu fazer de nós, Simão? Penso que não nos vais ter aqui

para amostra.

SIMÃO - Não, não, estejam tranquilos. Vocês já têm emprego. Tu,

João, entras para criado do café onde eu estou, e tu, Joanico, vais para

casa de um merceeiro.

JOANICO - Ora, e porque não vou para criado de café como o João?

SIMÃO - Porque não havia senão um lugar vago. Nem todos podem

fazer o mesmo.

JOANICO - E estamos na mesma casa?

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

SIMÃO - Não. Tu, Joanico, ficas muito perto daqui, na Rua Rivoli. E

perto do João, que ficará comigo.

JOÃO - Que serviço faremos nós?

SIMÃO - O serviço de um café é um bom lugar, mas fatigante.

JOÃO - Fatigante, porquê?

SIMÃO - Porque é preciso ser activo, vigilante, atento, para nada

quebrar, nem entornar. Farás bom serviço.

JOANICO - Eu também o faria.

SIMÃO - Tu? Tu não és suficientemente desembaraçado. Mandar-te-

iam logo embora.

Joanico não disse nada: amuou.

SIMÃO - Ah! Ah! Ah! Que cara fu fazes! Produziria bom efeito num

café! Todos os fregueses fugiriam para nunca mais voltarem!

Joanico ficou ainda mais aborrecido. Simão encolheu os ombros e riu.

- Sempre o mesmo! - disse ele. - Ah! São quase sete horas. É preciso

ir para o café, João. E tu, Joanico, vais-te apresentar ao teu patrão. Sê

muito delicado e alegra-te, porque um merceeiro deve ser brincalhão.

Simão tirou um pão do armário, cortou três grossas fatias, deu uma

a João, outra a Joanico, e meteu a terceira ao bolso. Desceram os cinco

andares e entraram num café muito asseado, muito bonito. João e Joanico

ficaram pasmados em frente dos espelhos, das cadeiras de veludo, das

mesas esculpidas, etc.

Enquanto eles admiravam, Simão foi falar ao dono do café, e voltou

pouco depois com um bocado de queijo e leite.

- Tomemos o pequeno-almoço - disse ele antes que chegue gente. E

depressa, porque há que fazer! É preciso limpar e arrumar tudo.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

O Sr. Abel e Joanico

Comeram e beberam. A refeição deu bom humor a Joanico que, em

companhia de João e de Simão, se dirigiu, alegremente, para casa do

merceeiro onde ia trabalhar. O caminho não era longo: cinco minutos

depois entravam no armazém.

SIMÃO - Pontois, aqui está o meu primo Joanico, o rapaz que você

esperava. Chegou esta manhã.

PONTOIS - Bem, bem. Aproxima-te, rapaz, aproxima-te. Pega neste

frasco de conserva e vai pô-lo lá adiante, ao pé do mostrador.

JOANICO - Onde, meu senhor?

PONTOIS - Lá adiante, ao pé do mostrador.

JOANICO - Onde está o mostrador?

PONTOIS - Na tua frente, palerma. Diante da senhora que está lá a

escrever.

Toda a gente ria. Joanico, pouco contente, dirigiu- se para o

mostrador, tropeçou numa caixa de ameixas e caiu com o frasco de

conserva.

- Desastrado! - gritou Pontois.

- Desastrado! - gritou a caixa.

- Desastrado! - gritaram os caixeiros.

- Infeliz! - gritou Simão.

- Pobre Joanico! - gritou João, correndo para ele.

Joanico levantou-se, irritado e confuso. Teve sorte o frasco apenas se

partira na parte de cima.

PONTOIS - Vá lá, meu maroto, pela primeira vez passa. Mas à

segunda vez pagas. Prometi ao Simão dar-te dez francos por mês, cama,

mesa, roupa lavada e de vestir. Toma nota que os dez francos não chegam

para pagar o que partiste. Que diz você, Simão? Mau princípio. Isto

promete.

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SIMÃO - Não, não, Pontois. O que fez isto foi o embaraço, a timidez.

Não convinha dar-lhe um frasco para principiar. Até à vista, vou-me

embora com o meu novo ajudante.

PONTOIS - É jeitoso. Diga lá, Simão: quer trocar? Leve o outro e dê-

me esse.

SIMÃO - Não, não, Pontois, cada qual fica com o seu. Este é meu

irmão, Joanico é meu primo. Até à vista. Eu amanhã venho saber como vai

isto. Coragem, Joanico, não te atrapalhes com tão pouco. Até amanhã.

Joanico não respondeu; estava descontente com a diferença que

Simão estabelecia entre o irmão e o primo.

Nos primeiros dias, Joanico não fez outra coisa senão recados, e

andar na companhia dos empregados, que percorriam todos os bairros de

Paris, de maneira que ele começou a conhecer as ruas e os usos

comerciais.

Por seu lado, João fazia a aprendizagem de criado de café. A sua

inteligência, alegria, boa vontade e delicadeza, depressa conquistaram as

boas graças dos fregueses. Gostavam de o fazer tagarelar e que ele os

servisse. Recebia com frequência boas gorjetas que entregava fielmente a

Simão. Este confiava no sucesso do irmão e à noite, no seu pequeno

quarto, os dois agradeciam a Deus tê-los juntado. João era feliz. Os seus

únicos momentos de tristeza eram aqueles em que a recordação da mãe o

perturbava. Algumas vezes uma lágrima humedecia-lhe os olhos, mas

depressa readquiria coragem, vendo o irmão tão feliz com a sua

presença.

Uma vez, pelo meio-dia, um senhor entrou no café.

Era um homem novo, de boa figura, porte elegante, que examinava a

casa, os criados e a freguesia. Os seus olhos demoraram-se em Simão

com um ligeiro movimento de surpresa. Sentou-se a uma mesinha e

chamou:

-Rapaz!

Acorreu um dos criados.

- Não, meu amigo, não é a ti que eu quero. Quero o Simão.

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O rapaz afastou-se, um pouco surpreendido, e advertiu Simão de que

um senhor o chamava.

SIMÃO - V. Ex. chamou? Que deseja?

DESCONHECIDO - Sim, foi a ti que chamei, Simão. Traz-me duas

costeletas e um ovo.

Simão afastou-se e voltou um instante depois com as costeletas

pedidas.

SIMÃO - V. Ex conhece-me?

DESCONHECIDO - Muito bem, meu amigo. És o Simão Dutec, filho

da viúva Helena Dutec.

SIMÃO (surpreendido) - Perdão, senhor. Não me recordo do seu

nome.

DESCONHECIDO - Não admira, Simão. Nunca o ouviste.

SIMÃO - Mas então?! Como tenho a honra de ser conhecido de V.

Ex?

DESCONHECIDO - Ah! É o meu segredo. Venho dos teus sítios.

Estive em Kérantré! Vi a boa Helena, e quero ver o meu Joãozinho.

SIMÃO - Mas, senhor. . . Queira explicar. . .

João entrava neste momento. Trazia uma sopa e um ovo para um

freguês.

DESCONHECIDO - Ele aí está, ele aí está! Ena! Como está catita!

Bonito rapaz, palavra! Vai-te embora, amigo Simão, vai-te embora!

Manda-mo a ele. Diz-lhe que me traga uma garrafa de cerveja.

Simão, muito intrigado, ordenou a João que levasse cerveja à mesa

nº 6.

João levou a cerveja, pô-la sobre a mesa, olhou o senhor e soltou um

grito.

- Olha o senhor ladrão! Que felicidade!

A este grito os criados voltaram-se, a caixa gritou, os fregueses

levantaram-se e o mais resoluto correu para a porta a fim de embargar a

passagem. Simão continuava estupefacto, e João agarrou a mão do

ladrão, que se levantou, rindo às gargalhadas.

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- Muito bem, Joãozinho, já esperava isso! Sim, meus senhores, eu

sou, como diz o João, um ladrão. . . mas um ladrão a brincar -

acrescentou, vendo os criados e os fregueses avançarem para ele em

atitude ameaçadora. - Fingi de ladrão para aconselhar prudência a esta

criança que contava o dinheiro que tinha, em plena estrada, junto de um

bosque. A propósito: onde está o chorão de quem eu não gosto nada, o

teu primo Joanico?

JOÃO - Em casa de um merceeiro aqui ao lado, meu senhor, na Rua

Rivoli.

DESCONHECIDO - E então, Simão, já me conheces?

SIMÃO - Julgo que sim, meu senhor, se bem que não saiba o seu

nome. João contou-me tudo, e eu estou muito contente por ver V. Ex.

Os fregueses tinham voltado a comer e os criados a servir; todos

riam mais ou menos do seu engano. A empregada contava o dinheiro para

se certificar de que, no tumulto, a caixa não tinha sofrido desfalque.

- Como fizeste para chegar tão depressa? perguntou o senhor ladrão.

- Vocês deviam gastar um mês de viagem.

JOÃO - Sim, meu senhor, mas encontrámos uma pessoa excelente, o

Sr. Kersac, proprietário em Sant'Ana. Trouxe-nos de carroça até Vannes,

depois até Malansac. Em seguida pagou-nos o comboio até Paris, de

maneira que chegámos antes do senhor.

DESCONHECIDO (sorrindo) - E esse bom Sr. Kersac gostou de

Joanico?

JOÃO - Nem por isso. O pobre Joanico continuava a lamentar o seu

enguiço.

DESCONHECIDO - Enguiço! Ele devia dizer: o seu feitio! É

espantoso como esse chorão me desagrada. Porque não disseste o meu

nome a Simão?

JOÃO - Porque o não sabia.

DESCONHECIDO - Como! Escrevi- o num papel que te meti na bolsa!

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOÃO - E eu que o não vi! É verdade que não tive ocasião de abrir a

bolsa depois que o deixei. Mas, como estou contente por tornar a vê-lo,

meu senhor! E onde mora?

DESCONHECIDO - No Hotel Meurice, a dois passos daqui.

JOÃO - Tanto melhor! Ver-nos-emos muitas vezes.

DESCONHECIDO - Todos os dias virei aqui comer.

O desconhecido tinha acabado a refeição. Pagou, deu a João vinte

soldos e a Simão o seu nome e endereço: Abel, Hotel Meurice. E saiu.

João e Simão viam poucas vezes Joanico, porque tinham muito que

fazer. Muitas vezes, à meia-noite, Simão ainda não estava deitado.

Ao domingo, Simão e João levantavam-se de madrugada e iam à

missa das seis. Propuseram a Joanico ir buscá-lo. Ele acompanhou-os à

missa nos primeiros domingos. Depois achou que era cedo de mais,

preferia dormir e ir à missa das dez, do meio-dia ou mesmo a nenhuma,

de maneira que cada vez via menos os primos.

No café não há domingo para os criados. É, pelo contrário, esse o dia

de mais trabalho, aquele em que há mais gente a servir. Simão tinha

posto, como condição, irem à oração da tarde, um domingo um, e no

domingo seguinte o outro.

Esta condição, pedida, quase imposta, ao princípio surpreendeu o

dono do café e desagradou-lhe. Mas depois, vendo o serviço pontual,

consciencioso, dos dois irmãos, o patrão começou a estimá-los muito,

depositou confiança neles e compreendeu que, para ter criados honestos

e seguros, é preciso que eles sejam cristãos.

Por outro lado, Simão e João agradavam muito aos fregueses.

Cumpriam as ordens sem barulho, nem atrapalhações. Cada qual era

servido como gostava e desejava. Algumas vezes os fregueses faziam falar

João, porque a vivacidade e o bom humor do rapaz os dispunham bem.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

A lição de dança

Tempos depois, o João disse, certa manhã, ao Sr. Abel, enquanto o

servia:

- O senhor gostava de ir a um baile?

SR. ABEL - A um baile? Não é para recusar. Que espécie de baile?

JOÃO - Um rico baile, meu senhor. Dança-se, e Simão já me ensinou

como se dançava. Á noite no nosso quarto, ensaiamo-nos. É muito

divertido, meu senhor. Vá! Sabe dançar?

SR. ABEL (com fingida tristeza) - Pobre de mim! Não sei. Se me

quisesses ensinar. . .

JOÃO - Da melhor vontade. Mas onde?

SR. ABEL - Aqui, entre as mesas. Não há ninguém.

JOÃO - Podem ver-nos lá de fora.

SR. ABEL - E se virem? Não é proibido dançar! Que mal faz?

JOÃO - Nenhum, senhor, certamente. . . Mas será um pouco esquisito

verem-nos dançar os dois. . . Não acha?

SR. ABEL - Ora! Eu tomo a responsabilidade. Se não gostarem, eu

lhes responderei. E se se rirem de nós, nós rimo-nos deles. Vamos,

começa lá.

O Sr. Abel levantou-se e foi-se pór no meio do café, à espera. João

colocou-se em frente dele e começou a saltar, ou melhor, a espinotear,

atirando com os pés para diante, para trás, para a direita e para a

esquerda.

- Comece, meu senhor. . . Salte mais!. . . Mais alto ainda! Mais alto

ainda!. . . Atire o pé direito. . . e o pé esquerdo. . . para a frente. . . para

trás. . . Muito bem.

O Sr. Abel, que tinha começado a sorrir e com afectada falta de jeito,

acabou por se animar e rir de tal maneira, que os transeuntes se

aglomeraram às portas e às janelas.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

João depressa compreendeu que o Sr. Abel podia ser seu mestre de

dança, dava saltos, piruetas, e fazia vários passos que João procurava,

inutilmente, imitar.

João animava-se e não se cansava. O Sr. Abel torcia-se com riso e

redobrava de vigor, de flexibilidade e ligeireza. O público aplaudia e ria.

Os de trás, que não viam, procuravam ver, empurrando os da frente.

A multidão tornou-se tão compacta, que os polícias apareceram para

saber o que havia.

-Veja, senhor guarda, veja. Repare como o homem é ligeiro. Lá saltou

ele por cima do pequeno. . . E o pequeno a ver se é capaz, o simplório! Lá

caiu ele!

Ah! Ah! Ah!

E a multidão ria. Os polícias riam também.

POLÍCIA - Os senhores estão a impedir a passagem. Sigam, meus

senhores e minhas senhoras, sigam.

OUTRO POLÍCIA (procurando, sem resultado, dispersar a multidão) -

Temos de fazer parar estes dançarinos; enquanto estiverem ali a fazer

cabriolas, a multidão não desaparece. Vês? Chegam uns e vão outros.

Entra no café, Cipião, e diz- lhes que acabem com as piruetas.

Cipião abriu a porta, entrou, levou a mão ao boné e dirigiu-se,

sorrindo, ao Sr. Abel.

- Meu senhor, tenho muita pena de o incomodar, mas peço-lhe que

pare, por causa da multidão. Está a impedir o trânsito, e nós somos

obrigados a restabelecê-lo, o que será difícil, enquanto estiverem aqui a

dar espectáculo.

SR. ABEL - Da melhor vontade, senhor polícia. Também já chega.

Tenho calor e sede.

E sentando-se à mesa:

- Rapaz, dois cafés e conhaque. . . Sente-se, eu pago.

POLÍCIA - O meu camarada está lá fora à minha espera.

SR. ABEL - Nesse caso, dispersem a multidão e volte com o seu

camarada para beberem uma chávena de café e um copito.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

POLÍCIA - Não sei se podemos, senhor. . .

ABEL - Porque não hão-de poder? Uma chávena e um copo bebem-se

depressa. Eu espero-os e faço-vos companhia.

O polícia saiu, muito contente, e voltou mais contente ainda, com o

camarada.

Durante este tempo, João, segundo as ordens do Sr. Abel, tinha

trazido mais duas chávenas de Kirsch.

Os polícias beberam, agradeceram e foram-se embora.

SR. ABEL - E como se chama o ricaço que nos oferece um baile no

domingo?

JOÃO - Sr. Amédée. Um comerciante rico! É do alto comércio. Tem

senhora e duas lindas meninas. Principalmente a mais velha é muito boa

e muito amável.

SR. ABEL - Como é que os conheces?

JOÃO - O Simão vai lá algumas vezes, ao domingo, depois de ir à

igreja, ou quando o café está fechado. Ele já me tem lá levado. Eu gosto

muito, é muito bonito.

SR. ABEL - Que idade tem a filha mais velha? E a mais nova?

JOÃO - A mais velha tem para aí dezanove anos e a outra dezasseis

ou dezassete.

SR. ABEL - A mais velha estava a calhar para o Simão.

JOÃO - O Simão só tem vinte e três anos. Ele não se casa senão daqui

a quatro ou cinco anos. É preciso dinheiro para pôr casa. Sem isso não

lhe dariam a menina Aimée.

SR. ABEL - De quanto precisa ele?

JOÃO - Para aí de dois ou três mil francos. Mas tem de sustentar a

mamã. Agora, que somos os dois a ganhar, vai mais depressa.

SR. ABEL - Tu não guardas para ti o que ganhas?

JOÃO - Por ora, não. Dou tudo ao Simão. E ele manda à mamã.

Havia muita gente no café. Simão chamou João para o ajudar. A

conversa com o Sr. Abel foi interrompida. Este ficou ainda algum tempo

no café. Olhava sem ver, e não ouvia o que se dizia à sua volta. Por fim

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saiu, pensativo, e dirigiu-se para as Tulherias, onde acabou de fantasiar o

futuro de Simão.

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Os fatos novos

No dia seguinte, quando o Sr. Abel foi almoçar ao café, João correu,

todo contente.

JOÃO - O senhor sabe o que nos aconteceu?

SR. ABEL – Não. Como queres tu que eu saiba?

JOÃO - Ontem à tarde um senhor perguntou pelo Simão e por mim.

Estava à nossa espera em casa do porteiro. O tal senhor disse que nos ia

tirar as medidas para nos fazer uns fatos novos. Simão recusou. . .

SR. ABEL (contrariado) - Porquê? Devia aceitar.

JOÃO - Ele não queria gastar tanto dinheiro!

SR. ABEL (da mesma forma) - Mas, se lhos davam.

JOÃO - Oh! Como foi que adivinhou? O tal senhor disse que tinha

ordem para nos vestir, que já estava tudo pago e não sei que mais. . . O

Simão hesitou e o tal senhor disse que tinha ordem de fazer os fatos,

senão que perdia o freguês. O Simão perguntou quem era ele e porque

fazia isso. O senhor disse que é um grande artista, um pintor, que é muito

bom e muito original, que nos viu um dia mal vestidos e que nos quer

bem-postos. Ele também disse que, se nós não o deixássemos fazer os

fatos, lhe faríamos perder o seu melhor cliente. Por fim, o Simão

consentiu. O tal senhor tirou-nos as medidas, traz-nos os fatos dentro de

dias, e nós estaremos que nem uns príncipes no baile do Sr. Amédée. Só

falta o calçado, a gravata e a roupa branca. Mas, quanto à roupa, o Simão

disse que abotoávamos os fatos para esconder a camisa e a gravata.

Assim já fica bem.

SR. ABEL - O alfaiate é imbecil! Como foi que ele não pensou na

roupa e nas botas?

JOÃO - Não injurie o pobre homem, senhor. Ele não teve culpa. Fez o

que lhe mandaram.

SR. ABEL - Tens razão. O outro é que é um estúpido, um imbecil.

JOÃO - Oh! Um senhor tão bom, que se interessa por nós sem nos

conhecer e nos faz tamanha esmola, com tanta bondade e tanta graça!

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SR. ABEL - Digo-te que é um animal. Quando se faz uma boa acção é

preciso não a deixar em meio. Que bonita figura vocês hão-de fazer, de

fatos elegantes, sapatos de aguadeiro e uma gravata de algodão aos

quadrados! E o chapéu? Pensaram nele?

JOÃO - Não, senhor. Mas não se anda de chapéu numa casa fina,

onde se dança. Eu e o Simão vamos sem chapéu. É tão perto! De mais a

mais é de noite.

O Sr. Abel almoçou num instante, naquele dia. Disse ao João que o

servisse sem demora, porque estava com pressa. João despachou-se. O

Sr. Abel também, de maneira que, um quarto de hora depois, saiu.

Simão e João viam Joanico cada vez menos, mas sabiam que ele ia ao

baile do Sr. Amédée.

JOÃO - Pobre Joanico! Ele tão mal vestido e nós tão bem!

SIMÃO - Diverte-se na mesma. Mas nós podíamos emprestar-lhe o

teu fato velho, ainda está muito bom.

JOÃO - E deve-lhe estar bem, porque somos da mesma estatura. Se

lhe fosse dizer?

SIMÃO - Vai, sim, mas não te demores. Pode vir gente.

JOÃO - É só o tempo de lhe dizer o que resolvemos e ele responder

sim ou não.

João saiu, a correr. Ao chegar à porta da mercearia, ouviu vozes

alteradas e não tardou a perceber que era o Sr. Pontois que ralhava

duramente com Joanico.

SR. PONTOIS - Digo-te que tenho a certeza. A minha mulher viu-te

tirar um punhado de tâmaras e de figos. Ela viu-tos comer.

JOANICO - Não, senhor. Eu tirei-os para os pôr na montra.

- Mentiroso! Ladrão! - gritava o Sr. Pontois. E, atirando-se a Joanico,

puxou-lhe os cabelos, deu-lhe bofetadas e pontapés e empurrou-o para o

fundo da loja.

SR. PONTOIS - É a décima, a centésima vez que me roubas,

velhaco. Se te apanho outra vez, ponho-te na rua como ladrão.

O Sr. Pontois foi-se embora, sem ver João, e deixou Joanico a chorar.

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João aproximou-se do primo.

- Joanico - disse-lhe afectuosamente -, tem coragem, não chores.

Venho propor-te uma coisa que te vai alegrar. Empresto-te o meu fato

para levares ao baile do Sr. Amédée.

Joanico limpou as lágrimas e alegrou-se um pouco.

JOANÌCO – Aceito. Não tinha nada que vestir. Agradeço-te muito e ao

Simão. Mas que vestes tu?

JOÃO - Visto outro.

JOANICO - Tu és muito feliz em viver com o Simão. Lá, estás

tranquilo, sempre alegre e satisfeito. Comigo não se dá o mesmo. Choro

mais vezes do que rio. Pouco ordenado, muitas injúrias e trabalho até às

pontas dos cabelos.

JOÃO - Não julgues que não temos que fazer no café. Ando de manhã

até à noite. Tu, ao menos, tens os domingos.

JOANICO - Bonitos domingos! Por aquilo que eu passeio! Não tenho

aonde ir. Aborreço-me e choro. Belos domingos!

JOÃO - E porque não vais nunca ver-nos? O Simão e eu saímos cada

um em seu domingo. Podemos vir buscar-te.

JOANICO - Obrigado! Para ir ao sermão! Que grande prazer! Bonita

distracção!

JOÃO - Faz bem ir algumas vezes rezar à igreja, que é a casa de

Deus.

JOANICO - Gosto mais de passear.

JOÃO - Pobre Joanico! Tu lá na terra não falavas assim.

JOANICO - Eu, na terra, era um estúpido. Cá em Paris os

companheiros abriram-me os olhos.

JOÃO - Fecharam-tos, queres tu dizer. Que ganhas com isso? Não és

feliz. Não te divertes e não tens a consolação de rezar.

JOANICO - Como queres tu que eu seja feliz, que me distraia, com

patrões maus como os meus?

JOÃO - Maus! Que estás para aí a dizer? O Simão disse-me que eram

muito bons e que tratavam bem os empregados.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOANICO - Os outros, é possível. A mim, não.

JOÃO - Joanico, Joanico, não sejas ingrato!

JOANICO - Ora! João, tu aborreces-me com os teus sermões. É por

isso que não vos vou ver, nem ao Simão nem a ti. Manda-me ou traz-me o

fato que me prometeste e deixa-te de moral. Assim como assim, não estou

aqui bem. Parece-me que não ficarei por cá muito tempo.

JOÃO - Para onde queres tu ir? Fazer o quê? Joanico, peço-te, não

resolvas nada sem consultar o Simão. Ele é tão bom, tão prudente!

JOANICO - Manda-me o fato. Não te peço mais nada.

João suspirou e foi-se embora, lentamente, repetindo: - Pobre

Joanico!

Simão, a quem ele contou a sua conversa com Joanico e a cena de

que tinha sido testemunha, foi, ele próprio, levar o fato prometido e

conversar com o Sr. Pontois.

Voltou inquieto e, logo que se encontrou a sós com o irmão, disse-

lhe:

-Não estou satisfeito com o Joanico, e o Sr. Pontois, então, está muito

descontente. O Joanico não quer continuar lá, e o Sr. Pontois também não

o quer. É uma desgraça para o Joanico. Vai ter dificuldade em se colocar.

O patrão acusa-o de roubar uma quantidade de coisas para comer. Mas, o

que é pior, é que o Sr. Pontois está quase certo de que ele não põe na

caixa todo o dinheiro das vendas que faz. Isto desgosta-me, porque é

roubar. E, com semelhante suspeita, como posso eu colocá- lo noutra

parte?

JOÃO - Pobre Joanico! E se tu falasses ao Sr. Abel? Ele é tão bom!

Tenho a certeza de que te daria um bom conselho.

SIMÃO – Sim, tens razão. Poderá ser útil ao Joanico. O Sr. Abel

conhece tanta gente! E penso, como tu, que me aconselhará bem.

Dias depois o alfaiate veio trazer-lhes não só os seus fatos mas

também camisas finas, gravatas de seda, peúgas e luvas. Acompanhava-o

um sapateiro que trazia uma quantidade de sapatos de baile para

experimentar, e um chapeleiro que trazia chapéus.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

João estava louco de alegria. Simão continha-se, mas estava tão

alegre como ele. Tudo servia na perfeição. Encontraram sapatos que

calçavam admiravelmente sem apertar os pés, chapéus que não podiam

ficar melhor e luvas que entravam sem esforço, porque João e Simão não

queriam ter as mãos apertadas.

O alfaiate levara o cuidado ao extremo de pôr lenços nos bolsos dos

casacos. Simão e João não sabiam como exprimir o seu reconhecimento.

Incumbiram o alfaiate de apresentar os agradecimentos mais afectuosos,

mais respeitosos, ao benfeitor desconhecido.

Quando o Sr. Abel chegou, João que o esperava com grande

impaciência, serviu-lhe o almoço.

JOÃO - Oh! Se soubesse como o Sr. Pintor é bom, ficava arrependido

do que disse no outro dia. O bom, o excelente Sr. Pintor pensou em tudo,

até lenços brancos e finos para nos assoarmos! Chapéus, peúgas, roupa,

luvas, nada nos falta, nada! Não comove tanta bondade? Sim, senhor, é

verdade o que lhe digo. Quando levámos as coisas para o nosso quarto,

Simão e eu ajoelhámos para pedir a Deus que abençoasse o Sr. Pintor.

Não há senão uma coisa que nos desgosta: é não podermos testemunhar-

lhe o nosso reconhecimento, o nosso vivo afecto. É um peso para o nosso

coração.

O Sr. Abel não comia. Escutava com visível enternecimento as

entusiásticas palavras de João, filhas do seu reconhecimento. Não

despregava os olhos dele um instante. Admirava o seu lindo rosto tornado

ainda mais belo pelo entusiasmo que lhe iluminava o olhar. Estava

surpreendido com a linguagem quase eloquente deste pobre camponesito

que, poucos meses antes, apenas falava a linguagem própria do campo.

João já não falava e o Sr. Abel olhava-o ainda. Pelo seu lado, João não

pensava nem no café nem no serviço. Inteiramente dominado pela

gratidão ficara imóvel, com os olhos húmidos, e toda a sua atitude

exprimia um profundo sentimento de gratidão e afecto.

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- És bom rapaz: tens bom coração e sabes reconhecer o que te fazem,

João - disse, por fim, o Sr. Abel, apertando-lhe a mão com força. - E agora

traz-me o café bem quente.

João foi buscá-lo.

- O senhor - disse ele quando voltou - não poderia saber, por esse

alfaiate, o nome do nosso generoso benfeitor? Gostava tanto de poder

agradecer-lhe!

ABEL - Talvez possa saber, meu amigo. Vou informar- me. E até à

noite, em casa do Sr. Amédée! chegarei um pouco tarde, pelas dez horas,

porque antes tenho que fazer. . .

O dia passou lentamente. A impaciência de Simão e João aumentava

à medida que se aproximava a hora do baile. O patrão deu-lhes licença

cedo. Jantaram à pressa e treparam ao seu quinto andar, ligeiros como

esquilos. Lavaram-se, pentearam-se com esmero. Depois começou a

grande toilette. A roupa branca e os fatos foram outra vez examinados,

admirados. João abraçava todas as peças que vestia. Combinaram não se

verem um ao outro enquanto não estivessem prontos.

- Acabaste? perguntou João.

SIMÃO - Ainda não. Espera um instante que eu vista o casaco.

A um sinal combinado, os dois irmãos voltaram-se e soltaram uma

exclamação de alegria.

JOÃO - Estás tão bonito, Simão! Pareces um senhor a valer!

SIMÃO - E tu?! Um príncipe não faria melhor figura!

JOÃO - Tens os cabelos tão lisos e tão bem arranjados!

SIMÃO - E que rica apresentação tu tens!

JOÃO - E como os teus pés parecem pequenos! E como estás

elegante! O bom, o excelente Sr. Pintor! Parece-me que, se o visse, não

poderia deixar de o abraçar.

SIMÃO - E eu? Apertava-lhe as mãos até lhe partir os ossos!

JOÃO (rindo) - Isso não! Não quero que lhe partas os ossos! Bonita

maneira de lhe provar o nosso reconhecimento!

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

SIMÃO (rindo) - É uma maneira de dizer, tu bem sabes. É apenas

para exprimir quanto estou feliz e reconhecido.

JOÃO - A menina Aimée vai achar-te de trás da orelha!

SIMÃO - Sim, ela nunca me viu tão bem vestido. Para dizer a

verdade, custava-me ir a este baile com o fato velho.

JOÃO - E graças ao nosso querido benfeitor, vamos soberbos!

SIMÃO - Olá! Faremos a figura de dois burgueses ricos, com as

nossas luvas e os nossos chapéus.

JOÃO - E os nossos sapatos! E as nossas gravatas!

SIMÃO - E as nossas camisas finas! E os nossos lenços!

JOÃO - Ouve lá, Simão, é preciso assoarmo-nos muitas vezes?

SIMÃO - Olha que já pensei nisso. Mas em lugar de nos assoarmos, o

que sujaria os lenços, basta tirá-los muitas vezes do bolso e linpar a testa.

JOÃO - Como se faz? Ensina-me.

SIMÃO - Sim, eu faço primeiro, e tu vês.

JOÃO - Escolhe a ocasião em que a menina Aimée esteja a olhar para

ti.

SIMÃO - Pois então, de cada vez que ela olhar para mim, há-de ver o

meu lenço.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

O rapto das sabinas

Era tempo de ir. Acabavam de dar oito horas. Simão e João tiveram o

cuidado de passar pelo café para se mostrarem com os seus fatos novos.

Os colegas fizeram-lhes uma grande festa e os dois irmãos saíram

alegremente.

Chegaram e logo obtiveram o êxito desejado. Já estava muita gente.

Simão e João cumprimentaram o Sr. e a Sra. Amédée, e depois dirigiram-

se para o grupo das meninas, que olhavam, sorriam, se requebravam,

testemunhando, assim, a sua admiração pelos belos dançarinos e a

esperança de um desejado convite.

Simão cumprimentou e tornou a cumprimentar a menina Aimée que,

por sua vez, fez vénias sobre vénias, saiu do grupo e avançou para Simão

e João.

MENINA AIMÉE - Chega muito a propósito, Sr. Simão. Vai começar

o baile. Os cavalheiros vão buscar par.

SIMÃO - Então a menina quer dançar comigo a primeira

contradança?

MENINA AIMÉE - Da melhor vontade. E o Sr. João vá dançar com

minha irmã Ivone.

JOÃO - Com muito prazer, menina.

João correu para Ivone, que aceitou com alegria um par tão bem

vestido. Todas as meninas invejaram a felicidade das duas irmãs.

- Aimée e Ivone têm sempre sorte - disse uma rapariga gorda, feia e

ruiva, que dançava pouco em geral, e que tinha um vestido de crepe cor-

de-rosa velho por cima de uma saia de percal branco, mais curta que o

vestido.

- É por serem filhas da casa - disse a menina Clorinda (que trazia um

vestido de musselina branca, de corpo em bico e um ramo espetado no

fim do bico, o que a incomodava para se sentar). - É por delicadeza que

eles as convidam.

- É porque elas são boas e amáveis - disse uma lourinha de dez anos.

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As salas enchiam-se, a música tocava. Começou o baile. Nos

intervalos corriam os refrescos. João e os dançarinos mais novos viram,

com viva satisfação, a abundância de bolos, refrescos e gelados. O

conjunto compunha-se de um violino, um clarinete e um piano. O Sr. Abel

chegou às dez horas, como tinha dito. Simão apresentou-o aos donos da

casa. Apresentado por tão elegante dançarino, o Sr. Abel obteve o maior

triunfo. O seu fato era tão bonito como o de Simão, e feito pelo mesmo

modelo. Pareciam da mesma casa. Simão recomendou o Sr. Abel, de

forma especial, à menina Aimée e à menina Ivone. Abel dançou com uma

e com outra, depois outra vez com a menina Aimée, à qual fez um

eloquente elogio do seu amigo Simão. A menina Aimée achou que o Sr.

Abel era um homem encantador, merecedor de toda a estima e confiança.

- E tão bem vestido! Tal como o Simão! O que mostra - disse às suas

amigas - que são pessoas finas e de bom gosto.

O Sr. Abel conversou muito com o Sr. e a Sra. Amédée, que o

escutavam com visível interesse. O baile esmorecia. Comia-se mais do

que se dançava. O Sr. Abel fez esta observação aos dançarinos e propôs-

lhe animar o serão.

Mas como? Ninguém encontrava o meio.

-Eu tenho um, meus senhores - disse o Sr. Abel. É preciso que

combinemos todos para ser divertido a valer.

- Então que é? - perguntaram os dançarinos.

SR. ABEL - Primeiro, é preciso reunir todos os rapazes. Mais

ninguém deve entrar no segredo.

- E nós? E nós? - gritaram as meninas.

SR. ABEL - As meninas menos que ninguém.

O Sr. Abel passou com os rapazes para a sala do lado.

SR. ABEL - Os senhores prometem calar-se até acabar a brincadeira?

- Prometemos! Juramos! - responderam os rapazes, estendendo as

mãos.

SR. ABEL - Muito bem. Vamos fazer o rapto das sabinas, que se usa

imenso e é muito fino. Os senhores escolhem os seus pares. A

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contradança começa. Façam de conta que não há mais nada, mas, quase

no fim, eu digo: alto! Cada um de nós agarra imediatamente uma menina

e obriga-a a valsar, quer ela queira quer não. O último que chegar ao seu

lugar paga um ponche aos outros dançarinos.

DANÇARINO-E se a menina não souber valsar?

SR. ABEL - Tanto pior para o homem. É preciso que ele a obrigue a

valsar, melhor ou pior, até darem uma volta ao salão. Entremos e sejamos

discretos. Lembrem-se de que, embora ela grite, ou ofereça resistência, é

preciso dar uma volta ao salão, a valsar para ter direito ao ponche, e de

que o último a chegar é quem o paga.

Entraram no salão. Todos esperavam ter direito ao ponche, e

nenhum admitia a possibilidade de o pagar. Escolheram par. Havia mais

rapazes do que meninas, de maneira que as feias foram tão convidadas

como as bonitas. Joanico encontrou todas as meninas já comprometidas.

Havia apenas a ruiva gorda. Convidou-a.

Que me importa? - pensou ele - Mal dêem o sinal, agarro-me a uma

menina magra e leve e deixarei a gorda a quem tiver força para a levar.

Cada qual ocupou o seu lugar. Furrunfunfum, furrunfunfum,

começou a música, e a contradança também. As meninas, que esperavam

qualquer coisa extraordinária, admiravam-se de não verem nada e

ficaram contrariadas. Quando a contradança estava a acabar, o Sr. Abel

disse: alto! Os rapazes precipitaram-se para as meninas que preferiam, e

que outros não tinham ainda roubado. As meninas assustaram-se e

resistiram, os rapazes insistiram. As meninas procuravam fugir, as mães

quiseram intervir; a disputa tornou-se geral, e a confusão atingiu o

cúmulo. Por fim, a maior parte das meninas começou a compreender; a

ordem estabeleceu-se.

Já os pares tinham dado a volta a dançar, e ainda um continuava a

mover-se: era Joanico e a ruiva gorda. Abandonada por Joanico, ninguém

a tinha querido e Joanico, apresentando-se tarde a todas as outras

meninas e estremecendo à ideia de ter de pagar o ponche, considerou-se

muito feliz ao tornar a encontrar a ruiva gorda, que logo agarrou para

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valsar, mas ela, furiosa com o abandono de Joanico, procurava libertar-se

dele. O medo do ponche triplicou as forças de Joanico, conseguiu

arrebatá-la e fazê-la girar, apesar da sua resistência e dos murros que ela

lhe assentava com o vigor de um colosso de cem quilos. O desventurado

Joanico, mais pequeno do que ela, recebia-os na cabeça, e não deixava de

voltear, agarrado aos folhos do seu vestido. Ela, de seu lado, gritava e

vociferava mil injúrias.

Ai! O pobre Joanico suportou com varonil coragem este granizo de

pancada, empregou todos os esforços para dar a volta ao salão, mas a

dançarina obrigou-o a largá-la e deixou-o sozinho, imóvel, ao pé de um

grupo de homens, no meio dos quais a menina procurou socorro e

protecção.

Durante esta cena, João no meio das risadas, disse ao Sr. Abel:

- Pobre Joanico! Terá de pagar o ponche! Que pena o Sr. Pintor não

estar aqui!

O Sr. Abel apareceu ao pé de Joanico no momento em que ele se viu

obrigado a largar o par. Meteu-lhe uma moeda de vinte francos na mão e

disse-lhe baixinho:

- Para pagar o ponche. - E desapareceu.

Ao chegar ao fundo da escada, parou um instante a reflectir no

serão, recapitulava os acontecimentos em que tinha tomado parte,

quando ouviu a voz de João e Joanico.

JOANICO - Sou obrigado a pagar o ponche! É o meu enguiço que me

persegue! O Sr. Abel inventa coisas absurdas! Toda a gente se saiu bem:

todos riem, todos estão contentes. Só eu tive a desgraça de me calhar

uma menina gorda, com cem quilos de peso, que me encheu de

pancadaria e me fez pagar este maldito ponche?

JOÃO - Pobre Joanico! Eu pago metade.

JOANICO - E eu que aceito! Quanto poderá custar?

JOÃO - Para tanta gente, dez francos, pouco mais ou menos.

JOANICO - E onde hei-de ir buscá-lo?

JOÃO - Queres que vá numa corrida ao café?

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JOANICO - Quero, sim, e diz que me façam o menor preço. Eu sou

pobre.

JOÃO - Está descansado, farei o que puder.

João saiu a correr e não tardou a voltar com uma taça de ponche

fumegante. Nenhum deles percebeu que o Sr. Abel estava a seu lado,

oculto na sombra.

JOANICO - Então, quanto custa o ponche?

JOÃO - Deram-mo por oito francos, em vez de dez, por ser para nós.

JOANICO - Nesse caso, devo- te quatro francos, visto pagares tu

metade.

JOÃO - Sim, eu pagarei os quatro francos que faltam.

Joanico remexeu no bolso, tirou o dinheiro, contou e entregou quatro

francos a João, esquecendo-se de lhe agradecer a sua generosidade. O Sr.

Abel indignado, e querendo castigar Joanico pelo seu embuste e pela sua

avidez, estendeu a mão, meteu-a no bolso do casaco de Joanico, sem que

ele sentisse, e tirou a moeda de ouro que lhe tinha visto lá meter.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Marotices de Joanico

Quando Joanico entrou em casa, apressou-se a tirar e a contar o

dinheiro que trazia na algibeira. Ele bem contou e bem procurou a moeda

de ouro que o desconhecido lhe dera. Ficou desesperado, contava com os

vinte francos para comprar o fato que Simão lhe emprestara. Chorou,

bateu com os punhos na cabeça, mas todo esse desespero não lhe

restituiu os vinte francos.

Depois de ter reflectido sobre o que devia fazer resolveu ir no dia

seguinte contar o caso a João, para, contando com o seu bom coração,

procurar enternecê-lo e fazer com que lhe desse os quatro francos do

ponche, que pagara. Esta esperança acalmou-o e dormiu

sossegadamente.

No dia seguinte, ainda cedo, Joanico aproveitou-se de um recado que

o patrão lhe mandou fazer para entrar no Café Métis e falar a João. Simão

estava presente, o que contrariou Joanico. Receava ele que Simão não se

deixasse impressionar como João, pelas suas choraminguices e súplicas.

Depois de ter esperado, inutilmente, que Simão se afastasse, decidiu-

se a falar:

- Sou muito infeliz - começou ele. - Tive ontem uma grande perda.

JOÃO - Uma perda? Tu? Que foi?

JOANICO - Eu queria comprar ao Simão o fato que ele me emprestou

ontem à noite, e metera na algibeira uma moeda de vinte francos para o

pagar; quando voltei para casa já a não tinha.

Simão fez um movimento como quem se ia a levantar da cadeira, mas

tornou a sentar-se e não disse nada. O Sr. Abel acabava de entrar e fazia-

lhe sinal para que se sentasse e deixasse falar João e Joanico, ambos

estavam de costas voltadas e não o podiam ver.

JOÃO - Vinte francos! Tu perdeste vinte francos? Pobre Joanico!

Tenho muita pena!

Não era isto o que Joanico pretendia. Ele esperava melhor do bom

coração do primo. E continuou.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOANICO - E ainda se não fosse o maldito ponche, podia dar-lhe este

mês metade do custo do fato, e acabar de o pagar para o mês que vem. . .

Sou muito infeliz, João.

JOÃO - Meu pobre Joanico, estou triste por tua causa, mas não te

aflijas tanto. Tu bem sabes que o Simão é muito bom. Estou certo de que

te emprestará o fato todas as vezes que precises dele.

JOANICO - Mas o ponche que eu tive de pagar? Tu sabes que foram

oito francos.

JOÃO - Oito francos, como? Eu paguei metade. São só quatro francos.

JOANICO - É verdade! Não me lembrava. . . Quatro francos, que é

pouco para ti, mas para mim é muito. Ganho tão pouco!

JOÃO - Escuta, Joanico, se tens, realmente, precisão de dinheiro,

Simão há-de permitir que te dê mais esses quatro francos.

- João, proíbo-te - disse o Sr. Abel, em tom decidido.

A sua aparição fez saltar Joanico, que tinha medo do Sr. Abel e não

gostava de o encontrar.

- Eu não quero que tu dês, nem um soldo, a este maroto - continuou o

Sr. Abel, com uma severidade que João nunca lhe tinha visto. - Ele

engana-te. Ele mente, não perdeu nada, e se não tem mais dinheiro, tanto

melhor; gasta-o muito mal.

Joanico tivera tempo de recobrar coragem e levantou a cabeça para

o Sr. Abel.

JOANICO - Por que está o senhor a injuriar-me? Eu não lhe fiz nada e

o senhor acusa-me sem saber se o que digo é verdade ou não.

SR. ABEL - Eu digo que mentes, porque o sei. E não te deixo enganar

o João, porque sei que já o enganaste.

JOANICO - Não, senhor; eu não o enganei.

SR. ABEL - Cala-te, mentiroso! Ontem à noite extorquiste-lhe quatro

francos para pagar metade do ponche e tu tinhas acabado de receber

vinte francos para esse efeito.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOANICO - Eu, vinte francos! O senhor quer enganar o Simão e o

João para eles não me ajudarem. Quem é que me havia de dar vinte

francos? Eu não conhecia ninguém no baile.

SR. ABEL - Mas alguém te conhecia. Esse alguém teve dó de ti e não

quis que pagasses a comédia que eu inventara, por isso te meteu vinte

francos na mão para pagares o ponche.

JOANICO - Não, senhor, ninguém teve pena de mim e ninguém me

deu nada. Além disso, o senhor não estava lá nesse momento e, por

conseguinte, nada viu.

SR. ABEL - Visto que me obrigas a falar, digo-te que estava muito

perto de ti, que fui eu que te meti a moeda de ouro na mão e te disse

baixinho: “Para pagar o ponche.” E se não encontraste os vinte francos

foi porque eu mesmo os tirei do teu bolso quando tiveste a indignidade de

fazer pagar quatro francos a este pobre João, depois de o convenceres de

que não tinhas dinheiro. Eu estava ao fundo da escada e ouvi tudo.

O Sr. Abel calou-se. Joanico estava consternado. Tremia como varas

verdes. João olhou-o com surpresa e desgosto. Indignado com tão baixo

embuste, custava- lhe a acreditar.

Simão esforçava-se por dominar a sua cólera. Gostava muito do

irmão e não podia admitir que abusassem da sua bondade. Ninguém

falava.

SR. ABEL - Vai-te daqui para fora, impostor! Vai-te e não apareças

mais na minha frente!

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

O Sr. Pintor é desmascarado

Simão estava aterrado com o atrevimento, o descaramento e a

trapaça do primo. João estava muito incomodado e, pela primeira vez,

chorou. O Sr. Abel olhava os dois irmãos, sobretudo João, com uma pena

e um interesse visíveis. Quando acabou de almoçar, chamou Simão.

SR. ABEL - Anda cá, Simão, quero dizer-te uma coisa.

Simão aproximou-se.

- Tenho uma boa nova para te dar. Tu agradas muito ao Sr. e à Sr.a

Amédée, e à menina Aimée ainda mais.

SIMÃO - Oh! É possível? Um pobre rapaz como eu?

SR. ABEL - É verdade. Ontem, toda a noite me ocupei de ti, e o que

te digo é certo. Os pais acham que vocês são muito novos para casar já,

mas disseram-me que teriam muito prazer em te ver mais vezes em sua

casa.

SIMÃO - Eu não posso acreditar em semelhante felicidade! Eu que

não tenho nada. . .

SR. ABEL (rindo) - Quanto a fortuna, meu rapaz, não se sabe o que

está para vir; podem aumentar-te o ordenado. Podes chegar a ser

primeiro empregado, ou mesmo sócio.

SIMÃO - Para isso era preciso que eu estivesse na casa há muitos

anos.

SR. ABEL-Não se sabe. . . não se sabe que ideias passam pela cabeça

dum dono de café. . . O Sr. Métis já não é muito novo, estima-te muito.

Tem muita confiança em ti. E toda a gente gosta de ter um sócio

inteligente e honesto.

SIMÃO - Mas isso não basta, senhor. É preciso ter dinheiro, uma

caução.

SR. ABEL - Isso é o menos; cá estou eu para te auxiliar, para te servir

de fiador; e não tenho medo de perder o dinheiro.

SIMÃO - Oh senhor, será possível?

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Simão ficou de mãos juntas diante do Sr. Abel, não sabendo como lhe

agradecer, nem ousando manifestar-lhe toda a sua gratidão e felicidade.

João tinha ouvido tudo, e compreendido: olhava para o Sr. Abel com

uma expressão particular. De repente, caminhou para ele, abraçou-lhe os

joelhos e exclamou.

- O senhor é que é o Sr. Pintor; o senhor é o nosso benfeitor, o

coração de ouro que nos quer bem. Adivinho-o. Tenho a certeza: é o

senhor. Sim, é o senhor! Deixe-me beijar-lhe as mãos e dizer-lhe quanto

gosto de si, quanto o respeito, com que ternura penso em si, como sou

feliz em encontrá-lo. Querido Sr. Abel! Simão será feliz graças ao senhor!

Que Deus o abençoe! Que Deus o proteja! Que Deus o recompense...

E desatou a soluçar.

O Sr. Abel, muito comovido, levantou-o, apertou-o nos braços, beijou-

lhe a testa, as faces banhadas de lágrimas, e estendeu a mão a Simão,

que a apertou nas suas e que, cedendo a uma atracção irresistível, a

beijou, curvando-se profundamente.

SR. ABEL - Estou descoberto! Não há meio de resistir à perspicácia

deste Joãozinho! Vocês têm-me dado momentos de muita felicidade,

patenteando-me os tesouros de duas belas almas sinceramente cristãs e

honestas! Não tenho pais, não tenho mulher nem filhos, portanto posso,

sem prejudicar ninguém, ter o prazer de vos fazer bem. Mas. . . aí vem

gente.

Levanta-te, Joãozinho, Simão, tu hás-de ter-me ao corrente dos teus

negócios - ajuntou o Sr. Abel, sorrindo e apertando-lhe a mão. E se te

falarem na tua fortuna, fica sabendo que já tens três mil francos em

obrigações do Caminho de Ferro de Leste e que em breve terás muito

mais.

SIMÃO - Oh! Senhor!

SR. ABEL - Chut. Está aí gente. Até amanhã meus filhos. Adeus,

Joãozinho, tu é que tens um coração de ouro. . . Silêncio! Até amanhã.

O Sr. Abel saiu, sentindo-se quase tão feliz como os seus dois

protegidos.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

À noite, Simão e João subiram ao quarto para escreverem à mãe,

mas primeiro abraçaram-se e felicitaram-se. Rezaram juntos a Deus.

Agradeceram-Lhe e pediram-Lhe que abençoasse o seu benfeitor e o

fizesse feliz. Depois puseram-se a escrever, cada um por seu lado.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Segunda visita a Kérantré

Helena Dutec já estava separada do filho havia mais de dois anos.

Recebia regularmente notícias, tanto de João como de Simão. Regozijava-

se de os saber felizes e recebia, muitas vezes, quantias que iam além das

suas esperanças, eles mandavam-lhe aos vinte e aos quarenta francos. A

abastança e o bem-estar reinavam na sua casinha. Raramente passava

uma quinzena sem que o bom Kersac lhe fizesse uma visita, de cada vez

levava com que se entreter, como ele dizia.

- Porque, minha boa senhora, aqui onde me vê sou muitíssimo

egoísta, assim, no outro dia, trouxe um par de cadeiras, hoje lembrei-me

de que precisava de uma poltrona, e trouxe-a na carroça. . . A senhora

não me quer mal por eu me tratar com tantos mimos, não é verdade?

Com os anos vou-me tornando muito melindroso. A senhora é boa e não

pensa mal de mim, não é verdade?

HELENA - Mal? Pensar do senhor? Como se eu não compreendesse

porque é que traz tudo isso! Esta mesa é para si, não é?

KERSAC - Certamente. Detesto comer na mão.

HELENA - E o armário? É para si também?

KERSAC - O armário é para guardar as coisas que lhe trago quando

venho comer em sua casa.

HELENA - E a cama da pequenita?

KERSAC - A cama é para saber que a minha protegida dorme bem.

Não gosto de ver uma cama velha e desconjuntada.

HELENA - E as toalhas? E a louça? E a lenha? E as outras coisas

todas?

KERSAC - As toalhas é para ter com que me enxugar. A louça é para

comer nela. A lenha é para ter uma boa fogueira quando chego cheio de

frio. Enfim, eu sou assim mesmo, aprecio o conforto. A senhora não faça

má ideia de mim, lá porque sou um pouco. . . um pouco. . . vá, é preciso

acabar a frase: um pouco. . . egoísta.

Helena sorriu.

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- Que Deus nos faça assim egoístas, a todos nós, Sr. Kersac.

KERSAC - E notícias dos pequenos?

HELENA - Escreveram-me ambos, Sr. Kersac. O Sr. Abel tem sido

muito bom para eles. Ali está uma pessoa que tem um verdadeiro coração

de ouro, como diz o meu João.

E Helena contou a Kersac tudo o que o Sr. Abel tinha feito e

prometido, como arranjara a Simão um excelente casamento.

KERSAC - Mas, nesse caso, daqui a um ou dois anos, a senhora tem

de ir ao casamento.

HELENA - Eu, senhor! A um casamento a Paris? Que ia eu lá fazer,

meu Deus! E que figura a minha!

KERSAC - Deve ir. A mãe deve estar presente.

HELENA - A mãe sim, mas a madrasta não.

KERSAC - Como, a madrasta?

HELENA - Sim, meu senhor. Eu não tenho outro filho além do meu

Joãozinho. Quando casei com o meu marido, já o Simão tinha perto de

nove anos.

KERSAC - Aí está uma bela descoberta. Então que idade tem?

HELENA - Tenho trinta e três anos, meu senhor. Casei-me aos

dezassete.

KERSAC - Eu bem dizia comigo: “Esta mulher está muitíssimo bem

conservada! Quem diria que ela tem um filho de vinte e quatro anos!”.

Ah! Mas isso que me diz dá-me muito prazer, e já lhe digo porquê. Como

sabe, eu sou solteiro e preciso de uma mulher para a herdade, uma

mulher que dirija a casa, que trate da cozinha, enfim, que faça os serviços

de uma caseira. Até agora não tenho tido sorte. Não consegui ainda

encontrar uma mulher honesta, activa, inteligente, que zele pelos meus

interesses e que saiba administrar uma herdade. Pensei em si, mas dizia

comigo: “Ela tem um filho de vinte e quatro anos portanto, tem, pelo

menos, quarenta e um ou quarenta e dois anos. É tarde para começar.” E,

afinal, tem apenas trinta e três! Mas, é esplêndido! Vê, é Deus que atende

a sua súplica, visto que Lhe pediu que me fizesse feliz! E eu sou feliz! Não

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terei mais nada que recear, nem que vigiar, nem que ralhar. Tudo

caminhará bem, quando eu adoecer, trata de mim, quando me ausentar,

toma a direcção de tudo.

- Mas - disse Helena, rindo - o senhor resolveu tudo isso sem saber se

eu posso, se conheço o serviço de uma herdade, se sei ordenhar uma vaca

e criar galinhas. Uma caseira deve saber tudo isso a fundo.

Kersac deteve-se, consternado.

- É verdade! E não sabe? Diga depressa acrescentou, com

vivacidade, vendo que ela hesitava.

HELENA - Sei, sim, senhor. Sou filha de um proprietário, trabalhei

numa herdade desde que me conheço. Só a deixei depois da morte do

meu pai e do meu marido.

KERSAC - Então por que demónio me assusta? Eu não lhe pergunto

se quer, visto que pode. Desde que se trata de me ser útil não hesitará,

tenho a certeza. Quando hei-de mandar-lhe uma carroça para fazer a

mudança?

HELENA - Quando quiser. Nada me prende aqui. Não se enganou,

supondo que eu consentiria. Terei muito prazer em lhe ser prestável e

darei graças a Deus por me proporcionar maneira de lhe mostrar o meu

reconhecimento.

KERSAC - Então, para a semana. Hoje é quinta, muda na próxima

segunda-feira.

HELENA - Estarei pronta.

KERSAC – Bem, está tudo resolvido. Estou satisfeito. Não lhe falo em

ordenado, há-de passar-lhe bastante dinheiro pelas mãos, mais do que o

preciso para os gastos. Ficará com o que entender e quiser. Não preciso

de lhe fixar a quantia, pois não receio que fique com muito.

HELENA - E a Mariazita?

KERSAC - Irá consigo.

HELENA - Isso será talvez incómodo para o senhor.

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KERSAC - Incómodo? Nenhum. Quando ela fizer vinte e um anos,

adopto-a e caso-a com o João. Já tracei o meu plano. Como sabe, sou

egoísta. Disponho as minhas coisas como entendo. . .

HELENA - E sem esquecer os outros. Meu Deus! Como é bom ser

egoísta como o senhor é!

KERSAC - Mas é que é verdade. Vê? Leva-se uma vida agradável,

arranjam-se amigos. . .

HELENA - Muito dedicados e muito reconhecidos, meu senhor.

KERSAC (sorrindo) - Sempre! Os amigos são sempre dedicados e

reconhecidos; não sendo assim, não são amigos. . . e o jantar, que nós

esquecemos? A Maria está aqui a chegar, e se não tenho alguma coisa

para meter no estômago, como-a a ela sem mais tempero do que sal!

Helena avivou a fogueira, tirou do armário o necessário para fazer

uma omeleta e temperar uma salada. Precisamente no momento em que

Helena punha a omeleta no prato, a Mariazita entrou, corada e alegre.

Correu para Kersac, que a beijou nas duas faces. Ela retribuiu os

beijos, dizendo:

- Tantos dias sem o ver! Porque esteve tanto tempo sem cá vir?

KERSAC - Porque estamos no tempo das colheitas, Mariazita, e nesta

ocasião os homens e os cavalos têm muito que fazer.

Quando Maria soube que iria morar para a herdade de Kersac, não

coube em si de contente.

- Vamos agora já, leve-nos agora já - repetia ela, insistentemente.

HELENA - É impossível, Maria. Preciso de tempo para pagar o que

devo, para me despedir do senhor abade e da minha irmã Mariana, e para

arranjar as malas. Sim, porque eu agora tenho malas - disse ela sorrindo

e voltando-se para Kersac - e não quero deixar o que o senhor me deu.

KERSAC - Leve tudo o que quiser, Helena. Eu mando- lhe a carroça

maior que tenho.

HELENA - Obrigada, meu senhor; eu cedo a casa a minha irmã.

Assim escusa ela de pagar mais renda.

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Kersac tinha acabado de jantar; levantou-se para atrelar o cavalo.

Helena acompanhou-o e ele foi-se embora, repetindo:

- Até segunda-feira!

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O Sr. Abel procura empregar o João

Certo dia, o Sr. Abel disse ao João, quando este lhe servia o almoço.

- Preciso de falar contigo, João. Daqui a pouco o Simão casa-se. Julgo

que o pai da menina Aimée quer que o casamento se realize na próxima

Primavera. Logo que Simão case e passe a ajudar o sogro na loja, eu não

quero que continues aqui. Os teus companheiros não são lá muito bons.

Haviam de procurar levar-te para mau caminho, e tu não terias forças

para resistir, decerto. Perderias os teus hábitos cristãos, os teus bons

sentimentos, o que me causaria grande desgosto.

JOÃO - Que posso eu fazer para lhe poupar essa inquietação? Espero,

com o auxilio de Deus nunca lhe dar tal desgosto. Mas faça de mim o que

quiser: obedecer-lhe-ei em tudo.

SR. ABEL - Obrigado, meu filho. Olha, o meu plano é este: tiro-te

daqui e coloco-te em casa de uns amigos meus, muito bons. Os senhores

são muito piedosos, e os filhos são encantadores e muito bem-educados. É

uma familia excelente, caridosa e rica. A tua principal ocupação será

tratar e distrair um menino de dez anos, que é uma verdadeira jóia. Está

de cama há mais de um ano, sofre muito e nunca se lastima, nunca se

impacienta. É um autêntico santinho.

JOÃO - Obrigado, senhor, obrigado.

SR. ABEL - Vou tratar do assunto. Amanhã dou-te uma resposta

definitiva.

João correu a contar a Simão o que o Sr. Abel lhe dissera. Simão

ficou também muito contente.

- Visto eu deixar o café - disse ele - gosto que saias também e que o

Sr. Abel se encarregue de te arranjar colocação.

Mal acabou de falar, entrou no café o Joanico.

- Venho pedir-te um favor, Simão - disse ele com ar decidido.

SIMÃO - Que é que queres?

JOANICO - Peço-te que me arranjes uma colocação. Vou deixar a

mercearia. Antes quero ir para uma casa.

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SIMÃO - Eu conheço pouca gente e passo os dias a servir os

fregueses, por isso não tenho tempo para te procurar colocação.

JOANICO - Pede ao Sr. Métis que me deixe vir para cá.

SIMÃO - O Sr. Métis é que procura os empregados, não gosta que se

metam na sua vida.

JOANICO - Tu és muito amável, agradeço-te a bondade.

Simão não respondeu.

JOANICO - Eu sei o que é. Tu o que não queres é recomendar-me.

SIMÃO - É possível. Eu não recomendo as pessoas que não conheço.

E tu estás nesse caso. Não nos venhas ver mais.

JOANICO - Foi aquele velhaco do Pontois que te disse mal de mim?

SIMÃO - É possível. E pela forma como falas do teu patrão, vejo que

não mentiu.

JOANICO - Que foi que ele te disse?

SIMÃO - Nem eu tenho necessidade de to dizer, nem tu de o saberes.

JOANICO - Quero saber, hás-de dizer.

SIMÃO - Nem o direi, nem o saberás.

JOANICO - Toma cuidado! Olha que posso fazer-te mal!

SIMÃO - Faz o que entenderes e vai-te embora.

JOANICO - Se algum dia te encontrar no meu caminho e te puder ser

bom, a ti e ao João, não deixarei de o ser.

SIMÃO (vivamente) - Livra-te de tocar no João, que eu entrego-te à

polícia.

JOANICO - Não tenho medo da polícia. Pela última vez te pergunto

se me queres arranjar um emprego.

SIMÃO (com força) - Não e não! Já te disse que não, e repito que

não! Vai-te embora!

Joanico afastou-se lentamente, fazendo ameaças com o punho.

JOÃO - Perdoa-lhe, Simão. Ele não estava em si. Estou convencido de

que já está arrependido de ter falado daquela maneira.

SIMÃO - Não, meu amigo, aquele não se arrepende. Assim como não

se arrependerá do seu mau comportamento senão quando for muito

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tarde. Pontois falou-me dele ultimamente e, segundo o que me disse,

Joanico está perdido.

JOÃO - Meu Deus! Meu Deus! Pobre Joanico! Talvez que, metendo-o

numa casa boa, piedosa e honesta, ele se tornasse bom.

SIMÃO - Não me parece. Em todo o caso, eu não o posso recomendar

como rapaz honesto e bem comportado.

João não disse nada, mas pôs-se a pensar. . .

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O Sr. Abel coloca Joanico

No dia seguinte, João esperou com impaciência o Sr. Abel. Logo que

o avistou, correu para ele.

JOÃO - Tenho uma coisa muito importante a dizer-lhe, mas é

segredo!

SR. ABEL - Ah! Tu tens segredos? Serei mudo como um penedo.

Podes dizer o que quiseres.

João foi buscar um bife e batatas bem quentinhas, bem lourinhas, um

pãozinho fofo e uma garrafa de vinho de primeira qualidade.

JOÃO - Vá! Coma, senhor! Enquanto almoça, vou contar-lhe uma

coisa e pedir-lhe um grande favor.

SR. ABEL – Fala. Sou todo ouvidos.

João contou-lhe o que se passara na véspera e acabou por lhe pedir,

com insistência, que colocasse Joanico.

SR. ABEL - Mas, meu amigo, eu acho que o Joanico se portou muito

mal com o Simão, e que não merece a minha protecção nem a tua.

JOÃO - Sr. Abel, pense que o Sr. Pontois vai mandá- lo embora e que

o desgraçado Joanico morrerá de fome e de frio, porque o Inverno está à

porta.

SR. ABEL - É verdade, mas como queres que recomende um rapaz

que eu não queria para mim?

JOÃO - O senhor tem sido tão bom, tão bom, que, se não receasse

aborrecê-lo, diria que não há santo melhor do que o senhor. E seria mau

para Joanico? É impossível! Tenha dó dele, perdoe-lhe, salve-o!

SR. ABEL - Escuta, meu rapaz, por ti, pela amizade que te dedico,

farei o que pedes, mas.

JOÃO (juntando as mãos) - Sério? Oh! senhor! Eu não digo nada, mas

veja o que lhe diz o meu coração!

SR. ABEL (sorrindo) - Vejo e agradeço. Mas, entendamo-nos. Para o

colocar, é preciso que eu saiba tudo. Fala-me francamente, como a um

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amigo que não queres enganar. Responde apenas às perguntas que te vou

fazer. Julga-lo honesto?

JOÃO (hesitando e baixando os olhos) - Não, senhor.

SR. ABEL (sorrindo) - Um. Julga-lo activo, trabalhador?

JOÃO (da mesma maneira) - Não, senhor.

SR. ABEL - Dois. Julga-lo religioso?

JOÃO - Não, senhor.

SR. ABEL - Três. Julga-lo prestável?

JOÃO - Não, senhor.

SR. ABEL - Quatro. Julga-lo sincero, leal?

JOÃO - Não, senhor.

SR. ABEL - Julga-lo bom companheiro, com bom feitio?

JOÃO - Não, senhor.

SR. ABEL - Julga-lo asseado, bem comportado, inteligente?

JOÃO - Não, senhor.

O Sr. Abel pôs-se a rir com tanta vontade, que João não pôde deixar

de rir também. Quando lhe passou o acesso de riso, o Sr. Abel continuou:

- Meu pobre rapaz: que queres tu que eu faça de semelhante garoto?

Não te assustes, colocá-lo-ei. Mas, que hei-de eu fazer? A quem e como

hei-de pedir que tome ao seu serviço um rapaz que, além de ladrão, é

mentiroso, ateu, resmungão, desenxabido, malcriado, porco,

desordenado, estúpido e não sei que mais ainda? Apre! Que tarefa tu me

dás! Que favor absurdo me pedes! É estúpido de todo! Não sei o que hei-

de fazer!

E o Sr. Abel continuou a rir. João começou a inquietar-se: reconhecia

que o seu pedido era absurdo. Receou ter abusado da bondade do Sr.

Abel.

- Perdoe-me, Sr. Abel - disse em tom suplicante - não faça caso!

Reconheço que lhe pedi uma coisa impossível! Mas aquele pobre Joanico

inspira-me tanta compaixão! Quanto pior é, mais eu o lastimo.

SR. ABEL - E tens razão, meu filho. Os maus são dignos de lástima.

Não julgues que me aborreceste. Compreendo muito bem o teu

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pensamento. . . É. . . quem sabe? Talvez eu o possa regenerar, fazer-lhe

bem.

JOÃO - Se o conseguir, como Deus o abençoará!

SR. ABEL (rindo) - E como tu me olharás! Melhor ainda do que me

olhas agora. A propósito: a tua colocação está arranjada. Vais para casa

dos meus amigos Grignan. Pergunta ao Simão se lhe agrada que vás para

lá. É o teu irmão mais velho, o chefe da tua familia. É ele que deve

decidir. E agora, que os nossos negócios particulares estão arrumados,

vou tratar dos meus. . . e dos do Joanico ladrão, mentiroso, etc. Ah Ah Ah!

E foi-se embora, sempre a rir.

João contou ao irmão o que o Sr. Abel prometera arranjar para o

Joanico, e o que arranjara para ele, a não ser que o Simão discordasse.

SIMÃO - Nessas condições, e visto que disseste tudo ao Sr. Abel, não

há inconveniente em que ele coloque o Joanico, será uma grande vitória.

E pelo que te diz respeito, gostaria que esperasses até que se fixasse a

data do meu casamento, e o sr. Métis encontrasse empregados capazes

que nos substituam.

JOÃO - Como queiras. Eu sinto-me mais feliz junto de ti do que de

qualquer outra pessoa, e dessa maneira, mais tempo estaremos um ao pé

do outro.

Quando o Sr. Abel entrou no seu gabinete de trabalho, encontrou lá

o seu amigo Caim, o qual reparou na boa disposição do pintor.

SR. CAIM - Que viste tu hoje para estares assim tão alegre? Pareces

o riso em pessoa!

SR. ABEL - Ah Ah Ah! Adivinhaste. Ri no café, ri na rua, rio agora, e

rirei sempre que pensar em tal coisa! Ora imagina que, cedendo aos

pedidos do meu amigo João, me comprometi. . . sim, comprometi a

colocar como criado um rapaz que, além de ladrão, é mentiroso, porco,

desenxabido, etc.

SR. CAIM (rindo) - Todas as qualidades juntas, pelo que vejo. E esse

criado ladrão, mentiroso, etc. , quem vem a ser? Como se chama?

SR. ABEL - Joanico, o Joanico da minha especial antipatia.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

SR. CAIM - E para quem reservas esse tesouro?

SR. ABEL - Palavra, que não sei! Tens de me ajudar a cumprir a

minha promessa.

SR. CAIM - Da melhor vontade! Sou como tu, gosto do que é

extravagante! E não vejo nada mais original do que a gente interessar-se

por um Joanico.

SR. ABEL - Bem! Vou trabalhar! E tu, enquanto me vês pintar,

procura uma ideia, mas que seja boa. Despacha-te, para eu amanhã já

poder dar a resposta ao João.

SR. CAIM - Não tens que esperar. Já pensei num maroto que nos

dará a solução.

No dia seguinte, Abel chegou ao café e disse:

- João, traz o almoço depressa, que eu conto-te o que fiz.

O João apressou-se a trazer o almoço e ficou em frente do Sr. Abel,

esperando com impaciência que ele falasse. Não esperou muito.

SR. ABEL - Pois bem, meu amigo, já tenho uma colocação para o

Joanico.

JOÃO - Já? Como o senhor é bom!

Abel olhou-o e sorriu.

SR. ABEL - É um lugar muito bom. Gente muito rica, que paga bem,

que não é má. O Joanico será bem alimentado, bem vestido e bem pago.

Já vês que fica muito bem.

JOÃO - E será bem tratado?

SR. ABEL - Palavra que não sei. Isso depende dele.

JOÃO - O senhor era capaz de me mandar para lá?

SR. ABEL - Não! Tu, não! Nunca! Mais depressa te mandava para a

tua aldeia.

JOÃO - Mas, então, acha que o Joanico fica lá muito mal?

SR. ABEL- O Joanico fica lá muito bem! O Joanico é mau, ladrão,

mentiroso, etc., e uma casa honesta e sossegada não lhe convinha. Não

estava lá mais que dois dias. A ti, meu rapaz, coloco-te numa excelente

casa, com bons patrões, caridosos, que sabem que todos os homens são

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

irmãos e que os tratam como tais. Ficarás sob as ordens de um criado de

quarto, exemplar. Amanhã venho buscar-te para ires a casa dos teus

futuros patrões. Veste-te como deve ser.

JOÃO - Sim, senhor. Estarei pronto.

Quando o Sr. Abel se foi embora, João, sempre tão alegre, sentou-se

tristemente numa das cadeiras que rodeavam as mesas. Simão entrou e,

vendo-o sério e imóvel, aproximou-se dele.

SIMÃO - Estás tão triste!

JOÃO - O Sr. Abel leva-me amanhã a casa dos meus futuros patrões,

e depois já não estou contigo.

SIMÃO - Mas vês-me muitas vezes, sobretudo depois de eu me casar;

a minha nova vida deixa-me mais livre.

João apertou-lhe a mão, procurou recuperar a alegria e acabou por o

conseguir.

O Sr. Abel, quando saiu do café, foi ao merceeiro. Encontrou Joanico

sozinho na loja, a comer açúcar.

SR. ABEL - Anda cá, maroto! A pedido do João, arranjei-te um lugar,

um bom lugar, muito melhor do que tu mereces. Amanhã, pelo meio-dia,

vais à Rua de Penthièvre, nº 28. Sobes ao primeiro andar, perguntas pelo

Sr. Boissec, mordomo do Sr. Conde de Pufières, e dizes-lhe que vais de

mando do Sr. Caim. Já estão à tua espera e sabem ao que vais. Lá,

saberás o resto.

JOANICO - Muito obrigado, meu senhor. Estou-lhe muito grato.

SR. ABEL - Bem, bem. O que fiz não foi por ti, foi pelo João. Vai

chamar Pontois.

JOANICO (humildemente) - Sim, meu senhor. Agradeço- lhe muito,

meu senhor. Eu não sou o que o senhor julga. O Simão e o João,

naturalmente, disseram-lhe muito mal de mim.

SR. ABEL (vivamente) - Cala-te! Nem mais uma palavra!

Joanico apressou-se a sair.

Ingrato - disse Abel consigo mesmo. - Quando João lhe presta um

serviço que mais ninguém lhe prestaria, atreve-se a acusá-lo! Se não

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

fosse a promessa que fiz ao João, anulava o negócio com o Caim. Ora o

maroto! O velhaco!

SR. PONTOIS - Que quer?

SR. ABEL - Quero-lhe falar a respeito do rapaz a quem chamam

Joanico. O senhor não terá que o aturar mais. Eu livro-o dele. Mande-o

amanhã aonde eu lhe disse que fosse. É preciso que ele vá, ouve? É

preciso. Faltam- lhe oito dias para acabar o mês. Aqui tem a

indemnização.

Atirou para cima do balcão uma moeda de vinte francos e saiu,

deixando Pontois estupefacto.

2

2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.

Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

João em casa do menino Rogério

O Sr. Abel veio almoçar ao café. Como de costume, João sorriu-lhe,

mas o seu sorriso era triste. Olhou-o, mas os seus olhos estavam húmidos.

SR. ABEL - Coragem, rapaz! Bem vejo o que te aflige: é deixares o

teu irmão. Mas tu continuas perto dele, e hás-de vê-lo muitas vezes. De

qualquer maneira tinhas de o deixar, quando ele fosse para a loja do

sogro.

JOÃO - É verdade! Isso já eu tenho pensado muitas vezes. Mas. . .

gosto muito do Simão. É meu irmão. . . E tem sido tão bom para mim!

Continuarei a vê-lo, é verdade, mas já não é a mesma coisa. . . E ao

senhor, também o hei-de ver, sem dúvida, mas não todos os dias, como o

via aqui. E aqui podia dizer-lhe tudo, confiar-lhe todas as minhas alegrias,

todas as minhas inquietações.

SR. ABEL - Pobre rapaz! Então tu gostas muito de mim?

JOÃO - Se gosto! Se gosto! Como de um pai! Como de um benfeitor!

João não disse mais nada. O Sr. Abel acabou de almoçar, em silêncio.

Levantou-se e procurou Simão.

- Simão - disse-lhe ele - vi ontem o Sr. Amédée. Ele consente que o

teu casamento se realize para a Quaresma. E, entretanto, vais lá para o

estabelecimento, a fim de te pores a par dos negócios. De amanhã em

diante ficas sendo hóspede do Sr. Amédée. O Sr. Métis já deu licença

para que saias assim de repente. Até à vista, Simão! E tu, João, vem

comigo e tem coragem! Hás-de gostar muito de estar em casa da Sra

Grignan.

JOÃO - Não ponho dúvida. Não é isso que me inquieta, mas sim o que

lhe disse.

SR. ABEL - Sim, meu amigo, bem sei. Mas o que se passa contigo,

passa-se com toda a gente. Todos nós temos de nos separar de pessoas

que estimamos.

Foram andando e conversando, até que chegaram a um belo palácio

da Avenida Gabriel.

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SR. ABEL - Aqui tens a tua nova casa. Vou apresentar-te aos teus

patrões.

O Sr. Abel e João subiram a escada, entraram primeiro numa sala, e

depois noutra onde a dona da casa estava sentada a uma secretária a

escrever.

- É o senhor, meu caro Abel! - disse ela, levantando-se. - E esse rapaz

é o seu amigo João, sem dúvida. Veja como eu o conheço, João. . . parece

assustado! O Sr. Abel deve ter-lhe dito que será bem tratado em minha

casa.

JOÃO - O Sr. Abel disse-me que V. Ex. a é muito boa, minha senhora.

Que todos aqui são muito bons e que há um menino muito doente, que é

um santinho.

A Sra Grignan estendeu as mãos ao Sr. Abel e disse:

- Obrigada, meu amigo, por ter falado assim do meu pobre Rogério.

Ele está ansioso por conhecê-lo, João. O Sr. Abel falou-lhe em si.

JOÃO - Também eu gostava muito de o ver, minha senhora.

SRA GRIGNAN - Pois bem, siga-me. Venha também, Abel. O Rogério

fica sempre muito contente quando o vê.

A Sra Grignan abriu uma porta e fê-los entrar num quarto onde

Rogério estava deitado. Mostrava um rostozinho pálido e magro, as mãos

e os braços não tinham senão a pele e o osso. Mal podia voltar a cabeça

no travesseiro, tão enfraquecido estava pelo sofrimento. Quando os viu

entrar, um sorriso doce e amável animou-lhe um instante a expressão.

- Meu querido Sr. Abel - disse em voz débil.

- Como é bom em me vir visitar!

SR. ABEL - Como te sentes, meu filho?

ROGÉRIO - Sofro muito desde ontem, mas não me lamento. Ofereço

a Deus o meu sofrimento e Ele ajuda-me.

João, admirado, enternecido, tinha os olhos cheios de lágrimas.

Rogério avistou-o e observou-o atentamente.

ROGÉRIO - Quem é esse rapaz? Parece-me boa pessoa.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

SR. ABEL - É o meu amigo João, de quem já te falei, Rogeriozinho.

Ele é muito bom, adivinhaste.

ROGÉRIO - É religioso?

SR. ABEL - Muito, meu amiguinho. Se assim não fosse, não seria

bom.

ROGÉRIO - É verdade. . . João, eu queria vê-lo de mais perto.

João aproximou-se e pôs-se de joelhos junto da cama do pobre

doentinho.

ROGÉRIO - Gosto muito de o ver, João. Sinto que gostarei de si, que

é, como eu, filho de Deus.

João beijou-lhe a mão e não pôde reter uma lágrima.

ROGÉRIO - É por minha causa que está triste, João? Eu não sou

infeliz. Sei que vou morrer, mas morrer não é uma desgraça. Sofro tanto!

E há tanto tempo! Irei para junto de Deus e de Nossa Senhora. O papá, a

mamã e a minha irmã, irão um dia ter comigo. E tu também, João. Eu já

gosto de ti. . . Oh! meu Deus! Que dor! Tanto melhor, meu Deus, é por

Vós! Mas dói tanto! Dai-me coragem, meu Deus! Ajudai-me! Oh, meu

Deus!

Deixou caír a cabeça no travesseiro. Soltava gemidos abafados e um

suor frio inundava-lhe o rosto.

A mãe enxugou-lhe o suor que lhe escorria pela cara e pelo pescoço

e deu-lhe sais a cheirar. Quando a crise acalmou, Rogério pareceu

inquieto.

- Mamã - disse com voz débil - receio ter-me lastimado de mais.

Parece-lhe que terei ofendido Nosso Senhor?

SR. A GRIGNAN - Não, meu querido filho. Tens aceitado tudo com a

resignação de um bom cristão. Está tranquilo. Descansa.

Rogeriozinho beijou um crucifixo que tinha ao pescoço.

ROGÉRIO - Estou muito fatigado, mamã. Diga ao João que venha

amanhã. Ele depois fica ao pé de mim, e a mamã já pode descansar.

Adeus, João, pede a Deus por mim. . . Meu bom Sr. Abel, deixe-se estar

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

aqui um bocadinho, para a mamã descansar. Fique a conversar com o

papá.

SR. ABEL - Fico, sim, meu filho. Minha querida senhora, tenha a

bondade de apresentar o João ao mordomo. Entrego- lho. Vai, João.

Bercuss te dirá o que tens a fazer. E até amanhã, no café, pela última vez.

Antes de sair, João beijou a mão descarnada da pobre criança, que

tão profundamente o tinha impressionado e enternecido. Rogério sorriu,

mas não teve forças nem para falar, nem para se mover.

João saiu com a Sr.a Grignan que, ao chegar à sala, teve um ataque

de choro. João via-a chorar com tristeza, mas não ousou falar.

- Pobre João, entra numa casa de sofrimento!disse a Sr. a Grignan.

JOÃO - Para mim é uma casa abençoada, minha senhora.

SRA GRlGNAN - Vem, João: vou levar-te ao Bercuss, que é uma

excelente pessoa.

Chamou Bercuss e apresentou-lhe João.

SRA GRIGNAN - Ponha este rapaz ao corrente da vida que levará em

nossa casa, Bercuss. Ele é bom e piedoso. Chorou e rezou junto do nosso

pobre menino.

Bercuss apertou a mão de João e levou-o, dizendo:

- O Sr. Abel falou-me muitas vezes em ti, João. Que é que sabes

fazer?

JOÃO - Eu não sei nada, senhor. Nunca estive senão num café.

BERCUSS (sorrindo) - Já é alguma coisa! E, em qualquer caso, és

modesto, o que dá boa disposição para aprender as coisas e fazê-las bem.

JOÃO - Muito obrigado pelo incitamento que me dá. Hei-de obedecer-

lhe e esforçar-me por fazer tudo o que me mandar.

BERCUSS - Muito bem, meu amigo, muito bem. E diz-me, vais à

missa com regularidade?

JOÃO - No café não podia ir lá senão aos domingos, de madrugada. E

depois, à tarde, eu e o Simão íamos à igreja, cada um por sua vez.

BERCUSS - E rezas de manhã e à noite?

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOÃO - Oh! Então não havia de rezar? O Simão e eu rezávamos

sempre juntos. Depois o Simão abençoava-me em nome da mamã, e eu

abraçava-o. Era sempre o princípio e o fim dos nossos dias.

BERCUSS - Quem é o Simão?

JOÃO - É o meu irmão mais velho. É um óptimo irmão! O Sr. Abel

tem sido tão bom para ele. Foi quem lhe arranjou o casamento e lhe deu

tudo.

BERCUSS - Gostas muito do Sr. Abel?

JOÃO - Se gosto!

E os olhos de João brilharam.

JOÃO - Gosto muito dele! Era capaz de me deixar morrer por ele! O

dia em que me pudesse sacrificar por ele, seria o mais feliz da minha

vida! Se soubesse tudo o que tem feito por mim e pelo Simão, o senhor

não me perguntava se gosto dele! E quer crer que o Sr. Abel é muito meu

amigo! Sim, senhor, apesar de eu ser um pobre rapaz sem préstimo para

nada, que não pode nem nunca poderá fazer nada por ele, tem a bondade

de gostar de mim e aprecia a minha amizade. Querido Sr. Abel! Se eu ao

menos pudesse mostrar-lhe o que sinto! Mas não posso. Não encontro as

palavras necessárias. Além disso não me atrevo!

Bercuss cada vez estava mais contente. Quando João se foi embora, o

mordomo repetiu à Sra Grignan todas as suas palavras. Ela ficou

satisfeita e, por sua vez, contou-as a Abel.

No dia seguinte, quando Abel chegou ao café, Simão e João

apressaram-se a servi-lo pela última vez. Simão mostrava-se contente

com a sorte. Mas o pobre João parecia um condenado à morte. O seu

olhar era igualmente mortificado, quer se dirigisse ao Sr. Abel, quer a

Simão. Abel mostrava-se grave, quase triste.

O almoço não levou muito tempo.

- Adeus, meus bons amigos - disse Abel, levantando-se. - Olha, Simão:

serei uma das testemunhas de casamento. Dou-te antecipadamente o meu

presente de núpcias. E entregou-lhe uma pasta.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

- E a ti, meu rapaz - acrescentou ele, voltando-se para João e

agarrando-lhe as mãos - não te digo adeus. Ainda hoje te tornarei a ver;

até logo. E cuida bem do Rogeriozinho, porque, em parte, é por causa

dele que vais para casa dos Srs. Grignan.

O Sr. Abel saudou os dois rapazes com um gesto e um sorriso, e saiu.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Separação dos dois irmãos

Simão e João subiram ao seu quarto, pela última vez. Cada um fez

um embrulho das suas coisas. Simão abriu a pasta que lhe dera o Sr.

Abel. Continha dois mil francos em obrigações do Caminho de Ferro de

Leste, mais uma nota de mil francos, e ainda a aliança de casamento e a

medalha que Simão, segundo o uso, devia dar a sua mulher.

- É possível? Que bondade! - exclamou Simão.

Os dois irmãos despediram-se do Sr. Métis, que deu a cada qual uma

gratificação de vinte francos e em seguida dos companheiros, que lhes

manifestaram o seu pesar de os ver partir.

Quando chegaram a casa do Sr. Amédée, foram recebidos com

grande alegria.

- Devia ter-me prevenido a respeito dos móveis - disse a Sra Amédée.

- Não sabia o que havia comprado, e por isso tinha posto no quarto os

meus. Não são bonitos, mas serviam. Tive de tirar as minhas velharias

para lá pôr a sua linda mobília. Os estofadores estiveram a trabalhar

desde manhãzinha. Cortinados, reposteiros, colocaram tudo num

instante. Os móveis são encantadores e ficaram lá muito bem. O futuro

quarto de Aimée está mesmo muito elegante. Não tenho nada a censurar-

lhe.

Simão estava estupefacto. A surpresa não lhe permitia interromper a

sua futura sogra.

SIMÃO - Os móveis! O quarto de Aimée!disse ele, finalmente. - Mas

eu não comprei nada; não sei o que isso quer dizer!

JOÃO - Como, Simão, não adivinhas? O coração diz- me que foi o Sr.

Abel. Sempre o Sr. Abel! Vamos depressa ver o que há nos teus quartos.

Estou contente, por ti e por Aimée.

Subiram ao primeiro andar. Simão e João encontraram efectivamente

uma mobilia completa em cada quarto. Os móveis, simples e bonitos,

eram de acaju, com estofos estampados!

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

No quarto de Simão havia uma pequena biblioteca com uns vinte

volumes encadernados, todos interessantes e úteis.

SRA AMÉDÉE - Mandei pôr o armário e a roupa no quarto de Aimée,

porque ela é que tem de tratar dessas coisas e servir-se delas. E quanto à

sua mala, Simão, não a abri, porque pensei que gostaria de arrumar as

suas roupas.

SIMÃO - A minha mala! As minhas roupas! Mas eu não tenho mala

nenhuma, e as minhas coisas estão no embrulho que trouxe.

JOÃO - Ainda o Sr. Abel! Ele é a nossa Providência!

João correu para a mala e abriu-a. Estava cheia de roupas brancas,

fatos, calçado e de tudo o mais de que dispõe uma pessoa abastada. Os

olhos de Simão encheram-se de lágrimas.

- É muito bom - disse ele - muito bom. E vejam - acrescentou

mostrando a pasta e o que ela continha - vejam o que ele me deu. Eu não

tinha nada, porque mandava a minha mãe tudo o que ganhava. Esta nota

de mil francos é a prenda de núpcias de Aimée, para ela comprar o que

entender e lhe agradar.

O Sr e a Sra Amédée estavam encantados. Importava-lhes pouco

donde provinham as riquezas, desde que sua filha as gozasse.

Apressaram-se a descer para contar a Aimée as generosidades do Sr.

Abel. Os olhos da Sra Amédée brilhavam de felicidade.

Simão e João, ao ficarem sós, abraçaram-se longamente. Ambos

tinham lágrimas nos olhos. O seu silêncio, melhor que todas as palavras,

exprimia a alegria e o reconhecimento que os invadia.

- Vamos arrumar os teus fatos - disse por fim João - e depois deixo-te,

para ir também para a minha nova casa. Ai! meu bom e querido irmão! Aí

é que está a minha mágoa. Cada um de nós vai para seu lado. Nunca mais

viveremos juntos! Estaremos sempre, sempre separados, no futuro!

- Mas unidos pelo coração! Estes dois anos que passámos juntos e

tão intimamente ligados, deixaram-nos uma encantadora e feliz

recordação. Nunca fui tão feliz como no nosso cubículo do quinto andar,

onde nos faltava tudo, é verdade, mas onde tínhamos tudo o que dá a

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

felicidade: a consciência tranquila e a nossa ternura fraternal. Tivemos

sempre esses dois elementos da felicidade. Daqui em diante ver-nos-emos

menos, é certo, mas continuaremos a estimar-nos e pensaremos um no

outro. E agora, continuemos a nossa tarefa.

João abraçou ainda mais uma vez Simão, e começaram a arrumar as

roupas na cómoda e a pendurar os fatos nos cabides.

No fundo da mala, Simão encontrou ainda um crucifixo, uma

imagenzinha da Virgem e um pequeno embrulho. Abriu-o e viu dois belos

livros (os Evangelhos e a Imitação) e uma caixinha com um lindo relógio

de algibeira e a respectiva corrente de ouro, do mais fino gosto.

JOÃO - Vê como ele nos estima! Pode haver um homem melhor do

que o meu querido Sr. Abel? Não me parece. É impossível!

A mala estava vazia, Simão achava-se fornecido de tudo para alguns

anos. Até o calçado e os artigos de vestuário, não tinham sido esquecidos.

Começava a fazer-se tarde. Eram horas de João ir para casa dos seus

novos patrões.

E saiu. João caminhava depressa e procurava distrair-se. Ao passar

pela mercearia de Pontois, esbarrou com Joanico.

JOÃO - Ah! Aonde vais tão depressa, Joanico?

JOANICO - Vou para casa do Sr. Conde de Tufières, vou para lá

servir. É um magnífico lugar! Gente muito rica! Vou ganhar quatrocentos

francos de entrada. Vestido como um príncipe, alimentado como um rei!

Quase nada que fazer, e ainda por cima gratificações.

JOÃO - Que gratificações podes tu ter?

JOANICO - O Sr. Boissec, que é intendente, já me explicou. Se eu me

portar bem recebo gratificações. Eu depois te conto, quando as receber e

souber ao certo como isso é. E tu, onde vais tão bem-posto?

JOÃO - Eu vou também para a minha casa nova, que o nosso querido

Sr. Abel me arranjou.

JOANICO - E que género de casa é essa?

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOÃO - É uma casa excelente. Há um menino de dez anos muito

doente. É um verdadeiro anjo. E os pobres pais, tão resignados e tão

tristes! Mas tão piedosos! É uma dor tão doce, tão boa!

JOANICO (com ar zombeteiro) - Isso deve ser divertido! Bonito

presente te deu o teu querido benfeitor.

JOÃO - É verdade, um belo presente! É preciso que me estime muito

para me achar digno de estar naquela casa. Pobre Joanico, tu não

compreendes isto?

JOANICO - Deixa-me com a tua piedade! Os teus pobres Joanicos

aborrecem-me até mais não. Enquanto tu gemeres e rezares como um

imbecil, eu vou divertir-me como um rei, comer, beber e dormir.

JOÃO - E depois?

JOANICO - Depois? Pois bem. . . depois. . . recomeço.

JOÃO - E depois?

JOANICO - Depois. . . depois. . . continuo.

JOÃO - E depois?

JOANICO - Ora! Deixa-me em paz com os teus depois.

JOÃO - E depois morrerás, Joanico. E depois de morreres, haverá um

depois e um sempre!

Joanico lançou a João um olhar de cólera e desprezo e passou para o

outro passeio, para não continuar a conversa, que tanto lhe desagradava.

João chegou a casa dos Srs. Grignan. Bercuss recebeu-o, dizendo:

- Ah! És tu, meu amigo? Estou muito contente por entrares para a

nossa casa, e vamos começar imediatamente as nossas funções. O Sr.

Abel janta cá, e tu vais limpar os pratos e os copos enquanto preparo a

sobremesa e o vinho.

JOÃO - Como vai o menino Rogério? Passou a noite bem?

BERCUSS - Não. Má, como todas as noites de há quinze meses para

cá. Sofre constantemente. O pobre menino não tem sono. O pai e a mãe

estão esgotados.

Ouviu-se tocar uma campainha.

BERCUSS - Vai lá, João, vai lá. Se largo isto agora, estraga-se tudo.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

João correu à sala e encontrou a Sra Grignan.

- É o João? Eu toquei exactamente para saber se já tinha vindo. O

meu pobre Rogério reclama-o. Ele, que nunca pede nada, e que parece

nada desejar, pediu-me que o mandasse lá logo que chegasse. Vá!

João entrou no quarto de Rogério.

O ligeiro ruído que a porta fez atraiu a atenção do doentinho. Abriu

os olhos. Um leve sorriso e uma ligeira vermelhidão animaram-lhe o

rosto. Fez sinal a João para se aproximar e estendeu-lhe a mão. João

apertou-a docemente, pousou nela os lábios e olhou o rosto tão

martirizado, tão contraído, da pobre criança.

Rogério, por seu lado, examinava João.

- Tens pena de mim, João? Não quero crer que sou infeliz. Eu sofro, é

verdade. Sofro muito, mas o bom Jesus dá-me coragem para sofrer. . .

Morrerei breve e serei muito, muito feliz junto de Deus. . . Pedirei por ti,

João, quando estiver lá em cima.

Rogério calou-se e fechou os olhos. Não podia falar mais, tão grandes

eram a sua fraqueza e o seu sofrimento. João quis levantar-se, mas

Rogério sorriu ligeiramente sem abrir os olhos e reteve a mão que

apertava.

- Rezemos - disse ele, baixinho.

JOÃO - Pois sim! Rezemos, para que Deus lhe restitua a saúde.

ROGÉRIO - Não! Rezemos para que seja feita a Sua vontade, e Ele

faça de mim o que quiser. . .

O Sr. Abel chegou pouco depois. João aproveitou o ensejo de estar só

com ele para lhe dizer os seus novos motivos de reconhecimento.

Ajoelhou para lhe limpar as botas e, nessa posição humilde e grata, disse-

lhe palavras de ternura e dedicação.

SR. ABEL - Cala-te, cala-te, meu rapaz! Se alguém te ouvisse, havia

de julgar que eu sou realmente o teu salvador, o teu benfeitor. Ora eu

quero ser o teu amigo e protector, mais nada. Aí vem Bercuss. . . Silêncio.

. . Olá, Bercuss! Onde é o quarto do João!

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

BERCUSS - Mandei levar a mala dele para o quarto contíguo ao meu,

senhor.

João olhou o Sr. Abel com surpresa e repetiu:

- A minha mala? A minha mala?

SR. ABEL - Pois claro, a tua mala, palerma! Onde querias tu que a

pusessem senão no teu quarto? Foi o que se passou com o Simão, mudou

de casa e a mala dele foi para o seu novo quarto. Contigo, deu-se o

mesmo.

Tudo isto foi dito com ar significativo, com um sorriso benévolo, um

pouco malicioso, e alguns sinais que queriam dizer: - Não me descubras,

cala-te.

BERCUSS - Vou ver se a senhora está na sala.

- Senhor! - disse João logo que ficaram sós.

- Caluda! Bercuss vem aí outra vez. Não me descubras! Então

julgavas que não fazia por ti o que fiz por Simão? Por ti, meu amigo, meu

confidente? - acrescentou ele, rindo.

À mesa, João viu, pela primeira vez, a menina Susana Grignan, que

era graciosa, amável, encantadora. Toda a familia era tão unida, tão boa,

que João sentiu-se logo à vontade, como se fizesse parte dela.

Pela primeira vez, teve ocasião de apreciar o espírito alegre, vivo,

encantador, do Sr. Abel. Admirou-o ainda mais. Não lhe tirava os olhos de

cima, e várias vezes esse mudo entusiasmo excitou o riso benévolo dos

convivas.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

João aperfeiçoa-se

Os companheiros de João eram todos criados bons e honestos.

Bercuss era estimado e respeitado não só por eles mas também pelas

pessoas que tinham relações íntimas com os patrões. Ele encarregou-se

de completar a educação de João. Incutiu-lhe hábitos que ele até então

nunca tivera.

O pobre Rogeriozinho ajudava, sem o saber, o aperfeiçoamento de

João. Mandava-o chamar muitas vezes e testemunhava-lhe amizade. Os

seus sofrimentos, suportados com tanta doçura, paciência e coragem,

impressionavam o coração sensível de João. As visitas quotidianas do Sr.

Abel, os seus bons conselhos, a sua bondade constante, desenvolveram

também o espírito e as ideias de João. Compreendeu melhor a sua

posição, relativamente aos patrões.

Pouco a pouco, os vestígios dos costumes aldeãos e simplórios

desapareceram. Com a experiência e a idade, tornou-se mais senhor dos

seus sentimentos. Sentia da mesma maneira, mas não se expandia tanto.

Aprendeu a calar o que a desigualdade de condições podia tornar ridículo

ou inconveniente. Não tornou a beijar as mãos do Sr. Abel, não se pôs

mais de joelhos, olhava-o menos frequentemente e menos

afectuosamente, mas no coração, tinha o mesmo ardor, a mesma

dedicação, a mesma ternura. João sentia-se feliz rodeado por

companheiros bons, ao serviço de patrões excelentes. Encontrava à sua

volta amizade, bondade, solicitude, enfim, a verdadeira fraternidade, que

é a caridade dos cristãos. Bem longe de lhe recusarem autorização para ir

ver Simão, provocavam o ensejo dos dois irmãos se encontrarem. Bercuss

preferia trabalhar pelos dois, para João poder ter uma manhã ou uma

tarde livres. Nunca lhe negavam autorização para ir à igreja, ou tratar de

assuntos pessoais, ou ver alguma coisa interessante, ou visitar os pobres.

Se adoecia, os companheiros tratavam-no como a um irmão. Os

patrões vigiavam para que nada lhe faltasse, e o Sr. Abel vinha informar-

se do seu estado e distraí-lo com o seu espírito alegre e amável.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

A única mágoa de João era o estado, sempre alarmante e doloroso do

pobre Rogeriozinho, que estimava com sincero afecto.

- Peça por mim, menino Rogério, quando estiver no Céu - dizia-lhe

ele muitas vezes.

- Como pediria por um irmão - respondia Rogério com a sua voz

débil.

As notícias de Helena eram óptimas, ela gostava muito de estar em

Sant'Ana. Todos lhe queriam bem.

Kersac era mais um amigo do que um patrão para ela. Nunca lhe

dirigia censuras, sempre agradecimentos e elogios. A Mariazinha

tornava-se cada vez mais genial. Passava os dias na companhia das boas

freirinhas de Sant'Ana: trabalhava muito. Começava já a tornar-se

prestável na herdade. Quando Kersac lhe mandava fazer qualquer coisa,

Maria sentia-se muito importante e feliz. Kersac estimava-a muito e

regozijava-se com a ideia de a adoptar.

Um dia, Kersac recebeu uma carta de Simão e João. Simão

convidava-o para assistir ao seu casamento, que fora adiado para a

Páscoa, por causa da Sra Amédée ter adoecido alguns dias antes da

Quaresma. Simão pedia também a Kersac que lhe servisse de padrinho,

juntamente com o Sr. Abel, o pintor tão notável pelo seu talento como

pela sua vida exemplar e espírito encantador.

João suplicava ao seu amigo que os fosse visitar em ocasião tão

solene. Ambos lastimavam que a mãe não pudesse ir, e João pedia a

Kersac que não aumentasse o seu desgosto recusando ser padrinho de

Simão. E aproveitava o ensejo para contar uma quantidade de coisas e

pormenores interessantes.

- Tome, Helena - disse Kersac. - Leia esta carta.

Helena leu com grande interesse.

- E então - disse ela - que é que faz?

- Vou - declarou Kersac. - Não haverá prejuízo, apesar de estarmos

na altura da sementeira.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Não me demoro mais de três ou quatro dias. Vou escrever para saber

o dia do casamento e o hotel onde me hei-de hospedar para ficar perto

deles. Estamos na Primavera, já faz bom tempo. Será uma viagem muito

agradável, sob todos os aspectos. Gostaria muito de voltar a ver o nosso

João. Hei-de ver se consigo trazê-lo, para a senhora o ver também.

Helena corou de alegria e exclamou:

- Trazer-me o João? Ah! Se pudesse. . .

KERSAC - E porque não hei-de poder?

HELENA - Porque ele tem as suas obrigações. E bem sabe como é

aborrecida a ausência de um criado.

KERSAC - Em Paris, não é como cá. Têm muitos criados, revezam-se

uns aos outros! Não se dá pela saída de um só.

HELENA - Parece-me que isso depende das casas. Na da Sra

Grignan, onde está o João, cada um tem as suas obrigações. É uma casa

como deve ser, uma verdadeira casa de Deus, diz o João.

KERSAC - É possível, mas sempre vou tentar. Há perto de três anos

que não vê o seu filho. É muito justo que lho cedam por alguns dias.

Helena agradeceu, mas sem acreditar muito na felicidade que o bom

Kersac lhe prometia.

Dois dias depois Kersac recebeu resposta à sua carta. O casamento

era no dia um de Maio, e estava-se já nos últimos dias de Abril. Não havia

tempo a perder.

Helena apressou-se a arranjar- lhe o fato melhor, as camisas mais

finas, as botas mais luzidias. E meteu-lhe cem francos na bolsinha do

dinheiro, julgando que era mais que o suficiente para as suas despesas.

KERSAC (rindo) - Obrigado, minha boa Helena. Foi generosa. Quanto

me deu para me divertir?

HELENA - Mais do que o preciso, senhor. Cem francos.

KERSAC (rindo mais alto) - Cem francos! Pobre mulher! Cem

francos! Isso não chega nem para a viagem, se trouxer o João.

HELENA - Ora, a sua despesa não será grande! Não gasta nada com

a comida! Quando se vai a uma boda, come- se e bebe-se para oito dias!

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

KERSAC - E para dormir? E para comer enquanto não chega o dia do

casamento? Eu não quero pedir esmolas como um mendigo! E a minha

prenda? Bem compreende que não deixo de dar ao noivo uma pequena

lembrança! Não, Helena. Kersac é mais generoso do que isso. Dê-me a

chave do cofre e venha ver quanto levo.

Helena seguiu-o, recomendando-lhe que fosse económico.

- Não se deixe levar muito longe pela sua generosidade. Estes três

dias vão-lhe ficar mais caros do que seis meses cá em casa!

KERSAC (rindo) - Bem, bem! Eu sei o que faço. Bem sabe que sou

económico. Mas, quando chega a ocasião, não gosto de ser sovina.

HELENA (sorrindo) - Económico, económico excepto quando se trata

de dar.

KERSAC - Ah! A esse respeito, bem sabe que tenho a minha máxima:

é preciso que quem tem, dê a quem não tem.

Kersac estava diante do cofre onde guardava os papéis e o dinheiro.

E, com grande assombro de Helena, tirou de lá mais quinhentos francos.

HELENA - Pelo amor de Deus, senhor! Nãn vá gastar tudo quanto

leva!

KERSAC - Espero que não. Mas. . . não tenho necessidade de me

encontrar sem vintém numa cidade como Paris. Não se sabe o que está

para acontecer: um desastre, uma doença.

HELENA - Oh! Senhor! Deus há-de protegê-lo. Espero que não lhe

acontecerá mal nenhum, e que voltará com saúde.

KERSAC - Também o espero, minha boa Helena. E agora, adeus, até

à volta. Arranje a cama para o seu rapaz. . . E abrace por mim a

Mariazita, quando ela vier da escola.

Kersac despediu-se de Helena e saltou alegremente para a carroça,

com o criado que a devia trazer.

- Oh. Se ele trouxer o Joãozinho. - exclamou Helena.

Estava cheia de esperança, apesar do que dissera a Kersac e foi logo

arranjar a cama para o João, num quarto que havia entre o dela e o de

Kersac.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Kersac em Paris

Kersac chegou a Paris, de madrugada, e meteu-se num carro, como

lhe tinha dito Jõão. Foi para o hotel da Rua de Stº Honório, escolheu um

quarto no 6º andar, comeu copiosamente, preparou-se e, seguindo as

indicações da criada, dirigiu-se ao palácio da Sra Grignan. Eram oito

horas quando lá chegou.

- Quem é que o senhor procura? - perguntou o porteiro.

KERSAC - E quem hei-de procurar senão o meu João?

PORTEIRO - Que João, senhor?

KERSAC - Como? Que João? O que está nesta casa, evidentemente!

Não conheço outro, e nenhum vale tanto como ele.

PORTEIRO - Se quer ter o incómodo de entrar, eu vou prevenir o

João. Quem devo anunciar?

KERSAC – Kersac. O seu amigo Kersac.

PORTEIRO - Faça o favor de me seguir.

KERSAC - Da melhor vontade, meu amigo.

Kersac seguiu-o passo a passo. Chegou à escada, parou.

KERSAC (olhando para todos os lados) - Mas. . . por onde hei-de

subir?

PORTEIRO - Pela escada que está na sua frente, senhor.

KERSAC- Sobre este tapete que vai por ela acima?

PORTEIRO (sorrindo) - Sim, senhor. Não há outro caminho.

KERSAC - Muito bem! Espere um bocado, o meu João não se

importa. . . E ele passa por cima disto todos os dias?

PORTEIRO (sorrindo) - Dez vezes, vinte vezes por dia, senhor.

KERSAC - Se tem algum jeito andar por cima de coisas tão boas! -

Kersac baixou-se, passou a mão pela passadeira. - É macio como veludo.

Faziam-se daqui esplêndidas mantas para cavalos, e cobertores

excelentes, de muito agasalho!

Kersac decidiu-se a pôr um pé, depois outro, em cima da bela

passadeira. Subiu lentamente, com respeito pelo lindo tecido, olhando,

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em cada degrau, se as suas botas, cheias de poeira, a teriam manchado.

O porteiro mandou-o entrar para a sala de espera e foi prevenir Bercuss.

- João vai ficar contente - disse Bercuss e chamou: - João! Depressa,

vem ver o teu amigo Kersac, que acaba de chegar.

JOÃO - O Sr. Kersac! Que alegria! Onde está ele?

Mal tinham dito estas palavras, abriu-se a porta e apareceu a cabeça

de Kersac.

- Sr. Kersac! Querido Sr. Kersac! - gritou João, correndo para ele.

- João! Meu bom rapaz! - respondeu Kersac estreitando-o nos braços

e beijando-o com todo o carinho.

- Querido Sr. Kersac! - repetiu João. - Como é bom por ter vindo, por

se ter incomodado e deixado a sua herdade! Estou tão contente por o ver!

Dê-me notícias da mamã! Se soubesse como gosto que ela esteja em sua

casa! Deve sentir-se muito feliz na sua companhia!

KERSAC - Esforço-me por isso, meu amigo. E tu? Não te fizeste nada

feio, palavra! Belo rapaz! Sabes que estás quase tão alto como eu? Tu

tens... Que idade tens?

JOÃO - Dezassete anos daqui a três meses, Sr. Kersac.

KERSAC - É isso, é isso! Eu tenho trinta e oito!

- João, deves oferecer qualquer coisa ao Sr. Kersac - disse Bercuss,

que os escutava a sorrir.

KERSAC - Muito obrigado, senhor! É muito amável! Eu comi, logo

que cheguei, um pão e uma pratada de queijo. Mas o pão de Paris não se

compara com o pão do campo. Não enche a barriga. Por mais que se

coma, o estômago fica sempre vazio.

Bercuss pôs-se a rir e pediu a Kersac que esperasse um momento.

Foi ter com o Sr. Grignan, que fazia a sua toilette.

BERCUSS - V. Ex. a dá licença que ofereça um copo de vinho ao Sr.

Kersac, o amigo do João? Acaba de chegar e parece excelente pessoa.

SR. GRIGNAN - Pois sim. Dê-lhe o que quiser.

BERCUSS- V. Ex. a permite- me que dê um feriadozito ao João, para

ele poder ir passear com o amigo?

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SR. GRIGNAN - Acho bem. Mas o Bercuss é que paga.

BERCUSS - Oh! Eu não estou muito atarefado. O porteiro dá-me uma

ajuda. E terei muito prazer em ser agradável ao João e ao Sr. Kersac.

SR. GRIGNAN - Ele tem, realmente, aspecto de boa pessoa?

BERCUSS - De excelente pessoa, senhor. É um homem enorme, com

ombros, braços e pulsos capazes de abater um boi. E apesar disso, tem ar

bonacheirão, muito risonho, enfim, um ar de bom camponês. E V. Ex. a

autoriza que ele cá fique?

SR. GRIGNAN - Pois sim, Bercuss. Pode convidá-lo, desde que ele se

demore apenas alguns dias, para dormir e comer cá em casa. É a maneira

de João o ver mais facilmente e você não se sobrecarregar com trabalho.

BERCUSS - Muito obrigado, senhor. Vou convidá-lo da parte de V.

Exa.

Bercuss retirou-se muito satisfeito, e entrou na sala, onde Kersac e

João conversavam animadamente.

BERCUSS - Sr. Kersac, o Sr. Grignan convida-o a ficar cá em casa.

João deu um pulo na cadeira.

- Obrigado, Sr. Bercuss. Bem vejo que foi o senhor que pediu ao

patrão.

KERSAC - Mas. . . diz lá, João, é ser indiscreto. . . Diz-se que em

Paris cada qual tem o seu cantinho. Não quero incomodar ninguém.

Prefiro voltar para o hotel.

JOÃO - Oh! Meu caro Sr. Kersac! Já que o Sr. Grignan dá licença. . .

Já que o bom Bercuss pediu. . .

BERCUSS - Aceite, aceite sem receio, Sr. Kersac: há mais camas do

que as necessárias. Então, está dito!

KERSAC - Está dito, fico! Vocês aqui parecem boas pessoas. Tenho

muita vontade de conhecer os patrões do João.

BERCUSS - Vê-los-á daqui a pouco, Sr. Kersac. João, que quarto

damos ao teu amigo?

JOÃO - O meu, Sr. Bercuss, peço-lhe. Assim, poderei vê-lo melhor.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

KERSAC - Também prefiro assim. Vai-me lembrar aquela noite em

que tu me trataste tão bem, João, na estalagem de Malansac. E esse

Joanico, de quem tu querias que eu gostasse? Onde está ele?

JOÃO - Está bem colocado, pelo que me disse, mas raras vezes o vejo.

KERSAC - Porquê?

JOÃO - Porque. . . porque tem ideias e gostos diferentes dos meus.

Bercuss interrompeu-os para os convidar a comer.

João, que tinha apetite, não se fez rogado. Arrastou Kersac para o

apresentar ao cozinheiro e aos outros criados. Kersac comeu segunda

vez, como se não tivesse comido ainda nada. Depois, João convidou-o a ir

ao seu quarto.

KERSAC - Ena, rapaz! Como tu estás instalado! E estes fatos são

todos teus?

JOÃO - Tudo! Tudo! Veja bem! Veja os meus fatos, a minha roupa e

estes excelentes livros. Tudo isto me deu o melhor dos homens, o mais

encantador, o mais caridoso. Já adivinhou que me refiro ao Sr. Abel.

KERSAC - Oh! Sim, esse homem que tu estimas tanto!

JOÃO - E que tanta razão tenho para estimar! Se soubesse como ele

foi e é bom para Simão e para mim! E como me dá bons conselhos! E

como tem a bondade de ser meu amigo! É isso o que me sensibiliza mais:

que ele, grande artista, rico, tão disputado, tão querido, estime um pobre

criado, um rapaz como eu!

KERSAC - Também já gosto desse Sr. Abel. E com que amizade falas

dele!

JOÃO - Não podemos deixar de ser gratos àqueles que nos estimam

quando estamos sem família!

KERSAC-A quem o dizes! Não tenho ninguém. Por isso que quero

constituir familia. Custa-me viver só.

JOÃO - Constituir familia, como?

KERSAC - Como? Casando-me! Nada mais fácil! Faço como o Simão.

JOÃO - Mas o Simão é novo e o senhor já não é. . .

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

KERSAC - Bem sei! Mas também não me vou casar com uma

rapariga de dezoito anos, como Simão. Escolho uma mulher da minha

idade, pouco mais ou menos.

JOÃO - E onde a vai descobrir?

KERSAC - Já descobri. A tua mãe!

JOÃO (surpreendido ao principio, e rindo em seguida) - A mamã! A

mamã! O senhor não pensa no que diz! A mamã tem uns trinta e quatro

anos!

KERSAC - E eu? Já tenho trinta e oito para trinta e nove. Bem vês,

João: eu preciso de alguém em quem deposite confiança para administrar

a herdade. Além disso, que seja uma pessoa boa e carinhosa, que eu

possa estimar, uma pessoa arranjada, económica, que me leve a fazer

economias. Que seja asseada, agradável, que não afugente quem vai à

herdade tratar de negócios comigo. Encontro todos estes predicados na

tua mãe. Ela parece mais nova do que é, mas isso não importa. É melhor

assim, do que se a tomassem por minha mãe. Isso desagrada-te, meu

amigo?

JOÃO - Como é que isso me podia desagradar? Pelo contrário, acho

que é uma felicidade, uma grande felicidade! Pobre mamã, que tem sido

tão infeliz! E Deus proporciona-lhe o ensejo de casar com um homem tão

excelente como o senhor! Meu caro Sr. Kersac! Nesse caso, vai ser meu

pai! Ah! Ah! Ah! Que engraçado!

KERSAC - Tu não pensavas em tal, nem eu, quando te levei na

carroça para Malansac. E queres acreditar uma coisa? Dediquei-me tanto

a ti nessa viagem, que comecei logo a estimar também a tua mãe. E a

ideia de casar com ela veio-me por tua causa, para poder tornar a ver-te,

um dia, e fazer-te feliz. Além disso, há-de haver uns três meses, pouco

mais ou menos, recebi uma carta assinada por um amigo, que me dizia:

“Se quer ser feliz, Sr. Kersac, e se é efectivamente o homem bom que eu

julgo, case com a mãe do seu amigo João, que bem o merece. Não terá de

que se arrepender.” Esta carta acabou de me decidir. Pensei no teu

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

futuro, no meu, e disse com os meus botões: “Helena será minha mulher

e João será meu filho!”

JOÃO - Obrigado, obrigado. Mil vezes obrigado. Tive realmente

muita sorte em encontrar dois homens tão bons como o senhor e o Sr.

Abel.

KERSAC - Muito gostava eu de ver o teu Sr. Abel. Já o estimo só de

te ouvir falar nele.

JOÃO - Deixe estar que lho hei-de dizer. Agora vou às minhas

obrigações. Não quero que o bom Bercuss se fatigue muito por minha

causa.

KERSAC - E eu vou contigo, não te deixo um instante. Já te olho

como se fosses meu filho. Mas não digas nada do que contei senão ao

Simão. Não quero que se riam de mim.

JOÃO - Deixe dizer só ao Sr. Abel. Costumo contar-lhe o que me diz

respeito.

KERSAC - A ele podes dizer. Até eu lho dizia, se o visse.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Kersac e o Sr. Abel travam relações

Antes de deixar o quarto, Kersac abraçou João com tal força, que o

rapaz pediu que o largasse, abafava. Desceram, a rir, e João foi pôr-se a

engraxar o calçado. Kersac imitou-o com tal ardor e conversavam com

tanta animação, que não ouviram entrar o Sr. Abel.

Este, sorridente, olhava-os havia já algum tempo, quando Kersac se

voltou.

KERSAC - Oh! Quem é que nos vem cá incomodar?

João voltou-se por sua vez, largou a escova e o calçado e correu para

o Sr. Abel.

JOÃO - Meu caro senhor, uma boa notícia! Aquele é o Sr. Kersac ele

participa-me. . . o senhor nunca seria capaz de adivinhar. . . ele participa-

me. . .

SR. ABEL - Que casa com a tua mãe, é claro!

JOÃO (admirado) - Como adivinhou?

SR. ABEL - Sabes que adivinho tudo o que te diz respeito.

JOÃO - Isso é verdade, senhor. Entendemo-nos tão bem!

Kersac estava de boca aberta, olhos arregalados, a escova numa das

mãos e uma bota na outra. O Sr. Abel caminhou para ele a rir. Kersac,

sem pensar na graxa que lhe besuntava as mãos, agarrou as do Sr. Abel e

apertou- as com força de um Hércules. O Sr. Abel, que lhe não ficava

atrás, apertou, por sua vez, as de Kersac até este soltar, inesperada

mente, um grito de dor.

KERSAC - Apre! Que pulso! Muito bem, senhor! Se é dessa têmpera,

antes o quero ter por amigo do que por inimigo. Olha lá, João, porque não

me disseste nada?

JOÃO - Porque eu não sabia. O Sr. Abel aperta-me sempre a mão

muito suavemente, sem me fazer doer. Ah meu Deus! Olhe as suas mãos,

senhor! Cheias de graxa - acrescentou João a rir.

SR. ABEL (rindo também) - É verdade! Negras como se tivesse

engraxado as minhas botas.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

KERSAC - Mil desculpas, senhor, eu é que fui o culpado. Não pensei

nisso. É que nós tínhamos acabado de falar no senhor, e então

compreende. . .

- Compreendo - disse Abel, dirigindo a João um sorriso afectuoso. - E

já que tenho as mãos negras como as vossas, vou ajudá-los a acabar a

tarefa. Vamos limpar isso tudo, como três bons amigos.

O Sr. Abel pôs um avental de Bercuss, pegou numa escova, num

sapatinho de Susana, e pôs-se a engraxar e a lustrar como um verdadeiro

engraxador. A surpresa de Kersac fazia rir o Sr. Abel, encantado com o

novo papel que escolhera.

Quando acabaram, Abel propôs descerem à cozinha para lavarem as

mãos. Foram todos três. O cozinheiro, acostumado às excentricidades do

Sr. Abel, apresentou-lhe uma bacia de água tépida e sabão, sem lhe

perguntar como sujara as mãos.

- Até logo, amigo Kersac - disse o Sr. Abel, ao sair. - Eu entrei só para

saber como passava o menino. Sabes como ele está, João? Ontem à tarde

estava muito mal.

JOÃO - Não soube nada esta manhã, senhor. A chegada do Sr. Kersac

transformou-me por completo. Gostei tanto de o ver!

SR. ABEL - Vou perguntar ao Sr. Grignan. Eu volto para jantar.

Preveni Bercuss.

BERCUSS - Sim, senhor. Até logo.

SR. ABEL (rindo) - Até logo, meu rapaz. Até à tarde, Sr. Kersac. Sabe

que somos nós os padrinhos de Simão?

KERSAC - É verdade. É uma grande honra para mim.

SR. ABEL - Para mim, também. Não conheço nada mais respeitável

do que um lavrador honesto e boa pessoa que faz a felicidade de todos os

que o rodeiam. . . Tenho as mãos limpas - acrescentou, estendendo a mão

a Kersac - o senhor também. Podemos, pois, apertar a mão um ao

outro. . . e sem partir os ossos - concluiu, a rir.

Kersac agarrou a mão do Sr. Abel e apertou-a vivamente.

- Tenha cautela, senão eu aperto também.

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- E eu largo - disse Kersac, recuando um passo.

O Sr. Abel subiu aos aposentos do Sr. Grignan. Não se demorou e, ao

passar junto de João, disse-lhe:

- O menino vai um pouco melhor. Ele quer ver-te e pediu que

levasses o nosso amigo Kersac. Até logo, meus amigos. João: diz ao Simão

que venha ter comigo ao hotel Meurice. Temos muito que tratar a

respeito do casamento, e não há tempo a perder. Vejam se vão com ele.

O Sr. Abel saiu.

Para chegar ao quarto de Rogério era preciso atravessar a sala. Aí,

Kersac parou, assombrado. As tapeçarias de damasco vermelho, as

poltronas douradas, os diversos móveis que ornamentavam a sala, o

lustre de cristal e bronze, o belo tapete de Aubuson, tudo era para ele um

conto das Mil e Uma Noites. João, vendo a sua admiração, parou alguns

minutos, depois, abriu a porta do quarto de Rogério e mandou entrar

Kersac, que se sentiu vivamente impressionado à vista desse quarto. A

luz, velada de propósito para não fatigar os olhos do doentinho, o silêncio

que ali reinava, a atitude acabrunhada mas resignada da

Sr. Grignan, sentada junto da cama do filho, a própria criança, de

uma magreza e de uma palidez apavorantes, as mãos juntas, o rosto

ligeiramente animado por um sorriso meigo, todo este conjunto produziu

em Kersac uma impressão tão profunda de respeito, de enternecimento,

que sem pensar no que fazia, caiu de joelhos junto do leito da pobre

criança.

Rogério, surpreendido e sensibilizado, quis tomar na sua mãozinha

descarnada a de Kersac, mas não teve forças para isso. Kersac, que

notara o gesto, pegou suavemente na pequenina mão, beijou-a e pô-la, em

seguida, sobre a sua cabeça, como a pedir que o abençoasse.

Depois, voltando-se para a Sra Grignan, que ouvia chorar, disse:

- Pobre senhora! Pobre mãe!

- Mas feliz de o ver sofrer tão santamente - respondeu a Sr. a

Grignan.

Kersac levantou-se.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

ROGÉRIO - Sr. Kersac, o João gosta muito de si. Vejo que tem razão.

O senhor é temente a Deus. Rezarei também por si.

E vendo uma lágrima na face de Kersac:

- Não chore por mim, Sr. Kersac! Cumpro a vontade de Deus e sei

que Ele me leva em breve para Si. Serei tão feliz, tão feliz que não

pensarei mais nas minhas dores.

Rogério descansou um instante. Depois adormeceu.

Kersac saiu com João. Ao atravessar a sala, não disse uma palavra

nem fez reparo em coisa nenhuma. Quando chegou ao quarto, sentou-se e

limpou os olhos às costas das mãos.

KERSAC - Nunca me impressionei tanto como agora ao pé desta

pobre criança. Senti-me comovido até ao fundo da alma! Uma criaturinha

doente e tão meiga, tão tranquila, tão feliz! E depois, a pobre mãe. . .

Chora mas não se lastima! E tudo tão calmo, e a morte tão perto! Nunca

esquecerei os instantes que passei junto dele! Se me tivessem deixado,

teria lá ficado horas.

João procurou distraí-lo e começou a contar-lhe os ditos

encantadores do Rogeriozinho, depois as suas aventuras.

Kersac ria com vontade quando Bercuss os veio chamar para comer.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Kersac vê Simão e encontra Joanico

Kersac estava maravilhado com o belo e farto almoço que lhe

serviam, e os que o acompanhavam admiravam-se do seu apetite

devorador; comeu a última garfada com tanta satisfação como a primeira.

Depois do almoço, João propôs-lhe ir a casa do Simão, e Kersac

aceitou com prazer. João levou-o pelo caminho mais bonito. Custou- lhes a

chegar a casa de Simão, porque Kersac parava a cada passo, para

admirar as lojas, os carros e os edifícios. Para ele tudo era novo e

maravilhoso!

Simão acabava de comer e preparava-se para descer ao armazém.

- Simão, apresento-te o Sr. Kersac, que vem para te conhecer - gritou

João ao entrar em casa do irmão.

SIMÃO - Sr. Kersac! Como foi bom em vir de tão longe por minha

causa!

KERSAC - Por si, pelo João e pela vossa mãe!

JOÃO - A mamã vai casar com o Sr. Kersac! Ele, assim, fica a ser meu

pai! É engraçado, não é?

SIMÃO - É possível? É verdade, Sr. Kersac?

KERSAC - É mais que verdade, meu amigo. Assim que eu volte à

herdade.

SIMÃO - Que felicidade para a nossa pobre mãe, meu caro senhor!

Simão abraçou Kersac, que o apertou até o abafar, como tinha feito a

João.

SIMÃO - E que pena a mãe não ter vindo consigo!

KERSAC - Era impossível, meu amigo! Tu casas com uma menina

fina, com uma parisiense, e tua mãe aqui havia de sentir-se atrapalhada,

deslocada, no meio destas pessoas! E depois, enquanto não for minha

mulher, é criada da herdade. Eu não queria que a tua mãe se

apresentasse como criada em casa de teus sogros. Ela, também, mostrava

uma grande relutância em vir, naturalmente por causa de tudo isto. Pois,

é verdade, eu decidi-me a casar, agora, quando vim. Compreendi que

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

tinha pena de a deixar. Que ela é muito boa, muito delicada, e estou

convencido de que vamos ser felizes.

SIMÃO - Então a mãe ainda não sabe nada?

KERSAC - Nem uma palavra.

SIMÃO - E se ela não quer?

KERSAC - O quê? Que é que tu dizes? Se não quiser? Demónio! Não

tinha pensado nisso! Pois bem, se ela não quiser... terei um grande

desgosto!. . . Sim, sim, será uma grande desgraça para a herdade e para

mim. Nunca poderei substituí-la. Que demónio de ideia tu tiveste, Simão!

Não tornarei a ter um momento de descanso, até chegar a casa! Mais

uma razão para não me demorar em Paris.

SIMÃO (sorrindo) - Tranquilize-se, meu querido amigo. Isto é apenas

uma hipótese. Porque havia ela de se recusar a casar consigo, se gosta

tanto de si e é tão feliz em sua casa? Esteja descansado, o senhor será o

nosso pai.

KERSAC - É possível, mas. . . não é certo. Diz-me cá, Simão: quando

é a tua boda?

SIMÃO - Depois de amanhã, Sr. Kersac. Amanhã de manhã quero ir a

casa do Sr. Abel para combinar tudo com ele.

KERSAC - Depois de amanhã é a boda. No dia seguinte à tarde vou-

me embora, para chegar a Sant'Ana de manhã cedinho.

SIMÃO - Já?

KERSAC - Assim é preciso, meu rapaz! Numa herdade o tempo que

se perde não se recupera. E depois. . . tenho de ir!

Conversaram durante algum tempo. Kersac disse que gostava de ver

a menina Aimée. Simão apresentou-o aos futuros sogros e à noiva. Kersac

sacudiu o braço do Sr. Amédée até quase o deslocar no ombro e apertou

a mão à Sra Amédée até lhe magoar os dedos. Quanto à menina Aimée,

quando ela lhe estendeu a mão, disse-lhe:

- Nada disso, nada disso! Na minha terra os padrinhos abraçam a

noiva.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

E levantou-a ao ar nos seus braços vigorosos, beijando-a na face

antes que ela voltasse a si. Assustada, a menina Aimée pediu socorro a

Simão.

- Oh! Que foi? - disse Kersac, pondo-a no chão. - Não é nenhum mal.

Eu sou padrinho. Pois bem, depois de amanhã é a boda. A que horas?

SRA AMÉDÉE - Primeiro, às nove horas certas é o casamento no

registo. Depois na igreja, às nove e meia. Em seguida almoça-se em nossa

casa, e depois vai-se passar o dia a Saint-Cloud. O Sr. Abel oferece lá o

jantar, e também passamos lá parte do serão.

- Muito bem - disse Kersac. - Seremos pontuais.

Kersac não se demorou. Disse que tinha de fazer compras e saiu com

o João.

KERSAC-Ouve cá, João: estes Amédée aborrecem-me. Não me senti à

vontade ao pé deles.

JOÃO - Ah Sério? Sabe? Dá-se o mesmo comigo. Estou sempre

constrangido em casa deles, ao passo que estou muito à vontade consigo

ou com o Sr. Abel.

KERSAC - Tens razão. E depois, sabes? Os Amédée são parisienses.

Troçam de toda a gente como eu, um camponês, um proprietário, que não

usa luvas. Não o dizem, mas adivinha-se. Com franqueza, tomara a boda

acabada. E agora ainda estou mais contente por não ter trazido a tua

mãe. Ela havia de estar atrapalhada, com medo de fazer disparates, e de

que rissem dela. E isso havia de me custar muito. Era capaz de perder o

sangue-frio.

JOÃO - Foi melhor assim. E agora, aonde é que nós vamos?

KERSAC - Quero comprar o meu presente para a noiva, e depois o

meu presente de núpcias para a tua mãe. Porque. . . apesar daquilo que o

Simão disse, parece-me que ela não recusará ser minha mulher. Não

gosto que ela seja minha criada. Merece mais do que isso.

João perguntou a Kersac o que queria ele comprar.

- Uma jóia para a noiva nova, e um xaile para a noiva velha -

respondeu a rir.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Iam a entrar numa ourivesaria vizinha do café Métis, quando deram

de caras com o Joanico. A surpresa foi grande de parte a parte. Depois da

troca de cumprimentos, Joanico convidou-os a tomar um café e um copito.

João ia a recusar, mas Kersac fez-lhe sinal para que aceitasse, e uma vez

sentados no café, levou Joanico a beber mais do que devia.

Kersac cumprimentou-o pela sua elegância.

- Oh! - disse Joanico com ar desdenhoso. Esta farpela velha é boa

para trazer de manhã, à tarde visto-me melhor.

KERSAC - Ah! Achas que não estás bem assim?

JOANICO - Isto para o João está bem, mas para mim...

KERSAC - Demónio! Parece-me que o Sr. Joanico está muito

importante!

JOANICO - Um pouco. . . Já me não tratam por Joanico. . . Ninguém

me trata por tu. . .

KERSAC - E como foi que o Sr. Joanico alcançou tão alta posição?

JOANICO - Bem sabe que não sou nenhum estúpido.

KERSAC - Não, não sabia.

JOANICO - Digo eu que não sou nenhum estúpido. Soube cair nas

graças do Sr. Boissec, o intendente do senhor conde. Tenho-lhe feito

alguns favores. . .

KERSAC - Que favores?

JOANICO - Servindo-o com zelo! Tenho-o substituído nuns negócios

em que ele não queria aparecer.

JOÃO - Negócios! Que qualidade de negócios?

JOANICO - Negócios de dinheiro. Pagamentos de contas, compras de

vinhos, encomendas, e outras coisas que rendem muito.

JOÃO - Rendem, como?

JOANICO - És um simplório! Não compreendes. Quando vem uma

conta para pagar, eu regateio, barafusto, digo que mudo de fornecedor, e

consigo que o homenzinho, que vende as coisas pelo dobro, abata vinte

ou vinte e cinco por cento. O Sr. Boissec apresenta a conta sem o

abatimento ao patrão. O patrão paga, e ele mete o excesso ao bolso. E

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como a casa é rica - tem para aí uma despesa de cem mil francos por ano.

. . Já vêem se o intendente tem ou não um bom pé-de-meia.

João estava indignado e ia protestar, mas Kersac tocou-lhe com o

cotovelo e deixou Joanico beber e falar mais.

KERSAC - O que tu fazes não é nenhuma parvoíce. Mas não vejo o

que é que ganhas com isso.

JOANICO - Ao princípio não era grande coisa, não. Uma moeda de

cinco ou dez francos, lá de quando em quando. . . Mas depois de me

habituar ao negócio, comecei a tratar de mim. . .

KERSAC - Como?

JOANICO - Entendi-me com os fornecedores. Consegui que, em vez

de abaterem vinte e cinco por cento, abatam trinta. Dou os vinte e cincfo

ao Sr. Boissec e guardo o resto.

KERSAC - Mas porque é que o Sr. Boissec não trata desses negócios?

Ele não desconfia de ti?

JOANICO - Não quer tratar deles para não ser apanhado. No caso de

se descobrir a marosca, faz recair tudo em cima de mim, põe-me na rua

como ladrão, e o patrão fica contente porque julga que o Sr. Boissec é um

modelo de probidade.

KERSAC - E tu? Ficas no meio da rua?

JOANICO - Oh! Não! Ele depressa me coloca noutra casa boa, e dá

de mim as melhores referências. Enquanto estiver desempregado, ele

sustenta-me, senão ponho tudo em pratos limpos. E lá isso de ele

desconfiar de mim, não sei se desconfia ou não. O certo é que o não dá a

entender. Não se atreve.

KERSAC - Que mal podias tu fazer-lhe?

JOANICO - Que mal? Denunciá-lo aos patrões, fazer de conta que me

sinto indignado, que sou um homem honesto, dedicado à casa, e que não

posso mais vê-los enganados por um ladrão. E há ainda outro meio: é

escrever uma carta anónima, lastimando o pobre rapaz (que sou eu) que

se vê obrigado, pela miséria, a auxiliar estas roubalheiras que o revoltam.

João não pôde mais.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOÃO - Joanico, o que fazes, o que tu ajudas a fazer, é infame.

Joanico, sai dessa casa, deixa Paris, onde tens más companhias, e volta

para a terra. O Sr. Kersac, que é tão bom, terá pena de ti e arranjar-te-á

trabalho. Mas, meu pobre Joanico, suplico-te, não continues nessa casa de

ladrões.

JOANICO - Meu rapaz, tu és um piegas. A casa é boa e eu não saio.

Quero estar numa casa rica e elas são todas iguais. Os patrões não se

preocupam com os criados, deixam-nos em paz, não querem saber se eles

passam a noite fora, no café, no baile ou no teatro. No quarto, na cozinha

ou na cocheira, é sempre a mesma coisa. Vivo feliz. Divirto-me, como

bem, tenho dinheiro à farta, gasto-o e arranjo mais. Tu, pelo contrário,

trabalhas, aborreces-te, emagreces, ficas em casa, vais à missa, fazes a

vida de um frade. Isso não é para mim. Ora eu não te impeço de seres um

frade, em vez de seres um rapaz que bebe, dança e vive.

JOÃO - Mas, Joanico, pensa que há um depois, como te disse no outro

dia, e que. . .

JOANICO - Mau, mau, mau! Deixa-me em paz. Eu não quero saber

dos teus depois. Não me buzines aos ouvidos com os teus depois, que já

me estão a parecer de mais. . .

JOÃO - E estragam a tua vida, pobre Joanico. . .

JOANICO - Não estragam, porque eu quero que vás passear com os

teus depois. Vês? Não gosto de te encontrar, João. Tens sempre conversas

tolas que me estragam o dia e que me incomodam, me aborrecem! Rapaz,

a conta!

O criado trouxe a conta. Joanico pagou, e saiu sem esperar pelos

companheiros.

Kersac e João também saíram, mas não seguiram Joanico.

- Que maroto - disse Kersac.

- Que desgraçado! - disse João.

KERSAC - Tenho pena de me ter contido enquanto este velhaco

despejou o saco das suas misérias. Se não fosse o desejo de saber tudo,

tinha-lhe partido os queixos logo à primeira.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

JOÃO - Se eu tivesse o espírito, a instrução e caridade do Sr. Abel,

talvez soubesse encontrar as palavras necessárias para chamar a si este

pobre rapaz.

KERSAC - Isso sim! Um maroto como este! Não há nada a fazer. Não

tem coração, nada o comove! Eu bem dizia à tua mãe: ele ainda vai parar

à cadeia! Mas aí estás tu triste, meu rapaz! Entremos no ourives. Ajuda-

me a escolher o presente.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

As compras de Kersac

Kersac e João entraram na loja de um ourives que, felizmente, era

um homem honrado, e não se aproveitou da ingenuidade e da ignorância

acerca dos preços das jóias, para os explorar.

Depois de muitas hesitações, acabaram por escoIher um fio de ouro.

Kersac pagou, guardou o estojo no bolso do colete, agradeceu e

perguntou onde podia adquirir um xaile. O ourives indicou-lhe um

magnífico armazém.

Quando entraram nesse armazém, Kersac não pôde acreditar no que

os seus olhos viam. O tamanho, a beleza da casa, a profusão de artigos de

todas as espécies, deslumbraram-no e não o deixavam entrar. E só depois

de muitas instâncias dos caixeiros, que perguntavam: “Que desejam os

senhores?” é que Kersac conseguiu articular: “Um xaile.”

CAIXEIRO - Que qualidade de xaile quer o senhor?

KERSAC - De boa qualidade.

CAIXEIRO (sorrindo) - Sem dúvida. Mas quer da Índia, inglês ou

francês?

KERSAC - Francês, francês. Não gosto dos ingleses e, com

franqueza, de nenhum país estrangeiro. O que é francês para mim vale

mais do que tudo.

O caixeiro guiou Kersac e João durante quase um quarto de hora,

antes de chegarem à secção de xailes.

- É aqui - disse ele por fim. - Brindé! Traz cadeiras para estes

senhores.

Brindé apressou-se a trazer duas cadeiras estofadas de veludo.

Kersac passou-lhes a mão por cima e sentou-se à bordinha, com medo de

amachucar o lindo veludo azul. João, mais habituado ao veludo e à seda,

sentou-se com menos respeito e precaução. Trouxeram os xailes. Kersac

achava-os todos magníficos, mas passava sempre a outro e não se decidia

por nenhum. O caixeiro, vendo a ingénua admiração de Kersac e João,

perguntou-lhes para que era o xaile.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

KERSAC - Ora essa! É para trazer!

CAIXEIRO - Mas para quem, senhor?

KERSAC - Para mim não, com certeza.

CAIXEIRO - Eu quero dizer para que género de senhora.

- Para o melhor género, senhor! Um género como os senhores não

têm muito cá em Paris. Sabe administrar uma herdade como um homem.

CAIXEIRO (sorrindo) - Acredito. Eu não contesto os méritos da

senhora! Perguntava a que classe pertencia, para lhe apresentar alguma

coisa que servisse.

KERSAC - Ah! Compreendo! É para a criada da minha herdade, para

a minha governanta.

CAIXEIRO - Muito bem. Vamos ver o que convém. Barato, não é

assim?

KERSAC - Muito barato também não. Quero bom.

CAIXEIRO - Bom para uma criada, é do barato.

KERSAC - Mas se eu lhe digo que quero bom! Esta criada vai ser

minha mulher, senhor! É o xaile de casamento que eu desejo.

CAIXEIRO - Desculpe-me, senhor. Eu não sabia bem o que era que

desejava. Agora já comprendi que é para a senhora!. . Brindé, os xailes

franceses de boa qualidade!

Kersac estava contente. O caixeiro mostrou-lhe xailes compridos,

xailes quadrados, xailes de todas as cores.

- Olhe aquele tão bonito! - disse João, apontando um xaile vermelho

vivo.

KERSAC - E os touros. . . que não gostam do vermelho? E eu tenho

touros!. . . E além disso, deves concordar, a tua mãe já não está na

primeira mocidade.

CAIXEIRO (mostrando um com o fundo verde) - E este?

KERSAC - Bonito, muito bonito! Mas. . . verde. . . isso desbota! Os

fundos pretos são mais firmes. Aqui está um bonito! Bonito a valer!

Quanto custa?

CAIXEIRO - Cento e vinte francos! É o que há de mais bonito.

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KERSAC - Bonito é ele! Não há nada a dizer. Eu não sei se é costume

regatear no seu estabelecimento. Se pode abater alguma coisa, abata.

Senão, eu levo o xaile. E mostre-me fazendas de lã.

CAIXEIRO - Nós temos preços fixos, senhor. Se quer dar-se ao

incómodo de passar à galeria nº 91 mando-lhe mostrar tecidos de lã.

KERSAC - E o meu xaile?

CAIXEIRO - Vai lá ter!

Kersac e João percorreram inúmeras galerias e chegaram,

finalmente, à dos tecidos de lã. A escolha foi difícil, porque, além da cor,

havia a ponderar a qualidade da fazenda, o desenho, o preço, etc. Kersac

decidiu-se por um tecido azul. João aprovou a escolha.

Quando Kersac quis pagar, levaram-no à caixa e aí perguntaram-lhe

aonde deviam mandar as compras.

KERSAC - Para quê?

CAIXEIRO - Para o senhor se não incomodar.

KERSAC - Isso! Eu carrego todos os dias mais de cem vezes esse

peso. Ah! Ah! Ah! Julga que eu tenha a força de uma pulga? Ah! Ah! Ah!

Esse embrulho, muito pesado! Que ideia!

E foi andando, a rir, com o João. Os caixeiros também riam, e até os

fregueses que tinham sido testemunhas da conversa.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

A bodaNo dia seguinte, o Sr. Abel recebeu Simão, João e Kersac.

Combinaram tudo.

- Não tens que pensar em coisa nenhuma, Simão! Lá irá ter um

carro, à porta, para os Srs. Amédée e a noiva. O Sr. Kersac vai contigo. E

haverá mais carros para o João e a tua futura família. Depois da

cerimónia do casamento, almoçamos em casa do Sr. Amédée. Ás quatro

horas juntamo-nos todos na estação do caminho de ferro. Eu encarrego-

me do resto. Bilhetes, jantar, divertimentos, baile, regresso, é tudo

comigo. Simão, aqui tens os presentes que é costume o noivo dar à noiva

e aos irmãos. Tu, João, tens aqui os presentes que deves dar a Simão e à

tua cunhada.

JOÃO - Muito obrigado, meu senhor, muito obrigado! Podemos ver?

SR. ABEL - Sem dúvida. Olhem.

Os presentes de Simão para a futura mulher e cunhada eram lindos

relógios com as respectivas cadeias. Para João era uma caixa. Ao abri-la,

os dois irmãos soltaram um grito de alegria. Continha duas miniaturas a

óleo, feitas pelo talentoso pintor Abel. Uma representava Simão, e a outra

o próprio pintor.

João não se conteve. Precipitou-se para o Sr. Abel e abraçou-o

afectuosamente.

Passados os primeiros momentos de alegria, João correu para os

presentes que ele próprio devia dar. Para Simão era o retrato flagrante

de João. Para Aimée era uma linda pulseira de ouro com a miniatura de

Simão no fecho.

João não cabia em si de contente. Ter em sua casa, pertencerem-lhe,

os retratos das duas pessoas que ele mais estimava no Mundo, e estes

retratos serem feitos por aquela mão tão querida, era para ele o ideal.

Não deixava de os olhar, de os beijar. Diante desta alegria todas as outras

desapareciam.

Era preciso retirarem-se e deixar o Sr. Abel descansado. Já tinha

passado a hora do seu almoço.

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- Até amanhã em casa da noiva, meus amigos. A ti, ainda hoje te vejo

em casa dos meus amigos Grignan, João. Vou lá jantar, como de costume.

Apertou-lhes as mãos e saiu, a cantar. Os amigos desceram também

com os seus tesouros. Combinairam levar sem mais demora os presentes

a Aimée.

Encontraram-na com a mãe nos preparativos do almoço do dia

seguinte. Primeiro ofereceu Simão o seu presente, depois João e depois o

Sr. Kersac. Nem Aimée nem Simão esperavam este último presente.

Cumularam Kersac de agradecimentos e de elogios pelo seu bom gosto. A

Sra Amédée pôs o fio ao pescoço da filha para ver o efeito que ele fazia.

Pouco depois Kersac e João retiraram-se. Deram uma grande volta e

Kersac ficou encantado com as belezas de Paris.

O dia passou-se mais ou menos como o anterior, entre o serviço, as

visitas a Rogeriozinho e as voltas pela cidade. No dia seguinte, Kersac e

João vestiram-se a primor. O Sr. Abel tinha dado a João um fato novo para

a boda. Antes de saírem foram-se mostrar a Rogério, que gostou muito de

os ver.

JOÃO - Menino Rogério, venho pedir-lhe que reze pela felicidade de

meu irmão.

- E pela minha, meu querido menino – disse Kersac. - Peça a Deus

que eu e minha mulher sejamos felizes, e que continuemos a ser pessoas

dignas e bons cristãos.

ROGÉRIO - Não esquecerei, Sr. Kersac. Pensarei em si e em João.

Deus há-de abençoá-los. Desejo que sejam muito felizes!

Kersac e João beijaram as mãozinhas do doente e retiraram-se.

- Mamã - disse Rogério - gosto muito do Sr. Kersac: parece-me que

ele é quase tão bom como o meu querido Sr. Abel e João. Dê-lhes, a todos

os três, uma recordação minha. Um dos livros de que tanto gosto.

A pobre senhora encheu-se de coragem para lhe prometer que

cumpriria o seu desejo.

Kersac e João foram os primeiros a chegar a casa de Simão. As

testemunhas de Aimée e as amigas apareceram pouco depois. O Sr. Abel

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ainda chegou a horas, mas só no último instante. Os outros convidados

esperavam os noivos no registo ou na igreja.

A noiva e seus pais instalaram-se, com alegria e orgulho, numa

berlinda puxada a dois cavalos. O carro de Simão era bonito, e o cavalo

que o puxava também. João sentou-se ao lado de Simão. Tanto um como

outro espreitavam às janelas, para que toda a gente os visse naquele

elegante carro. O trem do Sr. Abel atraía todos os olhares. Era um

modelo da última moda, com um cavalo de raça e o cocheiro bem fardado.

Antes de subir, Kersac, profundo conhecedor de animais, andou à volta

do trem, admirando e acariciando o cavalo.

- Bonito bicho! - dizia ele. - Belo animal!

- Suba, meu caro, suba! - disse Abel, sorrindo. - Vamos chegar

atrasados.

KERSAC - Atrasados, com este cavalo? Aposto em como ele era capaz

de passar à frente de todos!

SR. ABEL - É possível! Mas ainda assim suba! Em Paris não é como

no campo. Há obstáculos a cada passo.

Kersac subiu, contrariado. De instante a instante deitava a cabeça de

fora da portinhola, e não abria a boca senão para repetir:

- Bonito bicho! Como ele se atira! Que trote! Deixe-o à vontade,

cocheiro! Não o contrarie, deixe-o ir!

O Sr. Abel ria, mas teria preferido menos admiração pelo cavalo e

mais calma.

Não tardaram a chegar. Desceram das carruagens. Fez-se o registo

do casamento. Todos se em pertigaram quando, à leitura dos nomes e dos

atributos das testemunhas, chegou a vez do Sr. Abel Carlos, oficial da

Legião de Honra, cavaleiro de Sant'Ana da Rússia, comendador da Águia

Negra da Prússia, comendador de Carlos III da Espanha, etc. , etc.

Assistir a um casamento que tinha por testemunha uma tal personagem,

era uma honra invulgar, uma felicidade sem igual. Acabado o registo,

voltaram para as carruagens. Novo motivo de glória para os que

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ocupavam os carros oferecidos pelo Sr. Abel. Kersac preparava-se para

recomeçar o seu exame ao cavalo.

- Belo pêlo! - começou ele. - Baio vermelho! Bonito pescoço! Belo

peito, bem desenvolvido!

SR. ABEL - Suba, suba, meu caro! Desta vez não podemos chegar

atrasados. Faríamos falta na igreja. Lembre-se de que tenho de dar o

braço à Sra Amédée.

Kersac subiu, mas não despregou os olhos do cavalo. A entrada na

igreja foi bela e majestosa. A noiva era bonita, o noivo era simpático, os

pais estavam bem conservados, as testemunhas eram escolhidas. O Sr.

Abel e as suas condecorações atraíam todos os olhares.

A cerimónia não se arrastou por muito tempo. Na sacristia

cumprimentaram-se e abraçaram-se. O Sr. Abel teve de suportar os

elogios dos mais exaltados. Outra pessoa estaria embaraçada, mas o Sr.

Abel ria de tudo, tinha resposta para tudo. Kersac, um pouco pesado, um

pouco forte, não estava à sua vontade. Ao ver-se só no meio desta gente

que se conhecia, que se sentia em família, desejou esquivar-se. Diversas

vezes procurou sair da sacristia, mas impediam-lhe sempre a passagem.

Por fim, lá furou e desapareceu.

No momento de partir, Abel procurou Kersac, mas em vão. Nem as

pesquisas na igreja, nem os chamamentos cá fora, tiveram o condão de o

fazer aparecer. Já os recém-casados tinham seguido para casa, os

convidados apressavam-se, por causa do almoço, e o Sr. Abel,

acompanhado pelo João, continuava à procura do carro e de Kersac, em

vão, por todo o lado.

SR. ABEL - Ter-se-ia ido embora sem esperar por nós?

JOÃO - Não me parece. Além disso, o cocheiro não o consentiria.

SR. ABEL - Para te dizer a verdade, não sei o que hei-de pensar. O

que é evidente é que não vemos nem carro nem Kersac. Vem daí, vamos a

pé, mesmo com os nossos fatos de cerimónia. Felizmente não é longe.

Estavam para se meter ao caminho, quando a carruagem chegou a

trote. Kersac vinha na almofada ao lado do cocheiro.

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SR. ABEL - Onde demónio foram vocês? Porque não esperaram por

mim, Julião?

JULIÃO - Peço desculpa a V. Exa. Julguei que voltasse a tempo.

KERSAC - Não ralhe, Sr. Abel. A culpa foi minha. Enquanto o senhor

dava os parabéns e cumprimentava. . .

- Subamos - disse o Sr. Abel. - No carro me explica.

KERSAC - Dizia eu, enquanto faziam as suas vénias e se abraçavam,

eu, que já ontem fiz todos os cumprimentos, saí, para examinar a valer o

seu belo cavalo. Quanto mais o via, mais o admirava. Estava morto por

guiá- lo. E vai, disse ao cocheiro:

- Se nós déssemos uma volta onde ele pudesse trotar à vontade?

E o cocheiro disse:

- O patrão pode sair e não nos encontrar. Ele é bom patrão, e eu não

gosto de o descontentar.

E eu disse:

- Ora! Eles ainda se demoram meia hora! E em meia hora vai-se

longe, com um animal como este.

Bem percebi que o cocheiro estava lisonjeado. Ele via que era um

conhecedor que admirava o animal. Vi-o hesitar e, palavra, não me

contive, subi para a almofada e largámos. Metemos pela Rua Rivoli. Havia

pouca gente. O bicho corria que era um gosto. Nos Campos Elíseos,

larguei- lhe as rédeas, cortávamos o ar. Num abrir e fechar de olhos

chegámos ao fundo da avenida. O cocheiro começou a inquietar-se.

Voltámos, e o animal trotava que espantava uma pessoa. Infelizmente não

se demoraram muito na sacristia, pois nós não gastámos mais de dez

minutos no caminho. E agora, que conheço o animal, digo-lhe que não

sabe o tesouro que tem, e que é uma barbaridade fazê-lo andar nas ruas

de Paris, e constranger-lhe o andamento, e fazê-lo esperar às portas. Se

estivesse no seu lugar, tratava-o de outra maneira. Que barbaridade!

SR. ABEL - Calma, meu bom Kersac. Prometo tratá-lo de outra

maneira daqui em diante. Mas hoje tem de trabalhar em honra de Simão.

Chegámos. Não me contrariava nada almoçar.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

- Nem a mim! - disse Kersac. - Tenho uma fome!

- E eu também - repetiu João lá por dentro.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Abel, Caim e Sem

O almoço decorreu bem. A princípio reinou completo silêncio. Depois

do terceiro prato, pronunciaram-se algumas palavras. Ao quinto a

conversa tornou-se geral e ruidosa. Depois do oitavo prato serviu-se o

champanhe e cada qual propôs um brinde.

O Sr. Abel fez o primeiro aos noivos. Simão respondeu com outro,

que foi aclamado por unanimidade:

-Ao Sr. Abel, meu querido e honrado benfeitor!

- Ao nosso excelente amigo Kersac! - disse João.

- À mãe ausente! - retrocou Kersac.

Continuaram assim. As pessoas fortes, muito resistentes ao álcool,

esvaziavam o copo a cada brinde, mas as cautelosas, como o Sr. Abel,

Simão e João contentavam-se em molhar os lábios.

Kersac guardou-se para o jantar, e seguiu o meio termo. Não bebeu

senão um gole a cada brinde, mas os goles tornaram-se cada vez maiores.

O almoço era óptimo, a alegria era grande. Estiveram muito tempo à

mesa. Às duas horas concordaram que se fazia tarde. Todos se foram

embora para tratar da vida ou da toilette, que devia ser simples, visto

seguirem para o campo. Combinaram encontrar-se na estação às quatro

horas.

Quando João e Kersac chegaram à estação, só lá estavam os recém-

casados e os pais, e um criado do Sr. Abel com os bilhetes dos

compartimentos reservados e tudo o que era necessário aos convidados.

O criado deu a Kersac e João os respectivos bilhetes. Em pouco

tempo reuniram-se todos os convidados. Os empregados mandaram-nos

subir para as carruagens. Quando o Sr. Abel chegou, já toda a gente se

encontrava sentada, não havia mais lugares reservados. Kersac e João

tinham esperado o Sr. Abel na estação e estavam, como ele, separados

dos outros convidados.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

SR. ABEL - Não se inquietem, vejo além dois amigos meus. Eles e nós

três somos cinco, ocupamos um compartimento e assim já não vai mais

ninguém.

O Sr. Abel foi chamar os seus amigos Caim e Sem.

SR. ABEL - Por aqui, por aqui, meus amigos! Aqui está o meu amigo

Kersac e o meu amigo João. Sr. Kersac, apresento-lhe os meus amigos

Caim e Sem. Seguimos todos juntos. O Sr. Amédée autorizou-me a

convidá-los.

- O Antigo Testamento todo reunido - disse Kersac, rindo com o seu

riso franco. - Sr. Caim, não nos vai tratar como irmãos, não é verdade?

SR. CAIM - Isso é que vou. Mas serei um Caim regenerado, um Caim

do Novo Testamento.

Entraram para um compartimento vazio e fecharam a portinhola.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

O martelo mágico

A viagem não demorou muito. Desceram em Saint-Cloud. Havia feira

na cidade. Passearam por toda a parte. Jogaram todas as espécies de

jogos. Viram coisas mirabolantes, veados com cinco pés, carneiros com

duas cabeças, gigantes de quatro anos que pareciam homens de trinta,

com barba e bigodes. Finalmente, um burro que tinha a cabeça onde os

outros têm a cauda.

Esta última maravilha via-se numa barraca onde havia outros

animais curiosos. O burro encontrava-se sozinho num lugar reservado,

separado por uma lona, dos outros animais. Só foi anunciado depois de

uma conversa misteriosa entre o Sr. Abel e o dono dos animais.

- Entrai, meus senhores e minhas senhoras, entrai! Só um de cada

vez! Meus senhores e minhas senhoras, entrai!

Kersac foi o primeiro e pagou dois cêntimos. Não tardou a sair, rindo

às gargalhadas.

DIVERSAS VOZES - Que é? Que está lá? É verdade que o burro tem a

cabeça onde os outros têm a cauda?

KERSAC - É verdade! E vale bem a pena dar os dois cêntimos para o

ver e prometer segredo ao dono do animal. Que comédia! Que bela

comédia!

A alegria de Kersac excitou a curiosidade de todos os convidados do

casamento e de todas as pessoas presentes. Todos quiseram entrar e

todos saíam rindo como Kersac e discretos como ele. Por fim, aquela

multidão que se não desfazia, e ria e aplaudia, chamou a atenção dos

polícias. Não conseguiram que lhes explicassem o que era, e para

saberem do que se tratava tiveram de entrar por sua vez. Entraram. . .

sem pagar, na qualidade de polícias, e viram um burro numa cocheira,

com a cabeça virada para o rabo, isto é, o rabo preso à manjedoura e a

cabeça voltada para os espectadores. Os polícias não sabiam se haviam

de rir ou de castigar. O Sr. Abel interveio e disse que tinha sido ele quem

inventara o divertimento. Defendeu tão bem a causa do dono da barraca,

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

que este foi autorizado a continuar a mistificação que não prejudicava

ninguém e lhe rendia mais dinheiro que o resto da bicharada.

Continuando o passeio ao longo das barracas, viram uma com um

estrado, sobre o qual se pavoneava um homem pálido, de aspecto

cansado, uma mulher de expressão envelhecida, denotando sofrimento, e

um rapazito excessivamente magro, cujo rosto desfigurado denunciava

miséria. O aspecto daquela familia impressionou dolorosamente o Sr.

Abel. Depois de os ter observado durante algum tempo, foi atrás do toldo

e conversou com o homem. Voltou, conferenciou com Caim e Sem, e

passaram os três à retaguarda da barraca. A familia, de aspecto

miserável, desapareceu para dar lugar meia hora depois, a três selvagens

de grandes barbas e tez bronzeada. Um deles rufou formidavelmente num

tambor; o segundo gritou com uma voz que abafava o barulho do tambor:

- Meus senhores e minhas senhoras, vinde ver o efeito maravilhoso

do Martelo Mágico, que muda os cêntimos em moedas de prata, e as

moedas de prata em moedas de ouro.

Não tardou a juntar-se multidão em frente da barraca.

- Faz-se uma única experiência gratuita, meus senhores e minhas

senhoras. Depois devem dar alguma coisa à pessoa que fizer o peditório.

A representação vai começar! Atenção ao espectáculo. Quem é que me dá

um cêntimo? Um cêntimo, meus senhores! em troca de vinte?

Alguém estendeu a mão com a moeda. O selvagem pegou nela,

conservou-a no ar para que todos a vissem, pô-la em cima de um cepo, e

afastou-se. O segundo selvagem, que tinha um grande martelo na mão,

bateu com ele em cima do cepo. O primeiro selvagem pegou na moeda e

mostrou-a à turba. O cêntimo tinha-se transformado numa moeda de vinte

cêntimos.

A multidão aplaudiu. O dono do cêntimo recebeu a moeda de um

franco. Uma floresta de mãos apresentou mais cêntimos. O mesmo

selvagem recebia e restituía. Mas descansavam muitas vezes, e os

assistentes logrados punham-se a murmurar.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

SELVAGEM - O Martelo Mágico não dá nada aos avarentos, nem aos

jogadores, nem aos bebedotes, nem aos maus. Ele lê nos corações e dá a

cada um segundo os seus méritos.

Os cêntimos das crianças transformavam-se sempre em moedas de

vinte cêntimos, uma ou duas vezes mesmo, o martelo mágico transformou

um cêntimo em moeda de dois francos.

SELVAGEM - Vamos, meus senhores, depois do peditório dêem ao

martelo mágico, moedas de vinte cêntimos para ele as transformar em

moedas de vinte francos, meus senhores! Quem não der no peditório, não

tem direito à metamorfose. Quem der muito será recompensado.

A mulher começou a pedir, todos deram. Havia alguns instantes que

Joanico se misturara com a multidão e atraía os olhares do selvagem

principal. Na segunda sessão, Joanico avançou e deu uma moeda de vinte

cêntimos para receber vinte francos.

SELVAGEM - Dê, meu senhor, que vai ficar satisfeito. Atenção,

martelo, cumpre o teu dever; dá ouro pela prata!

O martelo bateu, Joanico estendeu avidamente a mão, e recebeu. . .

um cêntimo.

- Isto não é ouro - gritou ele. - Eu dei vinte cêntimos.

SELVAGEM - Vamos outra vez, meu senhor! O martelo enganou-se.

Ora, esta! Algumas vezes engana-se! Vamos, martelo, outra vez!

Recompensa ou castiga!

Joanico deu a segunda moeda de vinte cêntimos. O martelo bateu e

Joanico recebeu. . . um cêntimo.

- Vocês estão a roubar-me - gritou Joanico, furioso.

SELVAGEM - Toda a gente pode ver, meu senhor, que eu não tenho

nada nas mãos nem no bolso. Vamos à terceira prova, meu senhor.

Experimente, não perde nada.

Joanico resmungou, mas estendeu a terceira moeda de vinte

cêntimos. O martelo bateu. O selvagem mostrou uma moeda embrulhada

num papel.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

SELVAGEM - Aqui está, meu senhor! Deve ser coisa boa! A moeda

está escondida e o papel traz qualquer coisa escrita.

O selvagem leu:

- Para o Joanico.

Desembrulhou o papel e leu alto:

- Ladrão.

- Um cêntimo - acrescentou. - Sempre a mesma coisa. É um martelo

mágico, meu senhor, mas recompensa e castiga!

Joanico estava espantado e furioso. A multidão repetia: Ladrão!

Ladrão! O medo apoderou-se dele, afastou-se prudentemente e

desapareceu.

Depois do martelo mágico, os três selvagens cantaram árias tirolesas

e cançonetas alegres. A multidão aplaudia, a bandeja enchia-se. Depois

das canções fizeram sortes de prestidigitação e outras habilidades, por

fim um rufo de tambor anunciou que a representação estava acabada.

Os selvagens, vivamente aplaudidos, desceram do estrado, despiram-

se, lavaram a cara na barraca e transformaram-se em Caim, Abel e Sem.

Entregaram ao pobre charlatão o produto dos peditórios, que somava

mais de cinquenta francos. O infeliz agradeceu reconhecidamente, com as

lágrimas nos olhos.

O Sr. Abel e os amigos procuraram juntar-se aos companheiros. Não

tardaram a encontrá-los. João estava inquieto com a longa ausência do Sr.

Abel, mas Kersac tinha-lhe dito que, sem dúvida, haviam ido ao Salão dos

Cem Talheres apressar o jantar.

Ninguém o reconhecera na exibição dos selvagens.

O Sr. Abel propôs irem jantar. A proposta foi acolhida com alegria. O

almoço já ía longe, e estavam resolvidos a fazer honra ao jantar.

Os convivas sentaram-se. O jantar começou no mesmo rigoroso

silêncio do almoço. Como de manhã, começaram a animar-se depois dos

primeiros pratos e tornaram-se alegres e ruidosos à aproximação do

assado. O jantar era primoroso e os vinhos de primeira qualidade.

Cantaram. Quando chegou a vez do Sr. Abel, ele, Caim e Sem entoaram

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

as canções que tinham entoado no estrado dos saltimbancos. Só então

foram reconhecidos. Fizeram-lhes muitas perguntas e aplaudiram-nos.

Riram muito da invenção do martelo mágico e do logro em que caíra o

Joanico. Depóis da refeição, que durou das sete às nove horas, os violinos

começaram a tocar e principiou o baile.

Quando já estavam muito animados, o Sr. Abel gritou:

- Vamos à lição de dança, como no Café Métis, João!

Puseram-se ambos em posição, como no café, e começaram a dança

que tanto tinha divertido os basbaques da rua, e que causou o mesmo

efeito no Salão dos Cem Talheres de Saint- Cloud. Toda a gente ria e

aplaudia.

A reunião prolongou-se alegremente até à uma da madrugada.

Na estação, estavam as carruagens que o Sr. Abel tinha posto à

disposição dos convidados e cada qual foi para sua casa.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

A morte de RogerioZinho

Kersac e João estavam fatigados. No dia seguinte dormiram até

tarde. Quando o Rogeriozinho mandou dizer ao João que fosse ter com

ele, Kersac dormia ainda e João acabava de se vestir. Apressou-se a ir ter

com o pobre doente, que o recebeu com o seu sorriso meigo e amável.

ROGÉRIO - Ontem vieste muito tarde. Divertiste-te muito?

JOÃO - Muito, menino Rogério. Mas nem por isso deixei de pensar

em si.

ROGÉRIO - Obrigado, meu bom João. Conta-me o que fizeste.

João contou a história dos saltimbancos e do martelo mágico, a

pouca sorte de Joanico, que tinha perdido três francos quando queria

ganhar uma moeda de ouro.

Em seguida falou no jantar, na lição de dança, no baile e em tudo o

que podia divertir Rogério e distraí-lo do seu sofrimento. A pobre criança

sorria, não tinha forças para rir. Agradecia a João com o olhar; nos

momentos em que sofria muito, fazia-lhe sinal para que interrompesse a

narrativa. João ficou assim uma hora com ele. Em seguida, voltou para

junto de Kersac, que acabava de acordar e que ficou envergonhado

quando soube que eram dez horas e ainda estava na cama.

KERSAC - Não estou acostumado a estas noitadas, a estas fadigas

extraordinárias e a estas refeições intermináveis, que nos deixam pesados

e preguiçosos! Na herdade, fatigo-me mais e tenho menos necessidade de

repouso. Felizmente, amanhã de manhã já volto para lá. E logo que

chegue, trato com a tua mãe do que nos interessa. Quanto mais cedo,

melhor. Tinha-lhe prometido levar-te, queres vir passar alguns dias

connosco?

JOÃO - Gostava muito de ir, mas não posso deixar o meu pobre

Rogeriozinho no estado em que se encontra. Não valho nada, mas ele está

sempre a chamar-me, e consigo distraí-lo um pouco.

KERSAC - Tens razão, meu filho, és um rapaz às direitas.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Kersac devia partir nessa mesma tarde. Aproveitou o tempo de que

dispunha para percorrer Paris com o João. Ao voltarem para o almoço,

estavam mortos de cansaço.

- Olha lá, João - disse Kersac - antes de deixar Paris queria levar a

bênção do nosso anjinho, ele havia de me dar sorte. Pergunta se o posso

ver. Aproxima-se a hora da partida. Enquanto tu lá vais, faço eu a minha

trouxa.

João voltou antes de a trouxa estar pronta. Rogério, pelo seu lado,

também queria ver Kersac antes de ele se ir embora.

Quando entraram no quarto, Kersac impressionou-se com a alteração

das feições da criança. A palidez do rosto e a dificuldade na respiração,

anunciavam o sério agravamento do seu estado.

- Entre, meu bom Sr. Kersac - disse Rogério em voz entrecortada -

entre. . . Não o voltarei a ver. . . mas pedirei por si. . . Adeus. . . Adeus. . .

Breve estarei. . . junto de Deus. . . Serei feliz. . . por ter sofrido tanto!

Deus há-de recompensar-me.

Kersac ajoelhou junto do leito.

-Querido anjinho de Deus, abençoe-me - disse ele, pondo sobre a

cabeça a mãozinha do Rogério, crispada pelo sofrimento.

- Que Deus. . . o abençoe! A ti também, João. . . Adeus.

A pobre criança teve outra crise. A Sra Grignan pediu a Kersac que

saísse. João perguntou se podia ser útil, em face da resposta negativa,

saiu com Kersac para não perturbar.

O almoço dos criados foi triste. Todos esperavam o fim de Rogério.

Queriam-lhe muito, lastimavam-no e estavam comovidos com o seu

terrível sofrimento.

Kersac foi-se embora logo que se levantaram da mesa. Agradeceu

afectuosamente ao bom Bercuss os seus cuidados e a sua bondade.

Agradeceu também aos outros criados, pois todos tinham contribuído

para tornar agradável a sua estadia ali. Encarregou Bercuss de

apresentar os seus respeitos e agradecimentos à Sra e ao Sr. Grignan, e

saiu com João.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Ao voltar da estação, João passou em casa do Sr. Abel, que, fatigado

do dia anterior, ainda não saíra.

SR. ABEL - És tu, João? Pareces triste? Que aconteceu, meu amigo?

JOÃO - Receio que o nosso querido menino Rogério esteja próximo do

fim. Tem as feições tão alteradas e a voz tão fraca desde a última crise!

Vim preveni-lo.

SR. ABEL - Obrigado. Queria deitar-me cedo julgando que ele estava

melhor. Mas o que acabas de me dizer inquieta-me. Estimo muito aquela

excelente família, para a abandonar em momentos tão dolorosos.

Dez minutos depois estavam no palácio do Sr. Grignan.

- Como vai o menino? - perguntou Abel ao porteiro, entrando

precipitadamente.

- Mal, senhor, muito mal. O médico acaba de sair. Mandaram agora

mesmo a casa de V. Exª e a casa do senhor prior da Madalena.

Abel subiu rapidamente a escada e atravessou as salas. A porta do

quarto de Rogério conservava-se aberta. A criança estava coberta de

suor, os olhos entreabertos, o olhar velado pela aproximação da morte as

mãos, crispadas e agitadas por movimentos convulsivos, anunciavam um

fim próximo. O Sr. e a Sra Grignan, de joelhos junto da cama,

contemplavam, com dolorosa resignação, a agonia do filho. Susana,

menos forte para lutar contra a dor, de joelhos, perto da mãe, soluçava,

com o rosto escondido nas mãos. Abel pôs-se entre a mãe e a filha e

começou a rezar as orações dos agonizantes. Um leve sorriso aflorou à

boca da criança. Tentou falar e, depois de alguns esforços, articulou

fracamente:

- Abel. Obrigado!

O Sr. e a Sra Grignan completaram o agradecimento do filho com um

olhar cheio de gratidão. O padre entrou, aproximou-se do moribundo,

apressou-se a dar-lhe a última bênção, administrou-lhe o sacramento da

Santa-Unção e recitou, com o Sr. Abel, a oração dos agonizantes.

No momento em que disse, com a voz forte e solene Parte, alma

cristã, um ligeiro estremecimento agitou os membros da criança,

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sobreveio a imobilidade completa, e a respiração, já tão difícil, parou. O

padre inclinou-se sobre ela, abençoou o corpo sem vida e recitou o

Laudate l7 ominum.

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Dois casamentos

A familia ficou mergulhada numa dor profunda, mas nunca se lhe

ouviu um queixume. Abel quase os não deixava. Os meses, os anos,

passaram-se assim.

A reputação de Abel aumentou ainda mais. Os seus últimos quadros

fizeram furor. Recebeu o título de barão depois da exposição onde

alcançou tão brilhante êxito. Continuou a sua vida simples e benfazeja. A

pouco e pouco, restringiu o círculo das suas relações íntimas e cada vez

dedicou mais tempo aos seus amigos Grignan.

Susana chegou à idade em que uma herdeira nova, bonita, rica,

encantadora, é requestada. A partir de então, o casamento de Susana

Grignan com o barão de N. tornou-se o assunto de todas as conversas: a

reputação e a celebridade de Abel tinham-no posto no número dos bons

partidos, e muitas mães invejaram a felicidade da Sra Grignan.

Três anos antes deste acontecimento, Kersac regressara

alegremente à herdade de Sant'Ana. O seu primeiro cuidado foi procurar

Helena, que enncontrou na cozinha, ocupada com os serviços caseiros.

- Helena, Helena, cá estou eu! - gritou Kersac. - E bem contente por

ter voltado!

HELENA - E João?

KERSAC - O João está muito bem. Vem daqui a mais algum tempo.

Depois lhe explico. E eu venho pedir- lhe uma coisa.

HELENA - Tudo o que quiser, senhor; bem sabe se tenho ou não

vontade de lhe obedecer em tudo, se a sua vontade não é a minha.

KERSAC - Oh! Não se trata de obedecer; trata-se de querer.

HELENA - Isso para mim é a mesma coisa. Quero tudo o que o

senhor quiser.

KERSAC - Isso é verdade? Então. . . Ora bolas. Tenho medo da

Palavra, tenho medo...

HELENA - Que é então, meu Deus? Foi. . . o meu Joãozinho?

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

KERSAC - Não se trata de Joãozinho! Belo rapaz. Estou doido com

ele. . . mas não é dele que se trata. Trata-se de si.

HELENA - Mas fale, senhor! Assusta-me!

KERSAC - Helena, Helena, não adivinha?

E como Helena o olhava com uns grandes olhos espantados, Kersac

tomou-a nos braços, quase a sufocando, e disse por fim:

- Quero que seja minha mulher!

Depois largou-a tão subitamente, que Helena caiu para cima de um

banco que estava atrás dela, não se magoando só por pouco.

A surpresa e a queda deixaram-na imóvel. Kersac receou tê-la

magoado.

- Que animal eu sou! - gritou ele. - Helena, minha pobre Helena, está

magoada? Dói-lhe alguma coisa?

HELENA - Não estou magoada, senhor, não me dói nada. Mas estou

tão admirada que não compreendo. Não sei o que foi que quis dizer.

KERSAC - Ora essa! Não é difícil de compreender! A senhora é uma

mulher excelente, activa, e está ao par dos trabalhos de uma herdade. Eu

sou solteiro, aborreço-me de o ser, e quero casar consigo. É muito

simples e muito natural. Eu pergunto-lhe: Quer-me, sim ou não? Se diz

que sim, faz-me muito feliz, paga-me tudo o que a senhora diz que me

deve. Se diz que não, é porque então é uma ingrata, um mau coração, dá-

me um desgosto em recompensa do que fiz por si. Vamos, Helena,

responda depressa em vez de me olhar com esse ar espantado, como se

eu a acabasse de matar.

HELENA - Sr. Kersac, será possível que tenha essa ideia?

KERSAC - Sim ou não?

HELENA - Sim, mil vezes sim. Pode duvidar da alegria com que

aceito esse novo benefício?

KERSAC - Até que enfim! O maroto do Simão sempre me

atormentou!

E correu a comunicar aos criados a surpreendente nova do seu

casamento.

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KERSAC - Pois bem, não se surpreendem?

- Por causa disso não, senhor! - responderam-lhe, rindo. - Todos o

desejam e o esperavam há muito tempo. A Sra Helena bem merece a

felicidade que Deus lhe envia. E o senhor não podia escolher melhor.

Uma vez o assunto resolvido e anunciado, Kersac apressou-se a

realizá-lo. Quinze dias depois estava casado e, a não ser o facto de Helena

se tornar a Sra Kersac, e Kersac ser dez vezes mais feliz do que dantes, a

herdade de Sant'Ana continuou como até ali.

Um facto importante, que não convém esquecer, é que, no dia

seguinte ao da chegada de Kersac, Helena preveniu- o de que acabava de

chegar um homem e um cavalo.

KERSAC - Um homem! Um cavalo! Não compreendo, não comprei

nada!

Foi ver. Mal deitou uma vista de olhos ao animal, soltou um grito de

alegria. Reconhecera a magnífica égua do Sr. Abel. O moço explicou-lhe

que era um presente do Sr. Abel de N. . . e entregou-lhe uma carta, que

ele se apressou a abrir. Leu o seguinte:

Meu caro Kersac

Tem razão: Paris não convém ao animal que lhe mando. Está melhor

em sua casa. Faça-me o favor de o aceitar para seu uso pessoal. Aí poderá

mostrar melhor todas as suas qualidades.

Mande-me o moço o mais breve possivel, preciso cá dele.

Adeus. Não se esqueça do seu amigo.

Abel de N. .

- Excelente homem! Pérola dos homens. Coração de ouro, como diz

o meu João! Que felicidade ter um animal assim! Ninguém tocará nele

senão eu! Entre, homenzinho, venha tomar alguma coisa!

Kersac disse a Helena que desse de comer e de beber ao moço. Ele

mesmo levou a sua bela égua para a cavalariça. Deu-lhe uma cama

esplêndida, limpou-a, deu-lhe aveia e palha.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Esta égua foi uma fonte de alegria para Kersac. Todos os dias

inventava pretextos para a atrelar a um carro ligeiro, e fazia-a trotar

durante uma hora ou duas, não se cansando de a ver cortar os ares e

causar a admiração de quantos encontrava.

Uma vez levou Helena, mas ela pediu que a não levasse mais, porque

uma corrida tão rápida lhe metia medo.

Pouco tempo depois da morte do menino Rogério, receberam a visita

do João. Para distrair Susana do seu desgosto, o Sr. e a Sra Grignan

fizeram uma viagem à Suíça e ao norte da Itália, com o seu amigo Abel.

Conseguiram-no em parte, mas Susana continuou a falar com o Sr. Abel

acerca do seu irmão Rogério, e, para ambos, esta recordação tinha um

encanto indefinível.

Os Srs. Grignan levaram apenas Bercuss. E foi durante esta viagem

que João obteve, sem dificuldade, por intermédio do Sr. Abel, licença para

ir à terra.

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Terceiro casamento

Três anos depois, quando o Sr. Abel já fazia parte da família por se

ter casado com Susana, João anunciou- lhe que Kersac e Helena estavam

numa grande aflição. O dono da herdade, que Kersac arrendara havia

mais de vinte anos, acabava de morrer; a propriedade encontrava-se à

venda, e já tinham entrado em negociações com alguém que a queria

explorar directamente.

- Não te aflijas, meu amigo - disse-lhe Abel. Essa venda ainda se não

fez. Talvez não se faça.

Efectivamente, dias depois, João soube pelo Sr. Abel que a herdade

tinha sido vendida a alguém que fazia com Kersac um contrato de

arrendamento, que devia durar enquanto o rendeiro vivesse.

João ficou tão surpreendido com esta coincidência, que Abel não

pôde deixar de sorrir.

- Senhor - disse João - o senhor Ladrão e o senhor Pintor não terão

entrado neste negócio?

SR. ABEL (rindo) - É possível. Eu sei que o senhor Pintor queria

comprar uma casa na Bretanha.

JOÃO - Oh! Que felicidade! A sua bondade nunca se cansa!

Fora realmente o Sr. Abel quem comprara a herdade de Sant'Ana,

para lá construir um palacete para residência de verão. Esta compra fez a

felicidade de Kersac e de Helena, bem como a de João, que passava perto

da mãe sete ou oito meses por ano, sem contar com a família que

habitava o palacete.

Quando Maria fez dezoito anos, Kersac, que a estimava

carinhosamente e que não tinha filhos do seu casamento com Helena,

cumpriu a antiga promessa: declarou que ia adoptar Maria. Faltava a

segunda parte do projecto: casá-la com João. O rapaz tinha vinte e sete

anos, continuava no palácio de Grignan, só com a diferença de que

passara para o serviço particular do seu benfeitor, do seu querido Sr.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

Abel. Falando-se deles, podia-se dizer com verdade tal patrão, tal criado.

Um era o patrão ideal, e outro, o criado ideal.

Quando Kersac adoptou Maria, Abel que se entendia com ele para

conseguir que o casamento se fizesse, notou que João se tornava

pensativo, menos alegre, e fez-lho notar.

JOÃO - Que quer, meu senhor? À medida que os anos passam, a

gente torna-se mais reservada e mais séria.

SR. ABEL (sorrindo) - Mas, meu amigo, tu tens apenas vinte e sete

anos. Ainda não chegaste à velhice.

JOÃO - Ainda não, meu senhor, mas para lá caminho.

SR. ABEL - João, tu escondes-me alguma coisa e isso não está certo.

Tu, que não tinhas segredos para mim, tens agora um, e já há muitos

meses.

JOÃO - Perdoe, meu senhor. Não se trata de um segredo, é apenas

uma coisa que me entristece, apesar dos meus esforços em contrário.

SR. ABEL - Então que é, João? Conta-me lá! Que receias? Não

conheces muito bem a minha amizade por ti?

JOÃO - Oh! Conheço, sim, senhor; e a sua indulgência e a sua

bondade. É que eu gosto muito de Maria: queria casar com ela. E isso é

impossível, porque, se me casasse, o meu sogro e a minha mãe haviam de

nos querer em casa. E se eu o deixasse, meu senhor, seria tão infeliz, tão

ingrato, tão egoísta, que não teria um momento de descanso e morreria

de pena. Contei tudo à Maria, ela compreendeu e resolvemos ficar

solteiros. Consola-me a ideia de não o deixar nunca e de viver muito feliz

na companhia do senhor e da senhora, tentando assim retribuir os muitos

favores que tenho recolhido.

E, dizendo estas palavras, a voz sumiu-se-lhe. Voltou-se, como para

arranjar qualquer coisa, e desapareceu.

O Sr. Abel ficou triste e pensativo.

- Feliz! Pobre rapaz! Pobre rapaz! É por mim que sacrifica a sua

felicidade. Não posso aceitar tal coisa. Antes de um mês há-de casar.

O Sr. Abel tocou. Entrou o criado Baptista.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

- Baptista, vai à herdade e diz a Kersac que me venha falar.

Kersac não tardou a chegar.

- Tenho um assunto a tratar consigo, Kersac. Peço- lhe o seu auxílio e

ofereço-lhe o meu.

Fecharam-se, para poderem conversar sem serem incomodados.

Meia hora depois, Kersac foi-se embora, esfregando as mãos.

Quando o Sr. Abel voltou a ver João, disse-lhe que Kersac lhe queria

dizer uma coisa muito importante.

- É preciso ir lá já?

- Sim, parece que Kersac tem pressa.

João foi sem mais demora. Encontrou-o só.

- João - disse Kersac, estendendo-lhe a mão - tu és um imbecil e a

Maria uma doida. Vou chamar-vos à razão.

Levantou-se, abriu a porta e voltou com a Maria, a chorar.

- Olha - disse, mostrando-lha - vês? Tu és a causa disto.

JOÃO - Maria, Maria, tinhas prometido ser razoável!

MARIA - Eu bem quero, João, mas não posso.

KERSAC - Vocês são doidos! Eu vou-lhes dar o juízo.

Agarrou a mão da Maria e pô- la na de João.

- Dou-ta - disse ele ao João. - Dou-to - disse à Maria. - Daqui a um

mês, de boamente ou à força, hão-de estar casados. Tu continuas em casa

do Sr. Abel durante os oito meses que ele cá estiver; quando se for

embora, acompanha-lo ou ficas, conforme queiras. Eu preferia ter-te na

minha companhia, mas o Sr. Abel levou a melhor. Apre! Ele puxa para ti

como o ferro para o íman!

Kersac não lhe deu tempo para resposta, saiu e fechou a porta.

Quando voltou, uma hora depois, encontrou-o convencido. Maria tinha-lhe

mostrado que o casamento não prejudicava em nada as suas obrigações

para com o seu benfeitor. Parece que os argumentos foram persuasivos,

porque terminaram a conferência discutindo o dia do casamento. João

queria esperar mais algum tempo, Maria queria que ele se fizesse o mais

breve possível.

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- Porque - disse ela - se te deixo tempo para reflectires, abandonas-

me pelo Sr. Abel, e eu morro de desgosto.

João estremeceu à ideia desse assassinato previsto e premeditado, e

consentiu em casar daí a quinze dias.

A boda foi soberba. Os banquetes, as danças e os divertimentos

duraram dois dias, mas nem um instante João esqueceu as suas

obrigações para com o seu querido patrão.

Vivem todos felizes e unidos. Na bela cabeleira negra do Sr. Abel, já

espreitam cabelos brancos. Tem quatro filhos. Susana e Abel é que os

educam. Susana dedica-se especialmente às meninas, Abel dirige a

educação dos dois rapazes. Um deles dá mostras de um talento quase

igual ao do pai. João, casado há seis anos, já tem três belos filhos. Vivem

na herdade, com a mãe. Kersac e Helena levam a vida mais feliz deste

mundo, rodeados de tantos amigos. Kersac conserva o seu vigor e a sua

bela saúde. Helena parece dez anos mais nova. Os filhos de João são

esplêndidos. A menina é loura e bonita como a mãe, os rapazes são

morenos como o pai.

Os filhos de Susana e Abel atraem todos os olhares pela sua graça e

grande beleza. As suas virtudes igualam os predicados físicos. O filho

mais velho tem treze anos, o segundo tem onze. As meninas têm nove e

sete anos.

O Sr. e a Sra Grizan não deixam os filhos.

Nunca um aborrecimento, uma divergência de opiniões, perturba a

harmonia que reina nesta família. O Rogeriozinho é, sem dúvida, o seu

anjo protector.

A bela égua de Kersac ainda vive e continua a excitar a admiração do

dono. Já teve catorze poldros, lindos e perfeitos, que Kersac quis

conservar em seu poder, mas viu-se obrigado a ceder oito ao Sr. Abel, e

não sei quantos aos seus amigos, que lhos pediam com insistência.

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João que Chora e João que Ri Condessa de Ségur

E Joanico?

E Joanico?

Ai Pobre Joanico, ele está longe de levar a vida doce e feliz de João e

de seus amigos.

Os leitores lembram-se da sua última conversa, no café, com Kersac

e João. Continuou a sua vida de gatuno. Um dia adoeceu devido ao abuso

das bebidas. Os patrões desembaraçaram-se dele como fazem todos os

patrões que não se importam com os criados, mandando-o para o

hospital. Durante a sua doença, foi o Sr. Boissec em pessoa quem tratou

dos negócios. Descobriu as gatunices de Joanico. Em vez de se acusar, em

virtude do mau exemplo e dos maus conselhos que lhe tinha dado, voltou-

se contra ele, chorou as quantias consideráveis que Joanico lhe tinha

subtraído, e resolveu castigá-lo severamente.

No hospital, Joanico, comparando o seu abandono com a situação tão

feliz de João, pôs-se a reflectir, e essas reflexões poderiam dar bom fruto

se Joanico tivesse mais fé e coragem.

Mas, quando saiu do hospital e se arrastou, pálido e fraco, até casa

dos patrões, Boissec recebeu-o com injúrias e ameaças, e mandou-o pôr

na rua pelos criados.

E Simão?

Simão vive feliz e contente. É bom marido, bom filho e, sempre, bom

cristão. O sogro aborrece-o algumas vezes com questões comerciais. Ele

acha Simão muito dedicado, muito consciencioso. Simão assegura que é

simplesmente honesto, e que não fará nenhum negócio que não seja

perfeitamente leal e honroso. No armazém, os fregueses gostam mais de

se entender com o genro do que com o sogro. Este último retirou-se do

comércio, entregou o estabelecimento aos filhos e vê, com surpresa, a

prosperidade de Simão, que já adquiriu fortuna suficiente para levar uma

vida agradável. Simão vai às vezes a Sant'Ana, onde encontra reunidos

todos os seus amigos e seu irmão João, que ele continua a estimar

carinhosamente.

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No meio desta felicidade, teve dois grandes desgostos: o primeiro foi

não ter filhos, o segundo foi o de Aimée, mal aconselhada pela mãe,

começar a levar uma vida muito à larga e a fazer grandes despesas com

vestidos e frioleiras e revoltar-se contra Simão, chamando-lhe severo,

avaro e exagerado. Enfim, neste lar não havia perfeita harmonia. O Sr.

Abel, que Simão visitava algumas vezes em Paris, aconselhava-lhe

doçura, paciência e firmeza.

- Não cedas nunca no que for mau, ou possa levar ao mal, meu

amigo. No resto, deixa-a o mais à vontade que possas. Com os anos,

Aimée há-de tornar-se razoável. Então há-de compreender e aprovar a tua

atitude.

Simão ouvia, suspirava e esperava. Por fim, Deus ajudou-o. Com os

anos, o Mundo e os vestidos deixaram de interessar a Aimée, a sua alma

tornou-se bela. E passou a ser o que Simão queria que ela fosse.

Aimée compreendeu as qualidades e virtudes do marido. E quando

vão passar alguns dias na herdade de Sant'Ana, entende-se perfeitamente

com todos os membros da excelente família que a habita.

FIM

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