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 9  Jür gen Habermas - Comunicação política na sociedade mediática: o impacto da teoria normativa... Comunic ação política na sociedade mediática: o impacto da teoria normativa na pesquisa empírica  Jürgen Habermas 1 o texto Política, de Aristóteles, a teorização normativa e a pesquisa empírica caminham lado a lado. Entretan- to, teorias contemporâneas da democracia liberal expressam uma visão exigente de que ambas “deveriam” estar juntas que afronta a seriedade do estado atual de sociedades cada vez mais complexas. O modelo deliberativo de democracia, que reivindica uma dimensão epistêmica para processos democráticos de le- gitimação, parece exemplicar especialmente a imensa distância existente entre abordagens normativas e empíricas da política. Em primeiro lugar, estabeleço uma com- paração entre os modelos deliberativo, liberal N 1  Filósofo e sociólogo alemão, atuou como assistente de Theodor Adorno no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt em meados dos anos 1950 compondo, assim, a segunda gera- ção da Escola de Frankfurt. No nal da década de 1960, passa a dirigir a New Y orker New School for Social Research . No início da década de 1980, transfere-se para a Johann-Wolfgang Goe- the Universität Frankfurt, na Alemanha, onde, mesmo tendo se aposentado em 1994, permanece atuando junto ao Depar- tamento de Filosoa. Este artigo é baseado em uma apresentação feita pelo autor em 20 de junho de 2006, por ocasião da 56 o   Ann ual In ternati onal C om- munication Association Conference , ocorrida na cidade de Dres- den, Alemanha. Traduzido do inglês por Ângela Cristina Salguei- ro Marques, Doutora em Comunicação Social pela UFMG, com a permissão da Blackwell editora. Referência original: “Political communication in media society: does democracy still enjoy an epistemic dimension? The impact of normative theory on empiri- cal research”. Communication Theory , v.16, 2006, pp. 411-426. Resumo: Primeiramente, comparo os modelos deliberativo, libe- ral e republicano de democracia e considero possíveis referências à pesquisa empírica. Em seguida, examino as evidências empí- ricas que comprovam a hipótese de que a deliberação política possui um potencial de busca pela veracidade. Argumento que a comunicação política mediada na esfera pública pode facilitar processos de legitimação deliberativa em sociedades complexas somente se adquire independência com relação a seu ambiente social, e se houver um feedback entre o discurso informado da elite e uma sociedade civil responsiva. Palavras-chave:  modelos democráticos, pesquisa empírica, de- liberação, comunicação política. Comunicación política en la sociedad mediática: el impacto de la teoría normativa en la investigación empírica Resumen: Primeramente, comparo los modelos deliberativo, liberal y republicano de democracia y considero posibles refe- rencias a la investigación empírica. Enseguida, examino las evi- dencias empíricas que comprueban la hipótesis de que la delibe- ración política posee un potencial de búsqueda por la veracidad. Argumento que la comunicación política mediada en la esfera pública puede facilitar procesos de legitimación deliberativa en sociedades complejas sólo si adquiere independencia en relación con su ambiente social y si hay una respuesta entre el discurso informado de la élite y una sociedad civil responsiva. Palabras clave: modelos democráticos, investigación em- pírica, deliberación, comunicación política. Political communication in media society: the impact of normative theory on empirical research Abstract: I rst compare the deliberative to the liberal and the re- publican models of democracy, and consider possible references to empirical research then examine what empirical evidence there is for the assumption that political deliberatio n develops a truth- tracking potential. I argue that mediated political communication in the public sphere can facilitate deliberative legitimation proces- ses in complex societies only if it gains independence from its so- cial environments and if there is a feedback between an informed elite discourse and a responsive civil society. Key words: democratic models, empirical research, delibera- tion, political communication.

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  • Jrgen Habermas - Comunicao poltica na sociedade meditica: o impacto da teoria normativa...

    Comunicao poltica na sociedade meditica: o impacto da teoria normativa na pesquisa emprica

    Jrgen Habermas1

    o texto Poltica, de Aristteles, a teorizao normativa e a pesquisa

    emprica caminham lado a lado. Entretan-to, teorias contemporneas da democracia liberal expressam uma viso exigente de que ambas deveriam estar juntas que afronta a seriedade do estado atual de sociedades cada vez mais complexas. O modelo deliberativo de democracia, que reivindica uma dimenso epistmica para processos democrticos de le-gitimao, parece exemplificar especialmente a imensa distncia existente entre abordagens normativas e empricas da poltica.

    Em primeiro lugar, estabeleo uma com-parao entre os modelos deliberativo, liberal

    N

    1 Filsofo e socilogo alemo, atuou como assistente de Theodor Adorno no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt em meados dos anos 150 compondo, assim, a segunda gera-o da Escola de Frankfurt. No final da dcada de 160, passa a dirigir a New Yorker New School for Social Research. No incio da dcada de 180, transfere-se para a Johann-Wolfgang Goe-the Universitt Frankfurt, na Alemanha, onde, mesmo tendo se aposentado em 14, permanece atuando junto ao Depar-tamento de Filosofia. Este artigo baseado em uma apresentao feita pelo autor em 20 de junho de 2006, por ocasio da 56o Annual International Com-munication Association Conference, ocorrida na cidade de Dres-den, Alemanha. Traduzido do ingls por ngela Cristina Salguei-ro Marques, Doutora em Comunicao Social pela UFMG, com a permisso da Blackwell editora. Referncia original: Political communication in media society: does democracy still enjoy an epistemic dimension? The impact of normative theory on empiri-cal research. Communication Theory, v.16, 2006, pp. 411-426.

    Resumo: Primeiramente, comparo os modelos deliberativo, libe-ral e republicano de democracia e considero possveis referncias pesquisa emprica. Em seguida, examino as evidncias emp-ricas que comprovam a hiptese de que a deliberao poltica possui um potencial de busca pela veracidade. Argumento que a comunicao poltica mediada na esfera pblica pode facilitar processos de legitimao deliberativa em sociedades complexas somente se adquire independncia com relao a seu ambiente social, e se houver um feedback entre o discurso informado da elite e uma sociedade civil responsiva.Palavras-chave: modelos democrticos, pesquisa emprica, de-liberao, comunicao poltica.

    Comunicacin poltica en la sociedad meditica: el impacto de la teora normativa en la investigacin empricaResumen: Primeramente, comparo los modelos deliberativo, liberal y republicano de democracia y considero posibles refe-rencias a la investigacin emprica. Enseguida, examino las evi-dencias empricas que comprueban la hiptesis de que la delibe-racin poltica posee un potencial de bsqueda por la veracidad. Argumento que la comunicacin poltica mediada en la esfera pblica puede facilitar procesos de legitimacin deliberativa en sociedades complejas slo si adquiere independencia en relacin con su ambiente social y si hay una respuesta entre el discurso informado de la lite y una sociedad civil responsiva.Palabras clave: modelos democrticos, investigacin em-prica, deliberacin, comunicacin poltica.

    Political communication in media society: the impact of normative theory on empirical researchAbstract: I first compare the deliberative to the liberal and the re-publican models of democracy, and consider possible references to empirical research then examine what empirical evidence there is for the assumption that political deliberation develops a truth-tracking potential. I argue that mediated political communication in the public sphere can facilitate deliberative legitimation proces-ses in complex societies only if it gains independence from its so-cial environments and if there is a feedback between an informed elite discourse and a responsive civil society.Key words: democratic models, empirical research, delibera-tion, political communication.

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    e republicano de democracia, considerando possveis referncias pesquisa emprica. Exa-minarei, em seguida, as evidncias empricas existentes para comprovar a hiptese de que a deliberao poltica desenvolve um potencial de busca pela veracidade. As partes principais do artigo destinam-se a dispersar dvidas apa-rentes a respeito do contedo emprico e da aplicabilidade do modelo deliberativo. O mo-delo comunicativo de poltica deliberativa que desejo apresentar enfatiza duas condies crti-cas: a comunicao poltica mediada na esfera pblica pode facilitar processos de legitimao deliberativa em sociedades complexas somente se um sistema meditico auto-regulador adqui-re independncia com relao a seu ambiente social, e se audincias annimas garantem um feedback entre o discurso informado da elite e uma sociedade civil responsiva.

    Referncias empricas para teorias normativas da democracia

    O desenho institucional das democracias modernas rene trs elementos. Primeiro, a autonomia privada dos cidados, sendo que cada um deles segue sua prpria vida. Segun-do, a cidadania democrtica, ou seja, a inclu-so de cidados livres e iguais na comunidade poltica. E, terceiro, a independncia de uma esfera pblica que opera como um sistema intermedirio entre o Estado e a sociedade. Esses elementos formam a base normativa das democracias liberais (independentemen-te da diversidade que, em vrios casos, exis-te em textos constitucionais e ordens legais, instituies e prticas polticas).

    O desenho institucional deve garantir: (a) a igual proteo dos membros individuais da sociedade civil atravs da regra do direito e de um sistema de liberdades bsicas que seja compatvel com as mesmas liberdades con-cedidas a todos. Deve tambm garantir um igual acesso a cortes independentes sendo que a proteo de todos deve ser igualmen-te assegurada por elas , e uma separao de poderes entre o Legislativo, o Judicirio e o Executivo, sendo este ltimo a ramificao que vincula a administrao pblica lei.

    O desenho deve tambm assegurar (b) a participao poltica da maior quantidade possvel de cidados interessados atravs de direitos iguais de comunicao e participa-o. Deve assegurar ainda eleies peridicas (e referendos) com base no sufrgio inclusi-vo; a competio entre diferentes partidos, plataformas e programas, e a aplicao do princpio da maioria no processo poltico decisrio em instncias representativas.

    O desenho institucional deve garantir ainda (c) uma contribuio apropriada de uma esfera pblica poltica para a formao de opinies pblicas cuidadosamente consi-deradas por meio de uma separao entre o Estado (baseado em taxas) e a sociedade (ba-seada no mercado). Precisa tambm afirmar os direitos de comunicao e associao e ze-lar por uma regulao da estrutura de poder da esfera pblica, assegurando a diversidade de meios de comunicao de massa indepen-dentes, assim como um amplo acesso de au-dincias massivas inclusivas esfera pblica.

    Esse desenho institucional incorpora idias de diferentes filosofias polticas. Cada uma des-sas principais tradies confere uma importn-cia diferenciada a princpios tais como liberda-des iguais para todos, participao democrtica e governo atravs da opinio pblica (Haber-mas, 18:23-252). A tradio liberal revela uma preferncia pelas liberdades dos cidados privados, enquanto as tradies republicana e deliberativa acentuam tanto a participao poltica de cidados ativos quanto formao de opinies pblicas cuidadosamente consi-deradas. Esses limites do pensamento poltico causam um impacto diferenciado em culturas polticas nacionais, criando, por isso, relaes especficas entre teoria e prtica. Eles do for-ma a diferentes tradies legais e a diferentes quadros nacionais para os discursos pblicos que mantm e transformam culturas polticas e identidades coletivas (Peters, 2005). A impor-tncia diferenciada que cidados de naes dis-tintas conferem aos direitos e s liberdades, incluso e igualdade, ou deliberao pbli-ca e resoluo de problemas determina como eles vem a si prprios como membros de sua comunidade poltica.

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    Utilizar essas idias para planejar projetos de pesquisa emprica um outro modo, mais indireto, de construir uma ponte entre a teo-ria normativa e a realidade poltica. A teoria normativa atualmente serve como guia de pesquisa em certos campos da cincia pol-tica. Isso explica, de um lado, as afinidades eletivas entre o liberalismo poltico e a teoria econmica da democracia (Arrow, 163) e, de outro lado, entre o republicanismo e as abordagens comunitaristas (que se concen-tram na confiana e em outras fontes de so-lidariedade [hbitos do corao]) (Bellah, 175; Putnam, 2000). O modelo deliberativo est mais interessado na funo epistmica do discurso e da negociao do que na esco-lha racional ou no ethos poltico. Neste mo-delo, a busca cooperativa, empreendida por cidados deliberativos, por solues para problemas polticos substitui a idia da agre-gao de preferncias de cidados privados ou da auto-determinao coletiva de uma nao eticamente integrada.

    O paradigma deliberativo oferece como seu ponto de referncia emprico principal um processo democrtico que supostamente deve-ria gerar a legitimidade atravs de um proce-dimento de formao da opinio e da vontade que garante (a) publicidade e transparncia para o processo deliberativo, (b) incluso e igual oportunidade para a participao, e (c) uma pretenso justificada para resultados ob-tidos atravs da troca de argumentos (princi-palmente em vista do impacto dos argumentos nas mudanas racionais de preferncias) (Boh-man, 16; Bohman & Rehg, 17).

    A pretenso de alcanar resultados fun-dados na troca de razes permanece, por sua vez, ligada hiptese de que discursos institu-cionalizados mobilizam tpicos e demandas relevantes, promovem a avaliao crtica das contribuies e conduzem a reaes favor-veis ou contrrias, racionalmente motivadas. A deliberao uma forma de comunicao exigente, ainda que se desenvolva a partir de rotinas dirias invisveis nas quais as pessoas trocam razes umas com as outras. No curso das prticas cotidianas, os atores esto sem-pre expostos a um espao de razes. Eles no

    podem fazer outra coisa, seno oferecer mu-tuamente demandas de validade para seus proferimentos e argumentos, uma vez que o que dizem deveria ser assumido e, se ne-cessrio, provado como algo verdadeiro, correto ou sincero e, sem dvida, racional. Uma referncia implcita ao discurso racio-nal ou competio por melhores razes construda dentro da ao comunicativa como uma alternativa onipresente ao com-portamento rotineiro.

    As idias penetram na realidade social atravs de pressuposies idealizadas inatas s prticas cotidianas e adquirem, impercep-tivelmente, a qualidade de fatos sociais obsti-nados.2 Pressuposies similares esto impl-citas tambm em prticas polticas e legais. Tomemos o exemplo do chamado paradoxo dos eleitores (o qual no , de forma alguma, um paradoxo): os cidados continuam a par-ticipar de eleies gerais, apesar de cientistas polticos apontarem, a partir de um ponto de vista de observadores, os efeitos marginali-zantes da geografia eleitoral ou dos procedi-mentos eleitorais. A prtica democrtica das eleies constitui um empreendimento cole-tivo e requer que os participantes procedam segundo a suposio de que cada voto con-ta. De forma semelhante, pessoas envolvidas em demandas litigiosas no deixam de ir corte, independentemente do que profes-

    A deliberao uma forma de comunicao

    exigente, a partir de rotinas dirias

    invisveis nas quais as pessoas trocam razes

    umas com as outras

    2 Essa concepo de uma razo no transcedentalizada, ou seja, o contedo normativo do que incorporado s prticas sociais, no deve ser confundido com a oposio que John Rawls faz entre a teoria ideal e a teoria que no ideal (cf. Neblo, 2005).

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    sores de direito observem e pronunciem a respeito da indeterminao das leis e da im-previsibilidade das decises legais. A regra da lei e a prtica de emisso de um julgamen-to final em um procedimento legal iriam se deteriorar se os participantes no agissem de acordo com a premissa de que eles recebem um tratamento justo e de que um veredito adequado ser emitido.

    O potencial de busca pela veracidade oferecido pela deliberao poltica

    Saber se a deliberao introduz de fato uma dimenso epistmica na formao da vontade poltica e nos processos de tomada de deciso algo que nos remete, obviamen-te, a uma questo emprica. J existe um im-pressionante conjunto de estudos baseados em pequenos grupos de pessoas que inter-preta a comunicao poltica como um me-canismo destinado ao aprimoramento do aprendizado cooperativo e da busca coletiva de solues para problemas comuns. Neblo (no prelo), por exemplo, traduziu as pressu-posies principais da teoria normativa em hipteses sobre como grupos experimentais aprendem sobre questes polticas (como a ao afirmativa, a presena de gays no exr-cito, ou a justia distributiva de esquemas de taxas baixas) atravs da deliberao. Os indi-vduos eram interrogados primeiramente so-bre suas opinies a respeito dessas questes. Cinco semanas depois, eles eram reunidos em grupos e convidados a debater sobre as mesmas questes e a chegar a decises cole-tivas. Mais cinco semanas aps essa delibera-

    o, cada um deles era convidado novamente a expor suas opinies individuais.

    Os resultados corroboram mais ou me-nos o impacto esperado da deliberao sobre a formao da opinio poltica resultante de uma cuidadosa reflexo. O processo da deli-berao em grupo resultou em uma mudan-a unidirecional e no em uma polarizao de opinies. As decises finais foram bastan-te diferentes das opinies iniciais expressas, e as opinies se alteraram refletindo nveis aprimorados de informao e perspectivas ampliadas acerca de uma definio mais clara e especfica das questes. Argumentos neutros tenderam a receber prioridade so-bre a influncia das relaes interpessoais, e tambm houve uma expresso crescente de confiana na legitimidade procedimental da argumentao justa.

    Outros exemplos podem ser citados, como os famosos experimentos de James Fishkin (15; e tambm Fishkin e Luskin, 2005) com grupos focais, ou experimentos de campo como aquele que envolve uma amostra de 160 habitantes da provncia de British Columbia, no Canad, que foram escolhidos a partir de listas de eleitores para uma Assemblia de Ci-dados sobre a Reforma Eleitoral e reunidos especificamente durante seis finais de semana a fim de aprender, de deliberar sobre e de deci-dir entre trs propostas alternativas. Evidncias do impacto da deliberao na estruturao de preferncias no apenas ativou crticas a respei-to do paradigma da escolha racional (Health, 2001; Johnson, 13), mas tambm motivou uma nova pesquisa acerca dos efeitos provo-cados pelos enquadramentos (framing effects) na formao de preferncias polticas. Druck-man (2004:675) aponta que indivduos que se engajam em conversaes com um grupo he-terogneo sero menos suscetveis aos efeitos dos enquadramentos do que aqueles que no se engajam em conversaes. Grupos de espe-cialistas (de cooporaes multinacionais) e de contra-especialistas (de organizaes no-go-vernamentais) que se reuniram sob o amparo do Wissenschaftszentrum de Berlim esto mais prximos da poltica da vida real. Esses grupos mediadores foram convidados explicitamente

    A comunicao poltica mediada no precisa preencher todos os padres de uma deliberao ideal, assu-mindo diferentes formas em diferentes arenas

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    a discutir vises conflitantes sobre questes po-lticas (os riscos trazidos pelo cultivo de plan-tas geneticamente modificadas e os direitos de propriedade intelectual no mbito da biotec-nologia versus cuidados de sade contra epi-demias em regies subdesenvolvidas) (Van den Daele, 14, 16; World Business Council for Sustainable Development and Science Center Berlin, 2003).

    Todos esses estudos oferecem evidn-cias empricas sobre o potencial cognitivo da deliberao poltica. Contudo, amostras de pequena escala somente podem prover um limitado suporte para o contedo em-prico do paradigma deliberativo designado para processos de legitimao em socieda-des nacionais ou de larga escala. As socie-dades ocidentais contemporneas revelam um aumento impressionante no volume da comunicao poltica (Van der Daele e Nei-dhardt, 16), mas a esfera pblica poltica , ao mesmo tempo, dominada por um tipo de comunicao mediada que no apresenta as caractersticas definidoras da deliberao.3 Falhas a esse respeito so evidenciadas pela (a) ausncia de uma interao face a face en-tre participantes presentes em uma prtica compartilhada de produo de deciso cole-tiva, e pela (b) ausncia de reciprocidade en-

    tre os papis desempenhados pelos falantes e pelos destinatrios em uma troca igualitria de demandas e opinies.

    Alm disso, a dinmica da comunicao de massa dirigida pelo poder dos media de sele-cionar e de formatar a apresentao de mensa-gens e pelo uso estratgico do poder poltico e social para influenciar as agendas, assim como para ativar e enquadrar questes pblicas.

    Antes de desenvolver essa questo das in-tervenes de poder, explicarei primeiro por que nem o carter abstrato da esfera pblica que separa as opinies das decises, nem a relao assimtrica entre ator e audincia no palco virtual da comunicao mediada so, per se, caractersticas dissonantes, ou seja, fatores que poderiam negar a aplicabilidade do modelo de poltica deliberativa. A comu-nicao poltica mediada no precisa preen-cher todos os padres de uma deliberao ideal. A comunicao poltica, circulando de baixo para cima e de cima para baixo atravs de um sistema de mltiplos nveis (da con-versao cotidiana na sociedade civil, pas-sando pelo discurso pblico e pela comuni-cao mediada entre pblicos fracos, at os discursos institucionalizados no centro do sistema poltico), assume diferentes formas em diferentes arenas. A esfera pblica forma a periferia do sistema poltico e pode facilitar processos deliberativos de legitimao fil-trando os fluxos de comunicao poltica por meio da diviso do trabalho com outras partes do sistema.

    A estrutura da comunicao de massa e a formao de opinies pblicas cuidadosamente consideradas4

    Imagine a esfera pblica como um sis-tema intermedirio de comunicao entre deliberaes formalmente organizadas e de-liberaes face a face informais em arenas localizadas, respectivamente, no centro (ou no topo) e na periferia (ou na base) do sis-tema poltico. Existem evidncias empricas

    4 Permitam-me fazer um comentrio a respeito da Internet, que atua como um contrapeso em relao s aparentes deficincias que se fundamentam no carter neutro e assimtrico das emisses me-diticas, reintroduzindo elementos deliberativos na comunicao eletrnica. A internet certamente reativou as aes cvicas de um pblico igualitrio de escritores e leitores. Contudo, a comunicao mediada por computador atravs da internet pode demandar m-ritos democrticos inequvocos somente para um contexto especial: ela pode desafiar a censura imposta por regimes autoritrios que tentam controlar e reprimir a opinio pblica. No contexto de regi-mes liberais, o crescimento de milhes de salas de bate-papo (chat rooms) fragmentadas atravs do mundo tende, contudo, a uma fragmentao de amplas audincias de massa, porm politicamen-te focadas, em um grande nmero de pblicos isolados e voltados para uma nica questo. Atravs de esferas pblicas nacionais esta-belecidas, os debates online entre os utilizadores da web promovem uma comunicao poltica somente quando novos grupos se crista-lizam em torno de pontos focais sobre a qualidade da imprensa, por exemplo, jornais nacionais e revistas polticas. (Um bom indicador para a funo crtica desse papel parasita da comunicao online a conta de 2.088 euros que o ncora do site Bildog.de enviou recente-mente para o diretor da Bild.T-Online relativa a servios: os blog-gers afirmaram que eles melhoraram o trabalho do grupo editorial do Bildzeitung atravs de crticas e correes teis [cf. Rechnung fr Bild.de, 2006:5]).

    4 Estou seguindo as principais linhas de uma anlise apresenta-da por Peters (14, 2001).

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    do impacto da deliberao em processos de tomada de deciso em legislaturas nacionais (Steiner, Bchtiger, Sprndli e Steenbergen, 2004; ver tambm Habermas, 2005:38) e em outras instituies polticas, assim como existem evidncias para os efeitos de apren-dizado e de amadurecimento da reflexo relativos s conversaes polticas entre os cidados em sua vida cotidiana (Jonston, Conover e Searing, 2005). Meu foco ser di-rigido, entretanto, para aquilo que a comu-nicao poltica na esfera pblica pode trazer como contribuio para um processo de le-gitimao deliberativa.

    O centro do sistema poltico formado por instituies conhecidas: parlamentos, cortes, autoridades administrativas e governo. Cada ramificao pode ser descrita como uma are-na deliberativa especializada. O output corres-pondente a essas arenas decises legislativas e programas polticos, opinies ou vereditos, medidas administrativas e decretos, diretri-zes e polticas resulta de diferentes tipos de deliberao institucionalizada e processos de negociao. Na periferia do sistema poltico, a esfera pblica est enraizada em redes de fluxos de mensagens desordenados notcias, relatos, comentrios, falas, cenas e imagens, shows e filmes com um contedo informati-vo, polmico, educativo ou de entretenimento. Essas opinies publicadas originam-se a partir de vrios tipos de atores: polticos e partidos polticos, lobistas e grupos de presso, ou ato-res da sociedade civil. Elas so selecionadas e formatadas pelos profissionais dos mass media e recebidas por amplas audincias, campos e

    subculturas intersectantes etc. Do espectro das opinies polticas publicadas, podemos distinguir a opinio sondada (polled opinion), ou seja, um agregado mensurado de atitudes favorveis ou contra questes pblicas con-troversas a partir do modo como tomam for-ma, tacitamente, entre pblicos fracos. Essas atitudes so tambm influenciadas pela con-versao cotidiana em espaos informais ou por pblicos episdicos da sociedade civil, do mesmo modo como so influenciadas pela ateno que as pessoas conferem mdia im-pressa ou eletrnica.

    Existem dois tipos de atores sem os quais nenhuma esfera pblica poltica poderia fun-cionar: os profissionais do sistema dos media especialmente os jornalistas que editam as notcias, relatos e comentrios e os polticos que ocupam o centro do sistema poltico, e so tanto co-autores quanto destinatrios das opinies pblicas. A comunicao poltica mediada conduzida por uma elite. Podemos distinguir mais cinco tipos entre os atores que fazem sua apario no palco virtual de uma esfera pblica estabelecida: (a) lobistas que re-presentam grupos de interesse especiais; (b) advogados que ou representam grupos de in-teresse geral, ou os substituem devido a uma ausncia de representao de grupos margi-nalizados incapazes de expressar efetivamen-te seus interesses; (c) especialistas a quem so creditados conhecimentos profissionais ou cientficos em alguma rea especializada e so convidados a oferecer conselhos; (d) empre-endedores morais que geram ateno pblica para questes supostamente negligenciadas; e, por ltimo, mas no menos importantes, (e) intelectuais que adquiriram, diferentemente dos advogados ou dos empreendedores mo-rais, uma reputao pessoal reconhecida em algum campo (por exemplo, escritores ou aca-dmicos) e que se engajam, de modo distinto dos especialistas e lobistas, espontaneamente, em um discurso pblico, com a inteno de-clarada de promover interesses gerais.

    Somente atravs do sistema como um todo podemos esperar que a deliberao ope-re como um mecanismo de purificao que filtra os elementos impuros de um proces-

    Existem dois tipos de atores sem os quais nenhuma esfera pblica poltica poderia funcionar: os profissionais do sistema dos media e os polticos

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    so de legitimao discursivamente estrutu-rado. Estima-se que a deliberao, enquanto elemento essencial do processo democrtico, possa cumprir trs funes: mobilizar e reunir questes relevantes e informaes necessrias, especificando interpretaes; processar tais contribuies discursivamente por meio de argumentos adequados, sejam eles favorveis ou contrrios a uma questo; e gerar atitu-des racionalmente motivadas favorveis ou contrrias a uma questo , as quais possuem grande probabilidade de determinar o resulta-do de decises procedimentalmente corretas.

    Diante do processo de legitimao como um todo, o papel facilitador da esfera pblica poltica , principalmente, o de preencher so-mente a primeira dessas trs funes e, alm disso, de preparar as agendas para as institui-es polticas. Em suma, o modelo delibera-tivo supe que a esfera pblica poltica possa assegurar a formao de uma pluralidade de opinies pblicas cuidadosamente conside-radas. Essa ainda uma expectativa bastante exigente, mas, nas pesquisas de comunicao, um esquema realista das condies necess-rias para a produo de opinies pblicas cui-dadosamente consideradas pode submeter-se a normas no-arbitrrias para a identificao das causas das patologias da comunicao.

    Permitam-me desenvolver tal modelo co-municativo para a legitimao democrtica em dois momentos. Comeo por lembrar-lhes o amplo quadro de que estamos tratando: a inte-rao entre o Estado e seus ambientes sociais.

    O Estado enfrenta demandas vindas de dois lados. Alm das normas e das regula-mentaes, deve providenciar bens e servios pblicos para a sociedade civil, assim como subsdios e infraestrutura para vrios sistemas funcionais, como o comrcio e o mercado de trabalho, a sade, a seguridade social, o tr-fego, a energia, as pesquisas e o desenvolvi-mento, a educao etc. Por meio de lobbies e de negociaes neocorporativistas, os repre-sentantes de sistemas funcionais afrontam a administrao utilizando aquilo que eles apresentam como imperativos funcionais. Os representantes de sistemas particulares podem fazer ameaas de falhas iminentes, tais

    como uma inflao crescente ou uma fuga de capitais, um colapso do trfego, uma falta de habitaes ou de suprimentos de energia, uma carncia de trabalhadores capacitados, uma fuga de crebros para pases estrangeiros etc. O impacto perturbador desses alarmes ou cri-ses sobre os cidados, em seu papel de clientes desses respectivos subsistemas, filtrado atra-vs de padres distributivos de estruturas de classe. Redes associativas da sociedade civil e grupos de interesse especiais traduzem a ten-so ativada por problemas sociais pendentes e demandas conflitantes por justia social, em questes polticas. Os atores da sociedade ci-vil articulam interesses polticos e afrontam o Estado por meio de demandas provenientes dos mundos da vida de vrios grupos. Com a sustentao legal dos direitos de voto, essas demandas podem ser reforadas atravs da ameaa de interromper a legitimao.

    Os votos, contudo, no crescem natural-mente no solo da sociedade civil. Antes de eles ultrapassarem o limiar formal das campa-nhas e das eleies gerais, eles ganham forma atravs do confuso alvoroo de vozes oriun-das tanto da conversao cotidiana quanto da comunicao mediada. O sistema poltico, dependente da legitimao democrtica em sua periferia, possui um flanco desprotegido com relao sociedade civil, a saber, a vida indisciplinada da esfera pblica.

    Organizaes cujo objetivo realizar pes-quisas de opinio pblica monitoram e regis-tram continuamente as atitudes de cidados privados. Os profissionais dos media produzem um discurso de elite, alimentado pelos atores que disputam por acesso aos media e por influ-ncia sobre eles. Esses atores sobem ao palco a partir de trs pontos: polticos e partidos polti-cos partem do centro do sistema poltico; lobis-tas e grupos de interesse especiais partem, com vantagem, do ponto dos sistemas funcionais e dos grupos de status que eles representam; e os advogados, grupos de interesse pblico, igrejas, intelectuais e empreendedores morais vm dos bastidores da sociedade civil.

    Juntamente com os jornalistas, todos eles se juntam para a construo do que chama-mos de opinio pblica, embora essa ex-

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    presso singular somente faa referncia a uma opinio pblica prevalente entre muitas outras. Tais feixes de questes e contribuies sintetizadas exibem, ao mesmo tempo, o peso respectivo de atitudes favorveis ou contrrias que eles atraem de vrias audincias. As opi-nies pblicas so difceis de serem definidas claramente; elas so construdas juntamente por elites polticas e audincias difusas a par-tir das diferenas perceptveis entre opinies publicadas e as medies estatsticas das opi-nies sondadas. As opinies pblicas exercem um tipo de presso suave na forma malevel do pensamento das pessoas. Esse tipo de in-fluncia poltica precisa ser diferenciado do poder poltico, que est ligado a autoridades e permite a tomada de decises coletivamente vinculantes. A influncia das opinies pbli-cas se espraia em direes opostas, voltando-se tanto em direo ao governo observan-do-o cuidadosamente quanto em direo s audincias reflexivas junto s quais as opini-es pblicas tiveram sua primeira origem.

    O fato de que tanto governos eleitos quanto os eleitores possam assumir uma atitude afir-mativa, negativa ou indiferente diante da opi-nio pblica acentua o trao mais importante da esfera pblica, ou seja, seu carter reflexivo. Todos os participantes podem revisitar as opi-nies pblicas consideradas e responder a elas aps a devida reconsiderao. Essas respostas, vindas de cima e tambm de baixo, providen-ciam um teste duplo para descobrir como a efetiva comunicao poltica na esfera pblica funciona enquanto um mecanismo de filtra-gem. Se ela funciona como tal, somente opi-nies pblicas cuidadosamente consideradas passam atravs dela. As opinies pblicas tornam manifesto o que amplos, mas confli-tantes setores da populao consideram, sob a luz de informaes disponveis, como sendo as interpretaes mais plausveis de cada uma das questes controversas em pauta.

    A partir do ponto de vista de governos e das elites polticas responsivas, as opinies pbli-cas cuidadosamente consideradas estabelecem um quadro para o escopo do que o pblico de cidados aceitaria como decises legtimas em um caso especfico. Para eleitores responsivos,

    que se engajam em conversaes polticas cotidianas, lem jornais, assistem televiso e participam ou no de eleies, as opinies p-blicas cautelosamente consideradas apresen-tam, igualmente, alternativas plausveis para aquilo que conta com uma posio sensata diante de questes pblicas. o voto formal e a formao atual da opinio e da vontade dos eleitores individuais que, juntos, conectam os fluxos perifricos da comunicao poltica na sociedade civil e na esfera pblica aos proces-sos deliberativos decisrios, conduzidos pelas instituies polticas localizadas no centro do sistema poltico, filtrando-os, assim, para den-tro do amplo sistema de circuitos da poltica deliberativa. Gerhards (13:26) aponta que a relevncia da opinio pblica tanto para o pblico quanto para os responsveis pelos processos decisrios... assegurada nas de-mocracias competitivas, em ltima instncia, pela instituio das eleies.

    A despeito da estrutura neutra e assimtri-ca da comunicao de massa, a esfera pblica poderia, somente se as circunstncias forem favorveis, gerar opinies pblicas cuidado-samente consideradas. Fao uso do condicio-nal aqui para chamar a ateno do leitor para outra cautela bvia: a estrutura de poder da esfera pblica pode tanto distorcer a dinmica das comunicaes de massa quanto intervir atravs do requisito normativo de que ques-tes relevantes, informaes necessrias e con-tribuies apropriadas sejam mobilizadas.

    Estrutura de poder da esfera pblica e dinmica da comunicao de massa

    O poder no ilegtimo per se. Permitam-me distinguir quatro categorias. Existe, em primeiro lugar, um poder poltico que, por de-finio, requer a legitimao. De acordo com o modelo deliberativo de democracia, o pro-cesso de legitimao precisa passar atravs da esfera pblica que possui a capacidade de ali-mentar as opinies pblicas cuidadosamente consideradas. O poder social depende do status que um indivduo possui em uma sociedade estratificada; tais status so derivados de posi-es dentro de sistemas funcionais. Por conse-

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    Jrgen Habermas - Comunicao poltica na sociedade meditica: o impacto da teoria normativa...

    guinte, o poder econmico um tipo de poder social especial e dominante. No o poder so-cial enquanto tal, mas sua transformao em presso sobre o sistema poltico que precisa de legitimao: ela no precisa contornar os ca-nais da esfera pblica. O mesmo pode ser dito a respeito do impacto poltico dos atores que se situam na sociedade civil, como, por exem-plo, grupos de interesse geral, comunidades religiosas ou movimentos sociais. Esses atores no possuem poder em sentido estrito, mas obtm influncia pblica a partir do capital social e do capital cultural que acumula-ram em termos de visibilidade, proeminncia, reputao ou status moral.

    Os meios de comunicao de massa cons-tituem tambm outra fonte de poder (Jarren & Donges, 2006:11, 32). O poder dos me-dia baseado na tecnologia das comunicaes de massa. Aqueles que trabalham em setores politicamente relevantes do sistema dos me-dia (isto , reprteres, colunistas, editores, diretores, produtores e proprietrios) no podem fazer nada alm de exercer o poder, porque eles selecionam e processam um con-tedo politicamente relevante e, desse modo, intervm tanto na formao de opinies p-blicas quanto na distribuio de interesses influentes. A utilizao do poder dos media manifesta-se na escolha da informao e do formato, na forma e no estilo dos programas e nos efeitos de sua difuso atravs de me-canismos como o agenda setting, o priming e o enquadramento das questes (framing) (Callaghan & Schnell, 2005). Do ponto de vista da legitimidade democrtica, o poder dos media permanece, todavia, inocente, na medida em que os jornalistas operam dentro de um sistema meditico funcionalmente es-pecfico e auto-regulado. A independncia re-lativa dos meios de comunicao de massa em relao aos sistemas poltico e econmico era uma pr-condio necessria para a ascenso do que agora chamamos de sociedade medi-tica. Essa uma aquisio bastante recente, mesmo no Ocidente, e remonta ao perodo que logo se segue ao fim da Segunda Guerra Mundial (Jarren & Donges, 2006:26; Weis-brod, 2003). Uma independncia funcional

    significa a auto-regulao do sistema dos media de acordo com seus prprios cdigos normativos (Thompson, 15:258).

    No processo de agendamento que ocorre no interior dos media, uma hierarquia infor-mal confere imprensa de qualidade nacional o papel de lder de opinio. H uma abundn-cia de notcias e comentrios polticos oriun-dos de jornais prestigiosos e revistas polticas de circulao nacional dentro de outros me-dia (Jarren & Donges, 2006). Com referncia ao input oriundo de contextos externos aos media, os polticos e os partidos polticos so, sem sombra de dvida, os mais importan-tes fornecedores. Eles possuem uma forte posio com relao negociao de acesso privilegiado aos media. Contudo, mesmo os governos geralmente no possuem nenhum controle sobre o modo como os media apre-sentam e interpretam suas mensagens, sobre o modo como as elites polticas ou pblicos ampliados as recebem, ou sobre a maneira como esses ltimos respondem a elas (Jarren & Donges). Dado o alto nvel da organizao e dos recursos materiais, os representantes de sistemas funcionais e de grupos de interesse especiais usufruem tambm de um certo aces-so privilegiado aos media. Eles se encontram em uma posio na qual podem utilizar tc-nicas profissionais para transformar o poder social em potncia poltica. Grupos de inte-resse pblico e advogados tendem tambm a empregar mtodos gerenciais de comunica-o coorporativa. Nesse sentido, os atores da sociedade civil, se comparados aos polticos e aos lobistas, ocupam a posio mais fraca.

    A utilizao do poder dos media manifesta-

    se na escolha da informao e do

    formato, na forma e estilo dos programas e

    nos efeitos de sua difuso

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    Os jogadores que se encontram no palco vir-tual da esfera pblica podem ser classificados em termos do poder ou do capital que possuem sua disposio. A estratificao das oportunida-des de transformar o poder em influncia pbli-ca atravs dos canais da comunicao mediada revela, assim, uma estrutura de poder. Esse po-der coagido, contudo, pela reflexividade pecu-liar de uma esfera pblica que permite a todos os participantes a chance de reconsiderar o que entendem por opinio pblica. A construo comum da opinio pblica certamente convida os atores a intervir estrategicamente na esfera

    pblica. A distribuio desigual dos meios para a realizao de tais intervenes, entretanto, no distorce necessariamente a formao de opini-es pblicas cuidadosamente consideradas. As intervenes estratgicas na esfera pblica pre-cisam, de modo a evitar o risco da ineficincia, aceitar as regras do jogo. E, uma vez que as regras estabelecidas constituem o jogo certo aquele que promete a produo de opinies pblicas cuidadosamente consideradas , mesmo os ato-res mais poderosos iro contribuir somente para a mobilizao de questes, fatos e argumentos relevantes. Contudo, para que as regras do jogo certo existam, duas coisas precisam ser alcana-das. Em primeiro lugar, um sistema meditico auto-regulador deve manter sua independn-cia frente aos sistemas que o rodeiam, ao mes-mo tempo em que estabelea conexes entre a comunicao poltica desenvolvida na esfera pblica, a sociedade civil e o centro do sistema poltico. Em segundo lugar, uma sociedade civil inclusiva precisa conferir poder aos cidados, de modo que eles possam participar de discursos

    pblicos e respond-los. Em contrapartida, es-ses discursos no podem se degenerar em um modo colonizador da comunicao.

    A ltima condio perturbadora, para di-zer o mnimo. A literatura sobre a ignorncia pblica desenha um quadro bastante severo do cidado mdio como uma pessoa ampla-mente desinformada e desinteressada (Frie-dman, 2003; Somin, 18; Weinshall, 2003). Contudo, este quadro tem sido modificado atravs de estudos recentes acerca do papel cognitivo dos atalhos heursticos e informa-cionais no desenvolvimento e na consolidao de orientaes polticas. Eles sugerem que, a longo prazo, leitores, ouvintes e telespectado-res podem formar, definitivamente e mesmo inconscientemente, atitudes sensatas em re-lao a questes pblicas. Podem constru-las agregando suas reaes, freqentemente tcitas e mesmo esquecidas, a fragmentos e pedaos casualmente recebidos de informao, os quais eles inicialmente integraram a um background de esquemas conceituais em evoluo, avalian-do-os tambm em relao a esse pano de fundo cognitivo. Nesse sentido, as pessoas podem ser conhecedoras em seu uso da razo acerca de suas escolhas polticas, sem possuir uma vasta gama de conhecimentos sobre a poltica (Dal-ton, 2006:26; Delli Carpini, 2004:412).

    Patologias da comunicao poltica

    Na anlise final, ns somos ainda confron-tados com uma evidncia que, primeira vis-ta, aponta que o tipo de comunicao poltica que conhecemos em nossa ento chamada sociedade meditica se posiciona na direo contrria aos requerimentos normativos da poltica deliberativa. Contudo, o uso empri-co recomendado do modelo deliberativo nos fornece um impulso crtico: ele nos permite ler os dados contraditrios como indicadores de entraves contingentes que merecem uma sria investigao. Os requerimentos mencio-nados anteriormente ou seja, a independn-cia de um sistema dos media auto-regulado e a forma correta e justa de um feedback entre a comunicao poltica mediada e a sociedade civil podem servir como detectores para a

    Uma sociedade civil inclusiva precisa conferir poder aos cidados, de modo que eles possam participar de discursos pblicose respond-los

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    descoberta de causas especficas para ausn-cias existentes de legitimidade.

    Com relao primeira condio, precisa-mos distinguir, de um lado, entre uma diferen-ciao incompleta entre o sistema dos media e os ambientes que o cercam e, de outro lado, en-tre uma interferncia temporria e a indepen-dncia do sistema dos media que j alcanou o nvel da auto-regulao. O monoplio do Esta-do exercido sobre as emissoras pblicas de co-municao na Itlia durante as primeiras trs dcadas do perodo ps-guerra um exemplo do interligamento da mdia eletrnica com o sistema poltico. Durante o perodo no qual toda mudana de governo entre os polticos da situao, pertencentes ao Partido Democrata Cristo, e os membros da oposio comunista foi bloqueada, cada um dos principais parti-dos usufrua do privilgio de recrutar os em-pregados para um dos trs canais pblicos de televiso. Esse padro garantiu um certo grau de pluralismo, mas certamente no assegurou a independncia da programao profissional. Uma conseqncia dessa diferenciao incom-pleta entre a comunicao mediada o o ncleo do sistema poltico foi a de que as emissoras pblicas favoreceram um tipo de paternalis-mo, como se cidados imaturos precisassem de uma instruo poltica adequada de instncias superiores (Padovani, 2005).

    Comparado com essa ausncia de diferen-ciao, uma perda de especializao temporria parece ser uma deficincia menor. Entretanto, s vezes pode ter um impacto mais marcante. Um caso recente em voga a manipulao do pblico americano pelo surpreendente sucesso da gesto de comunicaes da Casa Branca an-tes e depois da invaso do Iraque, em 2003. O que esse caso destaca no a manobra astuta do presidente para enquadrar o evento do 11 de setembro como algo que ativou a guerra contra o terrorismo (Entman, 2004). O fen-meno mais remarcvel nesse contexto foi a au-sncia de qualquer contra-enquadramento efe-tivo (Artz e Kamalipour, 2005). Uma imprensa responsvel teria oferecido aos media popula-res notcias mais fidedignas e interpretaes al-ternativas, por meio de um agendamento entre diferentes veculos mediticos.

    A ausncia de distncia entre os media e os grupos de interesse especiais menos espeta-cular, embora mais freqente e normal do que sua implicao transitria nos meandros de poder da poltica. Se, por exemplo, polticas ecolgicas ou de proteo sade produzem impacto nos interesses principais de corpora-es importantes, esforos concentrados para traduzir o poder econmico em influncia po-ltica podem ser vistos como capazes de pro-duzir um efeito mensurvel. Nesse contexto, a influncia intermediria de comunidades eruditas (como a Escola de Chicago) tambm digna de ser mencionada. Um caso especial de dano causado independncia editorial ocorre quando proprietrios privados de um imprio meditico desenvolvem ambies polticas e usam seu poder, baseado na propriedade, para adquirir influncia poltica.

    A televiso privada e a mdia impressa so empresas comerciais como quaisquer outras. Nesse caso, contudo, os proprietrios podem utilizar sua vantagem econmica como um boto para converter imediatamente o poder dos media em influncia pblica e em presso poltica. Ao lado de proprietrios poderosos como Rupert Murdoch, temos Silvio Berlus-coni como um exemplo infame. Ele primeiro explorou as oportunidades legais traadas so-mente para sua auto-promoo poltica e, as-sim, depois de assumir o poder de controle so-bre o governo, utilizou seu imprio meditico para sustentar uma legislao dbia em favor da consolidao de sua fortuna privada e de seus bens polticos. No decorrer dessa aventu-ra, Berlusconi obteve sucesso em modificar a cultura meditica de seu pas, retirando-a do domnio da educao poltica e enfatizando o mercado do entretenimento despolitizado uma mistura de filmes e telefilmes, shows de variedades e shows de perguntas e respos-tas, desenhos animados e esportes, com a pro-eminncia do futebol nessa ltima categoria (Ginsborg, 2004).

    A segunda condio diz respeito ao feedback entre um sistema dos media auto-regulador e uma sociedade civil responsiva. A esfera pblica poltica precisa dos recursos fornecidos (inputs) pelos cidados que do voz aos problemas da so-

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    ciedade e que respondem s questes articuladas pelo discurso da elite. Existem duas causas prin-cipais para a ausncia sistemtica desse tipo de feedback circular. A privao social e a excluso cultural dos cidados explicam o acesso seletivo a e uma participao irregular na comunicao mediada, uma vez que a colonizao da esfera pblica pelos imperativos do mercado conduz a uma paralisia peculiar da sociedade civil.

    Com relao ao acesso e participao na comunicao mediada, h um senso comum sociolgico de que o interesse por questes pblicas e o uso da mdia poltica est ampla-mente correlacionados com o status social e o background cultural (Delli Carpini, 2004:404; Verba Schlozman e Bradey, 15). Esse con-junto de dados pode ser interpretado como indicador de uma diferenciao funcional in-suficiente da esfera pblica poltica com rela-o estrutura de classes da sociedade civil. Ao longo das ltimas dcadas, contudo, os vncu-los com as origens sociais e culturais atribudas tm se tornado mais fracos (Dalton, 2006:172, 150, 21). A mudana em direo a questes a serem decididas com uma votao revela o crescente impacto do discurso pblico nos padres de votao e, de modo mais geral, o impacto do discurso pblico na formao de pblicos voltados para questes especficas. Ainda que um grande nmero de pessoas tenda a se interessar por um amplo nmero de questes, o conjunto geral desses pblicos pode ainda servir para antecipar as tendncias de fragmentao (Dalton, 2006:121, 206).

    A despeito da incluso crescente de cida-dos nos fluxos da comunicao de massa, uma comparao entre estudos recentes chega a uma concluso ambivalente, talvez at direta-mente pessimista, a respeito do tipo de impac-to que a comunicao de massa possui sobre o envolvimento dos cidados na poltica (Delli Carpini, 2004). Vrios resultados nos Estados Unidos sustentam a hiptese da videomalaise, segundo a qual as pessoas que fazem um uso intenso da mdia eletrnica e a consideram uma fonte importante de informao pos-suem um baixo nvel de confiana na poltica e apresentam maior tendncia a assumir, em conseqncia, uma atitude cnica com rela-

    o poltica (Lee, 2005:421). Se, contudo, a dependncia do rdio e da televiso alimenta sentimentos de impotncia, apatia e indiferen-a, no deveramos procurar a explicao de tal fato no estado paraltico da sociedade civil, mas sim nos contedos e formatos de um tipo degenerado de comunicao poltica. Os dados que mencionei sugerem que o modo da comu-nicao mediada contribui independentemen-te para uma alienao difusa dos cidados com relao poltica (Boggs, 17).

    No que tange colonizao da esfera pblica pelos imperativos do mercado, o que tenho em mente aqui simplesmente a redefinio da po-ltica em categorias de mercado. O crescimento da arte autnoma e da imprensa poltica inde-pendente, desde o final do sculo XVIII, prova que a organizao e a distribuio comerciais de produtos intelectuais no induzem, neces-sariamente, tranformao de seu contedo e dos modos de sua recepo em mercadoria. Sob a presso dos acionistas sedentos por lu-cros mais elevados, a invaso dos imperativos funcionais do mercado econmico na lgica interna da produo e da apresentao das mensagens que conduz substituio secreta de uma categoria da comunicao por outra: questes ligadas ao discurso poltico so assi-miladas e absorvidas por modos e contedos de entretenimento. Alm da personalizao, a dramatizao dos eventos, a simplificao de problemas complexos e a vvida polarizao de conflitos promovem um privatismo cvico e um clima anti-poltico.

    O status crescente das imagens dos can-didatos explica o padro da poltica eleitoral centrada no candidato. Dalton afirma que as imagens dos candidatos podem ser vistas como mercadorias embaladas por publicit-rios que atingem o pblico enfatizando traos que possuem um apelo especial junto aos elei-tores (Dalton, 2006:215). A tendncia relacio-nada s questes eleitorais caminha lado a lado com a tendncia ligada s eleies baseadas em candidatos, de maneira que esta ltima ainda no predomina. A personalizao da poltica sustentada pela mercantilizao dos progra-mas. Estaes de rdio e emissoras de televiso privatizadas, as quais operam sob entraves or-