comunicação e cultura o processo de recepção

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  • 7/31/2019 Comunicao e cultura o processo de recepo

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    Comunicao e cultura: o processo de recepo

    Valrio Cruz BrittosUniversidade do Vale do Rio dos Sinos

    (UNISINOS)

    ndice1 Introduo 12 Resposicionamento do foco 13 Mediao e negociao 24 Deslocamentos conceituais 55 Perspectiva histrica 76 Desafios de hoje 97 Referncias bibliogrficas 10

    1 Introduo

    Este estudo objetiva trabalhar a viso so-bre comunicao que est sendo efetuada naAmrica Latina, no que se refere ao processode recepo, j que crescente sua dimen-so no universo acadmico, principalmenteneste momento de valorizao do consumi-dor, o cidado de hoje. A proposta centra-senas relaes entre comunicao e cultura, deforma que se abandona a linha dos conheci-dos estudos de comunicao, caracterizadospela anlise centrada unicamente nos meios,embora reconhea-se sua fora na sociedadecontempornea.

    Como conseqncia, h uma reviso domomento da recepo, priorizando-se as me-diaes, na busca de dar conta de toda a com-plexidade do processo. Para discutir-se essa

    virada latino-americana, este texto vai apre-sentar prioritariamente as proposies de Je-ss Martn-Barbero, conectadas com outrosautores, ressaltando-se a importncia, paraeste eixo terico, das contribuies de NstorGarca Canclini, no que envolve principal-mente identidade e consumo culturais, que,no entanto, no constituem objeto deste ar-tigo.

    2 Resposicionamento do focoAo priorizar-se o enfoque sobre as vincula-es entre comunicao e cultura, desloca-seo foco exclusivo dos meios comunicacionais,que tm seu valor reposicionado, para privi-legiar as mediaes prprias da recepo te-levisiva, enfatizando-se a posio da culturae do cotidiano. H um rompimento com asanlises apocalpticas, que vem o receptorindefeso e aptico diante do poder indefen-svel da mdia massiva, a qual muitas vezes apresentada como constituindo uma esferadistinta da cultura.

    Por esta via, reestabelece-se o bom sensode que, se os receptores no so mais con-siderados guiados pelas indstrias culturais,a sociedade no s mdia, ou seja, hmuito mais dados a serem observados, for-mando as mediaes. Martn-Barbero, ao

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    tratar das mediaes que envolvem a recep-o e, por conseqncia, a percepo da re-alidade, afasta da mdia a responsabilidadede formadora nica dos modos de ser e agirdos seres humanos, sepultando as propostasque viam uma influncia direta das primeirassobre os segundos.

    Mas muitos outros autores, na atualidade,de diferentes linhas de estudo, tm relacio-nado comunicao e cultura. Relacionar co-municao e cultura significa um salto, por

    apreender o fenmeno como integrante deum processo de maior dimenso e no deforma estanque. Este salto provoca o aban-dono da posio de solidez que assegura otratamento da comunicao reduzida a umproduto, a um veculo ou a um meio, nomximo, para inseri-la no cotidiano das pes-soas. um processo de rompimento e am-pliao:

    "Pensar os processos de co-municao a partir da culturaimplica deixar de pens-los desdeas disciplinas e os meios. Implicaa ruptura com aquela compulsivanecessidade de definir a disciplinaprpria e com ela a seguranaque proporcionava a reduo daproblemtica da comunicao dos meios. (...) Por outra parte,no se trata de perder de vistaos meios, seno de abrir suaanlise s mediaes, isto , sinstituies, s organizaes e aossujeitos, s diversas temporali-dades sociais e multiplicidadede matrizes culturais a partir dasquais os meios-tecnologiasse constituem"(MARTN-BARBERO, 1985, p. 10).

    A realidade que a cultura est na m-dia, pois o que transmitido pelos meiosde comunicao cultura. Sob pena de secair num outro extremo, contudo, deve-seressaltar que, se tanto as culturas alternati-vas quanto hegemnicas so veiculadas pe-los meios, esto tambm fora deles. Em-bora a comunicao miditica a cada mo-mento envolva mais e mais as possibilidadesde troca de sentido, ela no nica. Ou seja,a produo de sentido no viabilizada s

    pelas indstrias culturais, envolvendo ainda- e necessariamente - as mediaes.

    Pretende-se eliminar qualquer possibili-dade de ver a comunicao como totalizante. necessrio, ao elevar-se a comunicao aopatamar da cultura, no superestim-la e cr-la como panacia capaz de resolver proble-mas que so da constituio da sociedade.No o desenvolvimento de novas tecnolo-gias de comunicao (NTCs), isoladamente,

    que vai proporcionar a criao de um novopatamar de vida social, se nada for feito paracombater o injusto acesso a quase todos osbens, inclusive os bsicos, nesta sociedade.

    3 Mediao e negociao

    Decreta-se, assim, o fim do que nunca exis-tiu alm das proposies acadmicas, assi-miladas pelo senso comum: o telespecta-dor impassivo diante do poder diablico dosmeios massivos, com uma mensagem atin-gindo o mesmo efeito em todos os pblicos.Substitui-se esse discurso pelo que admiteserem as audincias plurais, que considera arecepo como o lugar onde ocorrem a nego-ciao e a produo de sentido (com a parti-cipao de produtor e receptor) e que prega oestudo dos meios de comunicao de massaa partir da cultura.

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    Ento, no a recepo um espao con-sensual. Como transmite Martn-Barbero,em entrevista a Martha MONTOYA (1992,p. 30 - 31), os conflitos esto sempre presen-tes na recepo:

    "Tambm esta nova concepoda recepo implica em estudaros conflitos. O espao da recep-o um espao de conflito entreo hegemnico e o subalterno, as

    modernidades e as tradies, en-tre as imposies e as apropria-es. Quando falamos de receponesse sentido, no estamos falandode uma recepo individual, senoda recepo como fenmeno cole-tivo, da sociedade da recepo. (...) dizer, estudar a recepo estu-dar este novo mundo de fragmen-taes dos consumos e dos pbli-

    cos, essa liberao das diferenas,essa transformao das sensibili-dades que encontram um campoespecial na reorganizao das rela-es entre o privado e o pblico".

    Da mesma forma est claro, no estudo darecepo, que, sendo o sentido negociado,a comunicao, por sua prpria natureza, negociada. Como o produtor no onipo-tente, nem o receptor um mero deposit-rio de mensagens de outros, a comunicaoimplica transao entre as partes envolvidasno jogo miditico. H uma valorizao daexperincia e da competncia comunicativados receptores (MARTN-BARBERO, 1989,p. 25). A partir da tem-se posicionamen-tos diferenciados diante dos produtos. Soas mediaes que vo implicar nas variaesde posturas frente aos bens simblicos.

    Ondina Fachel LEAL (1993, p. 148) lem-bra que recepo, conforme a perspectivalatino-americana, no corresponde idia dehomogeneizao. Sendo o receptor vivo eativo, as leituras no so homogneas, ha-vendo variaes de interesses e de produode sentido diante de uma mesma obra, deacordo com a variao do leitor ou grupos deleitores. Esse leitor, que o receptor, con-tar sempre com o processo de mediao aoassistir TV, no existindo um sem o outro.

    Por isso, a recepo no um fenmeno sim-ples e direto.

    Recepo o espao relacional "dos con-flitos que articulam a cultura, das mestia-gens que a tecem, das anacronias que a sus-tentam e, por ltimo, do modo em que traba-lha a hegemonia e as resistncias que mobi-liza", segundo MARTN-BARBERO (1987,p. 240). Est claro, devido s mediaes,que a recepo no se constitui em uma rela-

    o direta entre duas pontas, o produtor e oemissor. por meio das mediaes, que sovrias e apresentam variaes conforme mu-dam os receptores ou grupos de receptores,que se produz o sentido.

    Um dos mais importantes pesquisadoressobre recepo, Guillermo Orozco Gomez,tambm associa assistir televiso e media-es definitivamente. GOMEZ (1991, p. 60)observa que trs premissas guiam a anlisede recepo televisiva: que a recepo in-terao; que essa interao est necessaria-mente mediada de mltiplas maneiras; e quea mencionada interao no est circunscritaao momento de ver TV. Assim, o esquema li-near de uma mensagem atingindo determina-dos efeitos, ao chegar ao destinatrio, aban-donado.

    Para MARTN-BARBERO (op. cit., p.233), mediaes so os lugares de onde "pro-

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    vm as constries que delimitam e configu-ram a materialidade social e a expressividadecultural da televiso". As interaes entreo receptor e o produtor podem ser compre-endidas atravs das mediaes, constituindo-se elas no lugar que propicia o consumo di-ferenciado aos diversos receptores dos benssimblicos, de forma que produzem e repro-duzem os significados sociais. Compreende-se que mediao seja todo um conjunto defatores que estrutura, organiza e reorganiza

    a percepo e apropriao da realidade, porparte do receptor.

    Entende-se, ento, que o processo de me-diao estrutura a percepo de toda a rea-lidade social, no somente da recepo deprodutos das indstrias culturais. Sem d-vida, a identidade cultural integra as media-es. S que a mdia possui um importantepapel na constituio das identidades cultu-rais. Ento, pode-se dizer que os meios tam-

    bm compem as mediaes, o que contribuipara dificultar tentativas de anlises isoladas.Mais um motivo para reafirmar-se que, ape-sar do receptor tambm ser ativo, os meiosinegavelmente possuem um papel de desta-que no processo.

    Sendo o conjunto de mediaes ordena-dor de apropriaes distintas da recepo, elefunciona como uma lente. Conforme as me-diaes, o receptor v um determinado pro-duto televisivo ou um fato social. Cada me-diao uma lente que estrutura a recep-o. A representao da sociedade homoge-neizada, com culos iguais, no corresponde verdade. As mediaes dos receptores sodiferentes entre si. Ocorre que grupos comcaractersticas similares possuem mediaessemelhantes e, portanto, apresentam culossemelhantes.

    So trs os lugares de mediao propostos

    por Martn-Barbero, como hiptese: a coti-dianidade familiar, a temporalidade social ea competncia cultural. O cotidiano o lu-gar privilegiado para abordar o processo derecepo. No espao das prticas cotidianasencontram-se desde a relao com o prpriocorpo at o uso do tempo, o habitar e a cons-cincia do que possvel ser alcanado porcada um. Por isso, a valorizao que passoua ter o cotidiano, como lugar de captao doreal.

    no cotidiano onde ocorre a recepo,onde as pessoas vivem e o sujeito mostra-se como verdadeiramente , onde ele podese soltar da maioria das amarras que carrega.A cotidianidade familiar, repleta de tensese conflitos, um dos poucos lugares ondeos indivduos se confrontam como pessoase onde encontram alguma possibilidade demanifestar suas nsias e frustraes. O m-bito familiar, inclusive, reproduz, de forma

    particularizada, as relaes de poder que severificam no conjunto da sociedade.

    Outro lugar de mediao a temporali-dade social. Esta mediao refere-se es-pecificidade do tempo do cotidiano, contra-riamente ao tempo produtivo. O tempo deque feito a cotidianidade repetitivo, en-quanto o tempo valorizado pelo capital, oprodutivo, aquele que se mede, que corre(MARTN-BARBERO, op. cit., p. 236). O

    tempo do cotidiano o prprio das culturaspopulares, cclico, que o Estado-nao ten-tou abolir e aglutinar num novo tempo, nicoe composto de unidades contveis. A TVtambm organiza-se pelo tempo da repetioe do fragmento, incorporando-se ao cotidi-ano dos receptores.

    Por fim, MARTN-BARBERO (op. cit.,p. 241) nomeia a competncia cultural como

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    mais uma mediao que integra o processode recepo:

    "... fala tambm da competn-cia cultural dos diversos grupos,que atravessa as classes, pela viada educao formal em suas dis-tintas modalidades, mas sobretudoos que configuram as etnias, as cul-turas regionais, os dialetos locaise as distintas mestiagens urbanas

    com base naqueles. Competnciaque vive da memria - narrativa,gestual, auditiva - e tambm dosimaginrios que alimentam o su-jeito social ...".

    No processo de recepo, a competnciacultural apresenta uma mediao fundamen-tal, colaborando decisivamente para que osreceptores consumam diferentemente os pro-

    dutos culturais. A competncia cultural nose refere s cultura formal, apreendida nasescolas e nos livros. toda uma identidade,onde se insere tambm a educao formal,mas vai alm, abrangendo a cultura dos bair-ros, das cidades, das tribos urbanas. umamarcao cultural viabilizada por meio davivncia, da audio e da leitura.

    So esses lugares de mediao que per-mitem ao sujeito, agora tomado como parteativa, fazer usos diferenciados dos produtoscom os quais interage. Por isso que estenovo caminho de estudos latino-americanoempresta maior importncia ao valor de uso.A partir da a comunicao passa a ser nos vista, mas revista, abordada em toda a suacomplexidade, como parte da cultura, con-textualizada dentro da histria, valorizando ocotidiano e envolvendo pessoas que pensam,a partir de variados fatores.

    4 Deslocamentos conceituais

    O espao da recepo requer deslocamentosconceituais, como a questo, j tratada, dasmediaes, e as idias de hegemonia, poder eperspectiva histrica. O conceito gramscianode hegemonia um ponto de partida no en-tendimento de que o sentido no imposto,mas negociado. A partir desse conceito huma evoluo para a posio que hoje mo-biliza um elevado nmero de pesquisadores

    latino-americanos, de que a cultura produ-zida pelas indstrias miditicas tambm um frum de apropriao das aspiraes po-pulares.

    Com base no exposto, e identificando-se acomunicao como cultura, pode-se classifi-car a produo cultural dos meios como nosomente ataque ao que haveria de mais puro,mas tambm de incorporao dos valoresculturais populares. MARTN-BARBERO(op. cit., p. 84-85) segue levantando a ques-to da hegemonia, apontando o caminho queconduz o interesse das cincias sociais crti-cas pela obra de Gramsci:

    "Est, em primeiro lugar, oconceito de hegemonia elaboradopor Gramsci, fazendo possvelpensar o processo de domina-o social j no como imposi-o desde um exterior e sem su-jeitos, seno como um processoem que uma classe hegemoniza namedida em que representa interes-ses que tambm reconhecem de al-guma maneira como seus as clas-ses subalternas. E na medida sig-nifica aqui que no h hegemo-nia, seno que ela se faz e des-faz permanentemente em um pro-cesso vivido, feito no s de fora,

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    seno tambm de sentido, de apro-priao do sentido pelo poder, deseduo e de cumplicidade".

    A hegemonia est presente no cotidianodas pessoas, verificando-se igualmente nacultura. S que as aes hegemnicas noso to uniformes quanto possa parecer. He-gemonia tambm a capacidade de assimi-lar traos de outras culturas, sejam elas po-pulares, locais ou alternativas em geral. A

    cultura hegemnica acaba incorporando ostraos dessas outras culturas. Esse processode assimilao um dos responsveis pelaconstante identificao que os produtos dasindstrias culturais obtm junto ao pblico.

    No jogo da mediaes, cria-se e recria-sea hegemonia cultural. Isto porque o conceitode hegemonia prev resistncias, admitindoacertos e desacertos tpicos do processo derecepo. Sendo assim, hegemonia um

    conceito que, no seu interior, j prev o re-ceptor como ativo. Do contrrio, no admi-tiria a possibilidade de resistncia do recep-tor e, portanto, a necessidade de seduzi-lo. por este motivo que a proposta de hegemoniano confere poderes exclusivos classe do-minante. Ao mesmo tempo, a concepo dehegemonia deve ser pensada como expressode relaes de poder, onde a classe hegem-nica dirige a sociedade.

    Mas a sobreposio no total. Como ahegemonia prev a necessidade de reuniode elementos para atingir o consenso do con-sumidor, um conceito que, implicitamente,traz um carter de negociao, permitindosua associao idia das mediaes. Aadeso cultura hegemnica no autom-tica, precisa ser ativada, num jogo que passa,necessariamente, pelas mediaes. CAN-CLINI (1991, p. 6) explica que muitos es-

    tudos sobre comunicao massiva tm mos-trado que a hegemonia cultural no se realizamediante aes verticais em que os domina-dores prendem os receptores: entre uns e ou-tros se reconhecem mediadores.

    O conceito de hegemonia serve paradescobrir-se que a cultura massiva abriga,em seu interior, manifestaes culturais po-pulares, tradicionais e locais. A televiso porvezes colabora firmemente, atravs da divul-gao, para que um determinado evento de

    origem popular obtenha sucesso, ou para queculturas no-hegemnicas encontrem possi-bilidade de divulgao e, a partir da, de me-lhor compreenso. A telenovela "ExplodeCorao", exibida entre 1995/6, pela RedeGlobo de Televiso, no horrio das 20 ho-ras e 40 minutos, desempenhou um papelmuito relevante na divulgao da cultura ci-gana, como admitem os prprios ciganos.

    Ao lado das mediaes e da hegemonia,

    um outro deslocamento conceitual necess-rio, ao procurar-se compreender o espao darecepo, a concepo de poder. O enten-dimento de um poder com uma estrutura unae inabalvel, sem contradies, no se coa-duna com os atuais estudos em desenvolvi-mento na Amrica Latina, que trabalham asmediaes no processo de recepo e as re-laes entre comunicao e cultura. O po-der visto como uma fundao monoltica notem mais como ser sustentado neste final desculo, onde a disperso uma das principaiscaractersticas.

    A nova viso de poder envolve um deslo-camento estratgico para as zonas de tensoda dominao, de forma que ele se torna vul-nervel no mesmo momento em que se pro-pe atingir formas cada vez mais aperfeio-adas de controle social, segundo MARTN-BARBERO (1984, p. 28). O entendimento

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    de um poder impassvel diante de virtuaisrupturas internas, portanto, no se mantmna realidade do dia-a-dia. O poder, hodierna-mente, disseminado, apresentando-se nasdiversas relaes sociais e variando quanto intensidade.

    No o poder atributo de um sistema ca-paz de impor todas as suas posies aos do-minados, at porque esses dominados tam-bm apresentam capacidade de reao, em-bora com uma fora inferior do dominador.

    CANCLINI (1987, p. 8) insiste que neces-srio deixar de conceber o poder como blo-cos de estruturas institucionais, fixados emtarefas pr-estabelecidas (dominar, manipu-lar), ou como mecanismos de imposio ver-tical. Deve-se prevenir, no obstante, que opoder ocasionalmente pode se concentrar emdeterminadas instituies sociais. Muitas ve-zes elas reforam o poder por atuarem emconjunto.

    5 Perspectiva histrica

    Completando a relao dos quatro deslo-camentos conceituais propostos pelos estu-dos de comunicao latino-americanos, vema perspectiva histrica, que deve nortear acompreenso da realidade social, incluindo-se a comunicao. esta perspectiva his-trica que decreta o fim da viso nostlgicasegundo a qual o massivo chegou para con-taminar um mundo de autenticidade popular.A configurao mesma do que se entende porpopular est intimamente ligada ao que hojese chama massivo.

    Conforme Martn-Barbero (MONTOYA,op. cit., p. 28), desde o final do sculo XVIIIo que se chama de cultura popular est medi-ado por processos de comunicao que unifi-cam, centralizam e massificam. Assim que,

    desde o sculo passado, o que tem sido cha-mado de cultura popular j no pode maisser considerada manifestao cultural pura,como alguns pretendem que se mantenha athoje. Comeou no sculo XIX a ser deno-minada de cultura popular uma cultura que cada vez mais fabricada para as classes po-pulares.

    Essa nova cultura, hoje chamada de mas-sas, continha, ativava senhas de identidadedas velhas culturas, deformando, recupe-

    rando esses sinais. Por isso, no h comopensar-se em uma cultura das classes popu-lares pura, separada, sendo o caminho o es-tudo da construo das culturas, que o tri-lhar histrico. A introduo da perspectivahistrica implica na compreenso de que noso os meios os responsveis diretos pelamassificao. O fenmeno da massificao mais amplo, inscrevendo-se a necessidadede meios massivos para atender a demanda

    cultural das massas, que passam a tambmconsumir.A massificao muito mais do que meios

    de comunicao, o processo que permi-tiu o acesso das massas cena. A mdiadeve ser considerada como uma das peasdo processo de massificao, mostrando-seos meios massificados porque a sociedadecomo um todo foi massificada. Na Am-rica Latina, o incio da massificao coinci-diu com a vigncia dos governos populistase com o processo de construo das identi-dades nacionais, onde as indstrias culturaistiveram uma misso das mais importantes.

    Pode-se afirmar que a implantao dosmeios massivos latino-americanos conco-mitante ao ingresso das massas no cenriode reivindicaes e de consumo. Mas a m-dia conseqncia da massificao, de haverpblico massificado para produtos culturais,

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    e no causa. Ao mesmo tempo, os meiosforam decisivos na construo da cara, dostraos desse pblico massificado, que so asidentidades nacionais. A massificao deveser compreendida como um processo, queenvolve a sociedade no seu conjunto, asse-gura Martn-Barbero (FADUL, 1986, p. 45):

    "So poucas as pessoas que en-tendem o que significa introduzira perspectiva histrica na indstria

    cultural, no como a histria defatos, de acontecimentos simples-mente, mas o que significa Hist-ria como a nica maneira de com-preender a relao entre o populare o massivo. (...) Eu creio queeste um ponto fundamental: nose pode compreender essa novaperspectiva, que trata de superar aconcepo puramente manipulat-ria da cultura, sem introduzir-se a

    Histria para pensar a relao en-tre massificao cultural e entradadas massas na poltica, entradahistrica das massas na participa-o social, com toda a ambigi-dade poltica que a massa sempreteve e que a esquerda quis resolverdesignando-a, ou de revolucion-ria ou de fascista, quando a histriadela, a constituio das massas,

    muito mais complexa e muito maisambgua - tanto no caso do popu-lismo brasileiro, como do popu-lismo mexicano ou do argentino,para falar dos populismos que tive-ram uma grande agitao mais ex-plcita".

    Parte do preconceito que se observa athoje, com relao massificao, inclusive

    a cultural, deve-se a uma intolerncia quantoao prprio povo, a uma rejeio de que elestambm tenham acesso a alguns bens e servi-os, mesmo que em uma posio de desavan-tagem enquanto classe social. Pois, queira-seou no, a massificao representou um novopatamar, no que diz respeito ao consumo debens pblicos e produtos culturais, por parteda maioria. Contrariamente massificao,levantaram-se, no incio do processo e aindahoje, muitas vozes de intelectuais acostuma-

    dos a uma ciculao restrita de bens da esferada cultura.

    A perspectiva histrica de compreenso dasociedade mostra que a mdia desempenhoupapis especficos no processo de massifica-o na Amrica Latina. A constituio domassivo, no Continente, ocorre neste sculo,em duas etapas, a primeira da dcada de 30at o final da primeira metade dos anos 50e a outra comeando nessa poca. Inicial-

    mente, a funo dos meios "residiu em suacapacidade de fazerem-se vozes da interpe-lao que a partir do populismo convertia asmassas em povo e o povo em nao", expeMARTN-BARBERO (1985, p. 11-12). Osmeios atuaram na formao da nao brasi-leira.

    A constituio das identidades nacionaisfoi a tnica dessa primeira fase das tecno-logias de comunicao na Amrica Latina.Os governos populistas empenharam-se naconstruo de naes modernas, mediante acriao de uma cultura nacional, de uma sen-sibilidade ou um sentimento nacional. Naconsecuo desses objetivos, a nova e as-cendente mdia teve uma participao ativa.Os meios atuaram apresentando contedospara que as massas se reconhecessem, j queeste era o perodo de constituio do mas-sivo e, conseqentemente, da prpria idia

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    A segunda etapa da formao do massivofoi marcada pela participao da televiso,enquanto no perodo anterior era o rdio oprincipal meio. Houve uma substituio dopopulismo pelo discurso desenvolvimentista,como ocorreu no Brasil a partir do GovernoJuscelino Kubitscheck de Oliveira, em 1955,e com a srie de governos militares que se su-cederam no Brasil a partir de 1964, por mais

    de 20 anos dominando-o. Em todo o Con-tinente multiplicaram-se ditaduras, enquantoa presena das ento chamadas multinacio-nais estimulou a profissionalizao do mer-cado publicitrio.

    O dispositivo econmico apoderou-se dosmeios, nessa poca, o que no implicou orompimento com o Estado, j que mdiae governos militares seguiram sendo teisuns aos outros, apesar da implantao de

    um esquema de forte censura sobre as in-dstrias culturais e a arte. O empresariadomanifestava-se contra aes especficas decensura, contudo incentivava e beneficiava-se das polticas governamentais em geral. Apartir desse perodo aberto na segunda me-tade dos anos 50 mudaram as funes do Es-tado e a prpria noo do massivo, que daidia de acesso das massas aos bens passou areferir-se aos meios de comunicao.

    A mdia foi usada de forma mais incre-mentada com objetivos de unio nacional,nessa segunda fase do massivo. Se isso foipermitido com o advento da televiso, no pe-rodo anterior o meio preponderante foi o r-dio e, em alguns pases, tambm o cinema.Neste sentido, houve uma passagem da con-cepo de povo para a idia de massa, tendoem vista motivaes mercadolgicas (OR-TIZ, 1992, p. 65). Por conseqencia, a mdia

    intensificou a produo de bens que obtives-sem aprovao popular, fossem consumidosem larga escala, sendo esse o critrio defi-nidor da realizao da cultura massiva. Issolevou a crticas de que os meios comunica-cionais, particularmente a TV, estavam bai-xando o nvel cultural.

    6 Desafios de hoje

    As investigaes cientficas tratando do pro-

    cesso de recepo tm-se multiplicado, in-clusive no Brasil. Centros de pesquisa na-cionais, como a Universidade do Vale doRio dos Sinos (UNISINOS), atravs de no-mes como o professor doutor padre PedroGilberto Gomes, a professora doutora De-nise Cogo e este pesquisador, e a Universi-dade de So Paulo (USP), por meio, dentreoutros, dos professores doutores Maria Im-macolata Vassalo Lopes e Mauro Wilton de

    Souza, inserem-se neste contexto.No entanto, atestado que o receptor ativoe no se relaciona diretamente com os meiosde massa, novos desafios so impostos a esteeixo terico, que, por isso, ainda se apre-senta em construo. A pesquisa na reaprecisa avanar, necessita mostrar de formamais precisa como se processa o relaciona-mento receptor-indstria cultural/bem sim-blico, ressaltando quais mediaes so pre-ponderantes na definio do comportamentodos vrios grupos de consumidores, o que feito com as mensagens da mdia e qual aparticipao dela na composio dos hbitose atitudes dos cidados.

    Ao lado deste principal desafio, outroponto de discusso tem sido a problem-tica metodolgica - uma questo sempre pre-sente nos levantamentos cientficos, princi-palmente aqueles da rea da comunicao,

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    para onde convergem vrias cincias, maispremente nos que tratam o processo de re-cepo. Isso ocorre porque o olhar necessa-riamente deve ser ampliado, para dar contade toda a relao. Embora no seja a nica, aproposta metodolgica mais presente no de-bate sobre recepo a de Guillermo OrozcoGomez, que explicita possibilidades de apro-ximao do objeto, apesar de ser criticada dede partir a anlise.

    Nesse mesmo rumo, questiona-se a difi-

    culdade que tm tido as pesquisas de recep-o de dar conta tambm da produo, oque consta da proposta original de Martn-Barbero, j que se trata de um processo ea falta de ateno sobre os meios pode pa-recer que o poder do receptor ilimitado, oque no . Assim que muitos pesquisado-res tm procurado associar s contribuiesdo eixo latino-americano outros referenciaistoricos, enquanto outros, como o professor

    doutor Antonio Fausto Neto, primeiramentena Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ) e depois na UNISINOS, investigama recepo a partir da anlise do discurso.

    Em meio a esta, Jess Martn-Barbero, emeventos no Brasil, em agosto/setembro de1997, pouco falou de recepo. Diante disso,ao mesmo tempo em que se reconhece a im-portncia do eixo latino-americano, pelo im-pulso que forneceu viso no-totalizanteda mdia, deve-se pensar cada vez mais emestabelecer-se ligaes com outras corren-tes tericas, bem como estruturar-se gru-pos de investigao sobre recepo, na ex-pectativa de que o coletivo explique melhoro fenmeno. Por fim, torna-se necessrio,neste tempo em que as respostas funcionammais como geradoras de dvidas, que a li-nha latino-americana de anlise da recepovolte a mergulhar em suas origens, os estu-

    dos culturais ingleses, o que, alis, tem mo-tivado estudiosos brasileiros.

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