compreender o cinema - tubarão

8
1 2 3 4 5 A icônica trilha sonora de “Tubarão” (1977) é reconhecida imediatamente, porém mais do que seu aspecto popular, é preciso ressaltar sua função narrativa e a forma como Steve Spielberg usa a fácil percepção de sua função em prol dos sentidos num momento climático. Ao longo do filme, há ataques falsos (1 e 2) e ataques reais (3 e 4) do tubarão. Porém, nos ataques falsos, ainda que a imagem transpareça a sensação de perigo, a ausência da trilha de John Williams já avisa o espectador que não é necessário se preocupar. Porém, sempre que o verdadeiro ataque é iminente, a trilha surge para pontuar a presença do verdadeiro animal. Quando ele aparece no terceiro ataque (5), mesmo visto de longe, os acordes da trilha já surgem vagarosamente, antecipando que a ameaça é verídica. É fácil para o público se acostumar com esssa função narrativa, e Spielberg usa isso: em outra cena famosa, o tubarão surge repentinamente em frente a Brody. Só que, nesse momento, Spielberg subverte o que vinha fazendo e NÃO utiliza a música para anunciar sua chegada. O resultado é que, acomodado, sem a antecipação, o público é balançado em sua comodidade pelo susto. A trilha com função narrativa 6 Tubarão (1975) A ntecipação e imaginação são duas palavras que cabem na medida para começar a falar de Tubarão, filme que, além dos méritos técni- cos e artísticos, tem lugar assegu- rado na história do cinema por ser elemento chave numa das maiores transformações da indústria do cinema em todos os tempos. Adaptado de um best-seller de Peter Bench- ley lançado dois anos antes, “Tubarão” foi en- tregue a um jovem Steven Spielberg, que na época, entre gravações de episódios de séries televisivas, havia dirigido apenas o ótimo sus- pense “Encurralado”, de 1971, e a aventura escapista “Louca Escapada”, lançada em 1974. A produção do filme, no entanto, foi terrivel- mente complicada. Spielberg sentiu na pele a máxima – que perdura até hoje – de que “gra- var no mar é prenúncio de fracasso”. O maior dos contratempos, no entanto, foi o imenso tubarão mecânico criado para o filme (batiza- do por Spielberg de “Bruce”, nome de seu ad- vogado) que, simplesmente, teimava em não funcionar, além de ser pouco convincente. É certo que a contribuição da montadora Verna Fields foi fundamental para o sucesso do filme, mas é injusto retirar de Spielberg qualquer mérito, ou atribuir apenas à estraté- gia utilizada na montagem como mérito para o sucesso do filme. Já que o Tubarão pouco convincente não ajudava, a primeira aparição dele acontece, apenas, depois de uma hora de filme. Até esse momento, os ataques mostra- vam, apenas, as reações das vítimas, e cabia à plateia imaginar o que estava acontecendo embaixo d’água. A estratégia de esconder a fonte do medo é poderosa. Ela já havia sido us- ada com sucesso por cineastas como Jacques Tourneur nos anos 50, que mascaravam a po- breza de algumas produções baseando-se em uma das mais eficientes máximas do cinema fantástico: o nosso maior medo está naquilo que não vemos. O maior monstro é aquele cri- ado pelas nossas mentes. Fica claro, porém, que se a estratégia de Fields funciona nesse sentido, Spielberg plane- jou seu filme de forma a privilegiar a ideia de suspense pregada por Hitchcock, de que de- vemos nos tornar cúmplices do vilão ou dos acontecimentos ruins prestes a ocorrer aos protagonistas. Deixá-los (os protagonistas) na ignorância, enquanto, deste lado da tela, nós sabemos de tudo o que ocorre. Essa estratégia segue desde o primeiro ataque até vários mo- mentos da caçada ao tubarão, em alto mar, conduzida por Brody, Hooper e Quint. Hooper e Quint, por sinal, são personagens opostos ao extremo, e essa diferença é exposta em uma cena simples, mas sintomática: quando, no barco, Quint amassa uma lata de cerveja e olha ameaçadoramente para Hooper, que o encara de forma fixa (mas também irônica) e amassa a contribuição da montadora Verna Fields foi fundamental para o sucesso do filme, mas é injusto retirar de Spielberg qual- quer mérito, ou atribuir apenas à estratégia utiliza- da na montagem como mérito para o sucesso do filme Elementos para análise Tubarão (1975) Steven Spielberg

Upload: jornalismors

Post on 09-Jul-2016

278 views

Category:

Documents


4 download

DESCRIPTION

Análise do NEC - UPF

TRANSCRIPT

1 2

3 4

5

A icônica trilha sonora de “Tubarão” (1977) é reconhecida imediatamente, porém mais do que seu aspecto popular, é preciso ressaltar sua função narrativa e a forma como Steve Spielberg usa a fácil percepção de sua função em prol dos sentidos num momento climático. Ao longo do filme, há ataques falsos (1 e 2) e ataques reais (3 e 4) do tubarão. Porém, nos ataques falsos, ainda que a imagem transpareça a sensação de perigo, a ausência da trilha de John Williams já avisa o espectador que não é necessário se preocupar. Porém, sempre que o verdadeiro ataque é iminente, a trilha surge para pontuar a presença do verdadeiro animal. Quando ele aparece no terceiro ataque (5), mesmo visto de longe, os acordes da trilha já surgem vagarosamente, antecipando que a ameaça é verídica. É fácil para o público se acostumar com esssa função narrativa, e Spielberg usa isso: em outra cena famosa, o tubarão surge repentinamente em frente a Brody. Só que, nesse momento, Spielberg subverte o que vinha fazendo e NÃO utiliza a música para anunciar sua chegada. O resultado é que, acomodado, sem a antecipação, o público é balançado em sua comodidade pelo susto.

A trilha com função narrativa

6

Tubarão (1975)

Antecipação e imaginação são duas palavras que cabem na medida para começar a falar de Tubarão, filme que, além dos méritos técni-cos e artísticos, tem lugar assegu-

rado na história do cinema por ser elemento chave numa das maiores transformações da indústria do cinema em todos os tempos.

Adaptado de um best-seller de Peter Bench-ley lançado dois anos antes, “Tubarão” foi en-tregue a um jovem Steven Spielberg, que na época, entre gravações de episódios de séries televisivas, havia dirigido apenas o ótimo sus-pense “Encurralado”, de 1971, e a aventura escapista “Louca Escapada”, lançada em 1974. A produção do filme, no entanto, foi terrivel-mente complicada. Spielberg sentiu na pele a máxima – que perdura até hoje – de que “gra-var no mar é prenúncio de fracasso”. O maior dos contratempos, no entanto, foi o imenso tubarão mecânico criado para o filme (batiza-do por Spielberg de “Bruce”, nome de seu ad-vogado) que, simplesmente, teimava em não funcionar, além de ser pouco convincente.

É certo que a contribuição da montadora Verna Fields foi fundamental para o sucesso do filme, mas é injusto retirar de Spielberg qualquer mérito, ou atribuir apenas à estraté-gia utilizada na montagem como mérito para o sucesso do filme. Já que o Tubarão pouco convincente não ajudava, a primeira aparição

dele acontece, apenas, depois de uma hora de filme. Até esse momento, os ataques mostra-vam, apenas, as reações das vítimas, e cabia à plateia imaginar o que estava acontecendo embaixo d’água. A estratégia de esconder a fonte do medo é poderosa. Ela já havia sido us-ada com sucesso por cineastas como Jacques Tourneur nos anos 50, que mascaravam a po-breza de algumas produções baseando-se em uma das mais eficientes máximas do cinema fantástico: o nosso maior medo está naquilo que não vemos. O maior monstro é aquele cri-ado pelas nossas mentes.

Fica claro, porém, que se a estratégia de Fields funciona nesse sentido, Spielberg plane-jou seu filme de forma a privilegiar a ideia de suspense pregada por Hitchcock, de que de-vemos nos tornar cúmplices do vilão ou dos acontecimentos ruins prestes a ocorrer aos protagonistas. Deixá-los (os protagonistas) na ignorância, enquanto, deste lado da tela, nós sabemos de tudo o que ocorre. Essa estratégia segue desde o primeiro ataque até vários mo-mentos da caçada ao tubarão, em alto mar, conduzida por Brody, Hooper e Quint. Hooper e Quint, por sinal, são personagens opostos ao extremo, e essa diferença é exposta em uma cena simples, mas sintomática: quando, no barco, Quint amassa uma lata de cerveja e olha ameaçadoramente para Hooper, que o encara de forma fixa (mas também irônica) e amassa

a contribuição da montadora

Verna Fields foi fundamental

para o sucesso do filme, mas é

injusto retirar de Spielberg qual-quer mérito, ou

atribuir apenas à estratégia utiliza-da na montagem como mérito para o sucesso do filme

Elementos para

análiseTubarão (1975)Steven Spielberg

1 2

3 4

5 “Tubarão” (1977) deve grande parte de seu sucesso à estratégias de pós-produção, mas vários momentos do filme demonstram que o roteiro já previa um trabalho de antecipação do monstro pelo público. Antes que ele apareça para o espectador, em diversos momentos é trabalhada a expectativa pela sua figura: no foco à digitação da palavra “shark attack” (1), na tela do game killer shark (2) que inicia a apresentação do cenário no dia do segundo ataque ou na sequência em que o xerife Brody observa um livro sobre o tema (3 e 4). Aqui, há até uma pista relacionada ao desfecho do filme (5) que, mais do que presentear o espectador atento, serve para justificar uma decisão tomada por Brody na climática cena final.

Antecipação, pista e

recompensa

Elementos para

análiseTubarão (1975)

Steven Spielberg

um copo de... plástico.Faz parte da estratégia de nos colo-

car a par daquilo que os protagonistas não sabem, também, o uso primoro-so da trilha sonora de John Williams. À parte da genialidade dos acordes simples da trilha, ela serve como um elemento indicador de veracidade de perigo. Sempre que o tubarão apare-cer, ele estará acompanhado da tril-ha. O diálogo da trilha com o público se intensifica nos momentos em que, aparentemente, o tubarão está para aparecer, mas revela-se como falso alarme. Logo, a plateia absorve de for-ma inconsciente esse sinal de verdade e passa a ligar as notas da trilha ao ver-dadeiro tubarão.

É por saber disso, por exemplo, que Spielberg aproveita a criação desse código sonoro para surpreender a plateia mais tarde: na primeira vez que vemos o tubarão com detalhes, ele surge enquanto o xerife Brody joga sangue na água para atraí-lo. O sus-to no espectador acontece por dois motivos: o primeiro é a riqueza dos diálogos do roteiro de Carl Gottlieb, que soam tão naturais que envolvem o público na discussão entre os três personagens no barco (acentua-se, também, a importância e o acerto da escolha de elenco). O segundo motivo, que evidencia o domínio de Spielberg e Fields no momento da montagem, é a decisão de não inserir, nessa cena, a música de John Williams. O público já está acostumado a ligar a aparição do

monstro à música, e, repentinamente, ele surge sem nenhum aviso. Nem para Brody, nem para o público.

Mas Tubarão não é feito apenas dos momentos excitantes da caça ao tubarão ou de momentos chave como os ataques aos banhistas. Há pequenos detalhes ao longo dos 125 minutos do filme que justificam a posição da obra como um dos grandes filmes do cine-ma americano contemporâneo. Spiel-berg não mostra o Tubarão, mas acres-centa várias cenas que, pouco a pouco, ampliam no público uma espécie de “imagem” mental do animal, que fica flutuando sobre a plateia. Formas de evidenciar essa lenta construção da imagem do grande vilão do filme sur-gem no superclose nas palavras “shark attack” do relatório policial, do vid-eo-game Killer Shark ou no enfoque dado às imagens que Brody folheia em um dos livros que usa para se informar sobre seu “inimigo”.

O roteiro também enfatiza, em seus primeiros 20 minutos, a série de eventos banais que costumam ocupar o dia a dia do xerife de uma pequena cidade costeira cujos maiores prob-lemas para a polícia são moleques quebrando cercas. É o início da con-strução do arco dramático do person-agem de Roy Scheider, que é uma das melhores coisas do filme. Brody, para começar, é o retrato vivo do contraste e da ironia: odeia água, tem medo de água, não entra na água, mas trabalha em um local cercado de água por to-

dos os lados. É importante para o público estabelecer os laços famili-ares com o personagem, entender suas fobias e compreender sua rotina habitualmente calma e sem maiores problemas para abraçar, realmente, a posição de se importar e torcer por ele. É interessante reparar como, no ataque que mata o menino Alex, en-quanto as pessoas entram na água para tirar seus filhos, o xerife para bruscamente quando termina a areia, e chega, em um momento, a olhar para o chão e dar um passo para trás, para não pisar na água.

Para estabelecer uma ligação com o público, também, Spielberg se esforça por demonstrar a ligação e a preocupação forte que há entre Brody, a esposa e os filhos. Dois mo-mentos são emblemáticos: quando ele pede ao filho que o beije, durante o jantar, e após o segundo ataque do tubarão, em que ele divide a tela com o imenso animal, mas, ao invés de se-gui-lo e se preocupar com o Tubarão como todos que surgem na tela, corre na direção oposta, preocupado unica-mente com o filho. Essa relação é tão importante que Spielberg compõe um plano interessantíssimo: faz com que o filho pequeno de Brody divida a tela com o tubarão, ao fundo, como forma de dizer que essa luta, mais do que nunca, se tornará pessoal.

Tão pessoal que é depois do susto passado pelo filho que Brody encara o mar e decide, de uma vez por todas,

1 2

3 4

5

Spielberg utiliza da movimentação da câmera e dos atores, no plano, para expressar importantes significados semióticos na narrativa de Tubarão (1977). Na cena acima, o xerifo Brody e o oceanógrafo Hooper tentam convencer o prefeito de Amity a fechar as praias. A cena é gravada em uma só tomada, sem cortes. Na primeira metade da cena, Hooper e Brody trocam constantemente de posição, sempre cercando a figura do prefeito, enfatizando a ideia de pressão sobre o personagem (2, 3 e 4). Na meta-de final, Spielberg usa um elemento em segundo plano (o outdoor vandalizado) e posiciona seus atores no plano, com o xe-rife acuado no canto da tela. Única pessoa com poderes para evitar uma tragédia, ele recusa-se a ceder à pressão, e sai de cena. O plano final, com o vazio da tela no local onde ele se encontrava, enfatiza a mensagem: aquele que tem poder para tomar uma decisão não quer fazer nada.

O poder da mise-en-scéne (1)

6

Construção de personagens eficiente sem necessidade de diálogo: enquanto Quint tenta ser “machão” e esmaga a lata de alumínio, o pacífico e intelectual Hooper responde amassando o copo de plástico

Elementos para

análiseTubarão (1975)Steven Spielberg

acabar com seu algoz enfrentando o mar.Spielberg não se furta, também, de falar

semioticamente ao espectador. É perceptível, por exemplo, o fato de Hooper trazer ao jantar na casa de Brody dois tipos de vinho: branco e tinto. Pois Brody abre e serve, enchendo um copo, o vinho tinto (vermelho como sangue) no momento em que discute com Hooper sobre a decisão de abrir o tubarão capturado naquele dia.

Mais perceptível ainda é o momento da par-tida de Brody, Hooper e Quint em direção ao mar. A câmera de Spielberg vislumbra o barco do trio, o “Orca”, partindo do cais através de uma moldura criada pela boca aberta de um esqueleto de tubarão. Pouco depois, a monta-gem opta por não fazer um corte seco e mes-clar a imagem do barco saindo do canal com a água vermelha do sangue jogado por Brody como isca ao tubarão. É emblemática a visão do “Orca” navegando por um mar de sangue.

Mas é interessante, também, analisar mais de perto duas cenas em particular: uma pela brilhante construção de sua mise-en-scène, e outra pela mescla de vários elementos impor-tantes numa narrativa audiovisual: enquadra-mento, montagem, pista e recompensa, movi-mento de câmera, profundidade...

A primeira cena aparece logo no início do filme, e nela Spielberg constrói sem cortes três sentidos interpretativos a partir da relevância do assunto discutido com os personagens en-volvidos. Nela, Brody está na balsa e acabou de ordenar o fechamento das praias. Ao fundo, um carro se aproxima e, quando Brody se colo-ca do lado esquerdo da tela, ele entra na balsa.

Do carro saem diversos personagens ain-

Para estabelecer uma ligação

com o público, também, Spiel-berg se esforça

por demonstrar a ligação e a preo-

cupação forte que há entre Brody, a esposa e os filhos

1

2

3

4

5

Em Tubarão (1977), Steven Spielberg constrói uma interessante cena divid-ida em 3 níveis de significação a partir, unicamente, de uma bem pensada mise-en-scène levada a cabo em uma só tomada. No começo da cena, o xerife Brody está sozinho (1) no barco, após mandar fechar as praias devido a um ataque de tubarão. O carro com o prefeito e membros do conselho da cidade chega à balsa e, ao sair do carro, pressionam o xerife (2) por uma explicação. Brody está acuado no canto do plano enquanto todos os outros personagens em cena posicionam-se de forma a preencherem o restante da tela, encarando-o, passando a sensação de pressão sobre o personagem. A partir do momento em que o médico afirma que mudará de ideia em relação à causa da morte da primeira vítima, o primeiro nível de resolução da trama é resolvido e os demais personagens “relaxam a pressão” e viram-se de lado. (3) O xerife, o prefeito e o personagem interpretado pelo roteirista do filme Carl Gottlieb, então, separam-se e movem-se em direção à câmera para uma rápida discussão referente apenas aos três (4). Logo depois, o personagem de Gottlieb sai de cena enquanto o prefeito puxa o xerife para perto da câmera para um assunto que diz respeito apenas aos dois, quando eles, informalmente, acabam assumindo a responsabilidade pelo que ocorrerá mais adiante (5).

O poder da mise-en-scéne (2)

Elementos para

análiseTubarão (1975)

Steven Spielberg

Desenvolvimento do personagemSimples e marcante, a cena em que Brody pede um beijo ao filho na mesa da sala de jantar pode parecer banal, mas é importante: ela ajuda a compreender tanto a aflição e os dilemas do personagem (e assim, o torna humano, aproximando ele do espectador e causando a necessária empatia para que nos preocupemos com ele) como a importância que ele dá à família. Mais à frente, é quando a família dele é posta diretamente em perigo que o xerife decide, de uma vez por todas, enfrentar seus medos e partir para alto mar atrás do tubarão.

da desconhecidos do público, mas logo descobri-mos que são o prefeito, o médico responsável pela autópsia da primeira vítima, e, provavelmente, ver-eadores de Amity, ou membros do conselho. A in-tenção do grupo é pressionar Brody a não interditar as praias, essenciais para a sobrevivência da cidade.

Spielberg demonstra isso visualmente, já que compõe um plano em que Brody aparece espremi-do no canto da tela e todos os outros personagens compõem o restante do plano, de forma planejada, virados para ele. A pressão sofrida pelo xerife é per-ceptível visualmente.

Um segundo momento acontece a partir do mo-mento em que o médico informa a Brody que de-fenderá a ideia de que foi uma hélice que matou a primeira vítima. “Resolvido” esse dilema, os perso-nagens secundários voltam sua atenção para outro lado, “relaxando” a pressão sobre o xerife. Três per-sonagens se aproximam da câmera e se isolam: Bro-dy, o prefeito e o personagem de Carl Gotlieb, ro-teirista do filme que faz uma ponta. Rapidamente, eles mantém a tentativa de convencer Brody, até que, num terceiro momento, o prefeito o puxa para próximo da câmera até que ela se foca apenas nos dois, e o prefeito convence o xerife que de ao en-fatizar a palavra “tubarão”, ele provocará pânico no feriado da independência. Nesse momento, já, todos os demais personagens na balsa são comple-tamente secundários: eles já cumpriram sua função de “acuar” o xerife.

A segunda cena vem logo a seguir: é a cena da morte do menino Alex.

Spielberg começa a cena apresentando, de cara, três “personagens” importantes por diferentes mo-tivos. Primeiro, a mulher obesa, que divide o plano com o rapaz que brinca com seu cachorro. Quando ela entra na água, a câmera “a abandona” e acom-panha o menino, que descobrimos se chamar Alex. Num movimento contínuo, acompanhamos ele pedir à mãe para voltar á água (decisão trágica) e então seguir caminhando. Somos “levados” por ele até Brody, que surge em primeiro plano.

Aqui, Spielberg evita qualquer ênfase maior

Na cena da barca, a pressão sofrida

pelo xerife por parte do conse-lho da cidade fica expressa

visualmente pela composição dos

personagens den-tro do plano

1 2

3 4

5 6

7 8

Os personagens dessa cena não são conhecidos do público, portanto, Spiel-berg os “apresenta” logo na primeira tomada, sem cortes, onde aparecem a mulher obesa, o rapaz com o cachorro e o menino Alex. (1 e 2). Em seguida, ele de-dica-se a nos apresentar com mais ênfase ao menino. O espectador com olhar mais apurado compreende que, para merecer a atenção da câmera, alguma coisa nesse momento deve ter significação para a história. É mais uma pista para o futuro. (3) A câmera, ainda sem o corte, faz com que Alex nos “entregue” ao xerife (4). O destino do rapaz está ligado, sem saber, às decisões tomadas pelo xerife. Não há, à vista, outras pessoas usando o simbólico vermelho que Alex usa, e o enquadramento do xerife, respeitando a clássica regra dos três pontos, permite compreender sua preocupação e a quantidade de pessoas na praia lotada. Os planos seguintes mostram os “per-sonagens” apresentados anteriormente sendo colocados no campo da ação: a água. (6,7,8)

Apresentação e posicionamento

Saia da frente!! De uma forma simples, Spiel-berg continua enfatizando o quão preocupado está o xerife com o que ocorre no mar. Mesmo

tendo sua parcela de culpa, o público identi-fica-se com o personagem, que demonstra a

humanidade que o prefeito não tem

na cor vermelha, exceto no calção de Alex. Tam-bém, faz uso de uma profundidade de campo rel-ativamente ampla para que, contrapondo ao rosto preocupado do xerife, ocupando seu terço direito na tela, percebamos o quão movimentada está a praia – e, consequentemente, o quão nervoso está o xerife.

Não é preciso nenhum diálogo que aponte para o nervosismo. Em uma série genial de jump cuts disfarçados pela passagem de pessoas em frente à câmera, nos aproximamos do xerife e acompanha-mos, com ele, a apreensão de um ataque que reve-la-se falso. A “vítima” seria a primeira pessoa apre-sentada na cena, a mulher obesa.

Entra em prática a ideia de que esse reconhe-cimento do público dos personagens envolvidos, mesmo que os secundários e insignificantes, auxilia na compreensão do cenário como um todo. Aqui, também, temos a aplicação do conceito de que a trilha anuncia o ataque: no “falso ataque visto pelo xerife, não há trilha alguma.

Aliás, não há trilha alguma em toda a cena, exce-to o rádio tocando na praia. A sequência prossegue com dois personagens vindo falar com Brody. Am-bos colocam-se entre ele e a água. A câmera revela como o xerife incomoda-se com a presença deles e como seu objetivo é, sempre, ver o que ocorre na praia. Sem dizer nada, Spielberg no põe a par do quaõ tenso está o personagem.

Nesse momento, um grupo de crianças resolve ir para a água, e em cortes rápidos, Spielberg enfati-za as batidas na água – que atrairão o tubarão em

Dê às imagens a primazia da

compreensão, e não da imagem: Spielberg precisa apenas de ima-

gens para deixar claro ao público

os sentimentos de seu protagonista

Elementos para

análiseTubarão (1975)Steven Spielberg

Pessoas passam em frente à câmera e “disfarçam” uma série de jump cuts que alternam a visão do público entre o preocupado xerife e o mar. O primeiro “ataque” falso acontece, e a ausência da música já nos avisa que não é

o tubarão

1 2

3 4

5

O “Orca” parte para alto mar, e duas imagens antecipam ao público que essa jornada não acabará bem: o enquadramento do barco dentro de uma boca de tubarão (1) , e o raccord feito pela fusão de imagens coloca o barco “navegando” em um mar de sangue. (2,3,4) Na cena do jantar, o vinho tinto servido no momento em que se discute a respeito de abrir ou não o tubarão caçado também tem forte sentido semiótico… (5)

Sentidos semióticos

direção ao grupo.Outro personagem surgido no início da

cena mostra sua função: o rapaz que brincava com o cachorro busca por ele, mas não o en-contra. Apenas o graveto que ele buscava para o dono aparece boiando na água. O tubarão já o atacou.

Aí, sim, surge a trilha de John Williams e somos levados, como no início do filme, para baixo d’água. Nos tornamos cúmplices do peixe e sabemos que o ataque é real. E o alvo é o menino Alex.

Quando o ataque acontece, Spielberg re-flete a forma como a vida e as ideias de Bro-dy se tornam desconcertadas e até mesmo distorcidas pelo ataque com um movimento criado por Hitchcock, o chamado “efeito ver-tigo”: a câmera aproxima-se fisicamente o ator, um movimento chamado dolly in, enquanto a lente se afasta num zoom out.

O pânico que se segue mostra o xerife, amedrontado, evitando sequer pisar na água, enquanto as pessoas correm amedrontadas. Do meio da multidão, surge a mãe de Alex. Spielberg expõe o isolamento do sofrimento dessa mãe fazendo com que, aos poucos, ela se isole dos outros, até que, em um close, reste apenas seu rosto preocupado no quadro, se-guido da bóia ensanguentada usada pelo filho, que surge boiando na praia.

Elementos para

análiseTubarão (1975)

Steven Spielberg

1 2

3

4

5

6

5

6

7

8

9

Os personagens apresentados no início da cena “cumprem sua função”. A mulher obesa faz parte do falso ataque que antecipa a cena. O rapaz com o cachor-ro avisa ao público que algo está errado: o animal desaparece no mar - e Spielberg continua acentuando a forma como a família do xerife está em perigo

também, colocando o filho mais novo de Brody no mesmo plano. A seguir, a trilha sonora surge e nos avisa que, desta vez, o verdadeiro predador aparece, e o alvo é o menino Alex. (1,2,3,4) Spielberg aplica o “efeito vertigo” (5,6,7,8), mesclando um zoom na direção contrária de um dolly feito simultaneamente,

para acentuar o estado de confusão que se abate sobre Brody quando o tubarão ataca na praia. Enquanto pais entram na água para tirar seus filhos, o xerife evita pisar na água, comprovando uma eficiente construção do personagem. (7 e 8). Por fim, Spielberg isola a mãe do menino em seu drama, em relação ao

restante das pessoas na praia (9)

Elementos para

análiseTubarão (1975)Steven Spielberg

1 2

3 4

5 6

7 8

9 10

Tão importante quanto as fobias de Brody, é entender sua preocupação com a família. No segundo ataque, em que pela primeira vez temos uma noção do tamanho do tubarão (6) o xerife chega a dividir a tela (7) com o

animal que submerge e atrai a atenção de todos. Brody, no entanto, tem olhos apenas na direção onde estão seus filhos (8) . Spielberg cria até um plano (5) em que o filho do xerife brinca com o tubarão ao fundo. É a

partir desse momento, em que sua família é posta em perigo, que o personagem encara o mar (10) e resolve dar um basta na situação.

Elementos para

análiseTubarão (1975)

Steven Spielberg