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23 COMPORTAMENTO HÍDRICO DE SUPERFÍCIE DA BACIA DO RIO CABUÇU DE CIMA, PARQUE ESTADUAL DA CANTAREIRA, GUARULHOS, SP Marco Antônio Lacava Universidade Guarulhos - Laboratório de Geoprocessamento - Mestrado em Análise Geoambiental - CEPPE - Praça Tereza Cristina, 229 - Cep 07023-070 - Guarulhos-SP - e-mail: [email protected] Antônio Manoel dos Santos Oliveira Universidade Guarulhos - Laboratório de Geoprocessamento - Mestrado em Análise Geoambiental - CEPPE - Praça Tereza Cristina, 229 - Cep 07023-070 - Guarulhos-SP - e-mail: [email protected] Augusto José Pereira Filho Universidade de São Paulo - Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas - Rua do Matão, 1226 - Cep 05508-090 - São Paulo-SP - e-mail: [email protected] Revista Brasileira de Geomorfologia - v. 10, nº 1 (2009) www.ugb.org.br Resumo Análises de geomorfologia e hidrometeorologia aplicados à bacia do rio Cabuçu de Cima confirmaram a hipótese da pesquisa de que esta bacia apresenta um comportamento hídrico que favorece mais o escoamento superficial que a infiltração. A bacia apresenta solos rasos sobre litologias cristalinas, em relevo acidentado de morros e montanhas, cobertas de vegetação natural da Mata Atlântica. A determinação dos parâmetros geomorfológicos revelou elevadas densidades das drenagens, fortes declividades dos talvegues e altos índices de circularidade das sub-bacias. A abordagem hidrometeorológica mostrou que as chuvas mais freqüentes no período estudado foram do tipo convectivo de alta intensidade; que a análise de eventos por método do Soil Conservation Service indicou terrenos que favorecem o escoamento superficial e que o balanço hídrico revelou eleva- das taxas de evapotranspiração. Este comportamento destaca o papel da vegetação como serviço da biosfera na redução dos problemas geohidroambientais da Região Metropolitana de São Paulo. Palavras-chave: Geomorfologia, hidrometeorologia, análise geoambiental, rio Cabuçu de Cima, Parque Estadual da Cantareira, Guarulhos. Abstract Geomorphologic and hydrometeorologic analyses applied to the Cabuçu de Cima watershed agree with the hypotheses of this research in that the watershed yields runoff higher than infiltration. The watershed has shallow soils over crystalline rocks with topographic features dominated by hills and mountains covered with Atlantic Forest type of vegetation. The geomorphologic variables estimates revealed high drainage densities, steep slops and sub-watersheds with high circularity indexes. The hydrometeorologic analyses indicated that the most frequent rainfall type was convective; that the Soil Conservation Service curve number analysis indicated water flow dominated by superficial runoff and high evapotranspiration rates. These characteristics show the role of the vegetation in reducing geological, hydrological and environmental problems in the metropolitan area of São Paulo. Keywords: Geomorphology, hydrometeorology, geoenvironmental analysis, Cabuçu de Cima river, Parque Estadual da Cantareira, Guarulhos. Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.1, p.23-30, 2009 1 Trabalho extraído da dissertação de mestrado: Lacava, M.A. 2007. Comportamento hídrico de superfície da bacia do rio Cabuçu de Cima, Núcleo Cabuçu do Parque Estadual da Cantareira, Guarulhos, SP. Dissertação de Mestrado em Análise Geoambiental. Universidade Guarulhos. 71 p. Pesquisa apoiada pela FAPESP.

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Page 1: COMPORTAMENTO HÍDRICO DE SUPERFÍCIE DA BACIA DO RIO …

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COMPORTAMENTO HÍDRICO DE SUPERFÍCIE DA BACIA DORIO CABUÇU DE CIMA, PARQUE ESTADUAL DA CANTAREIRA,

GUARULHOS, SPMarco Antônio Lacava

Universidade Guarulhos - Laboratório de Geoprocessamento - Mestrado em Análise Geoambiental - CEPPE -Praça Tereza Cristina, 229 - Cep 07023-070 - Guarulhos-SP - e-mail: [email protected]

Antônio Manoel dos Santos OliveiraUniversidade Guarulhos - Laboratório de Geoprocessamento - Mestrado em Análise Geoambiental - CEPPE -

Praça Tereza Cristina, 229 - Cep 07023-070 - Guarulhos-SP - e-mail: [email protected]

Augusto José Pereira FilhoUniversidade de São Paulo - Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas - Rua do Matão, 1226 -

Cep 05508-090 - São Paulo-SP - e-mail: [email protected]

Revista Brasileira de Geomorfologia - v. 10, nº 1 (2009)

www.ugb.org.br

Resumo

Análises de geomorfologia e hidrometeorologia aplicados à bacia do rio Cabuçu de Cima confirmaram a hipótese dapesquisa de que esta bacia apresenta um comportamento hídrico que favorece mais o escoamento superficial que a infiltração.A bacia apresenta solos rasos sobre litologias cristalinas, em relevo acidentado de morros e montanhas, cobertas de vegetaçãonatural da Mata Atlântica. A determinação dos parâmetros geomorfológicos revelou elevadas densidades das drenagens, fortesdeclividades dos talvegues e altos índices de circularidade das sub-bacias. A abordagem hidrometeorológica mostrou que aschuvas mais freqüentes no período estudado foram do tipo convectivo de alta intensidade; que a análise de eventos por métododo Soil Conservation Service indicou terrenos que favorecem o escoamento superficial e que o balanço hídrico revelou eleva-das taxas de evapotranspiração. Este comportamento destaca o papel da vegetação como serviço da biosfera na redução dosproblemas geohidroambientais da Região Metropolitana de São Paulo.

Palavras-chave: Geomorfologia, hidrometeorologia, análise geoambiental, rio Cabuçu de Cima, Parque Estadual da Cantareira, Guarulhos.

Abstract

Geomorphologic and hydrometeorologic analyses applied to the Cabuçu de Cima watershed agree with the hypotheses of thisresearch in that the watershed yields runoff higher than infiltration. The watershed has shallow soils over crystalline rocks withtopographic features dominated by hills and mountains covered with Atlantic Forest type of vegetation. The geomorphologic variablesestimates revealed high drainage densities, steep slops and sub-watersheds with high circularity indexes. The hydrometeorologicanalyses indicated that the most frequent rainfall type was convective; that the Soil Conservation Service curve number analysisindicated water flow dominated by superficial runoff and high evapotranspiration rates. These characteristics show the role of thevegetation in reducing geological, hydrological and environmental problems in the metropolitan area of São Paulo.

Keywords: Geomorphology, hydrometeorology, geoenvironmental analysis, Cabuçu de Cima river, Parque Estadual daCantareira, Guarulhos.

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.1, p.23-30, 2009

1 Trabalho extraído da dissertação de mestrado: Lacava, M.A. 2007. Comportamento hídrico de superfície da bacia do rio Cabuçu de Cima,Núcleo Cabuçu do Parque Estadual da Cantareira, Guarulhos, SP. Dissertação de Mestrado em Análise Geoambiental. Universidade Guarulhos.71 p. Pesquisa apoiada pela FAPESP.

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Introdução

Este trabalho apresenta uma abordagemgeomorfológica e hidrometeorológica da bacia do rioCabuçu de Cima visando à caracterização do seu com-portamento hídrico de superfície. Esta bacia, situada noNúcleo Cabuçu do Parque Estadual da Cantareira (PEC),município de Guarulhos, contribui para o reservatório ho-mônimo do sistema de produção de água do Serviço Au-tônomo de Água e Esgoto municipal (SAAE). A área doPEC, na serra da Cantareira, foi tombada no final do sé-culo XIX para garantir o abastecimento da cidade de SãoPaulo, através de várias represas, onde se destaca a doCabuçu. O sistema funcionou desde o início do séculoXX até os anos 70 tendo sido desativado quando entrouem operação o grande Sistema Cantareira da entãoCOMASP (Companhia Metropolitana de Água de SãoPaulo), hoje SABESP (Saneamento Básico do Estado deSão Paulo), que abastece a Região Metropolitana de SãoPaulo (RMSP), importando água da bacia do Piracicaba,a norte da referida serra.

Em 2001, o reservatório foi reativado para a implanta-ção de um novo sistema para o abastecimento de Guarulhos.O relatório ambiental preliminar (RAP) do novo Sistema Pro-dutor Cabuçu (HAGAPLAN, 1999), relata a não disponibili-dade de dados do potencial hídrico do reservatório, por faltade monitoramento da bacia contribuinte. Por outro lado, ve-rificou-se a existência de obra complementar do antigo siste-ma, indicadora da vulnerabilidade do armazenamento de água,nos períodos de estiagem. Esta obra corresponde a uma es-trutura, ainda hoje visível, de antiga adutora que percorretodo o perímetro esquerdo do reservatório, desde uma barra-gem soleira situada 1.500 m a montante, na entrada do prin-cipal curso d’água contribuinte do reservatório. Seu antigofuncionamento se dava somente quando o nível do reserva-tório se encontrava abaixo de sua estrutura, servindo paragarantir um mínimo de vazão para abastecimento, por gravi-dade. No sistema atual, isso não é mais necessário, pois érealizado bombeamento a partir de estrutura flutuante, queacompanha o rebaixamento do nível. O novo sistema foi en-tão implantado por reativação da operação da barragem eseu reservatório, a partir do ano 2001 e mantida, desde en-tão, uma produção de água com uma vazão entre 180 e 220L.s-1.

A verificação da existência da antiga adutora, que anti-gamente garantia um fornecimento mínimo de água nos perí-odos de estiagem, somada à constatação de significativasdepleções do reservatório durante as estiagens dos primeirosanos da nova operação, mostraram-se coerentes com as pri-meiras observações das condições regionais do meio físicoque revelam altas declividades das encostas da bacia, comsolos rasos sobre terrenos cristalinos.

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Lacava, M. A. et al

Assim, foi levantada a hipótese de que a bacia teriauma baixa capacidade de regulação das vazões, emboracompletamente coberta por vegetação natural, recuperadaapós o tombamento do PEC, ou seja, supostamente, nãodevem ocorrer aquíferos que favoreçam o armazenamentona bacia e um escoamento de base que garanta vazões ra-zoáveis durante as estiagens anuais. Portanto, a hipóteseassumida de que a bacia deve favorecer mais o escoamen-to superficial que a infiltração, determinou o principalobjetivo desta pesquisa: caracterizar o comportamentohídrico de superfície da bacia. Dois objetivos específicosse desdobraram: analisar características geomorfológicase hidrometeorológicas da bacia.

A caracterização do comportamento da bacia do rioCabuçu de Cima se revelou importante considerando-se anecessidade de se compreender (i) a forte depleção do re-servatório que é o principal produtor de água no municí-pio de Guarulhos, como subsídio para a sua operação; (ii)o comportamento hídrico da região vizinha, de meio físi-co similar, que vem sendo ocupada, frequentemente deforma inadequada, pela expansão urbana da RMSP e (iii)a importância dos serviços ambientais da biosfera presta-dos pela cobertura vegetal na RMSP (Alcamo, 2003; Oli-veira et al., 2005a).

Áreas de Estudo

A bacia do rio Cabuçu de Cima, com uma área de 23,8km2, situada na RMSP, contribui para o rio Tietê, pertence aoComitê de Bacia do Alto Tietê, Sub-Comitê Cabeceiras (Fi-gura 1).

O reservatório do Cabuçu tem, na cota de 763,35 m dovertedor de superfície, um volume máximo de armazenamentode 1,776. 106 m3, uma área de espelho d’água máximo decerca de 20 hectares, comprimento de 1.500 m e largura má-xima de 400 m. A barragem, construída em 1904, é de con-creto ciclópico, do tipo arco-gravidade, com 15 m de altura euma crista de 50 m.

O relevo da área da bacia (Oliveira et al., 2005a)apresenta grande energia com formas classificadas comomorrotes, morros e montanhas que, localmente, atingemdesníveis de mais de 300 m, formando o flanco sul da Ser-ra da Mantiqueira, que delimita a bacia, correspondenteàs nascentes do rio Cabuçu de Cima, localmente conheci-da como Serra da Pirucaia. Esta serra estende-se na dire-ção nordeste, ligando-se à Serra da Mantiqueira, por meiodas serras do Bananal e Itaberaba. As declividades dosterrenos que formam a bacia são frequentemente superio-res a 35%.

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Comportamento hídrico de superfície da Bacia do Rio Cabuçu de Cima, parque estadual de Cantareira, Guarulhos, SP

Figura 1 - Localização da área de estudo: bacia do rio Cabuçu de Cima.

A geologia da bacia corresponde ao embasamentocristalino das rochas pré-cambrianas que formam a Serra daCantareira, constituído por gnaisses, filitos, micaxistos,migmatitos, quartzitos e rochas metabásicas (Coutinho, 1979).Este embasamento apresenta-se recortado por frequentes es-truturas tectônicas, como falhas e zonas de cisalhamento, res-ponsáveis pela orientação da rede de drenagem e pela pre-sença de várias cachoeiras nos cursos d’água. Quanto aossolos, segundo Andrade (1999) os morros e montanhas doembasamento apresentam, predominantemente, argissolos ecambissolos. Para Negreiros et al. (1974), apud Silva (2000),no PEC os solos são bem drenados, com profundidade médiade 1 metro e textura argilo - arenosa que, com variação daumidade, passam de ligeiramente plásticos a pegajosos.

O clima da região pode ser considerado MesotérmicoBrando Úmido, com um ou dois meses secos (Monteiro, 1973apud Andrade, 1999). A temperatura anual média é de 20,9°C,mas, segundo Ab’ Saber (1978, apud Silva, 2000), a cimeirada Serra da Cantareira apresenta temperaturas médias anuaismais baixas, variando de 18 a 19°C. Segundo Silva (2000),na Serra da Cantareira, junho é o mês mais frio do ano, com

média de 16,6°C. Lacava (2007) analisou postospluviométricos da região do período de 1941 a 1964, indi-cando uma média anual de 1.411,2 mm. No período menosúmido, de abril a setembro (médias mensais abaixo de 75,0mm) o autor destaca como o mês mais seco, agosto, comuma média de 33,2 mm. No período mais úmido, de outubroa março (médias mensais acima de 125,0 mm), destaca-se omês de janeiro, com um máximo de quase 240,0 mm, como omais úmido.

A região é de domínio da Mata Atlântica, sendo clas-sificada no Plano de Manejo do PEC (Negreiros et al.,1974), como Floresta Latifoliada Tropical Úmida passan-do, no alto da serra, a Floresta Subtropical de Altitude.Segundo Baitelo et al. (1993) apud Silva (2000) os levan-tamentos florísticos realizados em alguns trechos do PEC,revelam a presença de espécies da Mata Semicaducifóliade Planalto. Segundo o Plano de Manejo (Negreiros, op.cit.), os terrenos mais declivosos da bacia do Cabuçu temcobertura primitiva, não tendo, portanto, sido desmatados,nem sofrido a introdução de espécies exóticas, ao contrá-rio de outras áreas do Parque.

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Lacava, M. A. et al

Materiais e Métodos

Para a abordagem geomorfológica a bacia foicompartimentada em sub-bacias conforme a figura 2 paraserem determinados os parâmetros geomorfológicos indica-dores do comportamento hídrico.

Os parâmetros geomorfológicos foram adotados com baseem Christofoletti (1980), hierarquização fluvial segundo Strahler

(1952), declividade do talvegue principal; densidade de drena-gem e índice de circularidade. Tais parâmetros foram calcula-dos segundo as fórmulas apresentadas pelo referido autor, combase em medições realizadas em meio digital através do softwareArc Gis v.9.0 (2006), no Laboratório de Geoprocessamento daUniversidade Guarulhos (UnG). A base topográfica utilizada foifornecida pela Prefeitura Municipal de Guarulhos, em escala1:10.000 e curvas de nível de 10 em 10 m.

Figura 2 - Compartimentação da bacia do rio Cabuçu de Cima em sub-bacias.

Para a abordagem hidrometeorológica, os fenômenos per-tinentes foram mensurados por diversos materiais e métodos.As precipitações na bacia foram determinadas por meio do Ra-dar Meteorológico de São Paulo, fabricado pela McGillUniversity do Canadá, de propriedade do Departamento de Águase Energia Elétrica (DAEE), instalado no município de BiritibaMirim, na barragem de Ponte Nova, desde 1989, que cobre aregião num raio de 180 km (Pessoa, 2002; SAISP, 2005). Alémdas medidas de precipitação, os dados permitem classificar ostipos de chuva correspondentes (SAISP, 2006). Neste estudo,foram considerados dois tipos básicos de chuvas: as convectivase as estratiformes ou frontais. Segundo Bertoni e Tucci (2002),as chuvas convectivas correspondem às tempestades, acompa-

nhadas por trovoadas, de curta duração, com rajadas de vento,forte precipitação, curta duração e restritas a pequenas áreasprovocadas por ascensão do ar, independentes das frentes friaspolares. As frontais ou estratiformes são chuvas de maior dura-ção que atingem grandes áreas, porém com menor intensidadeque as convectivas e, em geral, relacionadas àquelas frentes.

Na análise das medidas fornecidas pelo radar, as chu-vas foram classificadas segundo a taxa de 25 mmh-1: quandosuperiores foram consideradas convectivas; quando inferio-res, estratiformes. Este critério coincide com as observaçõesde Morgan (1986, apud Oliveira, 1994) que considera 25 mm/hora o limiar da manifestação da erosão hídrica, como índiceaplicável a regiões tropicais de elevada pluviosidade.

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Comportamento hídrico de superfície da Bacia do Rio Cabuçu de Cima, parque estadual de Cantareira, Guarulhos, SP

As medidas de vazões da bacia do rio Cabuçu de Cima(Q

B), que entram no reservatório do Cabuçu, foram obtidas

considerando:

QB = Q

C ± Q

R + Q

E

sendo:

QC: vazões extraídas por bombeamento do reservató-

rio, medidas por calha Parshall, na entrada da Estação deTratamento da Água, diariamente fornecidas pelo SAAE;

QR: vazões correspondentes às variações do nível

d’água do reservatório do Cabuçu, cujas medidas, tambémfornecidas diariamente pelo SAAE, foram traduzidas emvolumes com a aplicação do gráfico cota x volume, elabora-do com base em batimetria do reservatório, realizada peloInstituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), conforme Oliveiraet al (2005a). Tais vazões foram acrescidas a Q

C quando o

reservatório sofreu elevação do nível d’água no período demedida e, ao contrário, subtraídas, quando o nível do reser-vatório desceu.

QE: Vazões correspondentes à evaporação do reserva-

tório com base na superfície média exposta, no período de-terminado, aplicando-se o gráfico cota x área, elaborado comoo anterior (Oliveira, op. cit.).

A taxa de evaporação considerada foi baseada em me-didas do tanque classe A da estação meteorológica do campus

Centro da UnG (INMET no 83075), ponderadas em 70% con-forme orientação de Tucci e Beltrame (2002).

O balanço hídrico, determinado para um ciclohidrológico completo de outubro de 2005 a setembro de 2006,permitiu a determinação da evapotranspiração que tambémfoi calculada pelo método de Thornthwaite, segundo Chang(1969) apud Tucci e Beltrame (2002) e pelo método dePenmann (Tucci e Beltrame, op. cit.), esta última fornecidapela Estação Meteorológica do Núcleo Cabuçu (EMNC) ins-talada no PEC para a realização da pesquisa; uma estaçãoautomática, marca Davis, modelo Vantage Pro 2 Plus.

Foi também realizada uma análise com base no SoilConservation Service - SCS do United State Department ofAgriculture – USDA, conforme Ponce (1989) para caracteri-zar o comportamento hídrico de superfície da bacia, segundosua tendência a um maior ou menor escoamento superficialem relação à infiltração. Esta análise, apresentada por Lacavaet al. (2006), fundamentou-se no monitoramento do nível doreservatório que revelou três momentos de elevações brus-cas, favoráveis a esta analise conforme a figura 3.

Para cada evento foram analisados os correspondentesvolumes produzidos pela bacia e as precipitações, para sedeterminar o tipo genérico de solo que produz o comporta-mento hídrico analisado, se mais ou menos favorável à infil-tração (Tucci, 2002).

Figura 3 - Variação do nível d’água do reservatório do Cabuçu, nos anos de 2004 a 2006, com os eventos analisados pelo método do SCS,segundo Lacava et al. (2006).

Resultados e Discussão

Observações de campo e análise da bibliografia dis-ponível revelaram que, se de um lado as condições do meio

físico, geológicas, geomorfológicas e pedológicas, confor-me apresentadas no item de características gerais da áreade estudo, se mostram mais favoráveis ao escoamento su-perficial que à infiltração e, em consequência, a um menor

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Lacava, M. A. et al

efeito regulador do comportamento hídrico; ao contrário, acobertura vegetal concorre para uma atenuação desse com-portamento, promovendo a retenção que favorece a infil-tração. Os aspectos geológicos apontam para um substratoformado por litologias de baixa permeabilidade, não favo-recendo o armazenamento da água, a menos de algumasestruturas geológicas. Os aspectos geomorfológicos apon-tam para um relevo que favorece mais o escoamento super-ficial que a infiltração, sobretudo devido às elevadasdeclividades presentes, representadas pelos morros e mon-tanhas. Solos rasos e argilosos, dentre os aspectospedológicos, são aqueles que favorecem o escoamento em

detrimento da infiltração. Tais aspectos do meio físico so-mam-se, potencializando a configuração de um quadro maisfavorável ao escoamento superficial que às infiltrações. Aanálise da cobertura vegetal destacou dois aspectoshidrológicos importantes. Primeiramente, a presença decobertura vegetal importante para a retenção de água,frenando o escoamento superficial. E, ainda, esta coberturaconstitui um verdadeiro patrimônio das condições naturaise mesmo primitivas, de uma bacia de mais de 20 km2 nointerior da RMSP, favorecendo a determinação do seu com-portamento hídrico, como um referencial natural para estu-dos comparativos em áreas alteradas pela ocupação.

Resultados da Caracterização Geomorfológica

Os resultados da aplicação dos parâmetros adotados estão apresentados nos histogramas da Figura 4.

Figura 4 - Histogramas dos parâmetros geomorfológicos das sub-bacias da figura 2.

Quanto ao número de ordem de Strahler, a bacia dorio Cabuçu de Cima apresenta ordem 4. A maior parte,cerca de 83% das bacias, é de ordem 1 e 2. A declividadedo talvegue principal é inversamente proporcional às áre-as das bacias. Quanto menor a área maior a declividade,apontando maior tendência ao escoamento superficial. A

bacia do rio Cabuçu de Cima apresenta uma declividaderelativamente elevada, de 3,7%, assim como a bacia doseu maior afluente, nº 8, com a declividade de 4,4%. Asdemais apresentam declividades muito elevadas, tendo88% delas mais de 10% e 54% delas mais de 20%. Quantoao índice de circularidade, 33 bacias (80%) apontam va-

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Comportamento hídrico de superfície da Bacia do Rio Cabuçu de Cima, parque estadual de Cantareira, Guarulhos, SP

lores superiores a 0,5, ou seja, com tendência a produzirpicos de cheias nas respectivas desembocaduras. Quantoà densidade de drenagem, os valores são relativamente ele-vados, pois todas as bacias apresentam valores superioresa 2 km/km2 e metade delas mais de 4 km/km2. A bacia comoum todo apresenta um valor de 3,9 km/km2, medido emplanta 1:10.000 e 2,7 km/km2, medido em planta 1:50.000.Para efeito de comparação, podem ser consideradas asmedidas de 1,4 a 2,6 km/km2, também obtidas em planta1:50.000 por Christofoletti (1980) para terrenos de rochascristalinas, do planalto de Poços de Caldas e as medidasde 0,2 a 0,5 km/km2 em terrenos sedimentares do GrupoBauru da bacia do Paraná obtidas por Oliveira et al.(2005b).

Resultados da Caracterização Hidrometeorológica

A classificação dos tipos de chuva, realizada com osdados do Radar, no período da pesquisa, na área da bacia,mostrou que a maior parte (72% dos eventos) foi do tipoconvectivo, favorecendo o escoamento superficial.

A aplicação do método SCS, segundo Lacava et al.(2006) revelou que a acumulação total dos três períodosfoi de 558 mm e produziu um volume total afluente aoreservatório de 1,7 x 106 m3. A Figura 3 mostra que, a par-tir do fim de abril, com o fim do período chuvoso, o de-créscimo do nível do reservatório é quase linear. As chu-vas de mais baixa acumulação no período de outono e in-verno são insuficientes para recuperar o reservatório.Lacava et al. (2006) mostraram também que a aplicaçãodo método do SCS indicou coeficientes de escoamentocompatíveis com solos que contem porcentagem conside-rável de argila, pouco profundos e que geram escoamentosuperficial acima da média.

A análise do balanço hídrico mostrou que a precipita-ção total medida pelo radar para toda a bacia, no períodoestudado, foi de 1.373,1 mm e a vazão correspondente de272,4 mm, o que resultou num valor de evapotranspiração(E) de 1.100,7 mm. Segundo Penmann (1948), medidafornecida pela EMNC, a E seria de 678,4 mm. SegundoThornthwaite (1948), 1.380,2 mm, valor mais próximo da Emedida pelo balanço hídrico.

Conclusões

A hipótese de que a bacia do rio Cabuçu de Cima apre-senta um comportamento hídrico que favorece o escoamentosuperficial, em relação à infiltração, foi confirmada pelasanálises geomorfológica e hidrometeorológica (Lacava,2007).

A análise do meio físico e da cobertura florestal indi-cou que as condições geológicas, geomorfológicas e

pedológicas são mais favoráveis ao escoamento superficialque à infiltração, sendo atenuadas pelo papel da mata quepromove a retenção do escoamento.

Na análise dos parâmetros geomorfológicos, aplicadosao exame das condições hidrológicas, destacam-se, além dosíndices de circularidade, propícios à manifestação de cheias,os elevados valores de densidade de drenagem e as altasdeclividades dos talvegues que favorecem o escoamento su-perficial.

A análise das precipitações, no período estudado, pormeio do radar, mostrou a elevada frequência de chuvas dotipo convectivo, de forte intensidade que atingem ou su-peram 25 mm/h, favorecendo também o escoamento su-perficial. A análise de eventos selecionados, pelo métododo SCS, apresentada por Lacava et al . (2006) indicou ti-pos de terrenos que geram escoamento superficial eleva-do e baixa capacidade de infiltração, confirmando as aná-lises anteriores. O balanço hídrico mostrou que a baciapossui elevados índices de evapotranspiração destacandoo papel da cobertura florestal no frenamento dos escoa-mentos superficiais.

Portanto, sendo a bacia do Cabuçu de Cima cobertapor densa vegetação de Mata Atlântica, deduz-se o signi-ficativo papel que esta vegetação executa para a regulari-zação das vazões, principalmente no retardo do escoamentosuperficial, realizando em contrapartida intensaevapotranspiração. Sua eliminação implicaria na reduçãode tais índices e na intensificação notável dos escoamen-tos superficiais com perda ainda maior da regulação dasvazões anuais e desregulação severa dos processos erosivosna bacia e hidrológicos a jusante com a produção de chei-as mais frequentes e intensas, ao longo do rio Cabuçu deCima até o rio Tietê.

Esta pesquisa destaca, finalmente, a importância damata no balanço hídrico como serviço da biosfera de pro-visão de água e de regulação de processos geo-hidrometeorológicos, sendo especialmente importante naReserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo, parareduzir a intensidade dos problemas geoambientais exis-tentes na Região Metropolitana.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao SAAE de Guarulhos pelofornecimento de dados; ao pesquisador Dr Luiz Antonio Pe-reira de Souza do IPT, pela batimetria realizada; a SandraEmi Sato e William Queiroz do Laboratório deGeoprocessamento da UnG, pelo apoio ao projeto e elabora-ção das ilustrações e, finalmente à FAPESP, pelo suporte aesta pesquisa (Processo 01/02767-0).

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30 Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.1, p.23-30, 2009

Lacava, M. A. et al

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