complexidade narrativa na tv brasileira: uma...

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Cuiabá - MT – 12 a 14/06/2017 1 COMPLEXIDADE NARRATIVA NA TV BRASILEIRA: uma análise de “Justiça” a partir dos conteúdos de opinião 1 Juara Castro DA CONCEIÇÃO 2 Rosana Maria BORGES 3 Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO. RESUMO O artigo aborda aspectos da ficção seriada na TV brasileira contemporânea, que vem se estruturando a partir da produção de narrativas inovadoras e híbridas, que neste trabalho são denominadas narrativas complexas. Em um primeiro momento, o texto fará pontuações estruturais do que é uma minissérie e suas matrizes culturais. Em seguida, discorreremos sobre as características de uma narrativa complexa e suas produções de sentido. Por fim, analisaremos a complexidade narrativa da minissérie “Justiça” e identificaremos a partir de textos opinativos colunas e sites que discutem produções audiovisuais - marcas do fluxo comunicacional das narrativas complexas com o público. PALAVRAS-CHAVE: audiovisual; estética; ficção seriada; televisão. Ficção Seriada e suas Matrizes Culturais A ficção seriada brasileira é voltada sumariamente para a produção de minisséries e telenovelas. Ambas compartilham as mesmas matrizes culturais o melodrama e o folhetim francês. Pallotinni (2012) elenca quais são as únicas diferenças entre uma minissérie e uma telenovela: a extensão (número de capítulos), o fato de a minissérie ser uma obra fechada, ou seja, é escrita e gravada completamente antes da sua exibição, o oposto do que é uma telenovela, pois a mesma é escrita e gravada concomitante à sua exibição, assim se configurando com uma obra aberta. E por fim o número de tramas, que na telenovela é bastante plural e no caso da minissérie é restrito a no máximo duas tramas. Para compreender os “contares” híbridos das narrativas seriadas ficcionais é preciso caminhar um pouco mais no passado deparando-se com uma matriz bem mais 1 Trabalho apresentado no DT 4 Comunicação Audiovisual do XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste, realizado de 12 a 14 de junho de 2017. 2 Bolsista Capes, mestranda em Comunicação, Mídia e Cultura pela Universidade Federal de Goiás (UFG) email: [email protected] 3 Doutora e Professora da Universidade Federal de Goiás na Faculdade de Comunicação e Informação, email: [email protected]

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Cuiabá - MT – 12 a 14/06/2017

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COMPLEXIDADE NARRATIVA NA TV BRASILEIRA: uma análise de

“Justiça” a partir dos conteúdos de opinião1

Juara Castro DA CONCEIÇÃO2

Rosana Maria BORGES3

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO.

RESUMO

O artigo aborda aspectos da ficção seriada na TV brasileira contemporânea, que vem se

estruturando a partir da produção de narrativas inovadoras e híbridas, que neste trabalho

são denominadas narrativas complexas. Em um primeiro momento, o texto fará

pontuações estruturais do que é uma minissérie e suas matrizes culturais. Em seguida,

discorreremos sobre as características de uma narrativa complexa e suas produções de

sentido. Por fim, analisaremos a complexidade narrativa da minissérie “Justiça” e

identificaremos a partir de textos opinativos – colunas e sites que discutem produções

audiovisuais - marcas do fluxo comunicacional das narrativas complexas com o público.

PALAVRAS-CHAVE: audiovisual; estética; ficção seriada; televisão.

Ficção Seriada e suas Matrizes Culturais

A ficção seriada brasileira é voltada sumariamente para a produção de

minisséries e telenovelas. Ambas compartilham as mesmas matrizes culturais – o

melodrama e o folhetim francês. Pallotinni (2012) elenca quais são as únicas diferenças

entre uma minissérie e uma telenovela: a extensão (número de capítulos), o fato de a

minissérie ser uma obra fechada, ou seja, é escrita e gravada completamente antes da

sua exibição, o oposto do que é uma telenovela, pois a mesma é escrita e gravada

concomitante à sua exibição, assim se configurando com uma obra aberta. E por fim o

número de tramas, que na telenovela é bastante plural e no caso da minissérie é restrito

a no máximo duas tramas.

Para compreender os “contares” híbridos das narrativas seriadas ficcionais é

preciso caminhar um pouco mais no passado deparando-se com uma matriz bem mais

1 Trabalho apresentado no DT 4 – Comunicação Audiovisual do XIX Congresso de Ciências da Comunicação na

Região Centro-Oeste, realizado de 12 a 14 de junho de 2017.

2 Bolsista Capes, mestranda em Comunicação, Mídia e Cultura pela Universidade Federal de Goiás (UFG) email:

[email protected]

3 Doutora e Professora da Universidade Federal de Goiás na Faculdade de Comunicação e Informação, email:

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antiga: a fábula. A fertilidade das narrativas ficcionais produz frutos ao longo da

existência humana sendo na construção de identidades e representações ou até mesmo

funcionando como um modo de apreensão do mundo. O melodrama e o folhetim francês

têm origem no século XIX. Para estudar tais matrizes culturais, utilizaremos como base

Martín-Barbero (2015). Para o autor, é preciso considerar a telenovela4 em duas óticas:

uma de Walter Benjamin que nos traz a concepção do que é narração e outra de

Bakhtin, que pensa a narrativa como uma literatura dialógica.

Para entender Bakhtin (1996) é preciso considerar os dialogismos. O autor

apresenta em sua obra a dualidade da narrativa. Para ele, existe mundo extraoficial, mas

que ao mesmo tempo é legalizado. Esse mundo é baseado no prazer do corpo e no

princípio do riso. Este mundo escapa à oficialidade, ele é invertido. A todo o momento

acontecem trocas entre o “alto” e o “baixo”, onde o “alto” representa o racional e o

“baixo” o gozo. Ao assistirmos uma minissérie (ou telenovela) nos deparamos com a

existência desses “dois mundos”. Onde nossas subjetividades e racionalidades são

colocadas à prova através de experiências estéticas.

As narrativas seriadas ficcionais são formas de expressão popular que bebem na

fonte do realismo grotesco. Em síntese, boa parte das expressões populares compartilha

essa mesma fonte, como por exemplo, o carnaval e o folclore. O grotesco é uma

categoria estética de vertente clássica. “Nessa categoria ocorre a destruição da ordem

natural através do estranho, do irreal ou antinatural, mas tal relação sempre se dá a partir

do irreal criado com materiais reais” (SILVA, 2010, p. 97). Assim entendemos a relação

entre o real e o grotesco e seu trânsito estético, que permite o transbordamento de uma

categoria dentro da outra (o grotesco no realismo). O grotesco traz o rebaixamento de

valores, assim só existe a partir do real, que seria onde esses valores estariam em seus

devidos lugares e pedestais.

No realismo grotesco os princípios materiais e corporais comandam o

espetáculo. Estes princípios estão diretamente ligados ao caráter animalesco do homem

e são em síntese: beber, comer, defecar e fornicar. Nas expressões populares “abundam

gestos e expressões grosseiras, profanações, heresias e paródias” (MACHADO, 2011, p.

73). Assim entendemos o porquê das temáticas recorrentemente levantadas pelas

4 Entendemos que o objeto analisado neste trabalho é uma minissérie. Porém, como citado desde o início do artigo, a

minissérie e a telenovela compartilham as mesmas matrizes culturais que são responsáveis pelo conhecimento dos

gêneros como consumimos e conhecemos atualmente.

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telenovelas e minisséries. Amor, traição, prazer, casamento, homoafetividade e outras

pautas estão fincadas no caráter literário-dialógico do melodrama.

O melodrama é um gênero sem nenhuma pretensão de pureza, pois a confusão

entre narrativa e vida é proposital. O gênero traz o intercâmbio entre os lugares do

autor, do leitor e dos personagens da história. Assim o melodrama acaba fazendo uma

paródia, das categorias estéticas clássicas, como a tragédia, o drama e o romance.

Segundo Silva, a natureza do melodrama é “a do impressionante e do exagero, e seus

discursos, como os sentimentos que suscita, exagerados ao extremo do paródico,

favorecem no espectador uma identificação fácil e uma catarse barata” (SILVA, 2010,

p. 103). Se considerarmos a existência “evolutiva” dos gêneros, podemos apontar que

na modernidade, para além das minisséries e telenovelas como expoentes

melodramáticos, têm-se também os realities shows.

As Matrizes Culturais e a Indústria

Expostas as matrizes culturais fundamentais, podemos apresentar de que forma o

melodrama e o folhetim foram sendo apropriados por outros modelos dando origem ao

que conhecemos como uma minissérie hoje. Um elemento identitário importante que se

acoplou as telenovelas e, sobretudo às minisséries foi a soa-opera americana. Esse

modelo de negócios deu ao mercado brasileiro o entendimento de como as narrativas

seriadas ficcionais deveriam ser desenvolvidas para a geração de lucros.

A partir de Barbero (2015) e suas leituras ideológicas entende-se que é

necessário mudar as problemáticas recorrentes para se que se entenda a vastidão do

popular. É preciso compreender o popular não como aquilo que somente dá prazer, mas

também por meio de dinâmicas muito mais profundas de memória e dos imaginários.

Diante de pessoas que assistem novelas e sentem prazer nesse consumo, não é possível

reduzir tal fenômeno à dominação ideológica e uma determinação mercantil. O

entendimento é bem mais engenhoso. O que leva à prática de ouvir/ver uma mesma

história todos os dias? Quais memórias e imaginários são ativados para que essas

matrizes culturais se mantenham? É nesse sentido que buscamos entender as matrizes.

Não como um retorno puramente ao arcaico, mas como uma ponte que se mantém

conectada à vida das pessoas até hoje. Diante disso, é fato que as narrativas seriadas

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ficcionais enquanto negócio/indústria valem muito, mas as narrativas não se esgotam

nesse caráter tão superficial.

Para além da lógica industrial e dos interesses dominantes, há algo muito mais

complexo no universo popular latino-americano, que nos coloca em dinâmicas

diferentes de produção e consumo. No Brasil, a paixão e o resgate do popular se dão,

particularmente pela telenovela e narrativas afins como as minisséries, que são folhetins

eletrônicos. Pode-se considerar essas narrativas como a versão contemporânea do

folhetim. Porém o formato superou seu criador em termos de relevância, penetração e

sucesso comercial. A linguagem televisiva aproximou-se da cinematográfica com a

chegada do videoteipe ao Brasil. Assim foi possível a separação dos processos de

produção e edição na transmissão de TV. Diante dessa aproximação de linguagem da

TV com o cinema é que temos o primeiro indício do que denominamos narrativas

complexas.

Narrativa Ficcional e Complexidade

A influência do cinema na TV é muito mais visual que narrativa. Em termos de

mercado nacional, as minisséries e telenovelas exibidas no horário das 23 horas, pela

Rede Globo, estão fixando-se cada vez mais no mercado como “superproduções”.

Capítulos curtos, película diferente da convencional e inovações narrativas são as

marcas identitárias das programações dessa faixa de horário. Diante disso, nos

deparamos com um movimento denominado “televisão de arte”, onde as técnicas e

regras do cinema de arte são transportadas para as telas pequenas, como é o caso da

televisão. Ao se tratar de mudanças ligadas tanto à emissão quanto a recepção, nos

deteremos neste debate às mudanças que ocorrem na recepção e suas implicações

culturais a partir desse deslocamento no modo de produção das narrativas seriadas

ficcionais (minisséries).

Ao falarmos de complexidade narrativa retomamos os “modos de contar”

ligados intimamente ao storytelling, onde a narrativa segue um modelo de fruição e

compreensão muito mais dependente da criatividade. Ressaltamos que, falar de uma

narrativa complexa não aplica um juízo de valor a esse modelo como “mais criativo”,

mas sim se pontua que a sua produção está atrelada a uma indústria criativa que propõe

práticas participativas e inovação tecnológicas como variáveis importantes para

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recepção e consumo daquela narrativa. A complexidade narrativa oferece uma gama de

oportunidades narrativas e retorno do público, assim podemos observar como as

reverberações de sentido dessas narrativas são plurais e variam muito de acordo com a

plataforma em que elas são desdobradas.

A narrativa complexa é uma alternativa à narrativa televisiva convencional,

assim também é exibida na televisão, porém seus aspectos visuais e narrativos se

diferem visivelmente das produções tradicionais. É um modo de escrever uma história

com muito mais pistas encadeadas e com tramas ainda mais episódicas, fazendo emergir

muito mais os aspectos cinematográficos dessa narrativa. Falar dessa estética de

“cinema” em narrativas seriadas ficcionais de televisão é deparar-se com uma estética

operacional, onde cada recurso visual é utilizado como parte de um projeto industrial

criativo, que em sua maioria trabalha em favor de uma convergência midiática.

A emergência das narrativas complexas ocorre em meados dos anos 90, em uma

perspectiva de resgate histórico das narrativas tradicionais e a incrementação das

mesmas com variáveis tecnológicas e características estéticas fílmicas. A complexidade

não está ligada ao valor da narrativa e nem se trata de uma exaltação deste modelo

frente aos produtos tradicionais. Procura-se entender, de fato, quais os desdobramentos

culturais tornam-se presentes na recepção a partir destas narrativas. O que temos são

modelos de narração muito mais “tramáticos” e envolventes, que em uma perspectiva de

grandes conglomerados midiáticos, buscam envolver os espectadores no maior número

de telas e experiências possíveis.

Ang (2010) e Mittell (2006) entendem a complexificação narrativa nas últimas

décadas em termos estruturais e estilísticos. É preciso atentar para as condições de

produção dessas narrativas e compreender como a sua estrutura complexa decorre em

inovações para os diversos formatos. Eco (2016) nos dá pistas para o entendimento

dessa complexidade a partir do reconhecimento de uma mudança no “leitor”, que se

torna cada vez mais rebuscado, sem que isso tenha relação direta com fatores

econômicos. Tal mudança acaba por influenciar na estruturação de roteiros e até mesmo

na tentativa de desenhar possíveis modos de fruição para cada narrativa.

No Brasil, Motter e Mungioli (2006) vem produzindo sistematicamente

conteúdos teóricos que buscam discutir a complexidade narrativa nas produções locais,

sobretudo em narrativas seriadas ficcionais de televisão. Segundo elas, é preciso pensar

sobre o modo de fazer serialidade para além de uma repetição, como defende a Indústria

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Cultural e não somente como produtos que buscam lucros para os conglomerados

econômicos. De fato, não podemos esquecer o fator econômico, mas é problemático

colocá-lo como determinante e superior às relações sociais e culturais.

Segundo Calatrava (2008), a narrativa complexa tem sua base no romance

moderno. As narrativas ditas complexas trazem “algo a mais” na estrutura de seus

enredos. A capacidade de relações intertextuais é uma variável no entendimento desse

tipo de narrativa, visto que, a ficção seriada é muitas vezes a saída para um projeto que

se aproxima mais do cinematográfico, mas que por sua extensão não pode ser realizado

em um filme. Entender as narrativas complexas passa pela identificação de elementos

audiovisuais que complexificam a relação entre os mediadores e os espectadores. A

complexidade narrativa ficcional seriada na televisão vai além de uma aprimoração

estética da literatura do romance. Enfim, quais fatores seriam indicadores de narrativa

complexa:

Trata-se na verdade de um conjunto de fatores sociais, econômicos e tecnológicos cujas

ressonâncias intra/extratextuais podem ser observadas no discurso ficcional televisivo,

principalmente, a partir do final da década de 1970. Tais ressonâncias não ocorrem

apenas nas séries norte-americanas, mas também na produção de ficção de televisão de

outros países fortemente influenciada pelos padrões da indústria televisiva norte-

americana. São transformações que envolvem o circuito da comunicação e, portanto,

constroem práticas, conceitos, códigos na forma de retroalimentação em que as questões

simbólicas não se desvinculam das práticas sociais e condições de produção. (MOTTER

E MUNGIOLI, 2013. p.4)

Para compreender as transformações que ocorrem nessas narrativas, entendemos

a complexidade a partir da hibridização dos gêneros e dos formatos ficcionais. Outra

categoria a ser analisada é o “acabamento temático”, que segundo Bakhtin (2003) trata-

se da capacidade de abordar temáticas com um maior diálogo com o social, o estético e,

sobretudo com o psicológico do receptor. Diante disso, temos o surgimento de novas

formas de recepção, que hoje são muito mais dependentes das relações entre memória e

discurso. Só é possível entender a memória discursiva a partir da análise de uma

situação histórica. Quando falamos de complexidade narrativa, tratamos de apropriações

e novos usos, porém todas essas práticas estão inseridas em um contexto histórico.

Portanto não há de fato criação, mas sim reinvenções a partir de linguagens já

consolidadas.

Jost (2011) alerta para a dimensão cultural que encontramos ao estudar a

serialização. Há um esforço teórico em afastar um determinismo econômico dessas

discussões, visto que, as reverberações sociais ocasionadas pelas narrativas ficcionais

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seriadas televisivas estão atreladas muito mais às questões de identidade, identificação,

cultura e subjetividade. A compreensão simbólica do mundo é uma relação cultural e se

deve muito mais aos aspectos de cultura do que simplesmente aos recursos audiovisuais

que são usados nessas produções. A tendência que identificamos é de convenções

globais, sobretudo norte-americanas, que são usadas para atender gostos e demandas

locais. Vale ressaltar, que tais convenções não são utilizadas como encaixes, mas sim de

forma diluída e híbrida, de forma que o global deve fazer sentido em uma realidade

local.

Johnson (2005) fala de como os telespectadores sentem-se cumprimentados em

meio à multidão frente a uma narrativa complexa. As tramas de alguma forma

demandam um maior nível de envolvimento, fazendo com que cada espectador torne-se

parte de um grupo seleto. Culler (2009) atenta para o fato de como as narrativas

complexas se concretizam de formas diferentes. Se concretizando, por exemplo, em um

prazer ligado ao desejo ou na vontade de conhecer e desvendar segredos presentes na

história - o “como aconteceu” mostra-se mais importante do que a ação final de fato.

Mittell (2010) compara a função do espectador com a de amarrar fios desconectados. O

telespectador pode tornar-se um caçador de pistas, pelo menos essa é a proposta

criativa, mas tal atividade não é uma obrigação.

A estética do “quebra-cabeça” é cada vez mais recorrente nas narrativas

televisivas, não se trata apenas de uma quebra de linearidade nas tramas, mas sim de

uma aprimoração das funções dos personagens na história. A fórmula episódica passa a

incorporar elementos do serial e as histórias passam a ser amarradas uma dentro das

outras. No desenvolvimento das narrativas cumulativas os fatos não podem ser

esquecidos, pois eles a qualquer momento serão acionados com alguma finalidade. A

imagem vai além do cenário, ela passa a comunicar significativamente algo para a trama

em uma espécie de “in media res”.5

As Teias de “Justiça”

A minissérie “Justiça” 6 é uma obra de Manuela Dias com direção de José Luiz

Villamarim que foi exibida pela TV Globo, no horário das 22h30, entre os dias

5 Expressão usada pela literatura para denominar uma narrativa que acontece “no meio das coisas”. 6 Todas as informações, sinopses e fichas técnicas foram retiradas do site Memória Globo, portal que cataloga as

produções da TV Globo. Acesso em: 07/04/2017.

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22/08/2016 e 23/09/2016. A produção teve um total de 20 episódios, onde cada um era

dedicado a contar a história de um dos quatro protagonistas. Todas as histórias eram

conectadas e tinham como pano de fundo a metrópole Recife, cidade em que as cenas

foram gravadas antes da exibição da minissérie. “Justiça” foi resumida da seguinte

forma pela Globo:

Justiça conta quatro histórias diferentes e intercaladas. Em comum, crimes ocorridos na

mesma noite em 2009, em Recife. A trama mostra um playboy que mata a noiva ao

flagrá-la nos braços de outro; uma mulher presa por atirar em um cachorro; uma futura

estudante de jornalismo detida com drogas; e um homem que realiza eutanásia na

mulher. Sete anos depois, essas quatro pessoas saldam suas dívidas com a Justiça e

deixam a penitenciária. Entretanto, as marcas do passado são penosas e a retomada da

vida é um desafio. (MEMÓRIA GLOBO, 2016, p. 01)

As narrativas complexas têm sido estudadas e elencadas principalmente nas

últimas décadas. Porém, de forma conceitual, esse ainda é um assunto restrito. A

proposta a seguir é identificar nos textos e discursos de colunas, sites e blogs que

discorrem acerca de conteúdos audiovisuais, marcas da complexidade de “Justiça” que

são expostas por meio de “opiniões”. Os textos, em sua maioria, não apresentam

conceituações, mas demonstram como a complexidade narrativa é sensível ao público

(audiência) mesmo quando este não é um especialista. Analisaremos textos de quatro

portais de notícia: Veja, Omelete, R7 e Séries Por Elas. Todos os textos possuem em

comum a veiculação em ambiente digital e são produções assinadas, ou seja, há alguém

que se coloca como “dono/dona” daquele discurso. A escolha da Veja se deu pela

circulação e reputação do veículo na mídia nacional. O site Omelete se coloca no

mercado como “especialista” em cultura pop e é reconhecido por críticas “válidas”. O

R7 foi escolhido por figurar como um possível concorrente dos produtos Globo, visto

que, pertence a sua principal rival que é a Record. O blog Séries Por Elas foi listado

por ser um produto contra-hegemônico, colaborativo e produzido apenas por mulheres.

Veja

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No artigo publicado no site da “Veja” podemos indicar vários indícios de

complexidade narrativa a partir do texto da jornalista Maria Carolina Maia. O primeiro

ponto é a sua definição de “Justiça” como uma estrutura diferenciada, o que já aponta

para o entendimento de que a minissérie não se iguala as demais produções. O segundo

ponto vai de encontro à ideia de Eco (2016) e a mudança do “leitor”. Carolina afirma

que o público está provando “que está pronto para estruturas mais complexas”,

chegando aqui a adjetivar “Justiça” como uma narrativa complexa. Outra importante

colocação é quanto à audiência da minissérie – “é um fenômeno no Ibope”, que indica

que o apuro estético faz parte de uma dinâmica industrial.

Observamos que a marca de autoria é uma variável levantada, neste texto de

forma mais endossada, pois a jornalista aplica um juízo de valor – “autora da

igualmente boa Ligações Perigosas”. O uso do “igualmente boa” indica tanto uma

adjetivação quanto um conhecimento acumulativo das narrativas escritas por Manuela

Dias. Ao usar “caso raro” observamos que a proposta é particularizar a narrativa de

“Justiça” como algo fora dos padrões cotidianamente trabalhados. Ainda que de forma

aparentemente despretensiosa, as entrelinhas do texto perpassam várias características

marcantes para o entendimento das narrativas complexas.

Omelete

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O artigo publicado pelo Omelete é estruturado de forma bem parecida à uma

crítica cinematográfica, o que coloca a narrativa ficcional de TV em um patamar

equivalente à um filme. O site Omelete historicamente divulga conteúdos voltados para

a cultura pop, cinema, séries americanas e produtos “Cult”. De certa forma, a postagem

de uma crítica de minissérie é uma quebra de regularidade desse emissor, que por uma

demanda de mercado e público sente a necessidade de discorrer acerca dessas

narrativas. O texto aborda a estrutura de “Justiça” como narrativa complexa e explicita

suas características tramáticas – “a cada dia da semana o público acompanhará a história

de um personagem (...)”.

A crítica evidencia os recursos estéticos da minissérie discorrendo sobre os

possíveis efeitos de sentido que sua exibição e trilha sonora podem ocasionar ao

telespectador. O texto contempla o aspecto histórico em que as narrativas complexas

estão inseridas que é o de “viradas da TV aberta”. Entendo que a complexidade não é

determinante para que se construa uma história envolvente e exitosa, o texto é feliz ao

colocar que apesar do apuro técnico, o que a audiência espera sempre é boas histórias.

R7

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O texto de Álvaro Leme publicado em sua coluna no R7 trabalha em uma

perspectiva de aproximação do público. O artigo articula o tempo todo, uma interação

com o espectador e coloca tanto o autor da coluna quanto os leitores como um “público

seleto” e envolvido não só com “Justiça”, mas com outras narrativas ficcionais que dão

sentido à minissérie, como por exemplo, trabalhos anteriores de cada um dos atores e

atrizes (personagens). O primeiro destaque desse texto vai para a citação da repercussão

de “Justiça” nas redes sociais digitais. Como colocado na caracterização de uma

narrativa complexa, podemos destacar o uso dessas narrativas como atuantes em um

cenário de convergência midiática, assim para além da audiência tradicional, medida

pelo número de televisores ligados, temos a repercussão dessas séries nas redes

(Facebook, Twitter e Instagram).

Outra característica marcante é o comentário acerca de quase todos os

personagens da minissérie. Porém, eles não são “avulsos”, na maioria das vezes estão

articulados com a história dos atores e atrizes e de seus personagens. Na narrativa

complexa temos uma valorização exponencial dos personagens, pois quase ninguém (ou

ninguém) é coadjuvante. Observamos que o jornalista se torna uma espécie de caçador

de pistas, desvendando não só informações sobre “Justiça”, mas ao mesmo tempo

construindo uma teia paralela de sentidos. O texto é marcado por uma necessidade de

mostrar o quanto o escritor tem consciência da trama da minissérie e de toda construção

simbólica que envolve a narrativa para além dos episódios.

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Séries por Elas

O artigo de Carolina Maria para o Séries por Elas desbrava variadas

características das narrativas complexas. Desde o título, o texto aguça o leitor para o

entendimento de que a riqueza da minissérie está na simplicidade. Nesse ponto a autora

dá indícios do hibridismo entre o tradicional e as incorporações contemporâneas que são

ligadas basicamente à tecnologia e a convergência midiática. Nesse âmbito, o texto faz

uma referência de que “Justiça” é uma narrativa aos moldes dos conteúdos distribuídos

pela Netflix, que explicita ainda mais a saída do convencional a partir da minissérie.

Outra questão é discorrer sobre a telenovela e seu possível “formato esgotado”, o que

nos leva a entender que há um entendimento por parte da autora que a minissérie tem a

mesma matriz cultural da telenovela, apesar da sua extensão, e que é possível reinventar

ainda que “dentro” das matrizes culturais que são o melodrama e o folhetim.

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O acabamento temático (Bahktin, 2003) fica bastante sensível no artigo de

Carolina, pois ela discorre acerca do diálogo da “justiça” com nossa estrutura social. É

possível ver como o estético conversa com o psicológico em uma narrativa seriada – “ao

final da história os nossos próprios valores sobre o tema também sejam questionados”.

Há também uma forte relação de memória e discurso no texto, visto que, a blogueira faz

um exercício de definir o que é uma dramaturgia “convencional” e ao mesmo tempo

expõe o que faz de “Justiça” uma narrativa que se encontra fora desses padrões. O

melodrama aparece no artigo no uso da palavra “vilão” com aspas, o que indica que a

partir de uma representação histórica, temos um arquétipo de vilania que está sendo

questionado – e de “mocinha” também. Por fim, o texto termina com um tom de

benefício mercadológico e ao mesmo tempo social – “que para TV e que bom para o

público”.

Considerações Finais

A TV vive a modernidade trazendo o apuro estético do cinema para a telinha.

Presenciamos narrativas ficcionais com uma quantidade muito mais elevada de cenas

externas, com o objetivo de serem mais realistas – como aconteceu em “Justiça” que

prezou pela exploração imagética de Recife. Além de uma iluminação sofisticada que

trabalha a serviço da dramaticidade, como também ocorreu na minissérie a partir das

camadas de cores escolhidas. Temos uma construção narrativa que se dá por fragmentos

e tem o telespectador como confidente, como foi mostrado por meio das análises das

colunas opinativas que em certo modo traziam um retrato do público. O melodrama é

reinventado no desenvolvimento dramáticos dos personagens, até mesmo o “dramalhão”

é mais apurado tecnicamente.

De certo, as narrativas complexas trazem mudanças na relação entre produção,

distribuição, consumo e reprodução, pois interferem diretamente nessas variáveis. Tais

narrativas indicam um maior envolvimento emocional e cognitivo, muitas vezes

resultado da complexificação dos personagens, o que muda também a relação do

público e crítica com os atores e atrizes. O telespectador torna-se um descobridor, que

desbrava a história para além da própria história. Entendo as narrativas complexas

somos levados a reconhecer que o espectador ganha um novo status a partir desse

consumo. A partir dos textos analisados, vemos como a narrativa complexa é cognitiva

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste – Cuiabá - MT – 12 a 14/06/2017

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para audiência, que mesmo não sendo “especialista” é capaz de identificar os trânsitos

estéticos e narrativos presentes nessas novas produções, como é o caso de “Justiça”.

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