como os avioes voam descricao fisica

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43 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 Uma descrição física do vôo H oje em dia muita gente já an- dou de avião e muitos se per- guntaram como é que um avião voa. A resposta que normalmen- te se obtém ou é enganosa ou simples- mente errada. Esperamos que as res- postas encontradas neste artigo ajudem a dirimir concepções alternativas acerca da sustentação de aviões bem como sejam adotadas como argumento quando se tiver que explicar aos outros o porquê dos aviões voarem. Mostra- remos aqui que é mais fácil explicar a sustentação se partirmos das leis de Newton ao invés do princípio de Ber- noulli. Mostraremos também que a ex- plicação que mais comumente nos é ensinada é, no mínimo, enganosa e que a sustentação é devido ao fato que a asa desvia o ar para baixo. A maior par- te deste ar desviado é puxada da parte de cima da asa. Comecemos por três descrições da sustentação de asas que são normal- mente apresentadas em livros-texto e manuais de treina- mento. Chamaremos a primeira de descrição aerodinâmica matemática da sustentação, usada por engenheiros aeronáuticos. Esta abordagem usa uma matemática complexa e/ou simulações computacionais para calcular a sustentação de uma asa. Ela usualmente faz uso de um conceito matemático chamado circulação para com ele calcular a aceleração do ar sobre a asa. A circulação é uma medida da rotação aparente do ar em torno da asa. Embora prático na hora de calcular a sustentação, esta des- crição não nos fornece uma compre- Há uma controvérsia sobre a causa da susten- tação que permite a aviões se manterem no ar. A explicação usualmente encontrada nos livros texto é aquela baseada no Princípio de Bernoulli e no princípio dos tempos de trânsito iguais. Neste artigo, D. Anderson e S. Eberhardt, além de mostrarem que este último é incorreto, de- fendem que a sustentação pode ser entendida apenas em se considerando as leis de Newton aplicadas ao movimento do ar entorno da asa. No artigo seguinte, C.N. Eastlake argumenta que tanto as explicações baseadas em Newton e Bernoulli estão corretas, e seu uso é uma questão de conveniência em função dos dados disponíveis. David Anderson Fermi National Accelerator Laboratory, Batavia e-mail: [email protected] Scott Eberhardt Boeing Company, Seatlle Foi professor por longo tempo do Departamento de Aeronáutica e Astronáutica da Universidade de Washington e-mail: [email protected] Tradução e resumo: S.R. Dahmen ensão intuitiva sobre o vôo. A segunda descrição possível será por nós chamada de descrição popular e é baseada no princípio de Bernoulli. A vantagem maior desta descrição é que ela é fácil de ser entendida e tem sido ensinada há anos. Devido a sua simplicidade, ela é usada na maioria dos manuais de treinamento de vôo para explicar a sustentação de uma asa. Sua principal desvantagem é o fato de estar baseada no princípio dos tempos de trânsito iguais, ou ao menos na hipótese de que uma vez que o ar tem um caminho maior para percor- rer por cima da asa, ele tem que fazê- lo mais rapidamente. Esta abordagem é focada no formato da asa e impede que se entendam vários fenômenos importantes como o vôo invertido, a potência, o efeito-solo e a dependência da sustentação com o ângulo de ataque da asa. A terceira ma- neira de descrever a sustentação, reivin- dicada neste artigo, é o que chamaremos de descrição física. Ela é baseada essen- cialmente nas três leis de Newton e em um fenômeno chamado de efeito Coanda. Esta descrição é a única capaz de explicar os fenômenos associados ao vôo, permitindo que sejam entendidos. Ela é útil para uma compreensão pre- cisa de certas relações entre parâme- tros de vôo, como o modo pelo qual a potência aumenta com a carga ou a velocidade de estol aumenta com a al- titude 1 . Ela também serve para fazer cálculos simples (com lápis e papel) da sustentação. A descrição física da sus- tentação também é de grande valia para Muitos se perguntam como é que um avião voa. Ao perguntar sobre isso, a resposta que normalmente se obtém ou é enganosa ou simplesmente errada

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43Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 Uma descrição física do vôo

Hoje em dia muita gente já an-dou de avião e muitos se per-guntaram como é que um

avião voa. A resposta que normalmen-te se obtém ou é enganosa ou simples-mente errada. Esperamos que as res-postas encontradas neste artigo ajudema dirimir concepções alternativas acercada sustentação de aviões bem comosejam adotadas como argumentoquando se tiver que explicar aos outroso porquê dos aviões voarem. Mostra-remos aqui que é mais fácil explicar asustentação se partirmos das leis deNewton ao invés do princípio de Ber-noulli. Mostraremos também que a ex-plicação que mais comumente nos éensinada é, no mínimo, enganosa e quea sustentação é devido ao fato que aasa desvia o ar para baixo. A maior par-te deste ar desviado é puxada da partede cima da asa.

Comecemos portrês descrições dasustentação de asasque são normal-mente apresentadasem livros-texto emanuais de treina-mento. Chamaremos a primeira dedescrição aerodinâmica matemática dasustentação, usada por engenheirosaeronáuticos. Esta abordagem usauma matemática complexa e/ousimulações computacionais paracalcular a sustentação de uma asa. Elausualmente faz uso de um conceitomatemático chamado circulação paracom ele calcular a aceleração do arsobre a asa. A circulação é umamedida da rotação aparente do ar emtorno da asa. Embora prático na horade calcular a sustentação, esta des-crição não nos fornece uma compre-

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Há uma controvérsia sobre a causa da susten-tação que permite a aviões se manterem no ar.A explicação usualmente encontrada nos livrostexto é aquela baseada no Princípio de Bernoullie no princípio dos tempos de trânsito iguais.Neste artigo, D. Anderson e S. Eberhardt, alémde mostrarem que este último é incorreto, de-fendem que a sustentação pode ser entendidaapenas em se considerando as leis de Newtonaplicadas ao movimento do ar entorno da asa.No artigo seguinte, C.N. Eastlake argumentaque tanto as explicações baseadas em Newtone Bernoulli estão corretas, e seu uso é umaquestão de conveniência em função dos dadosdisponíveis.

David AndersonFermi National AcceleratorLaboratory, Bataviae-mail: [email protected]

Scott EberhardtBoeing Company, SeatlleFoi professor por longo tempo doDepartamento de Aeronáutica eAstronáutica da Universidade deWashingtone-mail: [email protected]

Tradução e resumo: S.R. Dahmen○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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ensão intuitiva sobre o vôo.A segunda descrição possível será

por nós chamada de descrição populare é baseada no princípio de Bernoulli.A vantagem maior desta descrição éque ela é fácil de ser entendida e temsido ensinada há anos. Devido a suasimplicidade, ela é usada na maioriados manuais de treinamento de vôopara explicar a sustentação de umaasa. Sua principal desvantagem é ofato de estar baseada no princípio dostempos de trânsito iguais, ou ao menosna hipótese de que uma vez que o artem um caminho maior para percor-rer por cima da asa, ele tem que fazê-lo mais rapidamente. Esta abordagemé focada no formato da asa e impedeque se entendam vários fenômenosimportantes como o vôo invertido, apotência, o efeito-solo e a dependência

da sustentação como ângulo de ataqueda asa.

A terceira ma-neira de descrever asustentação, reivin-dicada neste artigo,é o que chamaremos

de descrição física. Ela é baseada essen-cialmente nas três leis de Newton e emum fenômeno chamado de efeitoCoanda. Esta descrição é a única capazde explicar os fenômenos associados aovôo, permitindo que sejam entendidos.Ela é útil para uma compreensão pre-cisa de certas relações entre parâme-tros de vôo, como o modo pelo qual apotência aumenta com a carga ou avelocidade de estol aumenta com a al-titude1. Ela também serve para fazercálculos simples (com lápis e papel) dasustentação. A descrição física da sus-tentação também é de grande valia para

Muitos se perguntam comoé que um avião voa. Aoperguntar sobre isso, a

resposta que normalmentese obtém ou é enganosa ou

simplesmente errada

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pilotos que precisam de uma intuiçãoa respeito da razão dos aviões voarem.

A descrição popular dasustentação

Aos estudantes de Física e aerodi-nâmica é ensinado que o avião voapor causa do princípio de Bernoulli,que estabelece que se a velocidade doar aumenta, sua pressão diminui (naverdade isto nem sempre é correto. Oar flui muito rapidamente ao lado doorifício da fuselagem onde fica o altí-metro, mas mesmo assim este fazuma leitura correta da altitude daaeronave). O argumento é que a asase sustenta porque o ar sobre ela fluimais rapidamente, criando uma re-gião de baixa pressão. Esta explicaçãosatisfaz os curiosos e poucos questio-nam as conclusões. Alguns podemficar imaginando o que faria o ar an-dar mais rapidamente por cima daasa, e é justamente aí que a explicaçãopopular desmorona.

Para poder explicar o porquê doar fluir com maior velocidade porcima da asa, muitos recorrem a umargumento geométrico segundo oqual a distância que o ar tem quevencer está diretamente relacionadacom a sua velocidade. A afirmaçãocostumeira é que quando o ar se se-para no bordo de ataque, a parte quevai por cima da asa tem que chegarao bordo de fuga no mesmo tempoque a parte do ar que foi por baixo.Isto é o chamado princípio dos tem-pos de trânsito iguais.

A pergunta que fica é se os nú-meros que são obtidos com a descriçãorealmente fazem sentido. Tomemosum exemplo de um Cessna 172, queé um avião muito popular de quatrolugares e asa superior. As asas preci-sam levantar uma carga máxima devôo de 1.045 kg. O caminho percor-rido pelo ar que passa por cima daasa é aproximadamente 1,5% maiorque o do caminho de baixo. Usando adescrição popular, a asa criaria apenasalgo no entorno de 2% da susten-tação exigida a uma velocidade de104 km/h, um “vôo lento” para estetipo de avião. Na verdade, os cálculosmostram que seria necessária umavelocidade de no mínimo 640 km/hpara se conseguir sustentação sufi-

ciente. Pode-se inverter a questão eperguntar qual deveria ser a diferençamínima de caminhos para que se con-seguisse a sustentação necessária emvôo lento? A resposta é 50%, o quedaria uma espessura de asa quase tãogrande quanto o comprimento de suacorda.

Mas quem disse que o ar que vaipor cima tem que chegar ao bordo defuga ao mesmo tempo em que o arque vai por baixo? A Fig. 1 mostra ofluxo de ar no entorno de uma asaem uma simulação de túnel de vento.Neste tipo de simulação, fumaça éperiodicamente introduzida no túnel.O que se pode ver é que o ar que passapor cima da asa chega ao bordo defuga consideravelmente antes que oar que vai por baixo. Isto quer dizerque o ar de cima tem uma aceleraçãomuito maior do que aquela previstapelo princípio dos tempos de trânsitoiguais. Além disso, como uma análisemais detalhada nos mostra, o ar quepassa pela parte de baixo da asa temuma velocidade reduzida em relaçãoàquela do ar que flui livremente (longedas asas). O princípio dos tempos detrânsito iguais funciona apenas paraasas com sustentação zero.

Decorre também da explicaçãopopular o fato de que vôos invertidossão impossíveis. Ela certamente nãoconsidera aviões de acrobacia, que têmasas simétricas (a parte superior e aparte inferior da asa tem o mesmoperfil) e muito menos como uma asase ajusta às grandesvariações de cargaquando sai de ummergulho ou fazuma curva acen-tuada.

A pergunta en-tão é: por qual mo-tivo a explicaçãopopular dominoupor tanto tempo?Uma resposta é queo princípio de Ber-noulli é de fácil en-tendimento. Não há nada errado como princípio ou com a afirmação de queo ar flui mais rapidamente pela partesuperior da asa. Porém, como adiscussão acima sugere, não se podecompreender inteiramente a susten-

tação com esta explicação2. O proble-ma é que falta um ponto crucialquando aplicamos o princípio de Ber-noulli. Podemos calcular as pressõesno lado de cima e de baixo da asa sesoubermos a velocidade do ar nestasregiões, mas como medir a velocidade?Como veremos em breve, o ar é acele-rado sobre a asa porque a pressão émenor, e não o contrário.

Um outro problema fundamen-tal da descrição popular é que elaignora o trabalho realizado. Susten-tação requer potência (trabalho porunidade de tempo). Como veremos, apotência é uma das chaves para secompreender muitos dos interessantesfenômenos associados à sustentação.

As leis de Newton e asustentação

Então, como é que uma asa gerasustentação? Para entender isto a pri-meira e terceira leis de Newton (sobrea segunda falaremos mais tarde)

devem ser relem-bradas. A primeiralei de Newton afir-ma que um corpoem repouso perma-nece em repouso, ouum corpo em mo-vimento continuaráem movimento reti-líneo uniforme amenos que umaforça externa atuesobre ele. Ou seja, sevemos o escoamen-

to se curvar ou se o ar, a princípioparado, for repentinamente acelerado,significa que há uma força atuandosobre ele. A terceira lei de Newton afir-ma que para cada ação há uma reaçãoigual em magnitude, mas no sentido

Figura 1. Simulação do fluxo de ar poruma asa em um túnel de vento com fu-maça.

O argumento de que a asase sustenta porque o ar

sobre ela flui maisrapidamente, criando umaregião de baixa pressão,satisfaz os curiosos poucoatentos. Mas se tentarmosimaginar o que faria o ar

andar mais rapidamente porcima da asa, bem, não

encontraremos uma boaexplicação...

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45Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 Uma descrição física do vôo

contrário. Por exemplo, um objetosobre uma mesa exerce uma força so-bre ela, e a mesa exerce uma forçacontrária que o mantém no lugar. Afim de criar sustentação, a asa precisafazer algo com o ar. Aquilo que a asafaz com o ar é a ação, enquanto asustentação representa a reação.

Comparemos duas figuras paraver as linhas de corrente de ar pelaasa. Na Fig. 2 o ar vem direto em dire-ção à asa, a contorna e sai direto pelaparte de trás da mesma. Todos já vi-mos figuras semelhantes a esta.Porém o ar atrás que sai da asa estáexatamente igual a quando ele estavana frente da asa. Não há uma açãoresultante sobre o ar e, portanto nãopode haver sustentação!

A Fig. 3 mostra as linhas de cor-rente como elas realmente deveriamser desenhadas. O ar passa pela asa eé encurvado para baixo. A primeiralei de Newton diz que deve haver umaforça sobre o ar para encurvá-lo (aação). A terceira lei de Newton diz quedeve haver uma força igual, mas emsentido contrário (para cima) sobre aasa (reação). Para poder criar umasustentação, a asa precisa desviar umagrande quantidade de ar para baixo.

A sustentação de uma asa é igualà variação do momento do ar que elaestá desviando para baixo. O momen-to é o produto da massa pela veloci-dade (mv). A forma mais comum deexpressar a segunda lei de Newton éF = ma, ou seja, força é igual à massavezes aceleração. Nesta formulação alei nos diz qual a força necessária paraacelerar um objeto com uma certa

massa. Uma outra maneira de expres-sar a lei de Newton é dizendo: asustentação de uma asa é proporcio-nal à quantidade de ar sendo desviadopara baixo multiplicado pela velo-cidade vertical da mesma3. Simplesassim. Para conseguir um empuxomaior, a asa ou tem que deslocar maisar para baixo (massa) ou aumentar avelocidade vertical. A componentevertical da velocidade do ar atrás daasa é a componente vertical do down-wash. A Fig. 4 mostra como o pilotovê o downwash (ou como o vemos emum túnel de vento). A figura mostratambém como uma pessoa no chãovê o downwash à medida que a asapassa por ela. Para o piloto, o ar saipelo bordo de fuga da asa com umângulo aproximadamente igual aoângulo de ataque e com uma veloci-dade aproximada-mente igual à velo-cidade da aeronave.Para um observa-dor no solo, se elaou ele pudessem vero ar, o veriam sain-do do bordo de fugaquase que na verti-cal com uma velo-cidade relativamen-te baixa. Quantomaior o ângulo de ataque da asamaior a velocidade vertical do ar. Domesmo modo, para um ângulo deataque fixo, quando maior a velo-cidade da aeronave maior a velocidadevertical do ar. Tanto o aumento doângulo de ataque quanto o aumentoda velocidade do avião fazem aumen-tar o comprimento da componentevertical para baixo da velocidade. Éesta velocidade vertical que dá à asasua sustentação.

Como já dito, um observador emterra veria o ar atrás da asa saindoquase que diretamente para baixo.Isto pode ser visto quando se observa

a estreita coluna de ar atrás de umahélice, um ventilador caseiro ou sobos rotores de um helicóptero. Todossão exemplos de asas giratórias. Se oar saísse das pás com certo ângulo,ele produziria mais um cone de ventodo que uma coluna estreita. A asadesenvolve a sustentação transferindomomento para o ar. Para um vôonivelado em linha reta, este momentoeventualmente acaba atingindo ochão. Se um avião pudesse voar sobreuma balança gigante, a balançaconseguiria pesá-lo.

Façamos agora um cálculo sim-ples para ver quanto de ar uma asapode separar. Tomemos por exemploo Cessna 172 com uma massa deaproximadamente 1.045 kg. Comuma velocidade de cruzeiro de220 km/h e supondo um ângulo de

ataque efetivo de 5°,obtemos uma velo-cidade vertical do arde aproximada-mente 18 km/h àdireita da asa. Se su-pusermos que avelocidade verticalmédia do ar des-viado é metade destevalor, podemos cal-cular da segunda lei

de Newton que a quantidade de ardesviado é da ordem de 5 ton/s.Assim, um Cessna 172 em velocidadede cruzeiro está desviando aproxima-damente uma quantidade de massade ar 5 vezes maior que a sua própriamassa a fim de produzir uma susten-tação. Imagine quanto de ar é desvia-do por um Boeing 777 de 250 tonela-das durante a decolagem.

Desviar tanto ar assim para baixoé um forte argumento contra a idéiade que a sustentação é apenas umefeito da superfície da asa (quer dizer,apenas uma pequena quantidade dear no entorno da asa contribui para a

Figura 2. Representação muito comum dofluxo de ar por uma asa. A asa não temqualquer sustentação.

Figura 3. Fluxo de ar verdadeiro pela asa,mostrando o upwash e o downwash. Figura 4. Como o downwash é visto pelo piloto e por um observador em terra.

A sustentação de uma asa éigual à variação do

momento do ar que ela estádesviando para baixo. Deoutra maneira, podemos

dizer que ela é proporcionalà quantidade de ar sendo

desviado para baixomultiplicado pela velocidade

vertical da mesma

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sustentação), como se deduz daexplicação popular. Pois, para poderdesviar 5 ton/s, a asa do Cessna 172teria que acelerar todo o ar dentro deuma distância de 7,3 m acima da asa.Não nos esqueçamos de que a densi-dade do ar no nível do mar é de aproxi-madamente 1 kg/m³. A Fig. 5 mostrao efeito do ar sendo jogado para baixopela asa. Surge um enorme buraco naneblina causado pelo downwash deum avião que acabou de sobrevoá-la.

Como, então, a asa desvia tantoar? Quando o ar se curva ao redor dotopo da asa, ele puxa o ar acima deleacelerando-o para baixo. Caso contrá-rio haveria lacunas no ar acima daasa. O ar é puxadode cima. Isto fazcom que a pressãodo ar acima da asase torne menor. Aaceleração do aracima da asa parabaixo é que cria asustentação (napróxima seção dis-cutiremos a razão pela qual a asa pu-xa o ar com força suficiente para gerarsustentação).

Como podemos ver na Fig. 3, algoque complica esta imagem é o efeitodo upwash no bordo de ataque da asa.À medida que ela se desloca, o ar nãoapenas é empurrado para baixo naparte de trás da asa como é tambémempurrado para cima no bordo deataque. Este upwash, na verdade,provoca uma sustentação negativa emais ar precisa ser jogado para baixopara compensar este efeito. Discuti-remos isso mais para frente quandofalarmos do efeito solo.

Costuma-se olhar para o fluxo dear do ponto de vista do referencial daasa. Em outras palavras, para umpiloto, é o ar que se move e a asa queestá parada. Já afirmamos que umapessoa em terra veria o ar saindo dobordo de fuga da asa quase na verti-cal. Mas o que faz o ar embaixo daasa? Na Fig. 6 mostramos uma fotoinstantânea de como as moléculas doar se deslocam à medida que a asapassa pelo observador. Lembre-se quenesta figura o ar está inicialmente emrepouso e a asa é que se move. A seta1 vira a seta 2 e assim por diante. Àfrente do bordo de ataque o ar se movepara cima (upwash). No bordo defuga, o ar desloca-se para baixo(downwash). Sobre a asa o ar é acele-rado em direção ao bordo de fuga.Embaixo, o ar é levemente aceleradopara frente.

Porque o ar acompanha este pa-drão? Primeiro nos lembremos que oar é considerado um fluido incompres-sível para vôos de baixa velocidade.Isto significa que ele não pode mudarseu volume e há uma resistência aosurgimento de espaços vazios. Bem,mas o ar foi acelerado no topo da asapela redução da pressão. Isto faz comque o ar seja sugado da parte da frente

da asa e seja expelidopara trás e para bai-xo da asa. É precisocompensar este des-locamento de ar e,portanto, o ar semove no entorno daasa para suprir estafalta. Isto é análogoao escoamento de

água em torno do remo de umacanoa. Esta circulação do ar em tornoda asa não é a força motriz que pro-duz sustentação tanto quanto a circu-lação da água em torno do remo nãoé responsável pelo movimento deste,embora seja verdade que se forpossível calcular a circulação do ar aoredor da asa, então a sustentação podeser calculada. A sustentação é propor-cional à circulação.

Uma observação que podemosfazer, a partir da Fig. 6, é que a partesuperior da asa faz muito mais paramover o ar do que a parte de baixo. Asuperfície superior é, deste modo,

mais importante. Por este motivo,aviões podem carregar coisas sob asasas, como tanques descartáveis oucompartimentos de armazenamento,mas não em seu topo, onde elasinterfeririam na sustentação. É porisso que struts4 sob as asas são co-muns, mas as mesmas sobre as asassão historicamente raras. Um strut ouqualquer obstrução sobre o topo daasa interferiria na sustentação damesma.

Efeito CoandaUma questão que surge natural-

mente é como a asa desvia o ar parabaixo. Quando um fluido que escoaencontra uma superfície curva pelafrente, ele tentará acompanhar o perfildaquela superfície. Para ver este efeito,segure um copo debaixo de um filetede água de uma torneira de modo afazer com que a água toque levementeo lado do copo. Ao invés de continuarfluindo na vertical, a presença do copofaz a água grudar-se nele e escorrerpela sua superfície, como mostra aFig. 7. Esta tendência dos fluidos deacompanharem uma superfície curvaé conhecida como efeito Coanda.Sabemos, porém, da primeira lei deNewton, que se o líquido se encurvaé porque deve haver uma força atuan-do sobre ele, e a terceira lei de New-ton nos diz que o fluido exerce uma

Figura 5. Downwash e vórtices de asas naneblina. (Paul Bowen, cortesia da CessnaAircraft Co.).

Figura 6. Direção do movimento do ar emtorno de uma asa como vista por umobservador em terra.

Figura 7. O efeito Coanda.

A parte superior da asa fazmuito mais para mover o ardo que a parte de baixo. Poreste motivo, aviões podemcarregar compartimentossob as asas, mas não em

seu topo, onde elasinterfeririam na sustentação

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47Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 Uma descrição física do vôo

força de reação igual, mas em sentidooposto sobre o copo.

Então por que o fluido acompa-nha o perfil da superfície? A respostaé a viscosidade, a resistência ao escoa-mento que também faz com que o artenha certa “aderência”. A viscosidadedo ar é pequena, mas o suficiente parafazê-lo querer se grudar na superfície.Imediatamente sobre a superfície, avelocidade relativa entre esta e as mo-léculas do ar é zero (razão pela qualnão se consegue tirar a poeira de umcarro jogando águasobre ele). Um pou-co acima da super-fície o fluido temuma pequena velo-cidade e quantomais longe nos afas-tamos da superfície,mais aumenta a ve-locidade do fluidoaté que ela atinja o valor do fluxo li-vre. Uma vez que o fluido na super-fície muda de velocidade, seu fluxo éencurvado em direção à superfície porforças de cisalhamento. A menos quea curvatura da superfície seja muitoabrupta, o fluido seguirá o perfil damesma. O volume de ar ao redor daasa que parece estar parcialmentegrudado a ela é chamado de “camadalimite” e tem menos de 2,5 cm deespessura mesmo em asas grandes.

Olhe novamente para a Fig. 3. Asmagnitudes das forças sobre o ar (esobre a asa) dependem de quão “fecha-das” são as curvas que o ar faz. Quantomais a curva for fechada, maiores asforças atuantes. Note que a maior parteda sustentação ocorre na parte dian-teira da asa. Na verdade, metade dasustentação total de uma asa surge naregião dianteira que corresponde a 1/4do comprimento da corda.

Sustentação como função doângulo de ataque

Há vários tipos de asa: convencio-nais, simétricas, convencionais em vôoinvertido, as asas dos biplanos antigosque pareciam pranchas curvas e afamosa “porta de celeiro” (barn door).Em todos estes casos a asa está jogandoar para baixo, ou mais precisamente,puxando o ar sobre ela para baixo(embora as primeiras asas usassem

uma contribuição significativa da partede baixo). O que todas estas asas têmem comum é um ângulo de ataque emrelação ao ar que contra elas sopra. Oângulo de ataque é o parâmetro maisimportante que determina a sustenta-ção da asa.

Para melhor entender o papel doângulo de ataque, é útil introduzirmoso conceito de ângulo de ataque “efeti-vo”, cujo valor zero é definido como oângulo entre a asa e o ar para o qual asustentação é nula. Ao se mudar o ân-

gulo de ataque paracima ou para baixo,descobre-se que asustentação é pro-porcional ao ân-gulo. A Fig. 8 ilustracomo a sustentaçãode uma asa típicavaria com o ângulode ataque. Uma

relação semelhante a esta existe paratodo tipo de asa, independentemente desua forma - isto vale para a asa de um747, para uma asa invertida ou para asua mão do lado de fora da janela docarro. A asa invertida pode ser explicadaem termos de seu ângulo de ataque,não obstante sua aparente contradiçãocom a explicação popular da susten-tação. Um piloto ajusta o ângulo deataque para assim conseguir ajustar asustentação à velocidade e à carga daaeronave. Para se en-tender a sustenta-ção, o ângulo de ata-que desempenha pa-pel mais importantedo que detalhes daforma das asas. O formato da asaaparece quando queremos entender ascaracterísticas do estol ou do arrasto agrandes velocidades.

A sustentação diminui tipicamen-te a partir de um “ângulo crítico” de15°. As forças necessárias para encur-var o fluxo de ar em ângulos tãoíngremes são maiores que a viscosi-dade do ar pode suportar, e o ar come-ça a se desprender da asa. Esta sepa-ração entre o fluxo de ar e a partesuperior da asa é o chamado estol.

A asa enquanto “concha” de arGostaríamos agora de introduzir

uma nova imagem mental da asa.

Costumamos imaginar a asa comosendo uma lâmina delgada que vaicortando o ar e de alguma maneiramágica gera uma sustentação. A novaidéia que gostaríamos de adotar aquié aquela da asa como uma concha quedesvia certa quantidade de ar dadireção horizontal para uma direçãoaproximadamente igual ao ângulo deataque, como mostra a Fig. 9. Paraasas de aviões típicos, podemos falarcom uma boa medida de aproximaçãoque a área da concha é proporcional àárea da asa. O formato da concha éaproximadamente elíptico para todasas asas, como ilustrado na figura.Uma vez que a sustentação é propor-cional ao volume de ar desviado, elaé, portanto, também proporcional àárea da asa.

Como dito anteriormente, a sus-tentação gerada poruma asa é propor-cional à quantidadede ar deslocado parabaixo multiplicadopela sua componen-

te vertical de velocidade. À medida queum avião aumenta sua velocidade, aconcha desvia maior quantidade de ar.Como a carga sobre as asas não au-menta, a velocidade vertical do ar devediminuir na mesma proporção. Assimo ângulo de ataque precisa diminuirpara manter constante a sustentação.Quanto mais alto sobe o avião, menos

Figura 8. Sustentação vs. ângulo de ata-que.

Figura 9. A asa enquanto “concha”.

Há vários tipos de asa:convencionais, simétricas,

convencionais em vôoinvertido, etc. O que todaselas têm em comum é um

ângulo de ataque emrelação ao ar que contra

elas sopra...

...e o ângulo de ataque é oparâmetro mais importante

que determina asustentação da asa

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48 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006Uma descrição física do vôo

denso se torna o ar e a concha desviauma quantidade menor de ar parauma mesma velocidade. Assim, paracompensar, é preciso aumentar oângulo de ataque. Os conceitos destaseção serão utilizados para explicar-mos a sustentação de uma maneiraque seria impossível com a explicaçãopopular.

Sustentação requer potênciaQuando um avião passa por sobre

algum lugar, o ar que estava paradoanteriormente adquire uma veloci-dade para baixo, ou seja, o ar passa ase movimentar após a passagem doavião. Ao ar foi dada energia. Potênciaé energia, ou trabalho por unidade detempo e, portanto, sustentação requerpotência. Esta vem dos motores doavião (ou da gravidade e das correntestérmicas no caso de planadores).

Quanta potência é necessária paravoar? Se dermos um tiro com umabala de massa m e velocidade v a ener-gia dela será 1/2mv². Do mesmo mo-do, a energia do ar que foi movidopara baixo é proporcional à quanti-dade do mesmo e ao quadrado davelocidade por ele adquirida. Mas jámencionamos o fato de que a susten-tação de uma asa também é propor-cional à quantidade de ar desviadomultiplicado pela componente verti-cal da velocidade adquirida. Assim, apotência necessária para levantar umavião é proporcional à carga (ou peso)multiplicado pela velocidade verticaldo ar. Se a velocidade do avião dobra,dobra a quantidade de ar desviado pa-ra baixo. Assim, para manter umasustentação constante, o ângulo deataque tem que diminuir para que as-sim a velocidade vertical caia pela me-tade de seu valor inicial. A potêncianecessária para a sustentação se reduzà metade. Isto mostra que a potêncianecessária para manter um avião noar se torna menor com o aumento davelocidade do avião. Na verdade, mos-tramos que a potência necessária paragerar sustentação é inversamenteproporcional à velocidade do avião.

Porém, todos nós sabemos quepara nos deslocarmos mais rápido(em velocidade de cruzeiro) precisa-mos aplicar mais potência. Disto con-cluímos que há algo mais por trás da

potência do que sim-plesmente a potêncianecessária para mantera sustentação. A potên-cia associada à susten-tação é chamada de po-tência “induzida”.Potência também se faznecessária para vencer oque chamamos de ar-rasto “parasitário”, queé o arrasto associadocom o movimento dasrodas, das antenas e dosstruts sustentadores deasas através do ar. Aenergia que um aviãofornece às moléculas de ar em funçãodo impacto é proporcional ao quadra-do da velocidade (1/2mv²). O númerode moléculas com as quais o avião sechoca por unidade de tempo é propor-cional à velocidade. Quanto maisrápido se voa, maior a taxa de impac-to. Assim a potência parasitária neces-sária para se superar o arrastoparasitário aumenta proporcional-mente à velocidade.

A Fig. 10 mostra as “curvas depotência” para a potência induzida,parasitária e total (a soma das duasprimeiras). De novo, a induzida variacom 1/v e a segunda com v. Para velo-cidades baixas, a potência necessáriaé dominada pela potência induzida.Quanto mais devagar se voa, menoro ar deslocado e, portanto, o ângulode ataque deve aumentar para au-mentar a velocidade vertical do ar.Pilotos aprendem a voar no “lado detrás” da curva de potência para assimaprender a reconhecerque o ângulo de ataque ea potência necessáriapara permanecer em vôosão consideráveis.

Em vôo de cruzeiro,a necessidade de potênciaé dominada pela potênciaparasitária. Uma vez queela aumenta com o cuboda velocidade (v³), umaumento no tamanho domotor do aeroplano con-tribui apenas para que eleascenda mais rapida-mente (maior taxa de as-censão), mas pouco faz

para aumentar a velocidade de cruzei-ro. Caso o tamanho do motor sejaduplicado, obtém-se apenas um au-mento de aproximadamente 25% navelocidade de cruzeiro.

Uma vez que agora sabemos co-mo a potência necessária varia com avelocidade, podemos entender o arras-to, que é também uma força. Arrastoé simplesmente potência dividida pelavelocidade. A Fig. 11 ilustra o arrastoinduzido, o arrasto parasitário e oarrasto total como função da veloci-dade. O induzido varia como 1/v² e oparasitário como v². Olhando paraestas figuras, podemos tirar algumasconclusões sobre como aviões são pro-jetados. Aviões mais lentos, como pla-nadores, são projetados visando a di-minuir a potência induzida quedomina em velocidades baixas. Aviõesa hélice mais velozes têm que se preo-cupar mais com a potência parasi-tária, e aviões a jato com o arrasto

Figura 10. Necessidade de potência vs. velocidade.

Figura 11. Arrasto vs. velocidade.

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49Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

parasitário (a diferença entre estes estáalém da abrangência deste artigo).

Eficiência da asaEm vôo de cruzeiro, uma quanti-

dade não desprezível do arrasto deuma asa moderna é o arrasto induzi-do. O arrasto parasitário de uma asade um Boeing 747 é equivalenteàquela de um cabo de 1/2 polegadade espessura do mesmo comprimento.A pergunta então é o que afeta a efi-ciência de uma asa. Vimos que a po-tência induzida de uma asa é propor-cional à velocidade vertical do ar. Seaumentássemos a área da asa, o ta-manho de nossa concha também au-mentaria, desviando mais ar. Destemodo, para uma mesma sustentação,a velocidade vertical (e, portanto oângulo de ataque) teria que ser redu-zida. Uma vez quea potência induzidaé proporcional àvelocidade verticaldo ar, ela tambémé reduzida. Assim,a eficiência da sus-tentação de umaasa aumenta com aárea da mesma. Quanto maior a asa,menor a potência induzida necessáriapara produzir uma mesma quantida-de de sustentação, embora isto sejaobtido com um aumento do arrastoparasitário.

Como discutiremos brevementena seção sobre o efeito solo, a cargaadicional sobre a asa em vôo reto enivelado devido ao upwash é igual aopeso do avião vezes 2/AR, onde AR(iniciais de aspect ratio) é a razão deaspecto definida como a razão entre aenvergadura da asa e a corda média.Assim, quando temos que decidir en-tre duas asas de mesma área mas ARdiferentes, a asa com maior AR é maiseficiente.

Algumas pessoas cometem a fa-lácia de achar que sustentação não re-quer potência. Este erro vem do estu-do de casos ideais da teoria de seçõesde asas (aerofólios) em aeronáutica.Quando nestes textos se lida comaerofólios, na verdade estão tratandodo caso de um com envergadura infi-nita. Como vimos que a potêncianecessária para sustentação cai com

o aumento da área, um aerofólio detamanho infinito não requer potênciaalguma para se sustentar no ar. Separa a sustentação não fosse neces-sária qualquer potência, aviões carre-gados teriam o mesmo alcance quequando vazios, e helicópteros pode-riam voar em qualquer altitude e comqualquer carga. Melhor ainda, hélices(que são asas em rotação) não neces-sitariam de potência alguma paraproduzir tração. Infelizmente vivemosno mundo real, onde tanto sustenta-ção quanto propulsão requerempotência.

Potência e carga sobre a asaVejamos agora a relação entre po-

tência e carga sobre a asa. Se a cargasobre uma asa é aumentada à veloci-dade constante da aeronave, a veloci-

dade vertical do ardeslocado deve seraumentada paracompensar o au-mento da carga. Istose obtém aumen-tando o ângulo deataque. Se o peso to-tal de um avião do-

brar (como por exemplo em umacurva com 2 g)5, e a velocidade nãovariar, a velocidade do ar tem quedobrar para compensaro aumento da cargasobre as asas. A po-tência induzida, sendoproporcional ao produ-to da carga pela velo-cidade do ar desviado,deve ser quadruplicada,uma vez que ambos osfatores dobraram devalor. Ou seja, a potên-cia induzida é propor-cional ao quadrado dacarga.

Uma maneira demedir a potência total éolhar para a taxa deconsumo de combus-tível. A Fig. 12 mostraesta taxa em função dopeso bruto de um aviãode carga de grandesproporções viajando auma velocidade cons-tante (este gráfico foi

obtido de dados reais). Uma vez quea velocidade é constante, a mudançana taxa de consumo de combustível édevida à mudança da potência indu-zida. Os dados são ajustados por umaconstante (potência parasitária) e umtermo proporcional ao quadrado dacarga. Este segundo termo é exata-mente aquele que havíamos previstona nossa discussão baseada nas leisde Newton sobre o efeito da carga so-bre a potência induzida.

O aumento do ângulo de ataquecom aumento de carga tem um ladonegativo além daquele do aumento dapotência necessária. Como mostradona Fig. 8, uma asa eventualmenteentrará em estol sempre que o ar nãomais puder acompanhar o formatoda superfície superior da asa, ou seja,quando o ângulo crítico é atingido. AFig. 13 mostra o ângulo de ataquecomo função da velocidade do ar parao caso de uma carga fixa e uma curvade 2 g. O ângulo de ataque crítico noqual o avião entra em estol é constan-te e não depende da carga sobre a asa.O ângulo de ataque aumenta com acarga e a velocidade de estol aumentacom a raiz quadrada da carga. Assim,se dobrarmos a carga em uma curvacom 2 g, a velocidade no qual o aviãoentra em estol aumenta em 40%. Um

Uma descrição física do vôo

Figura 12. Consumo de combustível vs. carga bruta para umgrande avião de transporte voando a uma velocidade constante.

Algumas pessoas cometema falácia de achar quesustentação não requer

potência. Este erro vem doestudo de casos ideais dateoria de seções de asas

(aerofólios) em aeronáutica

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50 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

aumento na altitude aumentará aindamais o ângulo de ataque em umacurva de 2 g. É por este motivo quepilotos treinam “estol acelerado”, quemostra que um avião pode entrar emestol em qualquer velocidade, umavez que para cada velocidade semprehaverá uma carga que induzirá umaperda de sustentação.

Vórtices de asaPodemos nos perguntar qual a

aparência do downwash de uma asa.O downwash sai da asa como umalâmina de ar e depende dos detalhesda distribuição de carga sobre a mes-ma. A Fig. 14 ilustra, por meio dacondensação, a distribuição de susten-tação em um avião durante umamanobra com um alto g. A partir des-ta figura podemos ver como a distri-buição de carga muda da parte da asajunto à fuselagem até a sua ponta, oque significa que a quantidade dedownwash deve ser diferente em dife-rentes pontos da asa. A parte da asajunto à fuselagem está “puxando”muito mais ar do que a parte da pon-ta. Por estar desviando uma quanti-

Uma descrição física do vôo

dade tão maior de ar, oefeito resultante é quea lâmina do downwashcomeçará a enrolar-sesobre si própria paralonge da fuselagem, damesma maneira que oar se curva sobre aparte superior da asadevido à mudança desua velocidade. Isto é oque se chama de vórticede asa. O quão fechadosestes vórtices são de-pende da taxa de mu-dança da sustentação

ao longo da asa, ou seja são direta-mente proporcionais à taxa de mu-dança. Na ponta da asa a sustentaçãodeve cair rapida-mente para zero,razão pela qual aí osvórtices são maisfechados. Este vór-tice, chamado devórtice de ponta daasa, é apenas umapequena fração dovórtice total da asa,embora geralmente seja o mais visível.Voltando à Fig. 5, podemos clara-mente ver o surgimento dos vórticesde asa bem como dos de ponta da asa.

Winglets (aquelas pequenas exten-sões verticais na ponta de algumasasas) são empregadas para melhorara eficiência das asas aumentando-asem comprimento efetivo e, portanto,em área. A sustentação da asa vai azero na ponta porque ali o ar do topoe da parte de baixo se encontram. Aswinglets impedem que isso ocorra, demodo que a sustentação se estendepara mais longe na asa. Uma vez quea eficiência aumenta com a área da

asa, isto causa um aumento de efi-ciência. O problema é que o projetode winglets não é simples e elas podem,na verdade, piorar o desempenho senão forem projetadas corretamente.

O efeito soloUm outro fenômeno comum e

freqüentemente incompreendido é oefeito solo, que é o aumento de efi-ciência da asa quando um avião voaa uma altitude igual ao comprimentoda asa. Um avião com asa inferiorsente uma redução de 50% no arrastopouco antes de pousar. Este fenômenoé usado por grandes aves, que às vezespodem ser observadas voando poucoacima da superfície da água. Pilotosque decolam de pistas de grama alta

ou pistas de decola-gem macias tam-bém utilizam o efei-to solo. Muitos pi-lotos erroneamenteacreditam que esteefeito é devido ao arser comprimido en-tre a asa e o chão.

Para entendereste efeito, temos que olhar novamen-te para o upwash. Note, na Fig. 15,que o ar se desvia de seu fluxo hori-zontal para formar o upwash. Aprimeira lei de Newton diz que devehaver uma força sobre ele para queisto ocorra, e esta deve estar dirigidapara cima. A terceira lei de Newtondiz que deve haver uma força igual eoposta em sentido sobre a asa, ou seja,para baixo. O resultado é que umupwash aumenta a carga sobre a asa.Para compensar este aumento, a asaprecisa voar com um ângulo de ata-que maior e, portanto, com umamaior potência induzida. À medida

Figura 13. Ângulo de ataque vs. velocidade para um vôoplano e em linha reta e para uma curva de 2 g.

Figura 14. Condensação mostrando a dis-tribuição de sustentação ao longo da asa(extraído de Patterns in the Sky, J.F. Camp-bell e J.R. Chambers, NASA, SP-514). Figura 15. Asa no efeito solo.

Winglets (aquelas pequenasextensões verticais na ponta

de algumas asas) sãoempregadas para melhorar

a eficiência das asasaumentando-as em

comprimento efetivo e,portanto, em área

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51Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 Uma descrição física do vôo

que a asa se aproxima do chão, acirculação sob ela fica impedida deocorrer. Como conseqüência, como sevê na Fig. 16, há uma redução noupwash e na carga adicional sobre aasa a ele devida. Como compensação,o ângulo de ataque diminui e com elaa potência induzida. A asa se tornamais eficiente.

A carga adicional devida aoupwash é igual ao peso da aeronavemultiplicada por 2/AR. A maioria dosaviões pequenos que tem um AR iguala 8 pode sentir uma redução de até25% na carga sobre a asa devido aoefeito solo. Uma vez que a potênciainduzida é proporcional ao quadradoda carga, isto representa uma reduçãode 50% na potência. Estimamosanteriormente que um Cessna 172voando a 220 km/h precisa deslocaraproximadamente 5 ton/s de ar paragerar sustentação. Em nossos cálculosdesprezamos a contribuição doupwash. A quantidade de ar desviadaé provavelmente próxima de 6 ton/s.

ConclusõesFaçamos uma breve revisão do

que aprendemos para que tenhamosuma idéia de como a descrição físicanos permite melhor entender o vôo.Primeiro aquilo que aprendemos:

• A quantidade de ar desviada pelaasa é proporcional à velocidade da asae à densidade do ar.

• A velocidade vertical do ar des-viado é proporcional à velocidade daasa e ao ângulo de ataque.

• A sustentação é proporcional àquantidade de ar desviado multiplica-do pela velocidade vertical do ar.

• A potência necessária à susten-tação é proporcional à sustentaçãomultiplicada pela velocidade vertical

do ar.Vejamos agora algumas situações

do ponto de vista físico e do ponto devista da explicação popular.

• A velocidade do avião diminui.Neste caso a abordagem física diz quea quantidade de ar desviada diminuie, portanto o ângulo de ataque temque aumentar para compensar adiminuição. A potência necessáriapara sustentação também tem queaumentar. A abordagem popular nãoconsegue explicar estes fatos.

• A carga aumenta. A abordagemfísica diz que a quantidade de ar des-viada continua a mesma, mas oângulo de ataque tem que aumentarpara produzir sustentação adicional.A potência necessária para sustenta-ção também aumenta. Aqui tambéma abordagem popular não conseguedar conta destes fatos.

• Um avião faz um vôo invertido.Para a abordagem física não há qual-quer contradição nisto. O avião sim-plesmente ajusta o ângulo de ataqueda asa invertida para conseguir asustentação necessária. Na aborda-gem popular, o vôo invertido é impos-sível.

Como vemos, a explicação popu-lar, que se atém ao formato da asa,

Figura 16. Redução do upwash devido à proximidade do solo

Notas1A velocidade de estol é aquela abaixo da

qual o avião não é mais capaz de semanter no ar (N.T.).

2Ver o artigo de Eastlake neste número.

3 , se a

velocidade do ar é constante. Para asustentação, somente a componentevertical da aceleração é relevante(N.T.).

4Struts vem do inglês structures e é utilizadoem aviação para se referir a quaisquerestruturas sob as asas que servem pa-ra lhe dar estabilidade estrutural. Sãonormalmente usadas entre as asas debiplanos (N.T.).

5As asas devem gerar alguma sustentaçãoextra para puxar o avião durante acurva (força centrípeta). Esta susten-tação extra é usualmente medida emunidades da aceleração da gravidadeg, de modo que uma curva modera-damente íngreme de 2 g equivale aduas vezes a força exercida pela gra-vidade (N.T.).

pode ser satisfatória para muitos,mas ela não nos fornece as ferra-mentas necessárias para realmenteentendermos o vôo. A abordagemfísica é fácil de entender e muito maispoderosa.

As coisas são mais belas quando vistas de cima

As invenções são, sobretudo, resultado de um trabalho teimoso

O meu primeiro balão, o menor, o mais lindo, o único que teve um nome: Brasil

Alberto Santos Dumont

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