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ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA APROXIMAÇÃO ENTRE ESTUDOS DO CÉREBRO E A EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS OBRAS DE HENRY HERBERT DONALDSON (1857-1938) E REUBEN POST HALLECK (1859-1936) Felipe Stephan Lisboa Mestrando no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ) [email protected] Resumo: Tendo em vista a emergência, no final do século XX, da Neuroeducação, disciplina que pretende aproximar e articular neurociências e educação, este trabalho pretende analisar duas obras, publicadas no final do século XIX por um neurologista, Herbert Donaldson (1857-1938) e por um educador, Reuben Post Halleck (1859-1936), que se configuram como pioneiras tentativas de integrar os estudos sobre o cérebro com o campo educacional. Palavras-chave: Neurociências, Educação, Neuroeducação Entre o final do século XX e o início do século XXI, uma série de condições sociais e técnico-científicas possibilitaram a emergência de uma nova disciplina denominada Mente, Cérebro e Educação (FICHER et all, 2007), Ciência do Aprendizado (OCDE, 2002), Neuroaprendizagem (RATO & CALDAS, 2010) ou, mais comumente, Neuroeducação (ZARO, 2010). Esta disciplina, que pretende articular os campos neurocientífico e educacional, tem dois grandes objetivos: 1) entender como o “cérebro aprende” e, com isso, criar estratégias que potencializem o aprendizado e 2) entender como o “cérebro não aprende”, ou seja, as dificuldades ou transtornos de aprendizagem, de forma a desenvolver abordagens ou tratamentos mais eficazes. No entanto, ainda que a constituição deste campo seja recente, tentativas de aproximar os estudos sobre o cérebro das práticas e teorias educacionais não são novas. Desde o início do século XIX, inúmeros pesquisadores, de diversas áreas do conhecimento, postulam a pertinência e mesmo a necessidade de tal aproximação. Em 1815, o botânico e frenologista norte-americano Thomas Ignatus Maria Foster (1789-1860) publicou a obra Essay on the application of the organology of the brain to education, considerada por Theodoridou e Triarhou (2009) umas das “primeiras tentativas” de articulação entre os dois campos.

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Page 1: como o “cérebro aprende” e, com isso, criar estr ... orais completos... · precisamente, o sistema nervoso central, é compreendido como a sede, o lócus da educação. Assim,

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA APROXIMAÇÃO ENTRE ESTUDOS DO

CÉREBRO E A EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS OBRAS DE HENRY HERBERT

DONALDSON (1857-1938) E REUBEN POST HALLECK (1859-1936)

Felipe Stephan Lisboa Mestrando no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ) [email protected]

Resumo: Tendo em vista a emergência, no final do século XX, da Neuroeducação,

disciplina que pretende aproximar e articular neurociências e educação, este

trabalho pretende analisar duas obras, publicadas no final do século XIX por um

neurologista, Herbert Donaldson (1857-1938) e por um educador, Reuben Post

Halleck (1859-1936), que se configuram como pioneiras tentativas de integrar os

estudos sobre o cérebro com o campo educacional.

Palavras-chave: Neurociências, Educação, Neuroeducação

Entre o final do século XX e o início do século XXI, uma série de condições

sociais e técnico-científicas possibilitaram a emergência de uma nova disciplina

denominada Mente, Cérebro e Educação (FICHER et all, 2007), Ciência do

Aprendizado (OCDE, 2002), Neuroaprendizagem (RATO & CALDAS, 2010) ou, mais

comumente, Neuroeducação (ZARO, 2010). Esta disciplina, que pretende articular

os campos neurocientífico e educacional, tem dois grandes objetivos: 1) entender

como o “cérebro aprende” e, com isso, criar estratégias que potencializem o

aprendizado e 2) entender como o “cérebro não aprende”, ou seja, as dificuldades

ou transtornos de aprendizagem, de forma a desenvolver abordagens ou

tratamentos mais eficazes.

No entanto, ainda que a constituição deste campo seja recente, tentativas de

aproximar os estudos sobre o cérebro das práticas e teorias educacionais não são

novas. Desde o início do século XIX, inúmeros pesquisadores, de diversas áreas do

conhecimento, postulam a pertinência e mesmo a necessidade de tal aproximação.

Em 1815, o botânico e frenologista norte-americano Thomas Ignatus Maria Foster

(1789-1860) publicou a obra Essay on the application of the organology of the brain

to education, considerada por Theodoridou e Triarhou (2009) umas das “primeiras

tentativas” de articulação entre os dois campos.

Page 2: como o “cérebro aprende” e, com isso, criar estr ... orais completos... · precisamente, o sistema nervoso central, é compreendido como a sede, o lócus da educação. Assim,

Mais à frente, em 1874, o médico e professor da Medical School of Harvard

University Edward Hammond Clarke (1820-1877) publicou The building of a brain, na

qual discute a relação entre cérebro, educação e gênero. Neste livro, Clarke dá

prosseguimento às discussões iniciadas em sua obra anterior (e mais conhecida)

Sex in Education: a fair chance to girls (1873), explorando especificamente as

diferenças no desenvolvimento cerebral de homens e mulheres. Segundo o autor, “a

fisiologia demanda uma apropriada educação para ambos [os sexos], e condena o

esforço, que, confiando os sexos a uma educação idêntica, poderia abolir o

processo da Natureza de diferenciação e produzir um desenvolvimento sexual

idêntico e o fim da raça [humana]” (p. 64, tradução livre). Para Clarke, somente uma

educação afinada com as diferenças corporais entre os sexos poderá ser efetiva na

produção de “cérebros melhores” (p. 153). Não pretendo analisar esta obra

profundamente aqui. Gostaria apenas de apontá-la, seguindo Theodoridou e

Triarhou (2009), como uma das primeiras tentativas de embasar práticas e políticas

educacionais em achados advindos de estudos sobre a estrutura e o funcionamento

cerebrais. De uma forma mais ampla, podemos enxergar tais tentativas também

como propostas de uma cientificização da educação, ou seja, de fundamentação das

práticas educacionais em bases científicas. Tal movimento dará origem, no final do

século XX, a propostas de uma educação baseada em evidências, inspiradas no

movimento iniciado na medicina na década de 1980.

Gostaria de dedicar especial atenção, neste trabalho, a duas obras,

publicadas no final do século XIX nos Estados Unidos, que são consideradas por

Theodoridou e Triarhou (2009) precursoras do atual movimento Mind Brain and

Education (MBE, ver FISCHER et all, 2007). São elas: The growth of the brain: a

study of the nervous system in relation to education, publicada em 1895 pelo

neurologista norte-americano Henry Herbert Donaldson e The education of the

central nervous system: a study of foundations, especially of sensory and motor

training, publicada em 1896 pelo educador Reuben Post Halleck.

Publicado em 1895, o livro The growth of the brain foi escrito pelo neurologista

e professor da Univeristy of Chicago Henry Herbert Donaldson (1857-1938) e teve

grande repercussão na época em que foi publicada, influenciando diversos autores e

pesquisadores – dentre eles, Halleck (1896). Incluído na série “A ciência

contemporânea”, editada pelo médico britânico Havelock Ellis, The grown of the

brain possui 374 páginas e dezenove capítulos, em grande parte voltados para a

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descrição do crescimento em tamanho e peso do corpo e do cérebro no decorrer do

processo de desenvolvimento. É somente no penúltimo capítulo que o autor se

debruça de forma direta sobre a relação entre os estudos sobre o cérebro e a

educação. Neste capítulo, intitulado The education of the nervous sistem o autor

aponta: "Educação consiste na modificação do sistema nervoso central. Para esta

experiência os elementos celulares são particularmente montados. Eles são

plásticos no sentido em que as suas ligações não são rigidamente fixadas” (tradução

livre). Deste trecho se pode extrair que, em sua perspectiva, o cérebro, ou, mais

precisamente, o sistema nervoso central, é compreendido como a sede, o lócus da

educação. Assim, o processo de aprendizagem, é concebido pelo autor como uma

série de alterações que ocorrem nas células nervosas do cérebro. Curioso perceber

como tal perspectiva se assemelha a visões contemporâneas, como aquela

disseminada por Khan (2012, p. 51), que concebe o aprendizado como “nada mais

nada menos do que uma série de alterações que ocorrem nas células nervosas que

compõem nosso cérebro”. Em ambos os casos há a proeminência de uma visão

microscópica do aprendizado, entendido como uma série de modificações que

incidem nas células do cérebro do indivíduo – e não no indivíduo com um todo.

Importante atentar também para a perspectiva defendida por Donaldson (1985) de

que a configuração celular cerebral não é fixa, alterando-se em função de mudanças

no ambiente, noção que possui forte proximidade com a atual noção de plasticidade

cerebral, também chamada de neuroplasticidade.

Ao mesmo tempo, é fundamental apontar que quando fala em educação,

Donaldson está se referindo ao processo de aprendizagem humano de uma forma

geral, que pode ou não estar relacionado à educação formal. Na verdade, para o

autor, o aprendizado formal, realizado nas escolas, é imensamente inferior à

educação proporcionada pela vida, pela interação do organismo com seu meio.

Como afirma em determinado momento do Capítulo XVIII, “o ato de viver é o mais

importante processo educacional natural que o ser humano tem que passar, ainda

que seja usual restringir o termo educação a uma série de eventos formais incluídos

no período de vida escolar” (p. 22). Segundo ele, não havia sido provada até aquele

momento a perspectiva de que a educação formal geraria mudanças no sistema

nervoso. Por outro lado, já estaria demonstrado que o crescimento do cérebro tem

profunda relação com o ambiente circundante, o que o leva a concluir que “parece

provável que a educação das escolas é apenas uma, e também uma das mais

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insignificantes, condições ambientais que influenciam o crescimento [do cérebro]”

(DONALDSON, 1895, p. 343).

Conforme aponta o autor, os indivíduos eram submetidos ao ensino formal,

em média, aos três anos de idade. Neste momento, os elementos celulares e a

própria estrutura cerebral já estariam praticamente completos, tendo o encéfalo dois-

terços do peso que terá na fase adulta. Assim, por ser introduzida tarde demais na

vida dos indivíduos, a educação dificilmente conseguiria produzir mudanças

fundamentais em sua organização nervosa, estando, de certa forma, fadada ao

fracasso. Donaldson acredita, no entanto, que ainda que o treinamento escolar não

consiga criar uma nova configuração cerebral, ele talvez seja capaz de favorecer o

fortalecimento de estruturas cerebrais já formadas, assim como o despertar de

elementos “adormecidos”. Mas para que isto ocorresse seria necessário que a

educação formal reconhecesse e se adaptasse aos limites e possibilidades do

cérebro impostos pela natureza. Isto porque, para Donaldson, em termos

neurológicos nature é muito mais importante que nurture, ou seja, os fatores inatos e

constitucionais pesam mais no desenvolvimento cerebral do que fatores ambientais

ou culturais.

A educação formal, desta forma, seria mais influenciada pelo amadurecimento

cerebral do que seria capaz de o influenciar. Sua função se resumiria, de certa

forma, a aperfeiçoar a estrutura cerebral já desenvolvida – ou, como afirma,

“completar o quadro original (original framework) do sistema central de acordo com

as provisões naturais ali presentes” (p. 355). Isto porque, para ele, nenhum aporte

de educação “irá causar crescimento ou organização onde os materiais brutos, as

células, estão escassas; por outro lado, onde estes materiais estão presentes, eles

irão, em algum grau, se tornar evidentes, quer propositadamente educados ou não”

(p. 355, tradução livre). Disto advém que, para Donaldson (1895), a educação só

pode ter alguma esperança de influenciar o cérebro do indivíduo se este cérebro já

estiver devidamente preparado ou amadurecido. Ainda sim tal influência será

sempre mínima, especialmente no que diz respeito ao “aprimoramento técnico”,

mas, ainda sim relevante, notadamente no “treinamento moral” dos indivíduos. No

caso dos talentos ou habilidades, por exemplo, o papel da educação estaria mais na

sua identificação e estímulo do que no seu desenvolvimento. Se o indivíduo não

possui uma predisposição inata para determinada habilidade, tentar desenvolvê-la

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só resultará em fracasso. Por outro lado, se o indivíduo possui tal predisposição, um

correto treinamento pode auxiliá-lo no aperfeiçoamento de tal habilidade.

Além disso, a educação, em uma perspectiva ampla, favoreceria o

crescimento do cérebro no decorrer das gerações. Como afirma Donaldson (1895),

“a educação de uma geração forma um ambiente mais favorável para a próxima,

então os esforços daquela que precede retorna como vantagem para aquela que

segue” (p. 361). Isto porque “o grau de civilização atingido está associado com um

correspondente crescimento do sistema nervoso, ou com o aumento das

capacidades mentais dos melhores representantes das comunidades” (p. 361). Tudo

isto aponta para a visão de que ainda que a educação, num nível individual, tenha

pouca influência sobre o desenvolvimento e amadurecimento cerebrais, num nível

coletivo e amplo no tempo, sua influência é mais significativa e duradoura, na

medida em que contribui com a evolução “natural” do cérebro. .

Em 1986, um ano após Donaldson lançar seu livro, Reuben Post Halleck

(1859-1936), professor de história e filosofia da educação na Yale University,

publicou The education of the central nervous system: a study of foundations,

especially of sensory and motor training. A obra possui 258 páginas e foi dividida em

sete capítulos, em grande parte dedicados à temática do treinamento sensório-

motor. Analisarei aqui somente o prefácio e os capítulos 2 e 3, por serem

introdutórios e abrangentes. Halleck (1904) inicia o prefácio de seu livro criticando a

antiga teoria de que a educação “consiste somente de modificações em uma

entidade imaterial” (p. 8). De acordo com esta concepção, tal entidade imaterial (a

mente?) nunca envelhece e sempre pode ser treinada. Uma expressão que

sintetizaria essa perspectiva é a que aponta que “nunca é muito tarde para ser o que

você pode ser” (p. 7). Na contramão, Halleck, defende que “é sempre muito tarde

para ser o que você pode ser” (p. 7). Isto significa que, para ele, o conhecimento

superior repousa sobre modificações nas células nervosas e estas, ao contrário das

supostas entidades imateriais, tem limites claros. Segundo o autor, “se as células

cerebrais passam pelo estágio plástico sem serem sujeitas a um estímulo ou

treinamento, então elas nunca irão se desenvolver completamente” (p. 7, tradução

livre). É o caso dos adultos que, segundo Halleck, possuem “muitos pontos não

desenvolvidos em seus cérebros” (p. 8). Isto significa que, para ele, existe uma

espécie de „período crítico‟ após o qual qualquer tentativa de desenvolver e ensinar

a criança – que dirá o adulto - será em vão. Halleck conclui, neste sentido, que “a

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educação pode ser algo mais (...) do que modificações no sistema nervoso central,

mas é também verdadeiro que sem estas modificações nenhum mortal pode ser

educado” (p. 7, tradução livre), o que aponta para o entendimento de que a estrutura

cerebral, ainda que possa ser modificada por exercícios e pela educação – ao

contrário do que defendia Donaldson (1895) – estabelece limites claros para o

aprendizado.

Ainda no prefácio, o autor estabelece como objetivo central de seu livro,

chamar a atenção de pais e professores para a importância do treinamento precoce

do Sistema Nervoso Central. Segundo ele, o correto treinamento das células

cerebrais é fundamental para o desenvolvimento saudável do individuo. Na

contramão, um treinamento incorreto pode ser extremamente danoso. Como afirma

em determinado momento, “nenhum ser humano conhece um inimigo mais

implacável do que células nervosas motoras que foram erroneamente treinadas

cedo na vida. Tal homem pode valer um milhão, mas sua gramática ruim continuará

a fluir automaticamente por seu mecanismo motor da fala, mortificando-o para a boa

sociedade” (p. 8, tradução livre). É possível interpretar sua perspectiva como

extremamente determinista, na medida em que enxerga que o treinamento precoce

(ou sua ausência) determinará as habilidades ou inabilidades do indivíduo por toda

sua vida. Para ele, um aprendizado profundo, e portanto permanente, só é possível

em estágios iniciais da vida.

No segundo capítulo, denominado Fatalistic Aspects, Halleck critica alguns

autores, chamados por ele de fatalistas (fatalists), por entenderem que todas as

tentativas do indivíduo de mudar ou melhorar seu sistema nervoso estão fadadas ao

fracasso. Curioso constatar que Donaldson (1895) é incluído dentre os fatalistas.

Segundo Halleck, os fatalistas – que ele contrapõe aos freedomists (que poderíamos

traduzir por libertistas) – veem o sistema nervoso como uma máquina. No entanto,

questiona ele, nenhuma máquina é capaz de se aperfeiçoar, no sentido de modificar

a si mesma. Já o cérebro tem essa capacidade. Ao mesmo tempo, Halleck, admite

que o cérebro tem algumas características maquinais como as ações reflexas, que

podem ser explicadas em termos de estímulo-resposta. E isto aponta para o fato de

que não somos, em grande medida, livres para sermos o que quisermos. Somos

circunscritos. Mas, ainda assim, é possível desenvolver e aperfeiçoar o próprio

sistema nervoso e, logo, a si mesmo. Como afirma em determinado momento,

“nenhum ser humano pode desafiar as leis da própria existência e organização; mas

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ainda que o círculo de sua liberdade seja pequeno, é grande o suficiente para

requerer vários momentos de vida para desenvolver em sua máxima extensão todas

as suas capacidades naturais. Ao longo de sua linha, ele pode se tornar um homem

melhor ou pior” (p. 37, tradução livre).

Halleck cita, então, o exemplo de Mozart. Segundo ele, provavelmente o

músico tinha uma estrutura cerebral inata bastante desenvolvida em certas áreas,

sem a qual dificilmente, e mesmo que treinasse intensamente por muitos anos, se

tornaria o prodígio que acabou por se tornar. No entanto, caso seus pais tivessem se

recusado a bancar, precocemente em sua vida, um treinamento musical apropriado,

Mozart provavelmente também não teria atingido o desenvolvimento pleno de suas

capacidades cerebrais. Halleck defende, desta forma, que sem o treinamento

precoce, nem possíveis gênios nem indivíduos comuns conseguiriam desenvolver

todas as suas potencialidades. Isto porque, ainda que tenhamos certas

características inatas, o que iremos nos tornar não está dado de antemão. Como

afirma em determinado momento, “o número de células no cérebro está determinado

no nascimento e nenhum treinamento vai aumentar esse número. Nós, entretanto,

falhamos em entender porque é necessário aumentá-lo. Nós podemos também

argumentar que não há esperança para qualquer um desejoso de começar a correr

para exercitar os músculos de suas pernas porque o número de pernas é

absolutamente determinado no nascimento e não é sujeito a nenhum aumento.

Existem entre cem e duzentos milhões de células no cérebro e não há

provavelmente nenhuma pessoa que não tenha algumas milhões delas não

desenvolvidas” (HALLECK, 1896, p. 43, tradução livre). O objetivo do treinamento e

da educação de uma forma geral seria portanto não a multiplicação do número de

células cerebrais, mas o seu desenvolvimento. No capítulo seguinte, The possible

modifications of the brain, Halleck complementa esta afirmação, dizendo que “o

aumento no número de células não é tão importante para as manifestações de

genialidade como o estabelecimento de conexões entre as diferentes células” (p.

59). Penso que dificilmente algum neurocientista contemporâneo discordaria de

Halleck neste ponto, mesmo levando-se em conta a “descoberta” da neurogênese,

ou seja, do processo de formação de novos neurônios. Muitos dos neurocientistas

que escutei nos eventos que analisarei nos próximos capítulos apontavam para a

importância, no processo de aprendizagem, da multiplicação das conexões

sinápticas mais do que do número de células cerebrais, Mas voltando a Halleck,

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todas as afirmações anteriores o levam a concluir que o “maravilhosamente plástico

sistema nervoso é sujeito ao aperfeiçoamento” (p. 44), frase que poderia

perfeitamente constar em algum livro contemporâneo de neurociências.

Com relação às obras de Donaldson e Halleck é pertinente o questionamento

se tratam-se realmente de obras precursoras, haja vista a significativa distância e

diferença entre os estudos sobre o cérebro realizados naquele momento e as atuais

pesquisas neurocientificas, assim como no contexto social mais amplo. De qualquer

forma, penso que muitas das ideias atuais, defendidas como novas, não passam,

muitas vezes, de atualizações de antigas ideias. Especificamente no caso da

aproximação entre os estudos do cérebro e o campo educacional, muitos dos temas

e preocupações que hoje mobilizam os defensores do movimento MBE podem ser

encontrados em obras como as de Donaldson e Halleck, especialmente neste

último. Questões como a importância do ambiente, do sono, da nutrição, e da

memória para a educação, e mesmo noções considerada modernas como de

plasticidade cerebral ou de períodos críticos ou sensíveis já estavam lá. De certa

forma, mesmo a perspectiva materialista, hoje paradigmática no meio científico,

pode ser entendida como um retorno ou atualização do materialismo novecentista

defendido por Donaldson e outros.

Referências CLARKE, Edward H. The building of a brain. James R. Osgood: Boston: 1874.

DONALDSON, Henry H. The growth of the brain: A study of the nervous system in relation to education. Walter Scott LTD: London, 1895.

FISCHER, Kurt W. et al. Why Mind, Brain, and Education ? Why now? Mind, Brain, and Education, v.1. n.1, p.1-2, 2007.

HALLECK, Reuben Post. The education of the central nervous system: A study of foundations, especially of sensory and motor training. Macmillan: New York, 1896.

KHAN, Salman. Um mundo, uma escola: a educação reinventada. Intrínseca: Rio de Janeiro, 2013.

OCDE. Understanding the brain: Towards a new learning science. Paris: OCDE, 2002.

RATO, Joana Rodrigues; CALDAS, Alexandre Castro. Neurociências e educação: realidade ou ficção? Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia. Portugal. 2010.

Page 9: como o “cérebro aprende” e, com isso, criar estr ... orais completos... · precisamente, o sistema nervoso central, é compreendido como a sede, o lócus da educação. Assim,

THEODORIDOU, Zoe D.; TRIARHOU, Lázaros C. Fin-de-siècle advances in neuroeducation: Henry Herbert Donaldson and Reuben Post Halleck. Mind, Brain, and Education, v.3, n.2, p.119-129, 2009.

ZARO, Milton Antonio et al. Emergência da Neuroeducação: a hora e a vez da neurociência para agregar valor à pesquisa educacional. Ciência & Cognição: Revista interdisciplinar de estudos da cognição, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p.199-210, 2010.