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Como nascem as "cidades" de refugiados espalhadas pelo mundo Jornal Zero Horas – Porto Alegre RS 26 de Setembro de 2015 Neste momento em que o drama humanitário de pessoas desesperançadas comove o mundo e impõe um dilema à Europa, há campos de refugiados que já chegam a 150 mil habitantes. São algo como cidades que têm comércio, hospitais, escolas e até ruas com denominação própria. Tudo é transitório, mas vai se consolidando com jeito de permanente, em um paradoxo cujo maior símbolo é o de crianças que nascem e crescem em lugares assim. O brasileiro Ricardo Vargas, especialista em gerenciamento de projetos, é um dos responsáveis das Nações Unidas por criar as condições para que esses campos de refugiados recebam infraestrutura e gestão adequadas. – Fazemos a ponte entre a ideia e o resultado real – diz Vargas. Ao comentar a foto do menino sírio Aylan Kurdi, morto às margens do Mar Egeu, na Turquia, no dia 2 de setembro, Vargas faz uma ponderação e um pedido. A ponderação: a tragédia dos refugiados não aumentou. Apenas se tornou mais visível. O pedido: que se tenha “compaixão”. São 8 mil pessoas envolvidas na administração de centenas de campos. O brasileiro as coordena. As obras são arrojadas. Dois meses atrás, foi colocado um sistema de iluminação com painéis em 34 campos no Curdistão, na área curda do Iraque. – Foi um projeto maravilhoso. São painéis que captam a luz do sol e carregam uma lâmpada como se fosse uma tocha. Isso devolveu vida àquele campo. Aumentou extremamente a segurança de crianças e mulheres – conta Vargas. E há o dilema: esses profissionais sabem que suas funções existem apenas em razão dos conflitos. Preferiam que não existissem.

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Entrevista Ricardo Vargas no Jornal Zero Hora do Brasil sobre as Cidades de Refugiados e o trabalho da UNOPS.

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Page 1: Como Nascem as "Cidades" de Refugiados Espalhadas pelo mundo - Entrevista Ricardo Vargas Zero Hora

Como  nascem  as  "cidades"  de  refugiados  espalhadas  pelo  mundo  

 Jornal  Zero  Horas  –  Porto  Alegre  -­‐  RS  

26  de  Setembro  de  2015    

Neste  momento  em  que  o  drama  humanitário  de  pessoas  desesperançadas  comove  o  mundo  e  impõe  um  dilema  à  Europa,  há  campos  de  refugiados  que  já  chegam  a  150  mil  habitantes.  São  algo  como  cidades  que  têm  comércio,  hospitais,  escolas  e  até  ruas  com  denominação  própria.  Tudo  é  transitório,  mas  vai  se  consolidando  com  jeito  de  permanente,  em  um  paradoxo  cujo  maior  símbolo  é  o  de  crianças  que  nascem  e  crescem  em  lugares  assim.  

O  brasileiro  Ricardo  Vargas,  especialista  em  gerenciamento  de  projetos,  é  um  dos  responsáveis  das  Nações  Unidas  por  criar  as  condições  para  que  esses  campos  de  refugiados  recebam  infraestrutura  e  gestão  adequadas.  

–  Fazemos  a  ponte  entre  a  ideia  e  o  resultado  real  –  diz  Vargas.  

Ao  comentar  a  foto  do  menino  sírio  Aylan  Kurdi,  morto  às  margens  do  Mar  Egeu,  na  Turquia,  no  dia  2  de  setembro,  Vargas  faz  uma  ponderação  e  um  pedido.  A  ponderação:  a  tragédia  dos  refugiados  não  aumentou.  Apenas  se  tornou  mais  visível.  O  pedido:  que  se  tenha  “compaixão”.  

São  8  mil  pessoas  envolvidas  na  administração  de  centenas  de  campos.  O  brasileiro  as  coordena.  As  obras  são  arrojadas.  Dois  meses  atrás,  foi  colocado  um  sistema  de  iluminação  com  painéis  em  34  campos  no  Curdistão,  na  área  curda  do  Iraque.  

–  Foi  um  projeto  maravilhoso.  São  painéis  que  captam  a  luz  do  sol  e  carregam  uma  lâmpada  como  se  fosse  uma  tocha.  Isso  devolveu  vida  àquele  campo.  Aumentou  extremamente  a  segurança  de  crianças  e  mulheres  –  conta  Vargas.  

E  há  o  dilema:  esses  profissionais  sabem  que  suas  funções  existem  apenas  em  razão  dos  conflitos.  Preferiam  que  não  existissem.  

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     O  engenheiro  químico  Ricardo  Vargas,  43  anos,  é  especialista  em  gerenciamento  de  projetos.  Uma  de  suas  missões  como  integrante  do  Escritório  das  Nações  Unidas  para  Serviços  de  Projetos  (UNOPS)  é  possibilitar  que  os  campos  de  refugiados  tenham  a  estrutura  adequada  para  receber  os  migrantes  que  se  veem  obrigados  a  deixar  seus  países  de  origem.  Autor  de  11  livros,  o  mineiro  com  domicílio  em  Copenhague,  na  Dinamarca,  esteve  em  Porto  Alegre  para  participar  do  12º  Seminário  de  Gerenciamento  de  Projetos,  promovido  pelo  Project  Management  Institute  (PMI).  A  seguir,  a  entrevista  que  ele  concedeu  a  Zero  Hora:    Como  manter  os  refugiados  em  condições  mínimas  de  vida,  que  inclusive  impeçam  a  saída  arriscada  para  outros  países?  A  estrutura  do  campo  é  humanitária.  Ou  seja,  você  tem  o  refúgio.  E  a  maior  parte  das  pessoas  tem  dificuldade  de  entender:  os  refugiados  estão  extremamente  fragilizados,  estão  fugindo  da  guerra,  da  morte.  Não  estamos  falando  num  processo  migratório  normal.  Estamos  falando  num  processo  de  conflito.  A  estrutura  dos  campos  serve  para  tentar,  de  um  ponto  de  vista  provisório,  dar  algum  tipo  de  suporte  para  essas  pessoas.  Você  cria  o  campo  não  só  para  dar  uma  habitação,  mas  para  dar  uma  condição  digna  de  vida.  

Que  condições  dignas  de  vida  seriam  essas?  Os  campos  para  os  quais  a  gente  dá  suporte  têm  até  escolas,  porque  uma  das  nossas  metas  é  tentar  traduzir  a  normalidade.  Estamos  falando  em  pequenas  ou  até  grandes  cidades.  Muitas  vezes,  são  locais  de  difícil  acesso,  de  logística  complexa.  O  Escritório  de  Serviços  de  Projetos  da  ONU  viabiliza  toda  essa  parte  de  aquisição  logística,  de  infraestrutura  e  de  gestão.  Uma  coisa  é  você  ter  o  caso  do  vírus  ebola  e  o  governo  brasileiro  falar  que  vai  doar  

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contêineres  com  roupas  protetivas.  Na  maioria  das  vezes,  esse  material  vai  chegar  num  porto,  em  algum  lugar.  Quem  é  que  vai  transformar  isso  que  chegou  no  porto  em  uma  veste  protetiva  no  interior  de  Serra  Leoa?  Muitas  vezes,  nem  estrada  você  tem.  Fazemos  a  ponte  entre  a  ideia  e  o  resultado  real.  Temos  pessoal  especializado  em  engenharia  e  gestão  para  fazer  as  coisas  acontecerem.  

O  que  tem  nesses  campos?  Depende  do  tamanho.  O  campo  de  Zaatari,  na  Jordânia,  é  o  que  atende  a  maior  parte  dos  refugiados  provenientes  da  Síria.  São  algo  como  150  mil  pessoas,  é  uma  cidade,  com  escolas,  força  policial,  posto  de  saúde,  padaria  comunitária,  supermercado  comunitário,  área  de  convívio,  área  esportiva.  

Há  casos  de  refugiados  que  conseguem  exercer  sua  profissão  nesses  campos?  Dentro  da  governança  do  campo,  o  primeiro  objetivo  é  o  de  garantir  os  mecanismos  básicos  de  sobrevivência.  Essas  pessoas  não  chegam  em  situação  normal.  São  pessoas  que  caminharam  por  dias,  estão  famintas.  A  primeira  coisa  a  ser  feita  é  assegurar  se  estão  com  a  saúde  correta.  Depois,  é  o  atendimento  psicológico.  Ainda  depois,  a  reintegração  e  o  estabelecimento  de  uma  mínima  normalidade  para  essas  pessoas.  Esse  é  o  objetivo,  o  que  inclui  ver  a  habilidade  que  o  refugiado  tem  que  lhe  permita  contribuir  de  alguma  forma.  Poxa,  você  padeiro?  Pô,  você  pode  fazer  pão  para  sua  comunidade.  Nós  doamos  a  farinha,  e  você  começa.  Lógico  que  temos  campos  muito  básicos  e  outros  maiores.  Pensa-­‐se  que  os  campos  são  só  barracas.  Não  são.  É  comida,  energia  elétrica.  

Quem  são  os  “prefeitos”  dessas  “cidades”?  Todo  campo  tem  um  prefeito  do  Alto  Comissariado  da  ONU  para  Refugiados  (Acnur).  Há  um  líder,  que  é  o  gestor  do  campo.  Tecnicamente,  poderíamos  chamar  de  prefeito.  Na  maioria  das  vezes,  as  melhorias  num  campo  são  feitas  a  pedido  dessa  pessoa.  

E  se  tem  crime  dentro  do  campo?  Tem  polícia?  Tem  polícia,  sim.  O  Judiciário  também,  dentro  do  sistema  jurídico  do  país  onde  está  o  campo.  Já  construímos  detenções  dentro  dos  campos  de  refugiados.  Não  administramos,  mas  construímos  as  instalações.  

Faz  três  anos  que  o  senhor  está  trabalhando  nisso.  O  maior  desafio  é  o  de  agora,  com  essa  onda  de  refugiados  que  chegam  à  Europa?  O  momento  é  crítico,  mas  o  que  ocorre  de  diferente  é  que  ele  está  muito  visível  na  mídia.  Mas  há  muitos  desafios  ocorrendo  em  muitas  partes  do  mundo,  que  infelizmente  não  estão  tendo  o  mesmo  registro.  Na  verdade,  está  acontecendo  muito.  A  morte  do  menino  sírio  Aylan  Kurdi  na  Turquia  foi  muito  visível,  muito  próxima,  virou  uma  mensagem.  É  uma  imagem  muito  impactante.  

O  menino  se  tornou  mártir?  Sim.  Mas,  infelizmente,  existem  desafios  assim  em  inúmeras  partes  do  mundo,  todos  os  

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dias,  e  que  não  estão  saindo  na  TV.  Aylan  foi  um  símbolo,  foi  a  face  visível  de  um  problema  terrível.    

De  todos  os  conflitos  decorrentes  da  Primavera  Árabe,  a  guerra  na  Síria  é  o  que  ainda  não  terminou.  Os  sírios  aceitam  ficar  tanto  tempo  em  campos  de  refugiados?  O  que  tem  ocorrido  é  que  quanto  mais  rápido  se  resolve  a  crise,  mais  sólido  é  o  restabelecimento.  Com  guerras  que  duram  tanto  tempo,  os  campos  de  refugiados  viram  cidades.  As  pessoas  se  estabelecem,  casam-­‐se,  têm  vida,  têm  filhos.  Criam  vínculo.  E  o  campo  é  conceito  temporário.  E  em  alguns  casos  o  temporário  vira  permanente.  Tem  campo,  como  o  de  Zaatari,  que  é  de  2011.  

Os  países  europeus,  em  especial  os  governos  de  direita,  alegam  que,  entre  os  refugiados,  pode  haver  terrorista  infiltrado.  Como  se  faz  esse  controle?  Isso  é  com  cada  país,  com  seus  serviços  de  inteligência.  A  ONU  tem  trabalho  humanitário.  O  que  podemos  dizer  é  que  esses  refugiados  que  estão  se  deslocando  não  são  oportunistas.  Estamos  falando  na  maioria  esmagadora.  Pessoas  que  perderam  tudo,  que  tiveram  de  fugir  para  sobreviver.  É  preciso  ter  compaixão.  

Se  esse  temor  tiver  fundamento,  seria  minoria  ínfima?  É  claro  que  existe  um  desequilíbrio  natural  quando  há  esse  influxo  de  pessoas,  isso  ocorre  em  qualquer  lugar.  Se  da  noite  para  o  dia  aparecem  200  mil  pessoas  em  Porto  Alegre,  é  claro  que  se  cria  um  desequilíbrio  na  sociedade.  Mas,  ao  mesmo  tempo,  se  você  não  receber  esse  influxo,  você  está  condenando  à  morte  essas  200  mil  pessoas.  É  um  dilema.  E  nós  temos  a  função  de  dar  um  mínimo  de  dignidade  a  essas  pessoas  até  que  as  decisões  sejam  tomadas  e  essas  pessoas  possam  se  restabelecer  em  uma  vida  normal.  É  tudo  o  que  a  gente  quer.  A  gente  só  existe  porque  existem  esses  conflitos.  O  ideal  seria  não  precisarmos  existir.  

Qual,  fundamentalmente,  a  sua  função?  Todo  o  trabalho  de  construção  da  paz  é  muito  difícil,  e  o  meu,  especificamente,  é  ter  uma  engenharia  e  um  processo  adequados  para  gerar  o  maior  resultado  possível  com  a  menor  despesa  possível.  É  criar  as  condições  para  que  as  coisas  aconteçam.  

E  essas  condições  existem?  Tenho  muita  alegria  de  dizer  que  temos  uma  equipe  brilhante,  nos  aspectos  técnico  e  humano.  Quando  você  desloca  um  gestor,  um  engenheiro,  para  um  país  com  pouca  estrutura,  em  conflito  ou  com  doenças,  não  é  só  a  técnica  que  você  precisa.  Você  precisa  ter  uma  pessoa  com  vocação  e  motivação  para  aquele  tipo  de  trabalho.  Não  é  um  trabalho  normal.  São  pessoas  que  vivem  em  situações  extremas.  Os  desafios  são  infinitos.  

Quando  uma  criança  nasce  no  campo,  a  nacionalidade  dela  é  a  do  país  onde  está  o  campo?  Depende  de  onde  o  campo  está  situado  e  qual  o  acordo  que  existe  dentro  daquele  campo.  Há  várias  discussões.  Muitas  vezes,  as  pessoas  não  estão  mudando  de  país.  São  o  que  chamamos  de  deslocados.  

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Se  o  senhor  estivesse  como  refugiado  há  três  anos,  continuaria  no  campo  ou  iria  para  a  Europa?  Todas  essas  situações  são  terríveis.  Não  consigo  me  colocar  no  lugar  para  saber  o  que  é  melhor.  Vai  muito  da  história  e  da  cabeça  dessas  pessoas.  Muitos  querem  voltar  para  a  vida  que  tinham.  Num  mesmo  campo,  cada  um  pode  ter  uma  decisão  diferente.  Acho  que  tem  o  componente  da  demora.  As  pessoas  têm  condições  de  ficar  nos  campos,  mas  eles  existem  para  ser  transitórios,  e  muitos  têm  prazo  para  as  pessoas  ficarem.  

A  estrutura  não  é  de  cidade?  Sim,  porque  precisamos  normalizar  ao  máximo  a  vida  dessas  pessoas.  As  escolas,  por  exemplo,  são  incríveis.  Podem  ser  escolas  excelentes.  Há  todo  um  ecossistema  de  apoio.  Mas  o  fundamento  é  a  transitoriedade.  E  as  soluções  são  integradas  e  multidisciplinares.  Colocam-­‐se  luzes,  ambulatórios  e  outros  elementos  de  uma  infraestrutura  que  dê  condições  para  as  pessoas  viverem.  

Há  um  paradoxo,  de  algo  que  tem  estrutura  permanente  para  ser  transitório.  Sim,  mas  esses  campos  também  podem  ser  levantados  rapidamente.  Temos  a  grande  questão:  qual  é  a  solução  para  essas  pessoas.  Criamos  estruturas  temporárias  para  elas  viverem  com  dignidade  em  uma  situação  emergencial.    

Não  é  desconfortável,  mesmo  com  toda  a  estrutura,  o  refugiado  saber  que  os  campos  são  transitórios?  Claro.  Todos  querem  voltar  para  suas  vidas.  Imagine  que  sua  casa  foi  destruída,  você  perdeu  gente  que  ama,  teve  de  sair  correndo,  deixando  seu  carro,  sua  roupa,  sua  mala.  Aí,  vai  para  uma  cidade  a  300  quilômetros  de  Porto  Alegre.  No  caminho,  você  tem  um  ente  querido  que  é  morto  ou  adoeceu.  Alguém  oferece  um  abrigo  transitório,  oferece  a  melhor  condição  possível.  Mas  como  é  que  você  está?  Pô,  eu  tinha  a  minha  vida.  

O  conceito  de  refugiado  foi  criado  em  1951.  Antes  disso,  eram  todos  imigrantes.  Qual  a  diferença?  Hoje,  o  conceito  de  imigrante  é  o  de  quem  decide  mudar  de  país  em  busca  de  uma  situação  melhor.  Isso  não  é  refugiado.  Refúgio  é  quando  existe  uma  perseguição,  uma  ameaça  que  impeça  você  de  ficar  na  atual  condição  e  que  alguém  precisa  lhe  dar  abrigo,  dar  um  refúgio  para  você.  O  refugiado  é  aquele  que  não  pode  ficar  no  lugar  onde  vive.  Ninguém  quer  ficar  em  um  campo  de  refugiados,  ninguém  entra  em  um  campo  de  refugiados  para  construir  uma  nova  vida.  

Esse  seu  trabalho  lhe  dá  que  tipo  de  sentimento?  Me  dá  gratificação,  mas  também  certa  depressão.  Preferia  não  precisar  fazer  o  que  faço.