como fatiar o usuario
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Como fatiar um usuár i o: ATOméd ic o + ATOenf er m a g e m + ATOx+ .... + ATOy
Emerson Elias Merhy – médico, professor da Unicamp
As doenças não existem porque há trabalhadores de saúde. Há trabalhadores de saúdeporque as doenças existem. (Inspirado em G. Canguilhen)
O fato do Congresso Nacional ter nas suas mâos, hoje, a possibilidade
de aprovar uma lei que legaliza o que é um ato médico, chama a
atenção e a curiosidade analítica por muitas razões, dent re as quais
destaco as que me fazem pergun ta r : é inovadora a propos t a . Legítima
é, pois em uma sociedade democr á t ica todos, indivíduos ou
organizações , podem criar agendas para o parlame n to , mas quem tem
força para impô- las são outros quinhen to s .
Afinal, do que trat a este ato médico?
O que tenho lido sobre o assunto, aliás debat ido quase que
exclusivamen t e no âmbito de algumas rest r i ta s entidades profissionais ,
tem mostra do que os médicos que defende m esta propos t a – vale a
ressalva, então, de que isto não é consendo na catego ria – colocam
como sua reserva a autorida de profissional e científica sobre as
atividades diagnósticas e terapêu t ica s das “suspei ta s” de adoecime n tos
individuais (que sempre são também coletivas), dent ro dos parâm et r o s
do paradigm a da doença na visão biologicis ta , reafirman do o seu
domínio sobre elas. E, isto é o que me chama a atenção , neste texto.
A medicina que se formou no século XX obedece exatame n t e a esta
intenção e, como tal, entrou no século XXI. Porém, entrou em situação
de crise. Vendo sua forma de organizaç ão profissional const ruída no
século ante rior sendo questiona da por sua baixa efetividade , isto é, por
ser cara e pouco resolutiva diante do mundo das necessidad es de saúde
invididuais e coletivas; por sua baixa capacidade de entende r o mundo
das necessidad es como muito mais amplo do que a simples existência
humana como um corpo biológico, ou mesmo, de se relaciona r com
indivíduos ou coletivos de usuários també m como ricos universos
subjetivos; acrescida de uma forma de organização de sua prática
profissional muito corpor a t iva com dificuldade de atuar
multiprofissionalme n t e em eixos de sabere s multidisciplinar e s . A
medicina do século XX entrou no XXI intensa m e n t e inter roga d a .
Assusta , então, que se queira consagr a r com o ato médico, em pauta ,
exatam e n t e o modelo de organização e exercício profissional que estão
em questiona me n t o pelo conjunto da sociedade atual.
Vale ressal ta r que isso não é um fenômeno exclusivame n t e brasileiro.
Está ocorrendo no mundo inteiro. Os médicos encont r a m- se em uma
encruzilhada . Ou aprovei tam este momento e se repens a m em termos
paradigm á t icos e se vêm em um movimento social mais amplo para a
busca de novos caminhos, que incluam um diálogo forte, mas sincero
com os outros profissionais e com os gestore s do sistem a de saúde, ou
corre r ão o risco de serem portado r e s de futuro espelhados no passado,
já esgotado.
Constituir caminhos para novos paradigm as é super a r a noção de objeto
da ação dos trabalhaor e s de saúde, que não pode mais ser visto, a priori,
como o corpo biológico e a doença instalada nele. Nós, os usuár ios,
enqua n to portado re s e fabrican t e s das necessidad es de saúde somos
mais complexos, somos modos qualita tivos de viver a vida, somos
coletivos expostos a riscos, somos necessi t ados de relações de
encont ros vinculan t es e acolhedor e s , somos tensões ent re autonomia e
hete ronomia para andar a vida, somos desejan t e s , somos també m
corpos biológicos.
Os profissionais de saúde que não percebe r e m que é isto que está em
jogo, hoje, correm o risco de quere r e m const rui r como seus núcleos de
competênci a o poder sobre o campo da saúde, como se o conjunto do
mundo das necessidad es fosse do seu domínio exclusivo, em vez de
entende r e m que só acordos interp rofissões , que se ordena m por uma
ética do cuidado em saúde cent ra da no mundo complexo das
necessidad e dos usuá rios, é que podem dar conta do que há de desafio
para supera r a crise no campo da saúde, sem dúvida não resolvível por
acordos de reservas de mercado.
Se o conjunto dos conselhos e entidades profissionais dos trabalha do r e s
de saúde embarc a r e m neste caminho, que alguma s entidades médicas
dispar a r a m, esta r ão se colocando de acordo com o paradigm a res t r i to
que os mesmos adota r a m e se compor t a r â o como bons açouguei ros
discutindo como fatiar os usuários, sem compromissos com uma ética
do cuidado governad a pelo mundo das suas necessida des e reduzindo-
os aos pedaços corpora t ivos centra dos .
Procuro no esquem a abaixo mostra r , a título de exemplo, a diferença
entre fatiar ou integra liza r o cuidado utilizando- se dos distintos tipos de
proje tos terapêu t icos que desenha m, para evidencia r a noção de como
as profissões devem negocia r seus núcleos de compe tência , para tenta r
super a r a crise atual, a par ti r do reconhecim e n to das suas
subordinações a um campo maior de contenção, governado por outra
lógica paradigm á t ica , const ruída a parti r de uma ética do cuidado
radicalmen t e em defesa da vida, individual e coletiva, cujo objeto é o
complexo mundo das necessidad es , que exige ações multidisciplina r es
de um trabalhado r coletivo de saúde (multiprofissional), que deverá
encont r a r os sentidos das suas intervenções como deter mina dos por
aquela lógica fundant e , aceito e pactuado entre as profissões .
PROJETO TERAPÊUTICO CENTRADO EM PROCEDIMENTOS MÉDICOS OUBUROCRÁTICOS
GESTÃO DO CUIDADO
PROJETO TERAPÊUTICO CUIDADOR CENTRADO NO USUÁRIO
PROJETO GERIDO POR UMA EQUIPECUIDADORA(GESTORA DO PTI)
No primeiro desenho os sabe res profissionais par tidos fabricam um
usuário, fatiado, para si; no segundo, o usuár io se impõe como
ordenado r do encont ro entre profissionais e saber es . Talvez haja, aí,
caminhos para repens a r novas lógicas.
USUÁRIO
UN.PROCEDIMENTO1
UN.PROCEDIMENTO2
UN.PROCEDIMENTO 3
PROCEDIMENTO 4
PROJETOTERAPÊUTICO PORSOMAÇÃO
U S U Á R I O
UN.PROC .1
UN.PROC.2
UN.PROC.3
UN.PROC.4
UN.PROC.5
PROJETOTERAPÊUTICOINTEGRALIZADO