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GUIA PEDAGÓGICO

Lyana Carla Cabral P. P. Aguiar

Thiago Soares de Oliveira

COMO ABORDAR A

LiteraturaNO TÉCNICO CONCOMITANTE

1ª EDIÇÃO

2019

Campos dos Goytacazes

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TRABALHANDO COM O CONTO NO TÉCNICO CONCOMITANTEGUIA PEDAGÓGICO

Copyright © 2019 • IFF Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode serreproduzida ou transmitida em nenhuma forma e por nenhum meio mecânico, incluindofotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenamento de informação, sem autorizaçãoexpressa dos autores ou do IFF.

EXPEDIENTE TÉCNICO

INSTITUTO FEDERAL FLUMINENSE

MESTRADO PROFISSIONAL EM EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA – PROFEPT

REVISÃO DE TEXTO – ANA PAULA FERNANDES KLEM

ILUSTRAÇÃO- FAGNER MATHIAS FLORENTINO

Lyana Carla Cabral P. P. Aguiar([email protected])

Dr. Thiago Soares de Oliveira (Orientador)([email protected])

[2019] Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF) Rua Coronel Walter Kramer, 357 - Parque Santo Antônio - Campos dos Goytacazes, RJ - CEP 28080-565 Tel: (22) 2737-5624. Impresso no Brasil

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APRESENTAÇÃOOs cursos técnicos profissionalizantes têm a tradição de formar para omundo do trabalho, no entanto essa formação não deve ser exclusivamentedirecionada para um “fazer sem saber”, como assinala Martins (2000). Énecessário oferecer aos discentes uma educação que não seja meramenteutilitarista. Assim, ter uma nova perspectiva na forma de se repassar partedos conteúdos previstos na ementa de Português Instrumental nos técnicosconcomitantes se faz relevante.O Guia Pedagógico – Trabalhando com o conto no técnico concomitante - éproduto da dissertação de mestrado do Programa de Mestrado Profissionalem Educação Profissional e Tecnológica em Rede Nacional – ProfEPT -,intitulada Ensino de Português Instrumental a partir de conto: uma propostade formação discente para curso técnico concomitante.A proposta de ensino aqui apresentada foi aplicada em uma turma do 1ºmódulo do curso técnico concomitante em Meio Ambiente do IFFluminense,campus Bom Jesus do Itabapoana e teve como objetivo geral compreendercomo a inserção do conto na disciplina de Português Instrumental noreferido curso técnico pode funcionar como recurso didático pedagógico noprocesso de ensino-aprendizagem.O guia está organizado da seguinte forma: a introdução “Prólogo”; afundamentação teórica, dividida em duas partes: Formação Integral e Adisciplina Língua Portuguesa; a apresentação da “Sequência didática” e odetalhamento de cada etapa: “Aula 1”, “Aula 2”, “Aula 3”, “Aula 4”, “Aula 5”,“Aula 6”. Encerra com as considerações finais, o Apêndice, com o banco desugestão de textos literários, e o Anexo.O objetivo é que este guia – produto educacional da dissertação de mestrado– seja uma inspiração para docentes da área de linguagens e código,principalmente.

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SUMÁRIOPRÓLOGO ...........................................................................................................05FORMAÇÃO INTEGRAL .................................................................................07A DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA......................................................09SEQUÊNCIA DIDÁTICA .................................................................................11

Aula 1 ...........................................................................................................13Aula 2 ...........................................................................................................14Aula 3 ...........................................................................................................17Aula 4 ...........................................................................................................18Aula 5 ...........................................................................................................19Aula 6 ...........................................................................................................20

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................22REFERÊNCIAS ....................................................................................................23APÊNDICE ..........................................................................................................24

Banco de sugestão de textos literáriosANEXO ................................................................................................................25

Negrinha

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PRÓLOGO

no país, os filhos das classes mais abastadastiveram na Educação básica a oportunidade deestudar para integrar o mundo universitário eocupar cargos de comando; enquanto os filhosdos trabalhadores tiveram na Educaçãoprofissional a oportunidade de serem absorvidosrapidamente pelo mercado de trabalho,executando tarefas de maneira automatizada,consolidando uma prática supostamente nãorefletida.

De acordo com Saviani (2007), duas foramas modalidades de Educação surgidas a partir doescravismo antigo - uma para a classeproprietária e outra para a classe nãoproprietária -, e essas modalidades encontram,hoje, refúgio na distinta matriz curricular daEducação básica e da EPT. Enquanto aquelaabarca disciplinas que estimulam o sabercultural, a reflexão, a arte, a análise crítica darealidade, aspectos contemplados na Educaçãodos homens livres de outrora; esta, por sua vez,preocupa-se em conter disciplinas que ajudem a

formar bons profissionais para o labor manual,assim como a antiga educação dos escravos eserviçais. As instituições escolares deveriampreparar cidadãos para “compreender, julgar eintervir em sua comunidade, de uma formaresponsável, justa, solidária e democrática”(SANTOMÉ, 1998, p. 14); a escola, porém, temsido vista como uma “empresa” que atende aosinteresses do mercado produtivo, como se elativesse a obrigação de ensinar somente aquiloque o aluno precisará para ser absorvido pelomercado de trabalho.

A disparidade entre a EPT e a Educaçãobásica permanece principalmente na forma dotécnico concomitante, tendo em vista apermanência de um currículo quase queexclusivamente tecnicista². A partir da análisefeita dos projetos pedagógicos dos cursos (PPC)técnicos concomitantes ofertados peloIFFluminense, constatou-se que há o Portuguêsem somente 11(onze)³ dos 25 (vinte e cinco)

A qualificação por meio dos cursos decaráter técnico consolidou-se com disciplinasde natureza mecânica e manual. Dessa forma,componentes curriculares considerados denatureza intelectual permaneceram a cargo daEducação básica. Apesar de vários esforços pararomper com a dualidade educacional¹ existente

1 -A dualidade educacional consiste na separação do trabalho intelectual (que fica mais a cargo da Educação básica) do trabalho manual (que ficamais a cargo da EPT).

2 - Os currículos tecnicistas seguem uma abordagem empirista mecanicista, “centrados na fragmentação disciplinar e na abordagem transmissiva deconteúdos” (RAMOS, 2008, p. 19).

3 – Agropecuária, Alimentos, Informática e Meio Ambiente do campus Bom Jesus do Itabapoana; Agropecuária, do campus Cambuci; Mecânica, docampus Itaperuna; Eventos, Química e Eletromecânica, do campus Cabo Frio; Automação Industrial e Edificações, do campus Santo Antônio de Pádua.

4 - Agropecuária, Alimentos, Informática e Meio Ambiente do campus Bom Jesus do Itabapoana; Agropecuária, do campus Cambuci; AutomaçãoIndustrial, Edificações, Eletrotécnica, Estradas, Informática, Mecânica, Química e Telecomunicações, do campus Campos Centro; Eventos, Química,Eletromecânica e Cozinha, do campus Cabo Frio; Eletrotécnica, Mecânica e Química, do campus Itaperuna; Mecânica, do campus Cordeiro;Eletromecânica, do campus Quissamã; Eletromecânica, do campus São João da Barra; Automação Industrial e Edificações, do campus Santo Antôniode Pádua.

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disponíveis; ou seja, somente em 44% dos cursostécnicos concomitantes há essa disciplina decaráter mais humanista.

Diante dessa discrepância entre o saber e ofazer nessa modalidade de ensino, surgiu anecessidade de desenvolver uma pesquisa queculminou nesse Guia Pedagógico. A proposta dapesquisa foi inserir aspectos propedêuticos daEducação básica (como criatividade, leitura,interpretação e análise crítica da realidade),tomando como turma experimental oconcomitante em Meio Ambiente, noIFFluminense campus Bom Jesus do Itabapoana.Como os cursos profissionalizantes têm umaintenção bem definida (qualificar para otrabalho) e uma mudança curricular demandaum lento processo, a inserção deu-se através doensino de Português Instrumental – disciplinapresente na ementa da turma experimental – apartir do conto “Negrinha”, de Monteiro Lobato.

Para uma educação que almeja reformar asrelações sociais, urge integrar o saber com ofazer, e a literatura, além de cumprir esse papel,

também colabora para que o sujeito seja donodo seu próprio destino histórico, já que, aoentrar em contato com outras histórias, emalgum momento, o ser humano sente empatia, oindivíduo sai de seu mundo e começa a exploraroutros, observando novas culturas, novasmaneiras de pensar, de agir.

Enquanto a construção de um currículoinovador, comprometido com a diversidadecultural e com a formação de cidadãos críticos,autônomos e criativos não se fizer realidade noscursos técnicos concomitantes, a proposta de seinserir o conto nos cursos em que já existe adisciplina Português Instrumental seria umapossível e viável solução para começar a seproporcionar uma formação mais integral paraessa modalidade de ensino.

Assim, este Guia Pedagógico condensa osprincipais pontos da sequência didáticaelaborada e apresenta, em uma versãosimplificada, o passo a passo para se abordar aliteratura em curso técnico concomitante.

5 - A expressão “turma experimental”, para efeitos deste trabalho, refere-se à turma em que foi aplicada a sequência didática proposta, não havendoum alusão direta a uma pesquisa experimental

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Os Autores

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FORMAÇÃO INTEGRALDe forma genérica, o que ocorre no

sistema escolar profissionalizante brasileiro é“a formação pelo e somente para o fazer”(MARTINS, 2000, p. 33). O aluno inseridonesse sistema recebe uma formaçãoincompleta, tendo, como observa Martins(2000), apenas a impressão de uma ascensãosocial. Essa não ocorre de fato porque ascircunstâncias educacionais impõem a esseindivíduo a ocupação do papel secundário emsua transformação e na transformação dascondições sociais. O referido autor afirma quea qualificação do operário carece:

O pensamento de Martins (2000) está emafinidade com o pensamento de Zabala (1998,p. 28), o qual afirma que “educar quer dizerformar cidadãos e cidadãs, que não estãoparcelados em compartimentos estanques, emcapacidades isoladas”. Para Zabala (1998), aformação integral impulsiona todas ascapacidades e, consequentemente, todos ostipos de conteúdos, que o autor classifica em:conceituais (o que se deve saber),procedimentais (o que se deve saber fazer) eatitudinais (como se deve ser). Como aEducação básica está relacionada à preparaçãopara os estudos universitários, o quepredomina em seu currículo são os conteúdosde caráter conceitual; na EPT, osprocedimentais, pois a intenção é ensinar aosalunos o que eles devem saber fazer.

Saber, saber fazer e ser são facetas de umaformação que combate a alienação humana e

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6 - Há várias definições para o termo currículo, mas, neste trabalho, contempla-se a ideia geral de que o “currículo tem significado, entre outros, a

grade curricular com disciplinas/atividades e cargas horárias, o conjunto de ementas e os programas das disciplinas/ atividades, os planos de ensino

dos professores, as experiências propostas e vividas pelos alunos” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 19).

Da formação pelo e para o saber, umaformação cultural que lhe possibilitarádecidir sobre seu destino histórico e oda sua produção, participandoefetivamente das decisões que orientama direção do coletivo social do qualparticipa, seria a formação do cidadão,a formação que possibilitaria coincidirgovernantes e governados (MARTINS,2000, p. 33-34).

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visa ao desenvolvimento pleno do indivíduo.Zabala (1998), ao propor uma formação queabarque os conteúdos conceituais,procedimentais e atitudinais, defende umaeducação integral.

Para visualizar um novo panorama daeducação, é necessário romper com adicotomia entre o saber e o fazer ,acrescentando-se ainda a ideia do ser,formando, desse modo, a tríade proposta porZabala (1998): saber, saber fazer e ser. Essatríade remete ao começo da educação e daprópria origem do homem, pois, segundoSaviani (2007), ambas as origens sãocoincidentes. Saviani (2007, p. 154) esclareceque a existência humana é um produto dotrabalho, que o homem não nasce homem, “eleforma-se homem. Ele não nasce sabendoproduzir-se como homem. Ele necessitaaprender a ser homem, precisa aprender aproduzir sua própria existência”. Isso significaque “a produção do homem é, ao mesmotempo, a formação do homem, isto é, um

processo educativo” (SAVIANI, 2007, p. 154).

A preparação para uma formação integraldo estudante e o desenvolvimento para umavida social e profissional são características deuma educação que se propõe a ofertar umaformação mais completa e diminuir com adualidade educacional existente no país.

Abordar a literatura no técnicoconcomitante seria uma forma viável dediminuir essa dualidade e proporcionar aoestudante uma formação mais completa. Alémdisso, presume-se que o benefício com aabordagem da literatura na sala de aula vaialém do aguçamento da reflexão e dasensibilidade. A literatura tem um caráterhumanizador, por isso é que se entende que asociedade só tem a ganhar com profissionaisgabaritados no exercício do fazer e comindivíduos que possuam um olhar mais pluralpara a realidade circundante.

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7 - Martins se vale uma visão gramsciana em relação ao rompimento dessa dicotomia. Ele propõe os princípios da escola unitária de Gramsci (1995),que remete à intenção “da formação do homem integral, do homem capaz de tudo fazer, já que possui as condições determinadas pela formação

tradicional e pela instrução científica e tecnológica” (MARTINS, 2000, p. 32).

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A DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA

O Português passou a ser abordado nasescolas brasileiras, segundo a professoraMagda Soares (2012), no início do século XVIcom o estudo da gramática e da retórica; estaúltima incluía o estudo da poética. Porém, foisó a partir do século XIX, que retórica, poéticae gramática passaram a ser “as disciplinas nasquais se fazia o ensino da língua portuguesaaté o fim do Império; só então foram elasfundidas numa única disciplina que passou ase denominar Português” (SOARES, 2012, p.149).

Atualmente, o ensino da retórica setransformou no ensino da redação; o ensino dapoética, transformou-se no ensino da literaturae a gramática permaneceu tendo primazia noestudo da Língua Portuguesa. Apesar de essaprimazia da gramática ainda hoje persistir nasaulas de Português nas escolas brasileiras(SOARES, 2012), o ensino da disciplina LínguaPortuguesa é constituído de forma tríplice:gramática, redação e literatura.

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De uma forma bem reducionista, àgramática normativa cabe prescrever asregras e determinar o uso consideradocorreto/adequado das línguas escrita e falada.À redação cabe a escrita de diferentes gênerostextuais e à literatura cabe o estudo dos textosliterários e movimentações artístico-culturais.O estudo dessas três grandes áreas pode seratrelado aos ideais de Zabala (1998): oconteúdo conceitual ficaria a cargo dagramática normativa; o conteúdoprocedimental, a cargo da redação; o conteúdoatitudinal, da literatura. Assim, ao se trabalhar

em sala de aula as três áreas que constituem oensino da Língua Portuguesa, o estudante tema oportunidade de ter acesso ao saber, ao saberfazer e ao ser em única disciplina. Os cursostécnicos, ao estabelecerem no ensino doPortuguês um caráter instrumental, reforçama primazia da gramática normativa sobre asoutras áreas, aleijando o ensino completodessa disciplina e, por conseguinte, ofertandouma formação incompleta.

8 - Este guia não tem o objetivo de distinguir o uso da gramática normativa da descritiva nem suscitar discussões acerca das variedades linguísticas.

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SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Para sistematizar as atividades da SD,parte-se da afirmação de Zabala (1998, p. 18),segundo o qual as sequências didáticas são“um conjunto de atividades ordenadas,estruturadas e articuladas para a realização decertos objetivos educacionais”. Essa ideia vai aoencontro das afirmações de Dolz, Noverraz eSchneuwly (2004, p. 97), que definemsequência didática como um “conjunto deatividades escolares organizadas, de maneira

sistemática, em torno de um gênero textualoral ou escrito”, propondo uma estrutura deSD para o ensino de gêneros nas sériesfundamentais tendo por finalidade “ajudar oaluno a dominar melhor um gênero de texto,permitindo-lhe, assim, escrever ou falar deuma maneira mais adequada numa dadasituação de comunicação” (DOLZ;NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97).

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Figura 1 - Esquema da sequência didática de Dolz, Noverraz e SchneuwlyFonte: DOLZ , NOVERRAZ e SCHNEUWLY (2004, p. 97)

A ideia aqui embasada nos preceitos deDolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 110) é ade que as:

Antes da aplicação da SD, 02(duas) aulasde observação foram utilizadas para conhecer

Sequências didáticas apresentam umagrande variedade de atividades que devemser selecionadas, adaptadas etransformadas em função das necessidades

dos alunos, dos momentos escolhidos parao trabalho, da história didática do grupo eda complementaridade em relação a outrassituações de aprendizagem da expressão,propostas fora do contexto das sequênciasdidáticas.

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o perfil e a realidade que a turmaexperimental vivenciava, além de ter sidoaplicado um questionário prévio para coletardados para pesquisa de mestrado. Para aformulação da sequência, foi observada aementa disposta no projeto pedagógico docurso técnico concomitante em MeioAmbiente e, para a sua implementação, foinecessário 06 (seis) aulas de PortuguêsInstrumental, com duração de 50 (cinquenta)minutos cada uma. O conto “Negrinha” , deMonteiro Lobato, foi a peça fundamental paraa organização da SD; foi por meio dessegênero textual que foram inseridos aspectospropedêuticos da Educação básica (comoleitura, interpretação e análise crítica darealidade) na EPT.

Para o desenvolvimento da SD, o materialutilizado nas aulas foi o conto impresso, omaterial didático da própria disciplina dePortuguês Instrumental, um quadro branco,alguns pincéis e 04 sacolinhas de TNT. Aorganização da sequência foi formulada, tendocomo objetivos, os baseados na proposta deZabala (1998):

Conceitual

Conhecer as conjunções coordenativas e seuspossíveis valores semânticos, bem comoentender que a coesão sequencial e acoerência em um texto são promovidas, dentreoutros elementos, pelo uso das conjunçõescoordenativas.

Procedimental

Exercitar a empregabilidade das conjunçõescoordenativas e a compreensão dosmecanismos de sentido do texto a partir daelaboração de perguntas e respostas, após aleitura e a compreensão do conto “Negrinha”,de Monteiro Lobato.

Atitudinal

Promover a reflexão da realidade social, comoo racismo, a partir do conto “Negrinha”, deMonteiro Lobato.

O Quadro 1, logo abaixo, é uma síntese dasatividades aplicadas na SD e nas seçõesseguintes há uma sistematização do processo.

Quadro1 – Síntese das atividades da SD

9 - O conto Negrinha, de Monteiro Lobato, encontra-se no Anexo.

10 – O material utilizado foi custeado com financiamento próprio.

11 - O objetivo é dar foco às conjunções coordenativas, mas não se ignora a existência de outros elementos que promovem a coesão e a coerência.

9

AULAS ATIVIDADES

Aula 1 - Diálogo sobre racismo;- Leitura e interpretação do conto.

Aula 2

- Discussão de outros fatores além doracismo;- Início do estudo das conjunçõescoordenativas;- Sistematização do conteúdo no quadro;- Envio de atividade extraclasse.

Aula 3 - Correção dos exercícios;- Divisão dos trios para trabalho em grupo.

Aula 4 - Confecção de perguntas e respostas parao quiz.

Aula 5 - Aplicação do quiz.

Aula 6- Síntese expositiva;- Relato da experiência.

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Fonte: Elaboração própria

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ATIVIDADES PROPOSTAS OBJETIVOS ESPECÍFICOS TEMPO ESTIMADO

Apresentação inicial sobrea temática do conto“Negrinha” por meio debreve diálogo acerca doracismo e, em seguida,leitura do conto proposto.

Evidenciar os conhecimentosprévios dos alunos sobre atemática do conto.

25 minutos.

Interpretação oral dotexto.

Construir a compreensão globaldo texto lido, unificando erelacionando informaçõesimplícitas e explícitas do textolido.

25 minutos.

13 TRABALHANDO COM O CONTO NO TÉCNICO CONCOMITANTE – GUIA PEDAGÓGICO

AULA 01

Na aula 01, com o intuito de evidenciar osconhecimentos prévios dos alunos sobre atemática do conto, estabeleceu-se um brevediálogo acerca do racismo. Perguntas como sealguém já havia visto (ou sofrido com) atitudesracistas foram feitas, e os alunos puderamlivremente expor suas opiniões, experiências eimpressões sobre o tema. Em seguida, o conto“Negrinha” foi lido e interpretado de formaoral pela pesquisadora. Durante ainterpretação, os alunos também puderamexplanar o que haviam entendido do texto erelatar suas impressões, citando, inclusive, queos maus tratos sofridos pela personagemprincipal do texto ainda hoje podem ser vistos,ainda que de forma menos ostensiva, mas nãomenos humilhante.

FATOS RÁPIDOS

Fonte: Elaboração própria

44% dos alunos afirmaram que o

texto literário foi abordado de formasuperficial em sua formação escolar.

17% dos alunos afirmaram que o texto

literário foi abordado de forma satisfatória emsua formação escolar.

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AULA 02

ATIVIDADES PROPOSTAS OBJETIVOS ESPECÍFICOS TEMPO ESTIMADO

Discussão sobre aspectosrelevantes no trato socialos quais estejam presentesno texto, como é o caso dadesigualdade racial.

Fomentar a compreensão dadiversidade social e as formas deinteração humana.

20 minutos.

Iniciação, de maneiradialogada, ao estudo dacoesão sequencial (maisespecificamente o valorsemântico das conjunçõescoordenativas).

Incitar um conhecimento que éinteressante possuir: a coesão nostextos falados e escritos.

20 minutos.

Envio de atividadeextraclasse : exercíciossobre semântica dasconjunções coordenativas.

Produzir significância efuncionalidade do novo conteúdo.

10 minutos.

Na aula 02, a discussão sobre o racismoprosseguiu, e outros aspectos relevantes notrato social os quais estavam presentes notexto insurgiram. Questões como o trabalhoinfantil, a inocência e o desdém pueris, ahipocrisia de devotos religiosos que possuemuma prática distante da teoria que pregam, oestilo do autor com suas ironias fizeram parteda conversação estabelecida, podendo dessaforma, fomentar a compreensão dadiversidade social e as formas de interaçãohumana. Essas questões surgiramespontaneamente, já que não faziam parte doplanejado. A seguir, o estudo sobre asconjunções coordenativas foi iniciado. Frases

do texto lido foram transcritas no quadrobranco para análise do valor semântico dasconjunções coordenativas. A partir das frasesselecionadas, foi perguntado aos alunos qual osentido que cada conjunção, previamentedestacada pela pesquisadora, estabelecianaquele contexto.

As respostas foram variadas: algumascerteiras e outras nem tanto, mas ointeressante foi perceber a linha de raciocínioseguida por eles. Alguns apontaram valoressemânticos próximos, por exemplo: falaramem causa em vez de explicação, consequênciaem vez de conclusão. O estudo dos valores

12

12 - A atividade extraclasse ajuda a consolidar na mente do aluno aquilo que foi abordado em sala de aula, portanto é um recurso para melhorar odesempenho discente.

.

Fonte: Elaboração própria

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semânticos das conjunções subordinativasadverbiais seria, pois, um ótimo conteúdo paradar prosseguimento às aulas.

A partir dessa dinâmica, os alunospuderam perceber a importância do usodesses articuladores para produzir coesão ecoerência em um texto. Após, o conteúdo foisistematizado no quadro branco, conforme oQuadro 2, e, para fixar o que tinha acabado de

ser explicado, foi enviada uma atividadeextraclasse sobre o valor semântico dasconjunções coordenativas (vide Quadro 3) afim de produzir significância e funcionalidadedo novo conteúdo. A atividade extraclasse foiretirada de um dos livros constante nabibliografia básica da ementa de PortuguêsInstrumental.

15 TRABALHANDO COM O CONTO NO TÉCNICO CONCOMITANTE – GUIA PEDAGÓGICO

CONJUNÇÕES BÁSICAS EXEMPLO VALOR

SEMÂNTICOOUTRAS

CONJUNÇÕES

EA mãe abafava a boquinha

criminosa da filha e afastava-se com ela para os fundos do

quintal.Adição / soma

nem (= e não), não só... mas também, não

só... como também, bem como, não só...

mas ainda.

MAS Ótima, a dona Inácia. Mas não admitia choro de criança.

Adversidade/ contrariedade/

oposição.

porém, contudo, todavia, entretanto,

no entanto, não obstante.

OUBatiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse

motivo.Alternância

ou... ou, ora... ora, já... já, quer... quer, seja... seja, talvez... talvez.

POR ISSONão a calejara o choro da carne

de sua carne, por isso não suportava o choro da carne

alheia.Conclusão

logo, pois (depois do verbo), portanto, por conseguinte, assim.

PORQUE(QUE)

Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças. Explicação pois (antes do

verbo), porquanto.

Quadro 2 – Valor semântico das conjunções coordenativas

Fonte: Elaboração própria

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16 TRABALHANDO COM O CONTO NO TÉCNICO CONCOMITANTE – GUIA PEDAGÓGICO

01 – Empregue uma das conjunções coordenativas, do quadro abaixo, de acordo com osentido da frase.

a) Vendeu seu carro ____________________ perdemos a carona.b) Ganhei o prêmio, ____________________ ainda não o recebi.c) Ou tomas banho cedo, ____________________ não sairás conosco.d) Acompanhe Júlia, ____________________ ela é novata aqui.e) Fez algumas anotações ____________________ esperou-me cheio de ansiedade.f) Ela não só fala bem, ____________________ escreve com criatividade e elegância.g) O secretário registrou as ocorrências na ata, ____________________ estávamos isentos deculpa.h) Durante a passeata, vi-os agitados, ____________________ a nova proposta os acalmou.

02 – As conjunções coordenativas, a depender do contexto, podem exercer diversos valoressemânticos. No exercício anterior, cada conjunção empregada por você modificou o sentidoda frase. Descreva, pois, a ideia expressa por cada conectivo dentro do contexto das frases.

a) ____________________ e) ____________________ b) ____________________ f) ____________________c) ____________________ g) ____________________d) ____________________ h) ____________________

portanto porque por conseguinte e entretanto mas ainda porém ou

Quadro 3 – Exercícios sobre o valor semântico das conjunções coordenativas

Fonte: SARMENTO (2000, p. 312, adaptado)

Com a prática estabelecida nessasprimeiras aulas, a turma experimental, assimcomo descreve Paulo Freire (2011),lembrando-se de fatos de sua infância, pôdeaprender gramática de uma forma maisprazerosa, pois tudo “era proposto àcuriosidade dos alunos de maneira dinâmicae viva, no corpo mesmo de textos” (FREIRE,2011, p. 26). Ademais, tal qual o relato dofilósofo, os alunos não tiveram que“memorizar mecanicamente a descrição doobjeto, mas aprender a sua significação

profunda” (FREIRE, 2011, p. 26). Por meio dodiálogo pré-texto, os alunos puderam, ainda,pensar sobre como atitudes racistaspermanecem na sociedade e fazer umaleitura de mundo a partir de suasperspectivas para, só então, terem acesso àleitura do texto, correspondendo, portanto,às referências que Freire (2011, p. 29)estabelece: “a leitura do mundo precedesempre a leitura da palavra e a leitura dapalavra desta implica a continuidade daleitura daquele”.

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AULA 03

ATIVIDADES PROPOSTAS OBJETIVOS ESPECÍFICOS TEMPO ESTIMADO

Correção dos exercícios e tira-dúvidas.

Exercitar a coesão sequencial ea coerência textuais quecontribuem para a construçãode sentido e encadeamento dotexto.

35 minutos

Divisão da turma em grupos deaté quatro pessoas e explicação daatividade: a partir do conto daaula 01, cada grupo deveráconfeccionar 04 perguntas (comsuas respectivas respostas) sobreinterpretação/ compreensão detexto e valor semântico dasconjunções coordenativas.

Construir o conhecimento deforma coletiva.

15 minutos

Fonte: Elaboração própria

No primeiro momento da aula 03, oexercício que havia sido deixado comoatividade extraclasse na aula anterior foicorrigido no quadro branco. Durante acorreção, o conteúdo sobre os valoressemânticos das conjunções coordenativasfoi retomado, e os alunos puderamesclarecer as dúvidas. Assim, foi exercitadade forma produtiva a coesão sequencial e acoerência textual que contribuíram para a

construção de sentido e encadeamento dotexto. Após, a turma foi dividida em triospara que se iniciasse o trabalho em grupo.

Optou-se pelo trabalho em equipe paraque os alunos tivessem a oportunidade deconstruir o conhecimento de forma coletivae interativa, de partilhar entre si osconhecimentos adquiridos; com a utilizaçãoda “mesma linguagem”, é possível que um

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18 TRABALHANDO COM O CONTO NO TÉCNICO CONCOMITANTE – GUIA PEDAGÓGICO

indivíduo tenha uma eventual dúvidasanada por meio da explicação de umcolega. Ademais, essa configuração daturma é primordial para a etapa da aula 05,o quiz. A divisão dos grupos e a explicaçãoda atividade proposta (a partir do conto da

aula 01, cada grupo teve de confeccionar04 perguntas - com suas respectivasrespostas - sobre interpretação/compreensão de texto e valor semântico dasconjunções coordenativas) foram feitas nofim da aula 03.

AULA 04

ATIVIDADE PROPOSTA OBJETIVO ESPECÍFICO TEMPO ESTIMADO

Confecção das perguntasEstimular a aprendizagemautônoma e participativa.

50 minutos.

Fonte: Elaboração própria

A aula 04 foi destinada exclusivamentepara a confecção das perguntas e respostas asquais, posteriormente, foram utilizadas para oquiz. O objetivo foi estimular a aprendizagemautônoma e participativa, por isso poucasintervenções foram feitas por parte dapesquisadora. Somente quando algum trioapresentava qualquer tipo de dúvida esolicitava uma explicação da pesquisadora, eraque esta se disponibilizava para ajudar. Nomais, os alunos demonstraram bastanteinteresse em executar essa atividade. Segundoeles, era a primeira vez que um professor(neste caso sob a figura da pesquisadora)pedia para que eles elaborassem perguntassobre o conteúdo visto em sala de aula, ohabitual era somente eles responderem.

Esse fato remete ao que o pedagogoRubem Alves (2007) descreve a respeito dofazer ciência. Para ele, é imprescindível que seestimule a prática do pensamento por meio do

enfrentamento de um problema, pois a tomadade consciência de um problema é que geraconhecimento. O padrão geralmente utilizadono sistema de ensino brasileiro é o professorfornecer as perguntas para o aluno respondersem considerar que

Todo pensamento começa com umproblema. Quem não é capaz de perceber eformular problemas com clareza não podefazer ciência. Não é curioso que os nossosprocessos de ensino de ciência seconcentrem mais na capacidade do alunopara responder? Você já viu alguma provaou exame em que o professor pedisse que oaluno formulasse o problema? O que setesta nos vestibulares, e o que os cursinhosensinam, não é simplesmente a capacidadepara dar respostas? Frequentemente,fracassamos no ensino da ciência porqueapresentamos soluções perfeitas paraproblemas que nunca chegaram a serformulados e compreendidos pelo aluno(ALVES, 2007, p. 24-25).

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A aula cinco foi reservada integralmentepara a aplicação do quiz. Cada grupo sejuntou em um espaço da sala, e as perguntasde cada equipe foram separadas edevidamente inseridas no saquinho de TNT. Acada rodada, as perguntas de um grupo foramsorteadas pelos demais para seremrespondidas. As rodadas sucederam até quefindassem as perguntas. Ganhou o grupo queacertou mais respostas. Durante a dinâmica,não foi permitida a consulta a qualquer tipode material; os grupos “trocavam ideia” entresi para opinarem sobre a resposta “correta”. Oquiz foi uma importante ferramenta parasocializar o trabalho executado por cadagrupo e promover uma forma diferenciadapara assimilação do conteúdo(interpretação/compreensão de texto e valorsemântico das conjunções coordenativas).

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ATIVIDADE PROPOSTA OBJETIVO ESPECÍFICO TEMPO ESTIMADO

Apresentação da atividadeda aula anterior através deuma dinâmica de grupo:quiz a partir da confecçãodas perguntas e respostasdos alunos.

Socializar o trabalho executadopor cada grupo e promover umaforma diferente para assimilaçãodo conteúdo(interpretação/compreensão detexto e valor semântico dasconjunções coordenativas).

50 minutos.

AULA 05

Fonte: Elaboração própria

FATOS RÁPIDOS

83% dos alunos disseram concordar

totalmente quanto à contribuição do quiz para aaprendizagem.

92% dos alunos disseram concordar

totalmente quanto à ocorrência de umaaprendizagem mais significativa com a utilizaçãodo conto.

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A última aula de aplicação da SD foi paraa elaboração da conclusão do trabalhoexecutado. Além de uma retomada, por meiode uma síntese expositiva, de tudo o que foifeito nas aulas anteriores, os alunos tiveram aoportunidade de potencializar a troca deexperiências e conhecimentos entre elesmediante o relato da experiência vivenciada.Para findar as atividades, a própriapesquisadora aplicou o questionáriosemiestruturado póstumo com o intuito de osalunos avaliarem a sequência didáticaelaborada, promovendo, também, umaautoavaliação.

Com efeito, ao fim da aplicação da SD,ficou perceptível, pela mudança de posturafrente aos problemas sociais que foramapresentados no texto e às discussõespromovidas durante as aulas, que os alunos seenvolveram com a arte da palavra, de modoque saíram transformados, estimulados, ou

como diria Silva (2010), deformados para oseio da sociedade. A respeito desse “desfazer-sediscente”, Silva (2010, p. 9) atribui à literaturae à educação que “se encontram, e seentrecruzam, no interesse comum de formar,informar e, numa conotação plena de valorespositivos, de-formar o cidadão, pois se trata de‘deformá’-lo para uma participação ativa nasociedade”.

O processo de “de-formação” do cidadãopode ser promovido por intermédio dediferentes condutas, porém “ao apresentaruma visão míope, distorcida, esgarçada eopaca sobre a realidade, a linguagem literária,em vez de subtrair significados, acrescentarealidades suplementares com as quais adecodificação do mundo e das vivênciashistóricas fica mais. segura e compreensível”(MARTINS, 2018, p. 111-112). Partindo doprincípio de que toda literatura é uma forma

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ATIVIDADE PROPOSTA OBJETIVO ESPECÍFICO TEMPO ESTIMADO

Elaboração de conclusão(com síntese expositiva) arespeito do que foitrabalhado nas aulasanteriores.

Potencializar a troca deexperiências e conhecimentosentre os alunos através do relatodeles para a elaboração daconclusão.

30 minutos.

Aplicação de novoquestionário.

Avaliar a sequência didáticaelaborada e promover umaautoavaliação.

20 minutos.

AULA 06

Fonte: Elaboração própria

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de expressão da sociedade e de que a visãomíope sobre a realidade posta no texto “obrigao leitor a se deslocar do comodismo de suasverdades” (MARTINS, 2018, p. 111-112),assegura-se que o cidadão que lê, tem seucaráter construído (não só, mas também) sob ainfluência das obras lidas e das reflexões queessas promoveram

Para Candido (2004, p. 175-176), aexperiência com a literatura não é inofensiva,mas sim uma aventura como acontece na

própria vida real, da qual ela é imagem etransfiguração, “isso significa que ela tempapel formador da personalidade”. A obraliterária ensina o indivíduo a relacionar-seintra e interpessoalmente, promovendoautoconhecimento, empatia, enriquecimentopessoal e intelectual. Nas palavras de Candido(2004, p. 180), “a literatura desenvolve em nósa quota de humanidade na medida em que nostorna mais compreensivos e abertos para anatureza, a sociedade, o semelhante”.

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CONSIDERAÇÕESFINAIS

procedimental no momento em queexercitaram a empregabilidade dasconjunções coordenativas e a compreensãodos mecanismos de sentido do texto a partir daelaboração de perguntas e respostas para oquiz; e ao atitudinal no momento em querefletiram sobre o racismo e a realidade socialatravés da leitura e interpretação do conto.

Os alunos relataram que a aula ficou maisdinâmica com o quiz e a aprendizagem maisprazerosa; assim, ratifica-se o quanto épertinente utilizar a leitura de conto - e deoutros textos literários - para instigar o aluno,para fazer com que ele tenha condições deapreciar perspectivas diferentes da sua,promovendo não só o crescimento pessoal,mas também viabilizando o exercício daempatia. A literatura possui um caráterauxiliador na compreensão da realidade;experienciar os sentimentos, pensamentos eatitudes dos personagens faz com que ossentidos humanos sejam ampliados. Ao recriara obra na leitura particular dos textos, o leitor

constrói significados, exercendo sua reflexão efacilitando a compreensão da diversidadesocial.

Desse modo, observa-se que o ensino dePortuguês Instrumental a partir de textoliterário em curso técnico concomitante é umaalternativa viável para proporcionar aosdiscentes uma formação integral com vistas àformação de profissionais competentes ecidadãos ativos em seu meio social. Outrossim,há uma atenuação da discrepância existenteentre a Educação básica e a Educaçãoprofissional e tecnológica, com a abordagemde aspectos propedêuticos nas aulas desta.

Como fonte de inspiração, há no Apêndiceuma relação de 11 (onze) textos literários quepodem ser utilizados nas aulas de PortuguêsInstrumental a fim de provocar a criticidadenos alunos. Espera-se, portanto, que este guiapedagógico seja um estímulo para docentes daárea de linguagens e código, principalmente.

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A partir do conto “Negrinha”, a tríade dosconteúdos proposta por Zabala (1998) foiabrangida nas aulas de PortuguêsInstrumental. Os alunos tiveram acesso aoconteúdo conceitual no momento em queconheceram as conjunções coordenativas eseus possíveis valores semânticos; ao conteúdo

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REFERÊNCIASALVES, R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras, São Paulo: Loyola, 12. ed., 2007

CANDIDO, A. O direito à literatura. In:Vários escritos. 4 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul/ SãoPaulo: Duas cidades, 2004.

DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e para o escrito:apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. (Orgs). Gêneros orais e escritos naescola. Tradução e organização de Roxane Rojo e Glais Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado dasLetras, 2004.

FREIRE. P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 51 ed. São Paulo: Cortez,2011.

LOBATO, M. Negrinha. Obras completas de Monteiro Lobato. 12 ed. São Paulo: Brasiliense, 1964.

LOPES, A. C.; MACEDO, E. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011

MARTINS, A. Entremeios: ensaios sobre literatura, cinema e comunicação. Curitiba: Appris, 2018.

MARTINS, M. F. Ensino técnico e globalização: cidadania ou submissão? Campinas, SP: AutoresAssociados, 2000.

RAMOS, M. Concepção do ensino médio integrado. In: Fórum Eja, 2008. Disponível em:http://forumeja.org.br/go/sites/forumeja.org.br.go/files/concepcao_do_ensino_medio_integrado5.ppd. Acesso em: 13 fev. 2007.

SANTOMÉ, J. T. Globalização e Interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre, RS. Artmed,1998.

SARMENTO, L.L. Gramática em textos. São Paulo: Moderna, 2000.

SAVIANI, D. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista Brasileira deEducação, v. 12, n. 34, p. 152-180, jan./abr. 2007. Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n34/a12v1234.pdf. Acesso em: 13 fev. 2017.

SILVA, M. Literatura e experiência de vida: novas abordagens no ensino de literatura. Nau Literária:crítica e teoria de literaturas, Porto Alegre, v. 6, n. 2, jul/dez 2010. Disponível em:https://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/view/14466/11687. Acesso em: 20 set. 2017.

SOARES, M. Português na escola – história de uma disciplina curricular. In. BAGNO, M. (org.).Linguística da norma. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. pp. 141- 161.

ZABALA, A. A Prática Educativa: como ensinar. Tradução de Ernani F da F. Rosa. Porto Alegre:Artmed, 1998.

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APÊNDICE

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Título Autor Gênero Textual

Alguns dos temas abordados

Um apólogo Machado de Assis Conto Orgulho, vaidade, egoísmo, prepotência.

A cartomante Machado de Assis Conto Triângulo amoroso, homicídio.

Herói na contemporaneidade Fernando Chuí Crônica Diversas formas de

exclusão social.

Mulher ao espelho Cecília Meireles Poema Conflito existencial.Retrato Cecília Meireles Poema Passagem do tempo.

Os laços de família Clarice Lispector Conto Relacionamento familiar.

Recado ao senhor 903 Rubem Braga CrônicaRelacionamento interpessoal na

atualidade.

O vampiro de Curitiba Dalton Trevisan Conto Machismo, estupro.A moça tecelã Marina Colasanti Conto Feminismo

Venha ver o pôr do sol Lygia Fagundes Telles Conto Feminicídio

Uma vela para Dario Dalton Trevisan Conto

Descuido, desprezo social, egoísmo, falta

de empatia e caridade com o próximo.

BANCO DE SUGESTÃO DE TEXTOS LITERÁRIOS

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ANEXO

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos.Preta? Não; fusca, mulatinha escura, decabelos ruços e olhos assustados.

Nascera na senzala, de mãe escrava, e seusprimeiros anos vivera-os pelos cantos escurosda cozinha, sobre velha esteira e traposimundos. Sempre escondida, que a patroa nãogostava de crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, donado mundo, amimada dos padres, com lugarcerto na igreja e camarote de luxo reservadono céu. Entaladas as banhas no trono (umacadeira de balanço na sala de jantar), alibordava, recebia as amigas e o vigário, dandoaudiências, discutindo o tempo. Uma virtuosasenhora em suma — “dama de grandesvirtudes apostólicas, esteio da religião e damoral”, dizia o reverendo.

Ótima, a dona Inácia.

Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos,não a calejara o choro da carne de sua carne, epor isso não suportava o choro da carnealheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, atriste criança, gritava logo nervosa:

— Quem é a peste que está chorando aí?

Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? Opilão? O forno? A mãe da criminosa abafava aboquinha da filha e afastava-se com ela paraos fundos do quintal, torcendo-lhe emcaminho beliscões de desespero.

— Cale a boca, diabo!

No entanto, aquele choro nunca vinha semrazão. Fome quase sempre, ou frio, desses queentanguem pés e mãos e fazem-nos doer...

Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada,com os olhos eternamente assustados. Órfã aosquatro anos, por ali ficou feito gato sem dono,levada a pontapés. Não compreendia a idéiados grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ouomissão. A mesma coisa, o mesmo ato, amesma palavra provocava ora risadas, oracastigos. Aprendeu a andar, mas quase nãoandava. Com pretextos de que às soltasreinaria no quintal, estragando as plantas, aboa senhora punha-a na sala, ao pé de si, numdesvão da porta.

— Sentadinha aí, e bico, hein?

Negrinha imobilizava-se no canto, horas ehoras.

— Braços cruzados, já, diabo!

Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com osusto nos olhos. E o tempo corria. E o relógiobatia uma, duas, três, quatro, cinco horas —um cuco tão engraçadinho! Era seudivertimento vê-lo abrir a janela e cantar ashoras com a bocarra vermelha, arrufando asasas. Sorria-se então por dentro, feliz uminstante.

Puseram-na depois a fazer crochê, e as horasse lhe iam a espichar trancinhas sem fim.

25 TRABALHANDO COM O CONTO NO TÉCNICO CONCOMITANTE – GUIA PEDAGÓGICO

NEGRINHA

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Que idéia faria de si essa criança que nuncaouvira uma palavra de carinho? Pestinha,diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira,bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo —não tinha conta o número de apelidos com quea mimoseavam. Tempo houve em que foi abubônica. A epidemia andava na berra, comoa grande novidade, e Negrinha viu-se logoapelidada assim — por sinal que achou linda apalavra. Perceberam-no e suprimiram-na dalista. Estava escrito que não teria um gostinhosó na vida — nem esse de personalizar apeste...

O corpo de Negrinha era tatuado de sinais,cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casatodos os dias, houvesse ou não houvessemotivo. Sua pobre carne exercia para oscascudos, cocres e beliscões a mesma atraçãoque o ímã exerce para o aço. Mãos em cujosnós de dedos comichasse um cocre, era mãoque se descarregaria dos fluidos em suacabeça. De passagem. Coisa de rir e ver acareta...

A excelente dona Inácia era mestra na arte dejudiar de crianças. Vinha da escravidão, forasenhora de escravos — e daquelas ferozes,amigas de ouvir cantar o bolo e estalar obacalhau. Nunca se afizera ao regime novo —essa indecência de negro igual a branco equalquer coisinha: a polícia! “Qualquercoisinha”: uma mucama assada ao fornoporque se engraçou dela o senhor; umanovena de relho porque disse: “Como é ruim, asinhá!”...

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague,mas não lhe tirou da alma a gana. ConservavaNegrinha em casa como remédio para osfrenesis. Inocente derivativo:

— Ai! Como alivia a gente uma boa roda decocres bem fincados!...

Tinha de contentar-se com isso, judiariamiúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mãofechada com raiva e nós de dedos que cantamno coco do paciente. Puxões de orelha: otorcido, de despegar a concha (bom! bom!bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, osacudido. A gama inteira dos beliscões: domiudinho, com a ponta da unha, à torcida doumbigo, equivalente ao puxão de orelha. Aesfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapése safanões a uma — divertidíssimo! A vara demarmelo, flexível, cortante: para “doer fino”nada melhor!

Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá dequando em quando vinha um castigo maiorpara desobstruir o fígado e matar as saudadesdo bom tempo. Foi assim com aquela históriado ovo quente.

Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara doprato de Negrinha — coisa de rir — umpedacinho de carne que ela vinha guardandopara o fim. A criança não sofreou a revolta —atirou-lhe um dos nomes com que amimoseavam todos os dias.

— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem épeste — e foi contar o caso à patroa.

Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima dederivativos. Sua cara iluminou-se.

— Eu curo ela! — disse, e desentalando dotrono as banhas foi para a cozinha, qual peruachoca, a rufar as saias.

— Traga um ovo.

Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na águaa ferver; e de mãos à cinta, gozando-se naprelibação da tortura, ficou de pé uns minutos,à espera. Seus olhos contentes envolviam amísera criança que, encolhidinha a um canto,aguardava trêmula alguma coisa de nunca

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visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boasenhora chamou:

— Venha cá!

Negrinha aproximou-se.

— Abra a boca!

Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechouos olhos. A patroa, então, com uma colher,tirou da água “pulando” o ovo e zás! na bocada pequena. E antes que o urro de dor saísse,suas mãos amordaçaram-na até que o ovoarrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelonariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhoschegaram a perceber aquilo. Depois:

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez,ouviu, peste?

E a virtuosa dama voltou contente da vidapara o trono, a fim de receber o vigário quechegava.

— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nestavida... Estou criando aquela pobre órfã, filhada Cesária — mas que trabalheira me dá!

— A caridade é a mais bela das virtudescristas, minha senhora —murmurou o padre.

— Sim, mas cansa...

— Quem dá aos pobres empresta a Deus.

A boa senhora suspirou resignadamente.

— Inda é o que vale...

Certo dezembro vieram passar as férias comSanta Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas,lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadasem ninho de plumas.

Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de

vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?

Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.

— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo:

— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.

Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...

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Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca virauma boneca e nem sequer sabia o nome dessebrinquedo. Mas compreendeu que era umacriança artificial.

— É feita?... — perguntou, extasiada.

E dominada pelo enlevo, num momento emque a senhora saiu da sala a providenciarsobre a arrumação das meninas, Negrinhaesqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, eaproximou-se da criatura de louça. Olhou-acom assombrado encanto, sem jeito, semânimo de pegá-la.

As meninas admiraram-se daquilo.

— Nunca viu boneca?

— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-seBoneca?

Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

— Como é boba! — disseram. — E você comose chama?

— Negrinha.

As meninas novamente torceram-se de riso;mas vendo que o êxtase da bobinhaperdurava, disseram, apresentando-lhe aboneca:

— Pegue!

Negrinha olhou para os lados, ressabiada,como coração aos pinotes. Que ventura, santoDeus! Seria possível? Depois pegou a boneca. Emuito sem jeito, como quem pega o Senhormenino, sorria para ela e para as meninas,com assustados relanços de olhos para a porta.Fora de si, literalmente... era como se penetrarano céu e os anjos a rodeassem, e um filhinhode anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo.Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegara patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou,feroz, e esteve uns instantes assim, apreciandoa cena.

Mas era tal a alegria das hóspedes ante asurpresa extática de Negrinha, e tão grande aforça irradiante da felicidade desta, que o seuduro coração afinal bambeou. E pela primeiravez na vida foi mulher. Apiedou-se.

Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido,passando-lhe num relance pela cabeça aimagem do ovo quente e hipóteses de castigosainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavorassomaram-lhe aos olhos.

Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi acoisa mais inesperada do mundo — estaspalavras, as primeiras que ela ouviu, doces, navida:

— Vão todas brincar no jardim, e vá vocêtambém, mas veja lá, hein?

Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhosainda de susto e terror. Mas não viu mais afera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.

Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foinaquela surrada carinha...

Varia a pele, a condição, mas a alma dacriança é a mesma — na princesinha e namendiga. E para ambos é a boneca o supremoenlevo. Dá a natureza dois momentos divinos àvida da mulher: o momento da boneca —preparatório —, e o momento dos filhos —definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse diada boneca que tinha uma alma. Divinaeclosão! Surpresa maravilhosa do mundo quetrazia em si e que desabrochava, afinal, comofulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada àaltura de ente humano. Cessara de ser coisa —e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vidade coisa. Se não era coisa! Se sentia! Sevibrava!

Assim foi — e essa consciência a matou.

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Terminadas as férias, partiram as meninaslevando consigo a boneca, e a casa voltou aoramerrão habitual. Só não voltou a siNegrinha. Sentia-se outra, inteiramentetransformada.

Dona Inácia, pensativa, já a não atazanavatanto, e na cozinha uma criada nova, boa decoração, amenizava-lhe a vida.

Negrinha, não obstante, caíra numa tristezainfinita. Mal comia e perdera a expressão desusto que tinha nos olhos. Trazia-os agoranostálgicos, cismarentos.

Aquele dezembro de férias, luminosa rajada decéu trevas adentro do seu doloroso inferno,envenenara-a.

Brincara ao sol, no jardim. Brincara!...Acalentara, dias seguidos, a linda bonecaloura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, acerrar os olhos para dormir. Vivera realizandosonhos da imaginação. Desabrochara-se dealma.

Morreu na esteirinha rota, abandonada detodos, como um gato sem dono. Jamais,entretanto, ninguém morreu com maiorbeleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todaslouras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas eanjos remoinhavam-lhe em torno, numafarândola do céu. Sentia-se agarrada poraquelas mãozinhas de louça — abraçada,rodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. Etudo regirou em seguida, confusamente, numdisco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pelaúltima vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

Mas, imóvel, sem rufar as asas.

Foi-se apagando. O vermelho da goeladesmaiou...

E tudo se esvaiu em trevas.

Depois, vala comum. A terra papou comindiferença aquela carnezinha de terceira —uma miséria, trinta quilos mal pesados...

E de Negrinha ficaram no mundo apenas duasimpressões. Uma cômica, na memória dasmeninas ricas.

— “Lembras-te daquela bobinha da titia, quenunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedos de donaInácia.

— “Como era boa para um cocre!...”

LOBATO, Monteiro. Negrinha. (Obrascompletas de Monteiro Lobato). 12 ed. SãoPaulo: Brasiliense, 1964.

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SOBRE OS AUTORES

Mestre em Educação Profissional e Tecnológica noInstituto Federal de Educação , Ciência e TecnologiaFluminense (2019), Pós-Graduação Lato Sensu emLiteratura, Memória Cultural e Sociedade pelo InstitutoFederal de Educação , Ciência e Tecnologia Fluminense(2014), Graduação em Letras (Português-Inglês) peloCentro Universitário Fluminense (2010). Atualmente,leciona Língua Portuguesa, Literatura Brasileira eRedação nas turmas de ensino médio na Secretaria deEducação do Estado do Rio de Janeiro e LínguaPortuguesa nas séries do ensino fundamental naSecretaria de Educação da Prefeitura Municipal de SãoJoão da Barra - RJ.

Doutor em Cognição e Linguagem pela UniversidadeEstadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).Atualmente é Professor da Licenciatura em Letras(Português e Literaturas de Língua Portuguesa) doInstituto Federal Fluminense, bem como daEspecialização em Literatura, Memória Cultural eSociedade e do Programa de Pós-Graduação StrictoSensu em Educação Profissional e Tecnológica emRede Nacional, atuando na linha de pesquisa "PráticasEducativas em Educação Profissional e Tecnológica(EPT)". É pesquisador vinculado ao Núcleo de EstudosCulturais, Estéticos e de Linguagens do InstitutoFederal Fluminense com experiência em Letras eênfase nas seguintes áreas: Tradição gramatical daLíngua Portuguesa, Linguística Clássica, LinguísticaHistórica, História da Língua Portuguesa eMetodologia de Pesquisa

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