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COMISSÃO DA VERDADE CASO DE EREMIAS DELISOICOV PRESIDENTE DEPUTADO ADRIANO DIOGO – PT 16/10/2013

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COMISSÃO DA VERDADE

CASO DE EREMIAS DELISOICOV

PRESIDENTE

DEPUTADO ADRIANO DIOGO – PT

16/10/2013

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COMISSÃO DA VERDADE

BK CONSULTORIA E SERVIÇOS LTDA.

16.10.2013

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Está instalada a 87ª

Audiência Pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, dia

16 de outubro de 2013, 14h00, Assembleia Legislativa, Auditório Paulo Kobayashi,

para oitiva de depoimento do caso Eremias Delizoicov.

Esclarecemos que a Comissão da Verdade pretende realizar todas as audiências

abertas ao público.

Hoje a composição da Mesa é, à esquerda, Amelinha Teles e o depoente

Demétrio Delizoicov, irmão de Eremias.

Antes de dar início aos trabalhos, eu quero deixar registrado nosso pesar pelo

que está acontecendo hoje na TV Assembleia. Nós todo dia falamos dos resquícios da

Ditadura, das coisas horríveis que sobraram da Ditadura e o que está acontecendo na TV

Assembleia é um atentado contra a democracia. Noventa profissionais receberam seu

pedido de demissão e a direção da TV, Laerte Mangini, Bernardi, Dantas, José Paulo

Dantas, José Carlos Bernardi e o Chico Alécio foram demitidos e a todos os outros

profissionais foi oferecido, como resignação, um PDV. PDV é um plano de demissão

involuntária, não tem nada de voluntária.

Já que estamos instalando a Comissão da Verdade, hoje, nós estamos registrando

esse voto de pesar por esse ato ditatorial por uma TV que dignificava a imagem de

deputados, fazia, espero que continue fazendo, a transmissão das sessões, a TV

Assembleia. Abaixo a ditadura, abaixo essa mudança de orientação absurda que está

ocorrendo na TV Assembleia e a nossa solidariedade.

Vamos entrar no assunto do dia. Vai haver a leitura do memorial mais o atestado

de óbito, leitura do depoimento enviado por escrito pelo José Araújo Nóbrega e a leitura

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dos votos da Comissão de Mortos e Desaparecidos de Luís Francisco de Carvalho e da

Suzana Lisbôa. Finalmente o depoimento do Demétrio.

Já vamos deixar, não sei se está transmitindo ao vivo, hoje à noite lá na Escola

Técnica Federal de São Paulo lá no Canindé, na Armênia, haverá uma homenagem. O

Eremias estudava lá e seus professores, seus amigos, seus contemporâneos farão uma

homenagem a Eremias Delizoicov. Se alguém estiver assistindo a TV nesse momento,

seus companheiros, seus colegas, o M.M.D.C. lá na Mooca, família Delizoicov convida

para uma homenagem importantíssima que vai haver, organizada pelo Renan e pela

Vivian Mendes, uma homenagem ao Eremias hoje à noite na Escola Técnica Federal, lá

do Canindé.

Com a palavra o Renan Quinalha.

O SR. RENAN QUINALHA – O Eremias nasceu em 27 de março de 1951, em

São Paulo, filho de Jorge Delizoicov e Liubov Gradinar Delizoicov, morto em 16 de

outubro de 1969, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Demétrio Delizoicov Neto, irmão de Eremias escreveu um testemunho sobre sua

vida: “Eremias viveu toda a sua infância e boa parte da sua curta adolescência na

Mooca. Completou o curso primário, em 1961, no Grupo Escolar Pandia Calógeras e o

ginasial em 1965, no Colégio Estadual M.M.D.C. Neste mesmo colégio iniciou, em

1966, o curso clássico. Em 1967 foi aprovado no exame de seleção da Escola Técnica

Federal de São Paulo e cursou, simultaneamente com o clássico, o curso de mecânica.

Sensível e criativo destinava suas horas de lazer ao esporte e à música. Tocava

violão várias horas por dia. Estudou música clássica e, a partir de 1966, imbuído de um

‘espírito nacionalista’, começou a expressar seus sentimentos interpretando músicas

nacionais, notadamente aquelas enquadradas como ‘Bossa Nova’. Tentou, com um

colega pianista e outro baterista, formar um trio.

Como esportista, em 1962 disputou o torneio paulista de judô, tendo tirado a

primeira colocação na sua categoria. Treinou natação durante 1965 e 1966 e participou

de algumas competições. Em 1967, integrou a equipe de remadores do Corinthians e

começou a treinar capoeira.

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Organizava seus horários de tal modo a, paralelamente, auxiliar o pai nas

atividades do comércio.

Iniciou a leitura das obras de Aluísio de Azevedo, Jorge Amado e Graciliano

Ramos. Ficou particularmente sensibilizado com as poesias de Augusto dos Anjos e

passou a questionar a realidade brasileira ao ler “Geopolítica da Fome”, de Josué de

Castro. Em 1967, no Colégio Estadual M.M.D.C., articulou-se com outros colegas para

formar uma chapa que disputaria as eleições para o grêmio estudantil, iniciando sua

militância política.

Ficou conhecendo detalhes do acordo MEC-USAID e engajou-se no movimento

estudantil contra tal acordo. Passou a interagir com estudantes de outras escolas

secundárias e articularam uma chapa para disputar, em 68, as diretorias da União

Paulista de Estudantes Secundaristas e a União Brasileira de Estudantes Secundaristas.

Organizou, juntamente com o grupo, o movimento estudantil secundarista nas escolas

da zona leste de São Paulo.

Eremias, em 1968, passou a liderar um movimento reivindicatório de alunos no

Colégio Estadual M.M.D.C., organizando uma greve e comícios. Em virtude disso, foi

transferido compulsoriamente, juntamente com alguns colegas, pela direção do Colégio,

contestada por alguns professores. Conseguiu matricular-se no Colégio Estadual

Firmino de Proença, terminando o ano. Paralelamente continuou seu curso técnico.

Durante as greves operárias de 1968, em Osasco, assistiu a algumas assembleias

sindicais com outros colegas que levavam o apoio dos estudantes aos operários em

greve. Engajou-se na campanha para obter fundos de greve.

No início de 1969 entrou para a VPR. Simulou uma discordância com os pais e

passou a morar fora de casa, mas visitava-os semanalmente. Confidenciava comigo, seu

único irmão, um ano mais velho, e, então, estudante universitário, com quem mantinha

uma estreita ligação e com quem discutia posições políticas.

Em meados de julho de 1969, os órgãos de repressão já sabiam da sua

militância. Dias antes, Eremias, sabendo do inevitável, reuniu-se com os pais e os pôs a

par da sua real situação. Estes se esforçaram para uma saída segura: enviá-lo ao exterior,

mas Eremias optou pelo Brasil e pela clandestinidade. Nunca mais o viram, vivo ou

morto.

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Seu pai foi detido duas vezes no Q.G. do II Exército para prestar depoimentos.

Os prontuários das escolas onde estudara foram vasculhados. Junto com os demais

companheiros, sua foto foi exposta em cartazes de pessoas procuradas pelos órgãos de

repressão.

No início de 1970, o pai foi convocado ao DOPS, em São Paulo, pelo Delegado

Sérgio Fleury. Enquanto aguardava na antessala daquele policial percebeu que Fleury

pressionava a mãe de um cidadão procurado, dizendo que deveria fornecer o paradeiro

de seu filho. A certa altura, meu pai, que a tudo ouvia, pois a porta do delegado estava

aberta, ouviu-o dizer alguma coisa como: ‘É uma questão de tempo, ou ele é preso ou

morto como o filho daquele senhor’, referindo-se a meu pai, que nesse momento

inteirou-se do falecimento do Eremias.

Em seguida, Fleury explicou-lhe o ocorrido na Vila Kosmos, agregando que o

Nóbrega estava vivo. O corpo de Eremias foi enterrado com o nome de José Araújo

Nóbrega, o Sargento Nóbrega, militante da VPR. E havia sido preso dias antes, e que,

portanto, o morto em outubro de 1969 era Eremias.

Fleury descartou qualquer possibilidade de ajuda em relação ao esclarecimento

oficial dos fatos, alegando que se algo pudesse ser feito, seria no Rio de Janeiro, junto

ao I Exército. Dias após a ida de meu pai ao DOPS, a imprensa toda noticiaria que

Nóbrega havia sido preso e que a pessoa morta no confronto com o Exército, em

outubro de 1969, era Eremias.

Enquanto durou a clandestinidade de Eremias, principalmente nos meses de

junho a agosto de 1969, a casa de meus pais era constantemente visitada e vigiada por

agentes policiais ou militares. Diante do clima de repressão reinante à época, meu pai

entendeu não ser possível iniciar o esclarecimento dos fatos.

Em 1975 ou 1976, meus pais foram ao Rio de Janeiro para tentar obter mais

informações e localizaram uma vizinha da casa onde Eremias fora morto. Segundo a

vizinha, a repressão montou um grande aparato, interditando o quarteirão onde se

situavam as casas. Pessoas que se diziam militares do Exército pediam que os

moradores das vizinhanças permanecessem quietos em suas casas. Contra a casa em que

morava Eremias foram disparados inúmeros tiros, inclusive de metralhadora e bombas

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e, de dentro da casa partiram também vários tiros. A vizinha acrescentou que parte do

efetivo militar utilizou-se de sua casa para invadir a casa onde estava Eremias.

Em 1979, após a edição da Lei de Anistia, meus pais iniciaram a tramitação

jurídica para obtenção do atestado de óbito.”

Eremias foi assassinado em 16 de outubro de 69 na Rua Tocopi, 59, em Vila

Kosmos, Rio de Janeiro, quando teria reagido ao cerco montado pelos agentes do DOI-

CODI/RJ que tentavam prendê-lo. Sua casa foi cercada pela Polícia do Exército,

comandada pelo então Major Enio de Albuquerque Lacerda.

Seu corpo entrou no IML/RJ pela Guia 471, da 27ª D.P., em 17 de outubro de

1969, como desconhecido.

A necropsia foi feita pelos médicos Elias Freitas e Hygino de Carvalho Hércules,

que confirmaram sua morte em tiroteio. Esta necropsia foi enviada ao Tenente-Coronel

Ary Pereira de Carvalho, do 1º Exército, em 04 de novembro de 1969, respondendo ao

ofício 164 IPM, de 21 de outubro de 1969, com o seguinte teor:

A fim de instruir os autos do IPM de que sou encarregado pelo Exmo. Sr.

General Syzeno Sarmento, Comandante do 1º Exército, solicito V. Sa. determinar o

atendimento dos seguintes quesitos:

a) termo de necropsia do cidadão José Araújo de Nóbrega, morto em ação

policial, ocorrida cerca das 11h do dia 16 corrente, na Rua Tocopi, 59, Vila Kosmos, no

Estado da Guanabara;

b) comparecimento ao Hospital da Guarnição da Vila Militar de médicos

legistas, a fim de procederem a exames de corpo de delito nos militares: major Enio de

Albuquerque Lacerda, Capitão Ailton Guimarães Jorge e Cabo Mário Antônio Povaleri,

feridos na mesma ação.

O óbito foi lavrado em nome de José Araújo de Nóbrega, tendo o cadáver um

reconhecimento forçado feito pelo irmão de José Araújo, Francisco Araújo de Nóbrega,

preso à época.

Eremias foi enterrado no Cemitério São Francisco Xavier, em 21 de outubro de

1969, na cova 59.262, quadra 45.

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Os órgãos de repressão aparentemente pareciam confusos e não sabiam qual a

verdadeira identidade daquele cadáver. No entanto, era pura encenação para, mais uma

vez, cometerem um crime de ocultação de cadáver.

De fato, as impressões digitais de Eremias Delizoicov já estavam confirmadas

pelo datiloscopista da Delegacia de Crimes contra Pessoa de São Paulo, em 11 de

dezembro de 1969, conforme comunicado nº 76/69, da Secretaria de Segurança Pública.

Ou seja, ao enterrarem aquele cadáver sabiam que era de Eremias Delizoicov.

A perícia registra que Eremias foi atingido por disparos de armas de fogo e

apresentava ferimentos lácero-contusos, cuja procedência seria verificada na necropsia.

Os legistas Elias Freitas e Hygino de Carvalho Hércules atestaram ferimento

transfixante da cabeça com dilaceração do encéfalo e, para facilitar o trabalho, passaram

a identificar os orifícios de forma agrupada. Ao todo, são descritas 19 lesões de entrada

e 14 de saída de projéteis no corpo de Eremias. Citaram ainda pelo menos 29 disparos

nas paredes da casa.

O relatório do Ministério da Aeronáutica encaminhado ao Ministro da Justiça

Maurício Corrêa, em 1993, afirma que foi morto em 16 de outubro de 1969 em tiroteio

com membros dos órgãos de segurança.

O relatório da Marinha atesta que Eremias morreu ao resistir ao cerco da Polícia

do Exército, em Vila Kosmos, Rio de Janeiro.

Somente em 1993, após ação judicial, a família conseguiu o atestado de óbito de

Eremias, além da necropsia e 31 fotos de perícia do local (ICE 658/69).

O longo laudo da perícia de local encontrado no ICE do Rio de Janeiro,

contendo 10 páginas, descreve o desalinho em que se encontrava a casa onde Eremias

foi morto, testemunhando uma verdadeira operação de guerra.

Documento da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro afirma que, em 25

de maio de 1975, os restos mortais de Eremias foram incinerados como era de “praxe”,

entre aspas.

No Arquivo do DOPS, Rio de Janeiro, consta documento do CENIMAR, de n°

189, de 23 de julho de 1970, que traz uma relação de militantes do COLINA, VAR-

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PALMARES e VPR e sua situação em 15 de junho de 1970, em que estão registrados os

nomes de José Araújo Nóbrega, como banido e o de Eremias Delizoicov, como morto.

A versão oficial sobre a morte de Eremias foi publicada no “Diário da Noite”,

em 21 de outubro de 1969: “Um morto e três feridos foi o saldo trágico de uma

diligência feita pelas autoridades da PE na Vila Militar no bairro da Vila Kosmos, na

Zona Norte, visando deter um grupo de subversivos que se homiziava num aparelho

descoberto pela Polícia.

Agentes da PE, comandados pelo major Lacerda, quando chegaram próximos ao

aparelho, jogaram uma granada dentro da casa para obrigar os que lá estivessem a sair e

se entregarem.

Após a explosão, quando o Comandante Lacerda entrou no imóvel,

acompanhado do Capitão Ailton Guimarães e do cabo Mario Antonio Poverolli, foram

baleados. O major foi ferido na perna esquerda, o Capitão na coxa esquerda e o Cabo no

braço esquerdo, com fratura exposta.

O elemento, após ferir os militares, foi fuzilado e morto por agentes que

participavam da diligência. O aparelho foi denunciado por um jovem de uns 20 anos

presumíveis que se encontrava preso na Vila Militar e sua identidade está sendo mantida

em sigilo.”

O jornal “O Estado de São Paulo”, de 21 de outubro, publicou que o morto

naquele tiroteio fora identificado como sargento José de Araújo Nóbrega, militante da

VPR e que o corpo fora reconhecido por seu irmão no IML, levando ao reconhecimento

após permanecer preso por 48 horas.

Em 6 de fevereiro de 1970, o “Diário da Noite” publicou que o DOPS São Paulo

esclarecera que o morto não era o sargento Nóbrega e sim “Jeremias Dezoicov”, como

estava escrito.

Na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o caso levou

mais de um ano para ser votado após o indeferimento apresentado pelo Relator Paulo

Gustavo Gonet Branco, em 18 de março de 1996, quando Suzana Lisbôa pediu vistas.

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A discussão que se estabeleceu fez com que, sob orientação do Presidente

Miguel Reale Júnior,fosse feito o primeiro dos muitos pedidos de vistas que se

sucederam nos trabalhos da Comissão.

Suzana Lisbôa apresentou seu relatório em 02 de outubro de 1997, do qual fez

parte o parecer do perito Celso Nenevê.

Luís Francisco Carvalho Filho que, não participara da primeira discussão,

também pediu vistas e, em dezembro, o caso foi finalmente votado.

Paulo Gustavo Gonet Branco votou pelo indeferimento por considerar que as

informações constantes dos autos levavam a crer que a morte de Eremias ocorrera em

função de tiroteio com as forças de segurança.

Reconheceu ataque maciço e o emprego de potente material de destruição, mas

concluiu não ser possível afirmar que a morte se dera quando os agentes dominavam,

sem resistência, o local.

Suzana Lisbôa questionou se estariam realmente os órgãos de segurança

confusos em relação à identidade do morto, conforme demonstram as muitas matérias

divulgadas na imprensa, ressaltando parecer impossível que a diferença de mais de 10

anos entre Eremias e o Sargento Nóbrega não tenha sido notada pelos legistas que

examinaram o corpo. E, ainda, que não tenham os órgãos de segurança providenciado a

retificação dos registros de óbito e tampouco possibilitado que o corpo fosse entregue à

família.

O parecer do perito Celso Nenevê, feito a pedido da Comissão de Familiares de

Mortos e Desaparecidos Políticos, analisa os laudos de perícia e de exame cadavérico

comparando-os com as fotos. Nenevê identificou ferimentos não descritos no laudo e se

deteve na análise dos ferimentos lácero-contusos, já que das 19 lesões produzidas por

projéteis de arma de fogo, nada pôde afirmar quanto à reação vital, em virtude da

qualidade e distância em que foram feitas as fotos.

Os peritos descrevem 29 impactos de projéteis nos diversos cômodos da

residência, mas estranhamente não verificaram ou não descreveram os disparos feitos no

interior para o exterior. Ressalta que a posição do corpo, pela foto, não é compatível

com sua posição de repouso final, nem tampouco é condizente com a mancha de sangue

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que aparece na parede. A descrição de tiros nas janelas e até o ponto de repouso final

dos fragmentos de vidro oriundos desses tiros permitem concluir que ali não houve

explosão capaz de causar as lesões descritas.

Pelos documentos apresentados, portanto, não foi possível ao perito entender a

dinâmica do ocorrido, pois se a explosão que mutilou o cérebro e grande parte do corpo

de Eremias não ocorreu na casa, mas teria lhe causado morte cerebral, isso o

impossibilitaria de efetuar qualquer disparo.

O perito concluiu que “a vítima apresenta contusões profundas com rupturas de

órgãos, dilacerações do tecido muscular e fragmentação de tecidos ósseos em diversas

regiões anatômicas do corpo, com características daquelas produzidas por onda de

choque, oriunda da detonação de artefato explosivo.

Dada ausência de fragmentos do invólucro ou de outros elementos componentes

deste artefato no interior do cômodo ou da residência, ou ainda no interior do corpo, é

indicativo que o artefato que gerou as lesões com sua explosão não seja do tipo

fragmentável, salientando-se que as granadas, quer do tipo ofensiva ou defensiva, salvo

melhor juízo, iriam gerar fragmentação.

Pelo descrito e, pelo que pode ser observado nas fotografias do local, a

residência em apreço não porta características que em seu interior tenha ocorrido uma

explosão, uma vez não ter sido verificado o quebramento das vidraças, ausência da

descrição de um epicentro dessa explosão no local ou danos no piso, paredes ou demais

estruturas, bem como a presença de fragmentos de terra no interior do pescoço da

vítima, muito provavelmente levados pela onda de choque, sendo que terra é um

elemento que não é comum no interior de uma residência.

Dada a grande intensidade das lesões que experimentou a vítima em função da

onda de choque é praticamente certo o estado de, no mínimo, morte cerebral na vítima,

o que após as suas produções impediram que ele apresentasse condições de ataque,

defesa ou fuga.

Isto posto e tendo acontecido as lesões pela onda de choque em primeiro lugar,

as quais mutilaram o cérebro e grande parte do corpo, seria praticamente impossível que

ele tivesse efetuado algum disparo e, conclui o perito, onde estas lesões se produziram,

já que a residência não foi este o local. E ainda, como foi ter naquele local após a

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explosão, estes são questionamentos que não puderam ser esclarecidos, pela falta de

elementos materiais no caso.”

Apontando a falsidade da versão oficial, a Conselheira Suzana Lisbôa respondeu

ao questionamento feito por Paulo Gustavo Gonet Branco, ressaltando que, segundo a

perícia, teriam sido disparados três tiros da arma encontrada junto a Eremias, e foram

três os policiais feridos.

Pergunta a Conselheira: “teria Eremias, com cada um dos tiros, cercado e sob

cerrado tiroteio, granada detonada na casa, conseguido a extrema proeza de acertar os

policiais, um na perna esquerda, outro na coxa esquerda e outro no braço esquerdo? E

mesmo que tivesse Eremias, mais do que exímio atirador, acertado os três policiais, o

que examina a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos são as

circunstâncias da morte dos militantes. A violência extrema que se evidencia nas fotos e

no laudo falam por si”, concluiu, ao pedir aprovação no requerimento.

O Conselheiro Luís Francisco Carvalho Filho acompanhou o voto de Suzana

Lisbôa ressaltando as evidências demonstradas pelo laudo de Nenevê e que: “Mesmo

admitindo, em tese, que o militante resistira armado ao cerco da Polícia Política, a prova

dos autos aponta para uma execução e não para imobilização e detenção do infrator,

como autoriza e autorizava a lei em vigor.”

Destacou que a versão oficial não merece credibilidade, pois os fatos não

aconteceram como relatados pelas autoridades militares. Agregou que: “A prova

material indica intenção nítida de eliminar e não de dominar e conter, ainda que em

virtude da alegada reação da vítima, capaz de atingir três agentes. O excesso é

inquestionável e injustificável.”

O caso foi finalmente deferido em 2 de dezembro de 1997, por quatro votos a

favor e dois contra, os do Relator Paulo Gustavo Gonet Branco e o do General Oswaldo

Pereira Gomes.

Os familiares de Eremias, ao receberem a indenização, doaram o valor para

criação do site www.desaparecidospoliticos.org.br, organizado pela Comissão de

Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. A Comissão passou a denominar o

acervo custodiado de Centro de Documentação Eremias Delizoicov.

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Seus companheiros da VPR homenagearam-no dando seu nome a um dos

campos de treinamento de guerrilha, no Vale do Ribeira, em São Paulo.

Essas informações foram retiradas do “Dossiê Mortos e Desaparecidos Políticos

no Brasil, de 1964 a 1985”, do IEVE.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – O senhor queria falar

antes de a gente começar os depoimentos? Que, embora hoje à noite a Mesa é muito

grande, tem muita gente para falar, talvez fosse interessante fazer a leitura desse

documento antes de começar.

A SRA. AMELINHA TELES – Eu queria dizer que agora está sendo

apresentado ali no power point dois documentos, o primeiro documento é a certidão de

óbito, quer dizer, aqui que começa a farsa da Ditadura, mais uma vez. Na certidão de

óbito coloca o nome de José Araújo de Nóbrega. Cronologicamente, esse é o primeiro

documento que é produzido pela Ditadura. A Ditadura não assume o assassinato, a

execução de Eremias Delizoicov e então coloca o nome de José Araújo de Nóbrega, que

é um militante da VPR, na época, e que é vivo até hoje, ele não foi morto. Quer dizer, a

farsa começa aí.

O Sr. Jorge Delizoicov, que é o pai do Eremias, e que muito lutou para que essa

memória hoje tivesse viva, hoje está aí no livro, hoje está na história deste País graças

muito a ele, à atuação dele, ele entra com uma ação na justiça para pedir a retificação do

atestado de óbito, porque na verdade a repressão já sabia que era o Eremias Delizoicov

que tinha sido morto e não o José Nóbrega. E aí vai conseguir essa certidão de óbito,

que é o segundo documento, está lá: Eremias Delizoicov, morto em 16 de outubro de

1969. Ele vai conseguir isso em 1993. Portanto, a família Delizoicov só consegue um

atestado de óbito que reconheça o assassinato, a morte do Eremias Delizoicov, 24 anos

depois do fato.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Ele é enterrado onde?

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A SRA. AMELINHA TELES – Ele é enterrado no Cemitério São Francisco

Xavier, lá no Rio de Janeiro e é enterrado com nome falso.

Em seguida, a própria Polícia descobre, a própria Polícia sabe da farsa, a Polícia

tem medo de apresentar aquele corpo como sendo do Eremias, porque era uma

desmoralização muito grande para a Ditadura apresentar aquilo para os jornalistas. Por

quê? Eremias era um rapaz de 18 anos, quer dizer, um adolescente de 18 anos, um

menino, não chegava nem ser um adulto, com o corpo crivado de balas, quer dizer, o

corpo dele virou uma peneira de tantas balas e a Ditadura montou um verdadeiro

aparato para matar um adolescente. Quer dizer, foi major, foi coronel, foi tenente, foi

sargento, todo mundo fazendo cerco lá na Vila Kosmos para matar um garoto. Eles não

tiveram coragem de dizer que era um garoto, então o José de Araújo Nóbrega, na época,

tinha 30 anos, então já era uma pessoa adulta. E todo mundo sabia que na escala da

VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) o primeiro chefe era o Carlos Lamarca, o

segundo era o Nóbrega. Então justificava ter tanto aparato repressivo militar ali fazendo

cerco ao Eremias.

O Sr. Jorge vai conseguir, como eu disse, a certidão de óbito 24 anos depois, não

está explicando aqui qual foi a causa mortis, porque explica o que não se explica. Aqui

tem um dizer, eles repetem os dizeres de 69, que a causa morte é ferimentos

transfixantes da cabeça com dilaceração do encéfalo. Por que acontece isso? Não

explica.

E tem outro detalhe que acho importante destacar aqui, é que o Sr. Jorge, a

família, a mãe e o Demétrio, a família nunca pôde sepultar o Eremias, nunca foi

entregue o corpo. Ele é um Desaparecido Político, embora tenha foto dele assassinado,

tem a foto no Dossiê, e tem uma certidão de óbito feita nesses termos, muito aquém da

realidade. Ele é um caso emblemático, porque nós temos mortos com corpos e uma

grande quantidade desses mortos foi entregue para os familiares. Nós temos

desaparecidos, aquela classificação Desaparecidos Políticos que jamais foram

sepultados. As famílias reclamam até hoje onde estão os desaparecidos, porque nunca se

deu essa resposta. Mas o caso do Eremias é igual ao do das famílias dos Desaparecidos

Políticos, porque o Eremias nunca foi sepultado.

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Quando o pai insistiu em buscar o corpo, eles falaram então que tinha sido

cremado, quer dizer, como que crema um corpo que, primeiro, era um nome, depois é

outro nome? Isso tudo está tramitando na justiça, naquele período, porque ele está

pedindo uma certidão de óbito, ele quer uma certidão de óbito do filho. E ele demora 24

anos para obter uma certidão de óbito.

Então esses dois documentos são integrados a essa audiência, a esse caso

Eremias Delizoicov para a Comissão da Verdade do Estado e também para a Comissão

Nacional da Verdade, que deve receber essa documentação.

A SRA. THAÍS BARRETO – Boa tarde a todos, meu nome é Thaís Barreto. Eu

vou ler aqui um documento enviado por José Araújo de Nóbrega à Comissão para essa

audiência.

“Um pouco da história do jovem Eremias Delizoicov. Era o mês de março de

1969, haviam já passados cinco anos da instalação da Ditadura Militar e nenhuma

perspectiva de se vislumbrar para o futuro. Os partidos haviam sido extintos por força

de ato institucional, a classe política, a classe estudantil e a intelectualidade aspiravam

alguma abertura política que propiciasse a participação nos destinos do País. Mas nada

de nada, somente mortes e torturas, repressão e arbitrariedade. O País estava sem

representação política.

Meu nome é José Araújo de Nóbrega. Até janeiro de 1969 servi ao Quartel do

Exército de São Paulo, havia estado à disposição da Polícia Federal, porém, por opção,

estava participando clandestinamente e ativamente na luta contra a Ditadura Militar

desde 1964. Fazia parte da organização denominada Vanguarda Popular

Revolucionária, a VPR.

Naquele mês de janeiro de 1969, por ocasião da deserção do Capitão Carlos

Lamarca do 4º Regimento de Infantaria, nossas identidades foram reveladas e tivemos

que passar para a mais dura e absoluta clandestinidade. Desde o mês de fevereiro

tivemos as primeiras baixas, a primeira vítima foi o jovem Hamilton, na Gráfica

Urupês. A partir de então, a maioria dos nossos mais experientes quadros

revolucionários começaram a ser presos. Alguns de nós, os que restaram e os mais

experientes, tivemos a incumbência de reorganizar a VPR. E foi nessa época, no mês de

14

março de 1969, que conheci o jovem Eremias Delizoicov, entre outros, que também

vieram a dar a vida na luta contra a Ditadura.

Ele fazia parte de um grupo de estudantes secundaristas, o qual também

pertencia o jovem Celso Lungaretti. Os primeiros contatos que tive com Eremias, esse

se mostrava, apesar da idade, com muito bom nível de conhecimento político e disposto

a lutar contra a Ditadura. Entre esses jovens se destacaram também Gerson Theodoro de

Oliveira e Carlos Roberto Zanirato.

Quero dizer que me foi dada a incumbência de formar um Grupo de Combate,

CG, com esses quatro jovens, inexperientes na tarefa que nos propúnhamos. Desse

grupo fazia parte a então jovem Tereza Ângelo, companheira de Gerson Theodoro.

Na ocasião eu tinha 31 anos de idade, era militar há 13 anos e tinha experiência

em várias ações armadas na luta contra a Ditadura e, por isso, fui obrigado a transmitir,

como da noite para o dia, experiência militar e luta clandestina. Fizemos juntos algumas

ações armadas com bastante êxito. Na verdade era muito difícil compactuar a

inexperiência com a forma afoita dos jovens.

Primeiramente levei para morar comigo o jovem Zanirato, em Santo André.

Passado algum tempo verifique que Zanirato havia marcado com os pais para vê-los.

Tivemos que montar um esquema de segurança bastante complexo para que ele o

fizesse com segurança.

Certo dia, sem nosso conhecimento, Zanirato marcou um encontro com sua

namorada e esta, no salão de cabeleireiro, alardeou que iria encontrar o namorado. A

esposa de um militar que a conhecia denunciou o fato e essa atitude veio a custar a vida

de Zanirato.

Alguns dias antes ou naquele período, Eremias Delizoicov foi mais prudente e

me disse que queria ver seu pai, que me parece possuía loja de calçados na Mooca. Eu

lhe disse que faríamos isso juntos, somente eu e ele, sem ninguém mais saber. E fomos

juntos de improviso e na incerteza. Felizmente correu tudo bem.

Passado aquele período que foram seguidos da prisão e morte de Zanirato, fomos

deslocados para o Rio de Janeiro. Lá pelo mês de agosto me foi novamente dada a tarefa

de formar um novo grupo de combate, CG, no Rio de Janeiro. Ali foram designados os

15

companheiros Gerson Theodoro, Tereza Ângelo, Eremias Delizoicov e Sônia Lafoz.

Fomos incumbidos de algumas tarefas de cunho militar com resultados positivos. Eu,

Eremias e Sônia Lafoz passamos a morar juntos numa casa alugada, na Rua Toropi, nº

59, Vila Kosmos, no Rio de Janeiro.

Eremias era um jovem bem educado e comecei a me afeiçoar a ele. Senti que

tinha um filho para cuidar, mas no mês de outubro de 1969 fui designado para compor a

segurança de um congresso de grande importância para a luta contra a Ditadura, tratava-

se da coalizão da Colina e VPR, na verdade esse congresso terminou pior de quando

começou e foi abortado.

Quando regressava a minha casa, onde residia com Eremias, verifiquei um

enorme aparato militar. Logo tive certeza de que passara algo. Como havia entrado no

grande cerco feito no bairro tive que sair dirigindo meu carro em alta velocidade, sendo

perseguido, mas logrei escapar ileso.

À noite, pelo noticiário, foi dada a notícia de minha morte ao invés de Eremias,

isso porque os documentos pessoais que se encontravam na casa eram meus e Eremias

tinha o mesmo porte físico meu. Ele havia reagido à investida dos militares do Exército

e fora morto com grande quantidade de tiros, ficando quase que impossível seu

reconhecimento facial.

Meu irmão Francisco, quando chamado a conhecer o corpo chegou a confundir-

se com o meu. Por essa razão, Eremias foi enterrado com meu nome no Cemitério do

Caju, no Rio de Janeiro.

Eremias Delizoicov, Carlos Alberto Zanirato e Gerson Theodoro de Oliveira,

entre outros, foram jovens destemidos que não hesitaram em dar suas vidas em prol da

liberdade contra a Ditadura Militar, eles devem ser vistos como exemplos e como

heróis.

José Araújo de Nóbrega”.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Vamos começar. Faz a

leitura dos votos.

16

O SR. RICARDO KOBAYASHI – Boa tarde a todos e todas. Meu nome é

Ricardo Kobayashi, vou ler voto do Luís Francisco Carvalho Filho.

Voto: Solicitei vista dos autos após o voto do ilustre Relator Paulo Gustavo

Gonet Branco pelo indeferimento do pedido dos familiares de Eremias Delizoicov e de

Suzana Lisbôa, favorável ao reconhecimento. Entendo que estão preenchidos os

requisitos legais, mesmo admitindo, em tese, que o militante resistiu armado ao cerco da

Polícia Política. A imprensa da época relata que três agentes militares foram feridos

levemente (Fls. 89).

A prova dos autos aponta para uma execução, não para imobilização e detenção

do infrator, como autoriza e autorizava a lei em vigor. Com efeito, a relação de

ferimentos sofridos pela vítima é impressionante. Entre outras lesões constatadas, os

peritos se utilizaram de todo alfabeto de A a Z, para identificação dos orifícios de

entrada e de saída dos projéteis de armas de fogo. Sendo insuficiente o número de letras,

os peritos iniciaram uma nova série de A a F, com acréscimo do símbolo linha e,

possivelmente, para facilitar o trabalho, passaram a identificar os orifícios de forma

agrupada, assim três orifícios de saída estão identificados pela letra E. Em síntese, são

19 lesões de entrada, 14 de saída, tendo sido localizados 5 projéteis num exame interno

do cadáver.

Os peritos que estiveram no local citam pelo menos 29 impactos de disparo de

arma de fogo nas paredes do cômodo. Por outro lado, a vítima apresentava contusões

profundas que, pelas suas características, o perito Celso Nenevê afirma terem sido

produzidas por onda de choque, oriunda da detonação de artefato explosivo.

A versão oficial afirma que, quando se aproximaram do aparelho, os agentes

militares lançaram uma granada no interior da casa para obrigar os que lá estivessem a

sair.

Após a explosão, os policiais entraram na casa e foram feridos, sendo que então

o elemento foi fuzilado. O excesso, portanto, já consta do próprio noticiário da época.

Autoridade militar que presidiu o respectivo IPM e formulou quesitos aos peritos

de local faz expressa referência a “Ferimentos provocados por estilhaços de granada.”

17

Admitindo como verdadeira a versão descrita pela imprensa, a vítima já estaria

mortalmente atingida quando da entrada dos agentes no recinto, tornando-se

desnecessário, inútil mesmo, o fuzilamento que se seguiu. Contudo, estranhamente, não

foram encontrados ou descritos pelos peritos vestígios de explosão no interior da

residência. A explosão que causou os ferimentos deixaria, obviamente, vestígios, o que

é confirmado pela informação técnica de Celso Nenevê.

Por outro lado, nas partes dilaceradas do cadáver foram encontrados vestígios de

terra, o que também é descrito diante da informação de que a explosão teria ocorrido no

interior da residência.

Celso Nenevê esclarece: ainda que, pelo exame da fotografia, a posição do

cadáver não é compatível com sua posição de repouso final, o fato é que não se sabe

como ocorreram as lesões decorrentes da explosão nem se antecederam o fuzilamento.

Outra circunstância em princípio desfavorável à versão oficial difundida na

época, a nota militar informava apreensão de grande quantidade de armamento,

munição, bombas caseiras, etc., mas nada foi registrado, além do revólver encontrado ao

lado do cadáver, pelos peritos que realizaram o levantamento de local.

Registra-se, finalmente, que a verdadeira identidade da vítima permaneceu

oculta durante anos. O cadáver foi identificado como José Araújo de Nóbrega, outro

militante procedente das Forças Armadas e ligado a Lamarca. O nome da vítima poderia

estar, portanto, integrando a lista dos desaparecidos, sendo que as evidências indicam

que os agentes da repressão tinham conhecimento da verdadeira identidade do morto.

Por todo exposto, verifica-se que a versão oficial não merece credibilidade. Os

fatos não aconteceram da maneira como foram relatados pelas autoridades militares. A

prova material indica uma intenção nítida de eliminar, não de dominar e conter, ainda

que em virtude da alegada reação armada da vítima, capaz de atingir três agentes. O

excesso é inquestionável e injustificável, a autoridade não pode optar entre a eliminação

e a detenção do infrator.

Por esse motivo, acompanho o voto de Suzana Lisbôa, pelo reconhecimento do

nome de Eremias Delizoicov para fins da Lei 9140/1995.

Luís Francisco Carvalho Filho.

18

VIVIAN MENDES – Agora, por último, sou Vivian Mendes, da Comissão da

Verdade do Estado de São Paulo e vou ler o voto da Suzana Lisbôa, também sobre o

caso do Eremias, na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

O requerimento apresentado pelos pais Jorge e Liubov Delizoicov, que pedem a

inclusão do nome do filho no anexo 1, da Lei 9140 e a entrega do corpo ou a

confirmação de que seus restos mortais foram cremados, o que a Comissão Especial

tratará oportunamente.

O processo de Eremias Delizoicov foi relatado pelo Dr. Paulo Gonet que negou

pedido considerando que: “As informações constantes dos autos conduzem a crer que a

morte de Eremias ocorreu durante tiroteio com forças de segurança, exceto que se fale

em ataque maciço dos agentes de segurança com emprego de potente material de

destruição.

Não se pode, todavia, afirmar que o falecimento se deu quando os agentes

estatais dominavam, sem resistência, o local, mantendo detido sob controle insuscetível

de desafio. Hipótese que, se positivada, permitiria falar da dependência policial por

assemelhação, nos termos do art. 4º e 1b da Lei 9140/95.

A circunstância de ter havido resposta ao ataque das forças de segurança

impedem que se veja presente aqui o pressuposto previsto na lei de 1995, para que a

morte nela se enquadre.”

Em agosto de 1996, após meu pedido de vistas, o processo foi enviado ao perito

Celso Nenevê para elaboração de laudo que acompanha o presente relatório. Examino

anteriormente outros documentos anexados e o histórico do caso.

A morte de Eremias, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR),

descrita no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos, às Fls. 63 a 66, deu-se em 16

de outubro de 69, na Rua Tocopi, 59, Vila Kosmos, Rio de Janeiro, tendo sido enterrado

com o nome de José de Araújo Nóbrega, também militante da VPR e vivo até hoje.

A versão oficial dos órgãos de segurança, publicada pela imprensa, informou

que: “Um morto e três feridos foi o saldo trágico de uma diligência feita pelas

autoridades da Polícia do Exército da Vila Militar no Bairro da Vila Kosmos, na Zona

19

Norte, visando deter um grupo de subversivos que se homiziava num aparelho

descoberto pela Polícia.

Agentes da Polícia do Exército, comandados pelo major Lacerda, quando

chegaram próximos ao aparelho ,jogaram uma granada dentro da casa para obrigar os

que lá estivessem a sair e a se entregarem.

Após a explosão, quando o Comandante Lacerda entrou no imóvel acompanhado

do Capitão Ailton Guimarães e do Cabo Povoleri foram baleados, o Major foi ferido na

perna esquerda, o Capitão na coxa esquerda e o Cabo no braço esquerdo, com fratura

exposta. O elemento, após ferir os militares foi fuzilado e morto por agentes que

participavam da diligência.

O aparelho foi denunciado por um jovem de uns 20 anos, presumíveis, que se

encontrava preso na Vila Militar e sua identidade está sendo mantida em sigilo. Diário

da Noite, Fls. 90 e 91.”

Quatro dias depois, o jornal de “O Estado de São Paulo”, de 21 de outubro,

publicou: “O terrorista morto em tiroteio, quinta-feira passada, com a Polícia do

Exército, na Vila Cosmos, no Rio, foi identificado ontem pelo seu irmão, no IML, como

sendo José de Araújo Nóbrega. Francisco de Araújo Nóbrega foi preso logo que chegou

à Guanabara para identificar o corpo do irmão. O corpo deverá ser sepultado, ainda

hoje, na Guanabara, já que as autoridades militares não permitiram o traslado para São

Paulo, como era intenção de seu irmão.”

Eremias foi então identificado e enterrado como José de Araújo Nóbrega.

Francisco foi levado ao reconhecimento após permanecer preso por 48 horas.

Informou o “Jornal da Tarde”, em 20 de outubro, conforme reportagem da

revista “ISTO É”, de 7 de novembro de 1990, às Fls. 77 a 80: “A Polícia acha que esse

terrorista morto é o Sargento José de Araújo Nóbrega, membro da cúpula da

organização dirigida por Carlos Lamarca, que também estaria lá e teria conseguido fugir

em um Galaxie azul.”

Conforme declarou Nóbrega, que era considerado braço direito de Lamarca, na

mesma reportagem: “A Polícia achou que o Lamarca estaria na casa, mas ele não estava

nem eu. O Lamarca estava em uma reunião em Teresópolis, no Rio de Janeiro.”

20

Apesar de não haver registros oficiais, é de se supor o porte do cerco montado

pelos órgãos de segurança, que pensavam estar cercando o legendário Capitão Lamarca

e seu lugar-tenente.

O “Diário do Norte”, de 6 de janeiro de 1970, afirmou: “O ex-sargento José de

Araújo Nóbrega, considerado elemento de confiança do ex-Capitão Carlos Lamarca não

foi morto no tiroteio para estourar o aparelho da Rua Tocopi, 59, na Vila Kosmos, em

outubro do ano passado, quando soldados da Polícia do Exército, recebendo denúncia

de um subversivo preso, foi procurar o ex-Capitão Lamarca.

A informação é das autoridades de segurança da Guanabara, baseando-se em

dados concretos, fornecidos pelo DOPS de São Paulo, que examinou as fichas

datiloscópicas do homem morto naquele tiroteio. O subversivo morto pelo Exército,

naquela ocasião, foi Jeremias Dezoicov (escrito errado).”

E mais adiante acrescentou: “O corpo do morto foi removido pelo IML, onde

Francisco Nóbrega, mesmo sem olhar para o rosto do cadáver, identificou como sendo

seu irmão José. Na ocasião Francisco estava muito nervoso e as autoridades aceitaram o

rápido reconhecimento do corpo e providenciaram o sepultamento.”

Estariam realmente os órgãos de segurança confusos em relação à identidade do

morto? Ou seria uma estratégia para causar um golpe na VPR, informando da morte de

Nóbrega? Ou, ainda, seria um ardil para que ele baixasse a guarda e andasse mais

livremente, podendo ser mais facilmente capturado? Por que o reconhecimento forçado

ao irmão, preso que estava há dois dias? Difícil responder, mas mais difícil ainda é

constatar que os legistas, em laudo de 22 páginas e, ainda mais, os órgãos de segurança,

pudessem confundir um jovem loiro, de 18 anos, com um homem adulto, militar, de 30

anos, que teria, segundo o laudo: “cabelos castanhos escuros, deixando ver vestígios de

tintura para colorir artificialmente os cabelos de louro.”

Mesmo exame de um corpo mutilado não justificaria uma confusão tão grande,

capaz de encobrir uma diferença de idade de mais de 10 anos, sem se falar nas

impressões digitais.

Eremias estava na clandestinidade desde junho de 1969, conforme relato do

Dossiê dos Mortos e Desaparecidos e a reportagem referida na revista “ISTO É”, seu

pai foi detido por duas vezes no QG do 2º Exército para prestar depoimento.

21

Por que então, somente no início de 1970, o pai foi convocado ao DOPS São

Paulo pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury para ser informado da morte do filho, se já

desde 11 de dezembro, conforme documento encontrado no arquivo do DOPS, os

órgãos de segurança já distribuíam a informação de identificação de Eremias? E se o

haviam identificado em 11 de dezembro, por que somente em 6 janeiro divulgavam a

verdadeira identidade do morto? Por que não procederam a retificação dos registros de

óbito, só obtida pela família através de ação judicial, em 1993, após passarem 24 anos

convivendo com a incerteza da morte, a inexistência para sempre dos restos mortais do

filho? Por que não entregaram ao pai o corpo identificado de Eremias, sepultado como

José de Araújo Nóbrega, em cova rasa, no Cemitério São Francisco Xavier, em 1975,

recolhido ao ossário geral para ser incinerado, “como era de praxe?”

Tivesse a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, previsto à Lei

9140, certamente o nome de Eremias Delizoicov continuaria a constar na lista dos

Desaparecidos Políticos, morto que foi com atestado de óbito em outro nome e sem seu

corpo ter sido entregue, estando desaparecido até hoje.

A morte, segundo o óbito, deu-se às 10h30 da manhã. Por que então, segundo o

mesmo óbito, o corpo somente deu entrada no IML às 18h00? Onde permaneceu

durante essas longas oito horas?

Passemos à leitura do laudo. Provado está pelo laudo do perito que a versão

oficial para a morte de Eremias é falsa, não foi na Rua Tocopi que o explodiram, não foi

com aquela camisa que o explodiram. É evidente a arrumação e o arranjo da posição do

corpo para as fotos. Houve sim a intenção de mutilar, de matar e, houve ainda, a

intenção deliberada de, ao ser comprovada a identidade, manter o registro de óbito sob

nome falso, impedindo aos familiares o acesso ao corpo.

Não foi possível saber-se a ordem dos fatos, nem tampouco comprovar se

realmente Eremias enfrentou os policiais, como disse uma vizinha aos pais, em 75,

informando que tiros vinham também de dentro da casa. Teriam sido disparados,

segundo o relatório da perícia, três tiros de arma, encontrada junto ao seu corpo, mas os

mesmos peritos não conseguem responder quem disparou.

Teria Eremias, com cada um dos tiros, cercado e sob cerrado tiroteio conseguido

a extrema proeza de acertar os policiais citados, um na perna esquerda, outro na coxa

22

esquerda e outro no braço esquerdo? E por que não mencionaram, os peritos, os tiros

dados do interior para o exterior da casa? Porque não havia, porque não puderam

determinar, afirmam: “A arma encontrada junto ao cadáver apresentava indícios de ter

sido disparada por três vezes, não se tendo elementos técnicos para determinar o autor

dos mesmos.”

E mesmo que tivesse Eremias disparado os três tiros e, mais do que um exímio

atirador, acertado os três policiais, o que se examina nessa Comissão Especial são as

circunstâncias em que ocorreu a sua morte. Quem pode garantir que o sangue gotejado

em direção à calçada, a que se referem os peritos, não seria do próprio Eremias, retirado

que foi do local talvez já ferido para ser novamente ali colocado para ser fotografado

depois de ter sido explodido e morto? E se não foi na Rua Tocopi que ocorreu a

explosão que lhe dilacerou o corpo, onde terá sido? E qual explosivo exatamente

provocou a mutilação, se não foram constatados vestígios de granada? A violência

extrema que se evidencia nas fotos e no laudo fala por si. Os próprios peritos, acuados

ao que parece, registram que a cena fora modificada, a casa intacta fala por si. Talvez o

espaço de 8 horas entre o alegado horário da morte e entrada no IML traga em si a

explicação que se busca, como em tantos casos já examinados por esta Comissão

Especial.

Voto: voto pela inclusão do nome de Eremias Delizoicov dentre os beneficiários

da Lei 9140/95, devendo seus pais serem notificados do fato para, se assim o desejarem,

requererem a indenização devida.

Suzana Keniger Lisbôa, Comissão Especial, em 2 de outubro de 1995.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Vamos começar.

Demétrio, vocês são de origem bessarabiana, né?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Isso, meus avós são bessarabianos.

23

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – A sua mãe veio do

Uruguai.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Minha mãe não tinha um ano ainda

quando meus avós imigraram para cá. Ela nasceu, portanto, na Europa.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Ela nasceu na Europa?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim e meu pai também. Meu pai era um

pouco mais velho, chegou no Brasil creio que com quatro anos.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Mas os dois são

bessarabianos?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Os dois se naturalizaram brasileiros,

mas nasceram na Bessarábia. Bessarábia hoje é atual Moldávia, o sul da Ucrânia.

Documento de imigração deles na época, o espaço geográfico onde viviam estava sob o

domínio da Romania. Então, do ponto de vista oficial, a documentação diz que eles são

romenos, mas não pertence à cultura romena, não fala a língua romena, enfim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – E os dois moravam na

Mooca?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim. Sempre moraram na Mooca.

24

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Numa comunidade

bessarabiana lá na Mooca, né?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Numa comunidade grande de

bessarabianos da Mooca, nos bairros próximos também.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Vila Zelina também tinha

bessarabianos?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Mais lituanos, mas também alguns

bessarabianos.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – O Eremias, Demétrio,

você também estudava no M.M.D.C. lá embaixo, não é, os dois?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim, o M.M.D.C., em relação ao prédio

onde existe hoje a escola, aquele é o terceiro prédio. Inicialmente o M.M.D.C. começou

onde hoje é o Colégio Pandia Calógeras, na época, como ainda é hoje, segmento de 1ª a

4ª Séries, atual ensino fundamental, na época era o primário. E o chamado ginásio, ele

foi instituído no M.M.D.C. nesse período e o Pandia Calógera então emprestava o

prédio.

Alguns anos depois, creio que já em 1964 talvez 1965, mudou para outro prédio,

hoje é uma outra escola e, atualmente em uma rua que não me lembro o nome, ali na

Mooca também, o prédio definitivo.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Demétrio, você viu essa

reportagem de “O Globo”, que fala da repressão ao jogo do bicho, do dia 6/10/2013?

25

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Não vi essa reportagem.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Olha aqui.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Ah sim, reconheço aqui pela fotografia e

pelo nome um dos militares, estou vendo aqui a fotografia do meio, chamado Capitão

Guimarães, é uma das pessoas que a imprensa, inclusive toda documentação diz, que

participou do assassinato do Eremias, né?

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Marco Antônio Povoleri?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Esse eu não saberia confirmar, há nos

autos escrito, mas o Capitão Guimarães era o mais conhecido e inclusive em várias

matérias, reportagens, já anunciavam o Capitão Guimarães, né? E hoje é um pessoal que

está envolvido com a contravenção.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT (Fora do microfone) –

Com o crime, né?

A SRA. AMELINHA TELES – Eles estão envolvidos com o crime mesmo,

inclusive nessa matéria tem uma pessoa que desapareceu em Niterói pelo Povoleri e

pelo Guimarães.

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O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – O Guimarães foi bastante conhecido

nesse período e, mesmo posteriormente, porque várias reportagens o associavam

também ao jogo do bicho e contrabando também.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – O Nóbrega fala nessa

carta que ele mandou para a gente que não estava na casa, ele estava fazendo a

segurança do famoso congresso entre a VPR e a COLINA, que estava ocorrendo

inclusive fora do Município do Rio de Janeiro. Mas nas descrições, diz que um jovem

que estava sendo torturado, abriu a casa que o Eremias estava. Você pode dizer quem

foi esse jovem que abriu a casa lá do Eremias?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Tem uma história muito comprida para

que a gente saiba disso. Essa história primeiramente foi obtida quando meus pais, nos

anos de 1975 ou 1976, no calvário de melhor esclarecer a morte e desaparecimento,

fizeram a trajetória toda de São Paulo até o Rio, onde o Eremias viveu. E localizaram,

como está escrito em alguns dos documentos, localizaram a vizinha da casa onde o

Eremias foi morto. Ela já não morava naquela casa, mas através de informações meus

pais localizaram. E esse dado que haveria um jovem ensanguentado numa viatura, foi a

primeira vez que nós soubemos, foi por essa informação da vizinha, que haveria alguém

então que estaria apontando a casa. O que supusemos, um companheiro que, preso, sob

tortura precisou fazer isso.

Dez anos depois o Sargento Nóbrega já retorna do exílio e contata meus pais.

Foi uma situação muito interessante, muito emocionante, boa parte disso que está

escrito no depoimento ele relatou para meus pais. Essa história que ele teria levado meu

irmão para ter um encontro com meu pai foi um encontro, mas um encontro que meu

pai nunca soube, foi um encontro que na verdade foi simplesmente para meu irmão ver

meu pai.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Como é que é?

27

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Um encontro para que meu irmão

pudesse ver meu pai, na verdade não houve uma conversa entre eles. O Eremias já

estava clandestino, ainda em São Paulo, já morando com o Nóbrega. Esse é o relato do

Nóbrega, em 1985, quando procura minha família para relatar, enfim, a situação toda, e

ele descreve isso, que esse episódio no qual ele se refere aqui, que o Eremias estava com

muitas saudades e que então os dois, o Eremias deitado no carro, escondido, para ver

meu pai.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Quando, Demétrio?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Isso o Nóbrega informa para a gente em

1985. Ele volta do exílio um pouco antes...

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Mas quando ocorreu esse

fato?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Entre março, quando o Eremias se

despede de casa e outubro, quer dizer, até a data da morte. Penso que isso deva ter

ocorrido entre março e junho, porque em junho eu ainda encontrava com Eremias em

São Paulo.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Efetivamente ocorreu

esse encontro ou furou alguma coisa?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Nós não sabíamos, e o que o Nóbrega

informa para meu pai é que ele levou o Eremias para ver meu pai, mas de longe, não

houve encontro entre os dois. Pelo menos meu pai não relatou isso.

28

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Aqui em São Paulo?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Foi em São Paulo. Por esse motivo que,

em 1985, no retorno do Nóbrega do exílio, da Europa, da Suécia, ele encontra meus

pais, ele sabia o local por conta disso, a informação é que ele procura na lista telefônica,

liga para o telefone e a pessoa com quem ele fala já não era mais, era outro parente que

informou onde é que meus pais estavam morando. Então é um pouco essa história.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Não sei se você pode

responder, quem abriu o aparelho lá do Eremias? Foi o Nóbrega? Estava fora da cidade?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – A história toda do Nóbrega que reportei

é exatamente para dar essa resposta. O Nóbrega informa naquela reunião que teve em

1985 com meus pais, eu estava presente, que a pessoa que teria informado o local teria

sido o Carlos Minc.

Conheci o Carlos Minc fora do Brasil, ele estava exilado. Nesse período onde eu

o encontrei, eu trabalhava na África, na Guiné-Bissau e Carlos Minc, junto com uma

equipe de Portugal que estava pensando como ocorreria a reforma agrária em Portugal,

se deslocou para a Guiné-Bissau provavelmente para uma missão, uma missão junto

com os portugueses, e o recebi na minha casa na Guiné-Bissau. Eu era um cooperante,

minha esposa e eu éramos um cooperante a serviço de uma instituição francesa que

formava professores, e conhecemos o Carlos Minc naquela ocasião, isso em 1980. E

sabíamos que Carlos Minc era um exilado e relatei o caso.

O Carlos Minc, uma pessoa de personalidade muito interessante, muito

simpática. Relatei o caso e ele comentou comigo: “Demétrio, aquele período nós

fazíamos tantos erros que isso pode ter acontecido mesmo, mas não lembro o caso”. Ele

não teve coragem de me relatar, eu compreendo isso.

29

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Demétrio, começa então a

recuperar o clima da época.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Tem tantas, qual delas?

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Porque o grupo que o

Nóbrega se refere aqui...

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Eram jovens.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – ...o Gerson,...

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Conheci o Gerson.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – ...o Zanirato.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – O Zanirato não conheci pessoalmente.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Tereza, a companheira do

Gerson.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – A Tereza eu conheci também.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Tinha o Edmauro.

30

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Edmauro também, sim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Lá do Tatuapé.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Então fala um pouco do

clima da época, diz que o Eremias era diferenciado, né?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Esportista. Como é que

eles foram parar lá na greve de Osasco? Eles conheceram o pessoal do 4º RI? Vamos

começar a lembrar tudo isso dessa geração fantástica. O Eremias participou da

colocação da gravação da Rádio Nacional, da gravação do Marighella? Lembra aquela

que foi ao ar?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Vai lembrando.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Não teria informação precisa se ele

esteve presente ou não, eu ouvi histórias que isso teria ocorrido.

31

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Você ouviu a gravação,

né?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Ouvi a gravação, eu não tenho dados se

ele esteve presente nessa ação, há informações que sim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – A repressão informou que

ele foi um dos que participou da ação na época, lembra?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Então fala o que você

quiser, agora a palavra é sua.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Rapidamente, quer dizer, vivíamos

então o período em que você está se referindo, 1966, 1967, três anos depois do golpe

militar. E no golpe militar Eremias tinha 13 anos, nasceu em 51, mas já desde os anos

1960 ele gostava muito de música e já estava estudando violão clássico.

Eu o acompanhava muito, estudávamos juntos no mesmo conservatório e, avalio

hoje, na época já sentia isso, mas hoje avalio que ele tinha uma habilidade para tocar

instrumento muito grande, então tocava muito bem violão clássico, mas também

popular. E por conta disso, então eu relato um pouco em uma das biografias que escrevi,

ele começa a se organizar junto com outros colegas e adepto mais da música popular

brasileira do que outras. Esse período havia uma influência bastante grande também de

música americana, então ele se dizia muito nacionalista, enfim. Nas horas vagas se

dedicava também ao esporte, como foi dito aqui, e à música.

Em 1966, já pré-adolescente, as meninas gostavam muito dele, não é por ser

meu irmão, mas era tido como bastante namorador. Então, com essas habilidades todas:

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exímio tocador de violão, cantava, enfim, junto com os colegas da escola, no M.M.D.C.,

começa a se sensibilizar pelas questões nacionais através de leituras, como foi dito aqui,

leu Josué de Castro, gostava muito de poesia. Tanto é que um dos nomes que ele adotou

enquanto militante, não clandestino, mas como se dizia na época, 1966, 1967, “nome de

guerra”, ele adotou o nome de Augusto, em homenagem a Augusto dos Anjos, porque

ele se sensibilizou muito com as poesias do Augusto dos Anjos.

Organiza-se então com um grupo de colegas, esse que você se referiu, da Zona

Leste, se organizam para militar no movimento estudantil, onde naquele período havia

toda a bandeira de luta, tanto dos estudantes secundaristas como universitários, eram

contra o acordo MEC-USAID. E se organizam então em grupos de tal forma a levar

uma chapa para a União Paulista de Estudantes Secundaristas e União Brasileira. Mas já

havia um contato muito grande com o movimento estudantil, uma articulação tanto com

estudantes universitários quanto com outros estágios. Nesse período eu já frequentava

universidade, enfim, há toda uma trajetória de formação política.

Quando o Nóbrega diz que ele era jovem, mas com formação política, é porque

desde os 16 anos ele já se debruçava sobre textos que procuravam aprofundar alguns

aspectos de formação política.

Daí para a opção pela luta armada, enfim, ocorre por uma série de

circunstâncias, uma cisão, digamos assim, na compreensão do que estava ocorrendo no

movimento estudantil, já em 1968, próximo do AI-5.

Em 1969, o aumento da repressão, então esse grupo originário da Zona Leste se

afasta cada vez mais daquele grupo que pretendeu um dia coordenar a UBES e a UBES,

então começam então a pensar em ações um pouco mais não só de massa, mas como

eles chamavam, ações armadas e daí os primeiros contatos com a VPR. Isso já estamos

em março. Então a trajetória de militância política dele inicia em 1966, no M.M.D.C.,

continua no movimento estudantil até 68.

Em 1968 há o contato inclusive com as greves de Osasco e aí então começar a

dar uma outra visão do tipo de atuação política que esse grupo poderia ter para além do

movimento estudantil. Acredito é que essa trajetória que o faz cada vez mais se

envolver com uma atuação política para além do movimento estudantil.

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Nesse momento eu também militava no movimento estudantil, conheci vários

desses colegas, alguns já estão mortos. Por opção também, ou por não opção talvez,

preferi não me engajar nesse mesmo grupo.

Eu lembro até hoje, quando meu irmão conversa comigo e diz que pretendia

fazer isso, falei: olha, acho que não tenho a coragem que você tem de fazer isso. Ele

falou assim: “você fica e cuida dos velhos”, ele falou assim mesmo para mim: “eu vou”.

E foi.

Penso que, um aspecto que queria destacar com o surgimento da Comissão da

Verdade é o papel que ela pode ter no resgate de muito do que ocorreu durante o

período da Ditadura Militar, particularmente da repressão, mas também o que ela pode

contribuir em alguns aspectos particulares de Mortos e Desaparecidos Políticos que a

família não conseguiu. Eu acho que esse é um papel importante que a Comissão pode

ter.

Quer dizer, todo trabalho de cerca de 25 anos, trajetória dos meus pais para

elucidar o desaparecimento e a morte do Eremias culminou com o que foi parcialmente

relatado aqui, a oficialização da morte, a emissão do atestado de óbito.

Quer dizer, a inserção dos meus pais como, o nome é beneficiário, não sei se

foram beneficiados, mas de qualquer forma, como contemplados com a lei de Mortos e

Desaparecidos Políticos, Lei 9140/95. Mas há algo que eles não conseguiram fazer, e

que me parece que a Comissão poderia, pelos meios legais e políticos, talvez conseguir

o que eles não conseguiram, que tem a ver com dois pontos, me parece que um deles é o

primeiro objetivo da Comissão, que é superar alegação oficial das atrocidades

cometidas.

O atestado de óbito que meus pais conseguiram em 1993, 24 anos depois do

assassinato dele, não faz nenhuma menção, aliás, da verdadeira selvageria, podemos

dizer assim, que a repressão cometeu. Ainda que restam dúvidas quanto ao que de fato

aconteceu no episódio, como aqui foi relatado, não há dúvida da materialidade, da

objetividade quanto às 19 perfurações. Isso não está registrado no atestado de óbito, o

que está registrado que é “ferimentos transfixantes da cabeça com dilaceração do

encéfalo”. Há ausência aqui na certidão de óbito, não há nenhuma referência quanto às

19 perfurações.

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Penso que isso é algo que é algo que eu reivindicaria, se possível, que a

Comissão resgatasse isso, que é o objetivo dela, superar a negação oficial das

atrocidades. É pouco provável que isso não seja julgado como uma atrocidade. Eu julgo

uma selvageria. Havendo ou não necessidade de enfrentamento, como diz a repressão,

não se justifica esse nível, essa quantidade de tiros. Isso está dito aí pelos peritos.

Esse é um ponto que eu acho que meus pais, minha mãe, meu pai faleceu em

novembro de 2010, e nunca abandonou esse propósito de esclarecer totalmente o que

aconteceu dentro das possibilidades, sobretudo legais.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Por quantos anos, depois

a gente volta. Viu, Renan, o atestado de óbito é de São Cristóvão, é do Rio, vamos ver

como vamos resolver isso aqui com aquele negócio dos assentos. Aqui em São Paulo já

foi acertado que vai mudar.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Há um carimbo aqui do Cartório da

Mooca.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – É só pra efeito

documento. Essa é uma coisa interna nossa, em São Paulo já acertou que vai mudar.

Agora, esse aqui, embora ele seja de São Paulo, o atestado é lá do Rio, vai dar outro tipo

de encaminhamento.

Demétrio, sua mãe está viva e o seu pai morreu.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Como tinha essa confusão

do Nóbrega e tal, por quantos anos, se é que isso terminou, ficou a esperança da sua mãe

e do seu pai, quando estava vivo, que o Eremias voltaria um dia?

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O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Acho que até hoje, né? Minha mãe, né?

O fato de não ter, objetivamente, visto o corpo, acho que isso deve... Bom, eu me sinto

assim. É verdade que um pouco mais convencido pela história, pelos dados, ou seja, do

ponto de vista material, objetivo, eu penso que superei, mas no fundinho, no fundinho

sempre resta essa dúvida e acredito que com os meus pais também.

E esse tem a ver com o segundo ponto que eu penso que a Comissão poderia

contribuir, coisa que eles não conseguiram, mesmo tendo ido no cemitério São

Francisco. A trajetória toda que eles fizeram para reconstituir o episódio, desde o local

onde ocorreu o fuzilamento até o funeral, eles percorreram tudo. Então eles visitaram

inclusive, a tumba, a cova onde ele teria sido enterrado e continuava lá o registro que a

cova 59.262, da quadra 45 ainda constava o nome do Nóbrega. Isso em 1975, 1976,

quando eles foram pela primeira vez, já sabia isso desde 1970, oficialmente, que o

morto era o Eremias, o Nóbrega inclusive estava vivo.

Essa informação era oficial, meu pai foi informado logo no início de janeiro pelo

próprio Fleury, que a repressão tinha feito essa confusão, essa atrapalhada. O Nóbrega

foi preso no campo de treinamento de guerrilha do Ribeira, no Vale do Ribeira, no

início de janeiro e esta confusão então foi solucionada desta forma, quase 40 anos

depois ainda permanece a ausência do corpo. Mas de qualquer forma já se sabia em

1975, 1976, que a pessoa enterrada não era o Nóbrega.

De qualquer forma, constava ali no registro do Cemitério São Francisco de Assis

o nome dele. E não constava mais, nem a ossada, nesse período, ou seja, nenhum

resquício mais da pessoa que tinha sido enterrada naquela cova.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Isso que eu queria

entender, porque tem uma descrição de que depois da retirada dos ossos foi para o

ossário e depois foi incinerado, é isso?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – É essa a informação que foi dada para os

meus pais naquele período e que vem depois de todo o resgate do processo, o resgate

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jurídico, legal. Parece que quanto a isto não existe dúvida que tenha ocorrido isso. Quer

dizer, após 5 anos a ossada foi retirada e incinerada.

A questão que fica é se este tipo de procedimento ele é arbitrário, se não há

formas de registro. E se este procedimento, sobretudo quando oficialmente já se sabe

que a pessoa enterrada foi o Eremias, se a família não deveria ser pelo menos informada

que a ossada havia sido retirada, antes de incinerar. Penso que esse também é um

aspecto importante que talvez ajudasse a atender que eventualmente existe algo material

que poderia ser associado ao corpo do Eremias. Mas nem essa oportunidade foi dado

para os meus pais.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Quando que ocorreu a

exumação?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – A informação, meus pais foram em 1975

ou 1976, já havia essa informação e os dados oficiais parece que é esse período, em

1975 foi exumada a ossada e incinerada. Talvez a Comissão pudesse seguir a

tramitação, digamos, administrativa, burocrática desse procedimento junto ao Cemitério

São Francisco Xavier.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Demétrio, nessa edição de

“O Globo”, de 6/10/2013, tem um pequeno resumo da trajetória desse Capitão

Guimarães, que por muitos anos foi um menino prodígio da Globo, que comandava os

desfiles das escolas. Então diz assim: “Oficial de Intendência, serviu na PL da Vila

Militar do Rio de Janeiro e no DOI-CODI até 1974. Era conhecido nos porões pelo

codinome de Dr. Roberto. Recebeu a Medalha do Pacificador, com palma, em 1969,

depois de matar um integrante da VPR”. A Medalha do Pacificador é a comenda

máxima que um Militar pode receber, só perde para o Cruzeiro do Sul.

Depois diz: “Continuando na sua brilhante trajetória, pouco depois envolveu-se

com o contrabando, cooptado por policiais corruptos e se demitiu em 1981. Tornou-se

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banqueiro de bicho em Niterói, apadrinhado por Ângelo Maria Longa, o Tio Patinhas, e

chegou à cúpula em 4 anos.

Para controlar o jogo em Niterói, na região dos Lagos e no Espírito Santo,

deixando um rastro de violência. Presidiu a Unidos de Vila Isabel e a LIESA. Foi preso

na operação Marselha, em 1989, no processo presidido pela juíza Denise Frossard em

1993 e na Operação Furacão em 2007”.

Esse rastro de violência que a matéria diz, é que ele matou todo o comando do

jogo do bicho e da contravenção para assumir o comando na região de Niterói.

Eu queria fazer mais uma pergunta, Demétrio. Como a gente aqui trata das

pessoas, dos familiares e hoje tem vários familiares aqui de vocês, eu queria ver se você

poderia falar um pouquinho mais daquele grupo da época, que você também fazia parte,

não na mesma intensidade, mas que teve coisa para o bem e para o mal, teve desde o

Lungaretti, que aconteceu aquela tragédia, depois o Massafumi, mas teve gente muito

interessante, o Edmauro, o irmão dele.

Eu queria que você retratasse, eu até tenho uma dúvida, daquele menina do

Colégio Canadá, de Santos, a Baiana, tinha também o Macarini, que é desse grupo e foi

assassinado, tinha o Macarini, que foi assassinado de uma forma absurda, cruel, até hoje

também ainda não esclarecido e nós não fizemos, tinha o Mané Baiano.

Queria que se você pudesse dar uma contribuição, eu sei que é muito duro,

lembrar, eu sei que você não era bem daquele núcleo todo, mas você convivia, convivia

muito e falasse mais um pouco dessa geração do M.M.D.C., o Prof. Mário Hato. Que

você pudesse, porque eu era mais distante de vocês, você devia ter essa convivência.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Eu era mais distante de

vocês. Eu queria que você falasse. E também dessa origem maravilhosa que vocês têm,

educativa, educacional, dessa cultura quase dos russos, dos bessarabianos, daquela

formação intelectual, política que vocês tiveram desde criança. Desse ambiente da

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Mooca, a Mooca ser a sede o Partido Comunista, era um lugar muito interessante da

atuação dos operários, do dentista, enfim, do comunismo, a Praça Vermelha, das greves,

dos clubes dos espanhóis, do Crespo.

Enfim, toda essa história, esse clima, porque hoje à noite, lá na escola federal

onde o Eremias será homenageado será um outro, e aqui você tem oportunidade de falar

toda essa formação da sua família e todo o processo de ameaças que vocês foram

vítimas. Enfim, que você pudesse reproduzir um pouco o clima da época.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Você pede para que a gente retroaja aí

quase 50 anos atrás. Se pensar neste período mais localizado na atuação desse grupo que

você está dizendo, um pouco mais de 40 anos, não exatamente 50.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Porque todo familiar que

vem aqui, vem na esperança que tenha justiça. Então pelo menos vamos fazer a nossa

parte da memória, porque tem gente procurando onde estão seus torturadores, quem

foram, está aqui nas páginas policiais.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Quanto a isso está em todo quanto é

lugar.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Tem gente procurando, é

aquele negócio do questionário de pesquisa. Então vamos dar a nossa contribuição

contando a verdade.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – No caso do Eremias já não há dúvida

das pessoas envolvidas na selvageria. Está registrado isso em vários locais.

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O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Só para ficar registrado

que no mesmo documento aqui de “O Globo” está o “Marco Antônio Povoleri, braço

direito do Capitão Guimarães na repressão foi expulso do Exército”, estava no cerco da

casa e depois virou segurança do bicheiro.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Então retroagindo um pouco antes

desses anos 1960, que vai do Golpe Militar, essa trajetória, como disse, bastante

sintética desse grupo, talvez um pouco antes, a Mooca, para quem não sabe foi nos anos

1920 e 1930 um local de pessoas com origem espanhola e italiana. Então o

anarcossindicalismo era algo que fazia um pouco parte da história de algumas das

pessoas daquele bairro.

Na família, na verdade, as pessoas mais velhas, as discussões políticas eram de

cunho mais, não diria nem partidário, mais de candidatos, mas havia uma discussão

bastante intensa de defesa de posições, candidato a, b, c para governador, para prefeito e

etc. Então esse tipo de coisa era bastante intensa, desde a nossa infância e juventude nós

lembrávamos, meus avós, meus tios tinham esse tipo de discussão. Hoje eu vejo que não

diretamente envolvida com questões político-partidárias e etc.

Alguns dos imigrantes, que eu vim a saber depois, teriam tido algum nível de

relação com movimentos revolucionários da Europa quando surgiram. Isso talvez

tivesse dado um pouco mais de lastro para os parentes mais velhos, os primos inclusive,

que tinham um pouco mais de história, conheciam um pouco mais de história, portanto,

um pouco mais de lucidez na militância política.

Tem aqui o meu primo João Delijaicov, um dos primos mais velhos, que neste

período dos anos 1960 já não era mais um adolescente, nós éramos crianças, quase pré-

adolescentes e o João aqui presente já era, eu o olhava assim não como um senhor, mas

já era uma pessoa de bastante idade, bastante madura e penso que era, dos familiares, a

pessoa que tinha uma visão política bastante esclarecida naquele período. Estou me

referindo ao início dos anos 1960. Creio que de alguma forma deve ter contribuído para

que alguns dos primos menores ficassem um pouco mais alerta para esse tipo de olhar,

de avaliação política. Não saberia dizer o quanto, como e se, o Eremias chegou a

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conversar ou se aconselhar com o João. Penso que talvez indiretamente isso deve ter

tido alguma, não diria influência, mais algum impacto.

Esse grupo que o Adriano conheceu bem, porque ele também era da Mooca, do

pedaço, muito embora estudasse em outro colégio, não no mesmo, também se articulava

com os estudantes secundaristas, na época éramos todos secundaristas, o Adriano um

pouquinho mais velho, logo depois entra para a universidade, como eu, esses outros

colegas ainda eram secundaristas, o envolvimento vinha sim pela situação de opressão

em que se vivia na época e a forma como ocorre essa formação política desses jovens.

Não é simplesmente uma influência de grupos, digamos assim, de formação do grupo,

mas é isso associado à realidade na qual vivíam.

No caso específico do meu irmão ele começa a conhecer essa realidade via as

músicas, as músicas de bossa nova e músicas de denúncia da época de 1965, 1966 e

1967 e leituras de alguns livros. Eu lembro que a gente conversava muito o livro

“Geopolítica da Fome”, “Geografia da Fome” foi um livro que marcou muito, livro de

Josué de Castro. Ele leu esse livro com 16 anos, muito provavelmente indicado por

algum professor ou mesmo pelo João, meu primo, ele poderia confirmar isso.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Pode falar, João, tem a

palavra.

O SR. JOÃO DELIJAICOV – O Eremias e o Demétrio (Demetrinho), quando

eram pequenos faziam mil e umas, subiam no telhado, mais o Eremias. Nunca das

ocasiões, eles ficavam em casa, os pais trabalhavam e fizeram uma bombinha, e aí

ficaram preocupados, ele era maior um pouco, ficaram com medo e colocaram dentro

do armário, na gaveta do criado mudo, alguma coisa assim, mas existiam muitos lápis lá

e explodiu, tanto que atingiu o olho.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Esse é o meu caso, nesse período

éramos todos crianças ainda, não éramos nem adolescentes ainda.

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O SR. JOÃO DELIJAICOV – O Eremias gostava de teatro também, tínhamos

um matador avícola na Vila Formosa, um dia ele apareceu lá, ele estava careca, deveria

ter uns 16 anos.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Penso que ele havia entrada na escola

técnica nesse período, um trote, provavelmente, ou não?

O SR. JOÃO DELIJAICOV – Na escola não, ele apareceu no matador e falou:

Você quer ver que vão me dar esmola? E ele começou a pedir e o pessoal dava dinheiro

para ele mesmo.

Em outra ocasião encontrei com ele num ônibus, ele ia para Osasco, mas ele

tinha amiga dele, uma japonesa, nissei, não sei o que aconteceu com ela, mas o Eremias

já estava sendo procurado pela repressão. A minha tia, a Lourdes, ela ia dar aula de

Yoga e a repressão seguia ela também, ele já não podia voltar quase para a casa.

Um dia cercaram todo o quarteirão, que meu tio tinha o mesmo nome de

Eremias, cercaram o quarteirão, prenderam de manhã, o Exército e todos, ele falou:

“estou com 50 anos, meu sobrinho tem 17, 18 anos, não sou eu, só o mesmo nome”.

Esses fatos aconteciam na Mooca.

O problema é o seguinte, Diogo. Eu fazia parte do movimento de leve, um dia eu

encontrei com ele no ônibus, na Praça da Sé, ele falou: João, você poderia fazer um

negócio. Tinha aquele problema que era da Biafra, ele queria que fizesse um trabalho

para colocar no Juca Pato. Na Praça da Sé, antes do Metrô, tinha um prédio muito alto,

Juca Pato, tinha o Santa Helena, eu trabalho com arte, ele queria um artista que pintasse

um retrato grande para ele soltar de madrugada, colocar lá em cima. Eu falei que iam

tirar, mas ele falou: Desde que fique à noite, até de manhã já basta. Ele era um

revolucionário, queria provocar.

Eu vou falar um fato que vocês não sabem. Ele queria que eu procurasse alguém

que fizesse o retrato de Stalin.

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O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – O João trabalha com artes, ele tinha

envolvimento com os artistas.

O SR. JOÃO DELIJAICOV – Isso. Eu falei: vão descobrir. Eu acabei

desistindo disso.

Numa das viagens depois ele me trouxe uma, aquele repressão de escravos que

colocavam antigamente e uma cabeça de um boi, porque eu gostava de arte.

E toda família nossa estávamos sendo seguidos. Eu trabalhei em São Bernardo,

tinha os movimetos sociais, desconfiavam de todo mundo, de quem estava perto de

mim, não falava com ninguém.

Eu soube do falecimento dele e eu não falei com ninguém, eu e o José Demétrio,

um colega, um companheiro que foi um dia, meu tio tinha um bar, fui tomar café e

encostou um rapaz novinho, pedi um café, falou baixinho: “não olha para mim, o

Exército vai anunciar que morreu o Nóbrega, mas quem morreu foi Eremias, como

herói e tal”.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – É o mesmo companheiro que deu a

notícia para mim, o Diego.

O SR. JOÃO DELIJAICOV – E eu não podia falar com ninguém, eu e o José

Demétrio não podíamos falar com ninguém, depois foi desvendada a confusão toda. E a

minha mãe, ela faleceu, ela chorava preocupada e tal. E eu falei: ele morreu como herói

e tal. Com aquela idade, com 17, 18 anos, qual o garoto que tinha um pensamento

revolucionário para mudar?

Eu me lembro que a tia Lourdes...

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O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Tia Lourdes é minha mãe.

O SR. JOÃO DELIJAICOV –...e o tio, ele que faleceu, aliás a tia Lourdes e o

tio Gette foram padrinhos da minha filha Dimítra, está aí também. A minha mãe estava

chateada e eu falava que ele morreu como herói, com aquela idade, com aquelas ideias.

Agora, a tia Lourdes, ela consegui segurar, e o tio também, pela maneira heroica

dele. Ela sempre falava: “mão foi um viciado, maconheiro, um mau elemento, ele não

prejudicou ninguém”, só contra a repressão, só contra a Ditadura. Um exemplo que não

tem, na molecada de hoje você não encontra mais isso, não tinha esses vícios

antigamente. Ele foi um exemplo, com aquela idade.

Eu fiz uma faculdade de direito, fiz até o quarto ano, desisti, nunca terminei,

FMU, em São Paulo e encontrei no jornal aquela época, “Diretório Acadêmico”, de

direito e um dia anunciaram, tenho esses papéis comigo, de repente convocaram todos

os alunos para uma reunião no auditório. Ninguém sabia o que era, era convocação.

Entramos lá e vimos um japonês baixinho e mais um outro todo machucado, estava o

Fleury, esse pessoal todo, o Exército e mostrando: “está vendo o que vai acontecer com

vocês se vocês entrarem nessa loucura?”. O Fininho estava junto, que faz parte do

esquadrão da morte. Esse grupo era acobertado pelos dirigentes da FMU também. Eram

muitos perigosos. Eu ia em São Bernardo, fazia parte de uma sessão de artes, eu não

conversava com as pessoas, em casa a gente não podia falar: de onde você soube a

informação? As pessoas, você duvidava dos outros. E até que começaram a esclarecer

as coisas. Foi muito difícil.

Agora, como eu falei, ele era um brincalhão, como ele fez, as pessoas deram

esmola. E eu sabia também de Osasco, movimento, ele chorou lá defendendo os

trabalhadores, e falou: “vocês estão enganados”. Com aquela idade, acho que ele tinha

17, 18 anos.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Em 1967, na greve de 1967.

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O SR. JOÃO DELIJAICOV – São fatos assim que marcaram bastante. E

também essa omissão, que você não pode falar nada e ficar quieto.

E a gente, hoje, nós fazemos parte do mesmo partido, Diogo.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – O Macarini era do grupo

do Eremias?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Isso, era do mesmo grupo.

Vou pegar o gancho dessa fala do meu primo com a pessoa que deu a

informação da morte do Eremias, foi a mesma que deu a informação para mim, era o

Diego, era um colega também do mesmo grupo, junto com o Macarini. Cerca de uma

dezenas de colegas do M.M.D.C., alguns também do Cepam, o Macarini acho que era

do Cepam. Você também estudava no Cepam naquele período e alguns que estudavam

no Sarmiento, como é o caso do Edmauro. O irmão do Edmauro, médico, que faleceu

num desastre.

De modo que era um grupo ao militar, começa militar no movimento estudantil,

cada um com sua personalidade, o João traçou um pouco a personalidade do Eremias,

além de namorador ele tinha esse jeitão bastante brincalhão, bastante gozador. Mas o

Diego é uma das pessoas que junto com o Macarini, que também morreu na mão da

repressão, o Gerson também morreu na mão da repressão, o Gerson é de São Miguel, o

Gerson também no Rio de Janeiro, o Nóbrega menciona isso no depoimento dele, era o

mesmo grupo.

O Diego, que veio do Rio de Janeiro avisar, uma semana, pouco menos de uma

semana depois, a mesma informação, esse depoimento que o João deu, ele deu para

mim. Era uma pessoa que era vizinha dos meus pais, éramos amigos, colegas e também

vizinhos, um quarteirão distante e uma das manhãs em que eu estava levando minha

mãe para o instituto de Yoga, o Diego sabia disso, ficou aguardando, me viu, fez o sinal

para que eu o encontrasse, no mesmo local, perto da casa dele. Ele era um militante que

também estava no Rio de Janeiro, ele ainda não era clandestino, ou seja, não tinha sido

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denunciado ainda e, portanto, ele conseguia se deslocar de forma um pouco mais

tranquila.

Aí foi uma ação que ele havia passado, que ele estava ali à revelia, os colegas da

VPR, por questão de segurança não autorizaram que ele viesse para São Paulo para

avisar, ele disse que tinha vindo à revelia, que tinha que fazer pela família, por mim,

enfim, e deu a notícia.

Eu já havia lido a notícia há uma semana nos jornais, naquela época talvez o

“Diário da Noite”, sobre estouro do aparelho na Vila Kosmos, onde havia sido, essas

notícias todas, detonado o aparelho, morto o sargento Nóbrega e eu senti assim: algo

não está bem. E alguns dias depois o Diego vem e me informa.

Eu perguntei: Tudo bem? Ele falou: “não”. Então já olhei e falei: É o caso do

Nóbrega? Ele falou: “é”. Não precisou mais nada, aquele momento eu já soube o morto

era o Eremias.

Ele deu detalhes, a parte do que ele soube e a forma como ele soube dessa

notícia foi interessante, emocionante, a forma como os colegas, os companheiros

preparam essa notícia. Como eles militaram muito tempo juntos e saíram todos eles para

esse mesmo grupo da VPR, havia essa afinidade, além de política, afetiva também. E a

história que esse companheiro informou é que eles viviam em aparelhos, como se dizia

na época, distintos, mas mantinham sim contatos, ponto também, como se chamava na

época, para, enfim, traçar as estratégias das ações.

E esse colega, esse companheiro informa que um dos encontros que deveria

ocorrer numa determinada manhã o Eremias furou, não encontrou com ele e segundo a

orientação de segurança esperar não mais do que dois, três minutos e evadir-se do local.

Foi o que ele fez. E ao chegar no aparelho comentou com os colegas que achava

estranho, que algo podia ter acontecido, porque o Eremias não compareceu no encontro

do ponto.

Ao meio-dia dois dos colegas vieram com a informação, dizendo: “olha, parece

que o ponto onde estaria o Eremias foi estourado. Vamos aguardar, verificar isso”. E

quando foi à noite eles confirmaram sim que o ponto havia sido estourado e que havia

uma pessoa morta e que provavelmente era o Eremias. Ele era um pouquinho mais

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velho que o Eremias, talvez um ano, minha idade tinha no período. Ele toma então a

posição de ver assim que possível essa informação.

E vem de fato pouco antes do, uma semana depois ele vem e me informa,

provavelmente o mesmo período em que ele informou os meus outros dois primos. E foi

um período bastante difícil, porque entre outras coisas que ele comentou, foi:

“Demétrio, eu não sei o que faria no seu lugar, você está numa situação muito difícil,

não tenho sequer uma orientação para te dar. Espero que você pense o seguinte:

qualquer informação que você possa dar para seus pais, pensa no que isso vai ajudar.

Estamos numa situação de repressão, vai haver um envolvimento tão grande, primeiro,

como é que se soube? Como é que eles souberam e o que fazer, etc.?”. Então isso fez

com que eu demorasse algum tempo para conversar com meus pais.

Eu conversei com outros colegas, inclusive com um amigo, na época eu era

professor, ele era estudante, mas era um professor de escola pública, me aconselhei com

um colega professor, que era advogado também e ele também me orientou para que

talvez fosse melhor guardar um pouco mais a situação.

Eu aguardei, não por muito mais do que dois meses, essa informação que eu tive

ocorreu em torno do dia 20, 20 e pouco de outubro e no início de janeiro veio a

informação que o Fleury passou para o meu pai, de uma forma muito interessante.

Nesse período meu pai ainda tinha o comércio, período das minhas férias e de alguma

forma eu contribuía.

Eu estava nesse dia no local, meu pai atendeu ao telefone e pede: “olha, você

fica aqui que eu vou até o DOPS porque o Fleury tem alguma notícia sobre o seu

irmão”. Eu falei: já sei qual é a notícia, pensei comigo, não falei nada.

E de fato, a forma como o Fleury deu a notícia é algo assim também outro nível

de selvageria. Quer dizer, não basta a repressão ter feito o que fez, mas mesmo as

pessoas envolvidas indiretamente, no caso os pais, também tinham que ser punidos,

segundo a repressão, igualmente.

A forma como ele dá essa informação é algo assim, meu pai estava na ante-sala

do Fleury aguardando, porque o Fleury estava atendendo, “atendendo”, estava

pressionando outra pessoa, que era a mãe de um outro companheiro e parte da conversa

que meu pai ouve, porta aberta, pensou que até de propósito o Fleury deve ter feito isso,

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pressionando a senhora, dizendo: “olha, você, se tiver contato com o seu filho é bom

informar, é melhor dizer onde é que está, é melhor para ele, para a segurança dele,

porque se não for isso pode acontecer o que aconteceu com o filho daquele senhor lá,

vai ser morto”. Dessa forma que ele dá a notícia para o meu pai.

Claro, depois de ter atendido a pessoa ele vai lá e dá as informações todas de

como teria ocorrido toda a mudança de nome, o porquê e tudo mais, e não se prontificou

a dar nenhuma ajuda para o meu pai. Perguntou que providência poderia tomar e a

informação que ele dá é que tinha encerrado ali o papel dele e que se meu pai quisesse

alguma coisa teria que ir ao Rio de Janeiro, junto ao 1º Exército, enfim, tomar as

medidas cabíveis.

Parte desse grupo, alguns morreram, outros foram presos, o Edmauro inclusive

foi preso e foi solto com o sequestro de um dos embaixadores. Enfim, é uma história,

como disse meu primo, bonita, mas ao mesmo tempo triste.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Como morreu o Macarini,

você sabe?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – O Macarini eu soube, por informações,

primeiro pela imprensa, depois com alguns colegas comuns. Foi preso, torturado e o que

a repressão alega é que ele teria se suicidado ao se jogar do Viaduto do Chá, num ponto

que teria. Enfim, a história que montaram foi essa.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Demétrio, o seu pai

estava vivo quando o Celso Lungaretti foi visitar ou só sua mãe, quando ele foi levar

esse livro que ele escreveu? Qual explicação que ele deu lá?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Estavam os dois vivos. Nesse período, o

livro talvez uns 2 ou 3 anos, um pouquinho mais, esse último livro que você diz,

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“Náufrago da Utopia”. Eu soube depois, meus pais moram em São Paulo, na Mooca, eu

moro em Florianópolis e eu não sabia que Lungaretti visitaria os pais.

Ele, um belo dia, liga, aparece de surpresa, leva o exemplar do livro que ele

escreveu sobre a trajetória dele, do grupo e do Eremias, disse que era uma homenagem

que estaria fazendo e que também estava explicando muita coisa da vida dele, que tinha

havido muita mentira, muita confusão, etc. e meus pais o receberam. O lado emotivo

também, o lado de pais também, que eu me lembre numa fizeram muita recriminação ao

Celso, ou seja, compreendiam a situação, não sei até que ponto, mas compreendiam a

situação dele e a informação que deram é que o Celso, além de entregar o livro,

solicitou uma ajuda, porque estaria sem emprego, ou seja, cobrou o livro dos meus pais.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Um dia explico por que

fiz essa pergunta. Acho que vamos indo para os finalmente.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Eu nunca mais vi o Diego depois desse

episódio. Eu penso que meu pai e minha mãe acho que algum dia deve ter cruzado com

os pais do Diego, que não moram mais no local. Eu gostaria de ver o Diego.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Você conhece o Ivan

Seixas?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Ah, tá! Ele está mais careca ou menos

do que eu?

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Você sabe que aqui na

Comissão da Verdade do Estado de São Paulo temos dois arquivos.

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O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Sim.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Espera aí, você vai falar

ao microfone, deixe contar minha piada para descontrair. A Amelinha é o arquivo vivo

da Revolução e o Ivan o arquivo morto. (Risos.) João, com a palavra.

O SR. JOÃO DELIJAICOV – Meu tio, aquela hora que estava feia a situação,

verificar a repressão, cercaram o quarteirão todo, o tio Gette falou para ele, estava a tia

junto, ele falou: “Eremias, vai embora do Brasil, se não vão te pegar. Vai para Cuba, o

pessoal já está saindo, vai para Cuba”. Ele falou:” o que vou fazer em Cuba? Tem que

melhorar o Brasil. Fazer o que lá?”. Com aquela idade, com esse pensamento, ele ficou

aqui. Todo mundo saiu espontaneamente, uns auto-exilados, que foram governadores

por aí, e ele falou dessa forma e ficou falando por aí. Isso é importante, eu não sei se

vocês já comentaram alguma vez.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Vamos fechar?

Demétrio, suas considerações finais. Então, convidar todos, que hoje à noite, às

19h00, nós vamos lá para a Escola Técnica Federal, do Canindé, do Pari, até agora não

assimilei. Tem o endereço dessa Escola Técnica? Avenida Cruzeiro do Sul, 1100.

Vamos todos lá porque vai ser feita uma homenagem ao Eremias.

Então, Demétrio, fala um pouquinho da sua mãe e vamos fechar.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Minha mãe lamenta não estar presente

aqui, mas conversei bastante com ela sobre se gostaria ou não de estar presente. Ela

disse não, dado o envolvimento emocional, uma senhora que já está com 84 anos e ela

preferiu não estar presente.

De qualquer forma ela entende o papel desta Comissão, da mesma forma que eu.

Quer dizer, da mesma forma que hoje estamos discutindo o caso de Eremias, eu penso

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que outros talvez um pouco mais nebulosos do que do Eremias. Sei de casos de colegas

cuja história ainda não foi resgatada, do Eremias está parte resgatada. Eu penso que esse

é o papel da Comissão e também creio que vale a pena ficarmos alertas, acho que não só

a Comissão, mas que a repressão que foi sintetizada e simbolizada pela atuação da

repressão policial e militar, eu penso que é só a ponta do iceberg.

Quer dizer, é um envolvimento que eu não saberia dizer se é muito grande,

pouco grande, se é a parte do iceberg que não está totalmente visível, que é parte da

sociedade civil organizada. Nós temos aí a OBAN que era mantida por parte da

sociedade civil, quer dizer, muito do que acontecia na época, quer dizer, havia uma

parte da sociedade que não só não fazia resistência, não só não sabia, por que não sabia

mesmo, mas havia pessoas que não só sabiam, como compactuavam com isso. Então

isso também tem um relativo peso na história, parte da mídia que sabia disso se omitia

do ponto de vista de passar informação de algum nível de resistência ao que acontecia

na época. Não adianta simplesmente dar receita de bolo para dizer não posso informar,

né? É o que acontecia na época também.

Quer dizer, você via jovens, como esse grupo ao qual meu irmão pertencia,

fazendo o que fez, no depoimento do meu primo João e pessoas da sociedade civil, com

poder político inclusive bastante grande, além de omissas, algumas compactuando com

esse tipo de coisa. Quer dizer, o alerta para nós mesmos para que isso não ocorra de

novo. Quer dizer, o papel dos fazedores de cabeça é bastante grande aqui no Brasil.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Demétrio, queria te

agradecer realmente. Dizer que a sua vinda de Santa Catarina, seus familiares aqui hoje,

daqui a um pouco nós vamos lá para a Escola Federal.

E queria dizer que o Demétrio, além de irmão do Eremias, nunca deixou de lutar.

Lutou no fim da Ditadura, na resistência à Ditadura, do jeito que ele achou forças, como

disse o irmão dele, o Eremias: “você fica aqui com os velhos e continua contando a

história”. Então, Demétrio hoje é professor lá na Universidade Federal de Santa

Catarina e continua dando a sua grande contribuição para a luta do povo brasileiro.

O João também, artista plástico, um companheirão que vive fazendo coisas

seríssimas.

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E eu queria só te pedir uma coisa. Como nós vamos ter que contar essa história

desse grupo da VPR, o Ivan ainda tem contato com o Edmauro, a história do Macarini,

que eu também era muito próximo dele, talvez se vocês, mesmo à distância, Demétrio,

você pudesse ajudar a gente fazer uma reunião para tratar do Gerson. A menina não foi

assassinada, mas tem uma menina, Mariana, né, que foi assassinada? Que era desse

grupo também, era bem magrinha. Bom, recuperar a história desse grupo e a gente fazer

a história do grupo.

O “Sábado Resistente” outro dia fez com o pessoal mais da Velha Guarda, o

pessoal da VPR fez todo um encontro nacional do pessoal, do Jamil, todo o pessoal

mais velho, Pedro Lobo, Dulce Maia. Mas então já queria pegar esse setor jovem,

desses meninos valorosos, desses heróis valorosos, porque essa história não foi contada,

ela está toda fragmentada ainda e é uma história muito bonita, muito grande.

Eu vou te lembrar de uma coisa que não sei se você me autoriza contar. Nós

ouvimos juntos, na USP, a transmissão da Rádio Nacional do Marighella, nós

estávamos juntos ouvindo no rádio de um carro. E quando acabou, a repressão

imediatamente publicou uma nota oficial que o Eremias tinha participado da ação, não

sei se diretamente, mas pelo menos na cobertura da ação. E você ficou muito, muito,

muito...

O SR. JOÃO DELIJAICOV – Já que estão falando em fragmentado, depois

vai completando um pouco, né? Tem umas façanhas que o Eremias participou lá no Rio.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Está aqui nosso

companheiro Dantas, filho de Audálio Dantas, que é um dos companheiros

covardemente demitidos, intencionalmente demitidos para fechar com a democracia da

TV Assembleia. Obrigado, viu Dantas. Você também? (Pausa.) Fala seu nome

completo. (Pausa.) Ademir Abrahão Júnior. Também foi demitido? (Pausa.) É. Essa é a

democracia da TV Assembleia. Parabéns, companheiros, vamos continuar na luta.

Obrigado por tudo, viu Dantas, vocês dois deram toda a condição da gente trabalhar

aqui na Comissão. Obrigado.

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João, volta com a palavra.

O SR. JOÃO DELIJAICOV – Adriano, claro que já foi falado muitas vezes,

uma das coisas que comento para todos meus amigos, aquela façanha que ele participou

no roubo do cofre do Adhemar, o pessoal sabe, né?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Isso também dizem.

O SR. JOÃO DELIJAICOV – Hoje não foi falado sobre isso?

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Não foi falado.

O SR. JOÃO DELIJAICOV – Então, aquilo foi muito interessante, que

estouraram o cofre no Rio, foram em diversos companheiros dele, e deu um alvoroço,

que o Adhemar de Barros é o maior corrupto, ele foi demitido pelos próprios militares,

porque estava estragando a imagem. Descobriu o cofre no Rio de Janeiro, U$200 mil

dólares e mais documentos.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – U$2 milhões e 500 mil.

O SR. JOÃO DELIJAICOV – E mais documentos. Foi aquela loucura e foi

tudo para fora, para a França e lá começou desvendar aos pouquinhos a notícia. Ele fez

parte, parece como oficial, com a roupa e tal. E me contaram que eles subiram numa

casa antiga de um sítio, o cofre era muito pesado, arrebentou a corda e rolou o cofre

todo. Depois estouraram lá fora, parece que a Presidenta fazia parte.

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O SR. JOÃO DELIJAICOV – Não, mas espera um pouquinho, mas é um fato

importante.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – João, esses episódios, quer dizer,...

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Espera aí, vamos

esclarecer, que aqui é a Comissão da Verdade, aqui não é roda de cerveja, não tem

nenhuma informação que a Dilma estivesse participado de nada que tivesse relação com

esse assunto, não tem nenhuma história. Se vocês sabem histórias familiares, e tal,

podemos falar, mas isso não tem vínculo nenhum com a Presidente Dilma.

O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Essa informação do cofre do Ademar

rolou também, eu não tenho informação de viva-voz de colegas que conviveram com

ele, dizer isso, mas é bem provável, parece que o cofre estava na Vila Kosmos. Então

não tenho muito certeza.

E eu peço desculpas para o Adriano, que eu penso que ao adiantado da minha

idade, esse relato que você faz eu lembro agora, eu não lembrei no momento. Então, de

fato, essa notícia que o Eremias teria participando da tomada da Rádio Nacional, ela

surgiu de outras fontes também, mas dessa também. Então eu confirmo isso sim, foi dito

que ele estava presente sim. É verdade.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Podemos encaminhar? O

que o João se referiu é o negócio chamado cofre do Dr. Rui, para tristeza da Laura

Capriglione...

- Fora do microfone: Tia dela, Ana Capriglione.

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O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – A tia dela, Ana

Capriglione, era amante do Adhemar de Barros, que tinha o pseudônimo de Dr. Rui, não

é isso, João? (Pausa.) Então, vamos lá. Agradecendo a presença do João Delizaicov.

- Fora do microfone: Delijaicov.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Delijaicov. Imagina esses

russos lá na Mooca, registrando nome de filho na década de 1930. Quando você nasceu?

O SR. – Final de 20.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Isso aqui, quando?

. O SR. DEMÉTRIO DELIZOICOV – Ah, bom, ah, não, estou dizendo dos

pais dele.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Mas quando você nasceu?

Pode falar quando você nasceu.

O SR. JOÃO DELIJAICOV – Eu nasci em 37, estou com 76 anos.

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Foi registrado em que

cartório?

O SR. JOÃO DELIJAICOV – Na Mooca.

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O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Imagina aqueles

bessarabianos lá, tudo atrapalhado.

Bom, então, pessoal, muito obrigado, obrigado, Demétrio. João, você vai à noite

à escola conosco? (Pausa.) Vamos todos, chama o Zé Demétrio, todo mundo.

Pessoal, uma sessão muito importante, mais uma sessão homenageando um

herói do povo brasileiro, Eremias Delizoicov. (Palmas.)

A sessão está encerrada.

***