comentÁrios bÍblicos que iluminam o...

26
COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O COMPORTAMENTO DO CRISTÃO P. Giuseppe Cinà, M.I. www.camillodelellis.org

Upload: ngoquynh

Post on 09-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAMO COMPORTAMENTO DO CRISTÃOP. Giuseppe Cinà, M.I.

www.camillodelellis.org

Page 2: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

3

A escuta que cura

COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAMO COMPORTAMENTO DO CRISTÃO

P. Giuseppe Cinà M.I.

Page 3: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

4 5

Sommario

1 A escuta que cura 7É fácil escutar? 7Escutar o doente 8Não obstante, escutar e ser escutado é essencial 8A escuta de Deus educa à escuta do próximo, e vice-versa. 10Da escuta de Deus à escuta do próximo 11

2 A Palavra que Cura 14O valor do silêncio 16A importância da palavra 17A força terapêutica da palavra de Jesus 19

3 A casa Sobre a Rocha 22A doença: escândalo ou oportunidade? 22O risco de uma vida espiritual ilusória 23Como construir uma “casa sobre a rocha”? 24Uma nova compreensão da realidade 25A autoconsciência de Jesus: “tudo me foi dado por meu Pai” 26O paradoxo cristão 27

4 Por uma igreja compassiva: a partir de São Paulo 28A “compaixão” é um sentimento natural? 28A experiência de São Paulo 29A comunidade cristã é “corpo de Cristo” 29Clima de afeto e de ajuda recíproca na comunidade 30Um texto peculiar para o mundo da saúde 31Mas “compadecer” é também “com-sofrer” 32Compaixão como vulnerabilidade 33

5 A eucaristia e o enfermo 36Os enfermos no Evangelho da “multiplicação dos pães” 37Além da cura orgânica 38A eucaristia “fonte e cume da evangelização 40e da atuação sacramental da Igreja” 40

6 O Viático 42A comunhão eucarística próxima à morte 42O atual “esquecimento” na consciência dos fiéis 42Motivos deste comportamento 43Motivos internos à comunidade cristã 44Como recuperar seu valor e significado? 44A atitude de Jesus diante de sua morte 45Significado do Viático 46

Page 4: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

7

1A escuta que cura

É fácil escutar?Nunca foi fácil escutar verdadeiramente o outro. Até mesmo porque nossa cultura ensina a falar (ou pelo menos tenta fazê-lo) e pouco, ou nada, a escutar. Não me refiro, por certo, à “comichão” da escuta, à vã curiosidade das fofocas e dos boatos, e, nem mesmo àquela atenção que nasce de um preciso interesse pessoal, como quando, por exemplo, solicitamos o parecer de um médico ou de um advogado.

Aqui nos referimos à escuta gratuita do outro (chamemos assim), quando é principalmente o outro que tem necessidade de comunicar-se, de falar de si mesmo, de compartilhar uma situação ou um estado de ânimo vivido e que tem pouco ou nada a ver com nossos interesses, com nossa imediata preocupação. Como é o caso, por exemplo, da necessidade que a pessoa doente sente de ser ouvida.

É também relativamente fácil dar-se conta, em geral, de onde nasce a dificuldade de escutar o outro: todos estão sempre muito “ocupados” consigo mesmos, com seus problemas e projetos, assim que devem fazer um esforço notável para abrir a porta do próprio ânimo, de seu mundo interior, e abrir um espaço para o outro. Além disso, somos muito seletivos no acolhimento do próximo, na escuta de seus problemas. Com facilidade dizemos, ou ao menos achamos, que “já entendemos”, que já sabemos aonde vai o discurso, porque nos colocamos, imediatamente, em uma atitude de interpretação, se não de avaliação de julgamento do que a outra pessoa nem sequer terminou de expor. Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta, seja talvez pela avalanche de mensagens e informações que despejam em nosso cérebro, notícias que se sobrepõem como ondas furiosas e a pessoa nem mesmo consegue recebê-las, selecioná-las, deixá-las sedimentar para então perceber se existe uma relação possível entre elas e o que podem significar para

Page 5: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

8 9

você. E as notícias são as mais discordantes e contraditórias entre si: acontecimentos trágicos e acontecimentos cômicos se alternam e se sobrepõem, eventos levianos e ocasionais que se misturam com fatos de uma relevância e gravidade extraordinárias. Como fazer para digeri-los? Quando? Como fazer uma reflexão para entendê-los de algum modo?

Escutar o doenteSe também queremos falar da escuta ao doente, ou de quem se encontra numa situação de precariedade e de sofrimento, de preocupação grave e aflitiva, e ainda por cima desejamos que nossa escuta seja “terapêutica”, curadora – isto é – capaz de sanar, então o discurso se complica decididamente. Porque não demora e o escutador enquadra o paciente em um de seus compartimentos mentais, o “esquematiza” e o registra, arquivando-o entre “o já visto”, o “já entendido”, pensando saber tudo dele ou dela e interessando-se pouco de todas as demais coisas que o outro gostaria de comunicar. Além disso, o doente tem interesses, preocupações e ânsias que, em geral, estão muito distantes do que interessa e preocupa a quem goza de boa saúde. O enfermo também é mais seletivo nos temas que lhe interessam;

ele é – de certa maneira – mais essencial em seus interesses do que a pessoa sadia, é mais preocupado com o que é realmente importante na vida. Com efeito, a doença desenvolve de modo extraordinário a capacidade de escuta, como também a vontade de ser escutado.

Bastaria observar o alívio que seu rosto traduz, tão somente quando o médico se senta a seu lado e o convida a contar os sintomas que o estão angustiando.

Não obstante, escutar e ser escutado é essencialCertamente, esta dupla exigência – escutar e ser escutado – caracteriza a estrutura profunda de nossa humanidade. A necessidade de ser escutados, do mesmo jeito que a capacidade de escutar, são, ambas, partes estruturantes do próprio ser, além de dimensões essenciais

para a afirmação e o desenvolvimento do relacionamento interpessoal e social. E se um situação de enfermidade aumenta esta dupla exigência, por outro lado, confere também uma característica toda própria, que é a imperiosidade da necessidade de ser escutados.De que maneira podemos nos ajudar a ser realmente capazes de escutar o outro, especialmente quando se trata de uma pessoa doente? Atualmente, as ciências humanas elaboraram diversas técnicas, mas, seria melhor chamá-las “artes”, como afirma E. Fromm em “A arte de escutar”1, pois não se trata de um fato mecânico e sim humano.

Com o propósito de entrar na perspectiva da espiritualidade cristã, através desta reflexão, nos referimos à Revelação Bíblica. Nela ressoa com insistência o imperativo: “Escuta! Escutai!”. Não é novidade que o homem bíblico, seja do Antigo que do Novo Testamento, é antes de mais nada e essencialmente um “escutador da palavra” (K. Rahner): para o homem bíblico “escutar” Deus que lhe fala, para além de um preceito (“Ouve ó Israel! - Dt 6,4)”, é uma exigência vital: “A ti, Iahweh, eu clamo... não me sejas surdo; que eu não seja, frente ao teu silêncio, como os que descem à cova!” (Sl 28,1). E Deus, por seu lado, acolhe aquele grito: “Escutai-me e vinde a mim, ouvi-me e vivereis” (Is 55, 3).

À primeira vista é surpreendente que, ao homem necessitado de ser ouvido, a palavra de Deus peça – em primeiro lugar – de ser um escutador atento: o Shemà Jsrael é justamente o imperativo “Ouve!” que retorna com particular insistência no livro do Deuteronômio. Este livro, o quinto da Torá mosaica, é uma coletânea de homilias, ricas de conteúdo teológico e moral, que giram em volta dos maiores temas da aliança (Dt 4,1; 5,1; 6,4; 9,1). O primeiro objetivo destes textos é introduzir a sucessiva exposição da lei da aliança. Isto é, desejam solicitar a atenção e o interesse dos receptores, para que se disponham a escutar frutuosamente o que será exposto nos capítulos seguintes.

1 Ed. Mondadori, Milano 1985.

Page 6: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

10 11

Os Evangelhos relatam as frases de Jesus sobre a necessidade de escutar, cuidar e traduzir em vida o que foi escutado: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21), “Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lc 11,28), parte que a epístola de Tiago “Tornai-vos praticantes da Palavra e não simples ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (1, 22). Maria, a mãe de Jesus no retrato de São Lucas é apresentada como aquela que acolhe a palavra de Deus (Lc 1, 38) e é “feliz” justamente porque “...creu, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido!” (Lc 1, 45). Para o Evangelho de Lucas, Maria é o protótipo do discípulo que escuta a palavra com o coração, a protege e a observa para dar fruto. Isto será constante na tradição e na história da Igreja:

os que estão bem atentos a Deus e são capazes de escutá-lo e pôr em prática sua Palavra, como os santos, serão também as pessoas mais abertas e disponíveis para escutar os seres humanos, compreenderão suas exigências mais verdadeiras e darão resposta adequadas.

A escuta de Deus educa à escuta do próximo, e vice-versa.A exigência de Deus e de seu Filho Jesus, no Novo Testamento, de que o homem, se quiser ser salvo deve escutar a palavra a ele dirigida, lembra antes de mais nada que o homem será escutado por Deus, somente se tiver escutado a Deus. Isto acontece porque a escuta de Deus restitui o homem à sua própria verdade, à sua autenticidade e o liberta dos muitos condicionamentos que podem desviá-lo de seu caminho verdadeiro. Além disso, o conteúdo do preceito “Ouve!” é essencialmente o amor de Deus: o israelita deve amar a Deus com um comportamento radical e totalitário: “com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (Dt 6, 4-5).A escuta é, portanto, amor: para que seja possível uma escuta verdadeira da palavra de Deus, é preciso um amor confiante por aquele que fala ao nosso coração.

Da escuta de Deus à escuta do próximoÉ lícito transferir estas condições e estas possibilidades à escuta do próximo, ou se referem somente a Deus e sua santa palavra?A propósito, contamos com a primeira epístola de São João, que é toda permeada pela relação entre o amor a Deus e o amor aos irmãos. Essencialmente, o escritor sacro nos diz que não se pode pretender amar a Deus se não se ama o irmão: “...pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar”(1Jo 4,20). Que, parafraseando, ficaria assim: “você não pode pensar que é um bom ouvinte de Deus, se não souber ouvir o seu irmão”. Quer saber por quê?...

Porque também a escuta nasce do amor, aliás, sendo o preceito da escuta da voz de Deus, não será menos que uma diversa formulação do mesmo mandamento de amá-Lo. Se, portanto, devo amar meu próximo porque é este o logos onde se atua meu amor a Deus, devo também escutar meu irmão. Com esta atitude se concretiza o meu empenho em ouvir a voz de Deus.

Desta maneira, na medida em que eu me abro efetivamente à escuta de Deus, sou também educado à escuta de meu próximo, especialmente da categoria de pessoas – os “pequenos” do Evangelho – com os quais Jesus se identificou de modo privilegiado: os pobres, os marginalizados, os doentes, os idosos, as crianças, etc. A escuta de Deus, com efeito, me tira de mim mesmo, me faz sair da couraça de minhas preocupações pessoais, de meus interesses privados e pequenos que podem levar-me a ficar fechado dentro de mim. A escuta de Deus abre aos horizontes divinos da vida, às necessidades e às expectativas, às alegrias e às esperanças de meus irmãos, me forma a olhar para o mundo, para a vida, para os outros com o coração de Deus. Portanto, a autenticidade de minha atitude de escuta ao próximo é que dará testemunho da autenticidade de meu desejo de escutar a voz de Deus.

Page 7: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

12 13

ConclusãoNão é fácil escutar o outro, sobretudo quando se trata de uma escuta da qual se espera uma “cura” da alma. Contudo, é algo apaixonante se nascer de um coração que ama verdadeiramente, para o qual o outro reflete a figura do próprio Jesus. Exige estar atentos a receber com cuidado o que está acontecendo no ânimo do interlocutor. Isso supõe um espaço interior livre, um espírito de acolhimento e de hospitalidade que não pretende entender imediatamente, nem se apressa em explicar, esquematizar ou simplificar, levado por uma espécie de “economia espiritual” que não quer investir suficientemente as próprias energias para economizar a fadiga do acolhimento e da sedimentação. Espera entender, disposto também a renunciar a entender, a explicar, a interpretar, a transformar. Escuta com humildade, respeitando o mistério do outro, consciente da própria insuficiência. Por isso, enquanto está atento ao outro, é também propenso a escutar a si mesmo, ao que o outro estiver suscitando nele, como pensamentos, emoções e sentimentos que vão modificando o próprio espaço interior já invadido pelo estado de ânimo do outro, e compartilhar esta realidade.

Page 8: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

14 15

2A Palavra que Cura

Quem é capaz de consolar?

Tem sido observado que, se pensássemos nas pessoas que nos confortaram e nos deram esperança nos momentos de tribulação, ficaríamos surpresos ao descobrir que na maioria das vezes não se tratou de pessoas particularmente especializadas ou profissionais do setor, mas de pessoas comuns, que simplesmente compartilharam nossa situação. Não se pretende dizer que nos deram o máximo conforto, e sim que deles fomos mais frequentemente ajudados, porque é muito raro encontrar quem tenha palavras sensatas para uma pessoa que está sofrendo. Este tipo de situação acontece muitas vezes em hospitais, onde você pode se encontrar numa situação de compartilhar o quarto com outras pessoas que estão nas mesmas ou em piores condições que a sua, no entanto, conversando com elas, você se sente confortado e sente menos o peso do medo e da pena que o angustiava. Às vezes, um encorajamento semelhante vem da leitura de um romance ou de assistir a um filme que narram uma situação similar à sua. É interessante observar que, em geral, aquele “fruto” de esperança não depende tanto da sensação que o ditado “um peso compartilhado torna-se mais leve” inspira e, nem mesmo, do fato que o outro tenha superado a situação difícil na qual se encontrava e, por isso, você também poderia dizer: “Eu também vou sair dessa!” Talvez até a outra pessoa não tenha conseguido, mas você se sente beneficiado.

De onde deriva a estranha “eficácia” da experiência compartilhada? Puramente, e antes de mais nada, do fato que o outro lhe mostrou com realismo a sua condição e a dele: permitiu que você visse a si mesmo de modo claro, lhe fez entender que “esta é a realidade, assim é a vida e é preciso aceitá-la”, ou seja, do fundo de seu túnel lhe abriu os olhos, compartilhou a sua situação. Foi solidário com você: a solidariedade na dor ou na desventura é o caminho primordial para ajudar quem está na atribulação. Aquela palavra de conforto nasceu do compartilhamento, do fato de habitar a mesma terra, a terra da dor.

Esta constatação deveria nos fazer refletir quando queremos dirigir uma palavra de conforto a quem nos pede ou a espera de nós, ou então quando somos nós que, impulsionados pela compaixão, queremos consolar. Em geral, em tais circunstâncias, procuramos dizer palavras sensatas, na tentativa de iluminar a situação, encontrar um significado para ela e oferecer uma explicação. E não partimos satisfeito se não garantimos ao paciente que ele deve ter confiança, porque tudo se resolverá da melhor forma, justamente como nós procuramos demonstrar. É como se estivéssemos convencidos de nos encontrar diante de um espaço vazio que só, e antes de tudo, pede para ser preenchido, e que nós... estamos muito bem preparados para este trabalho! Às vezes, até mesmo experimentamos um gesto de irritação se o outro não nos consente, se não se mostra aliviado depois de nosso lindo discursinho, se permanece obstinadamente fechado em sua tristeza. A este propósito, podemos pensar nos amigos de Jó. Lembram a narração da Bíblia? Eles, quando sentiram a desgraça que tão cruelmente flagelou seu amigo, “... reuniram-se para ir compartilhar sua dor e consolá-lo”. No entanto, quando “levantaram os olhos, a certa distância, não o reconheceram mais (pelo estado em que se encontrava). Levantando a voz, romperam em prantos; rasgaram seus mantos e, a seguir, espalharam pó sobre a cabeça. Sentaram-se no chão ao lado dele, sete dias e sete noites, sem dizer-lhe uma palavra, vendo como era atroz seu sofrimento” (Jó 2,12-13).

Page 9: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

16 17

O valor do silêncioÉ impressionante este vasto silêncio que investe os visitantes do sofredor, esta incapacidade dos três amigos de pronunciar uma palavra, sinal evidente de respeito e de participação, talvez até mesmo de estupor diante da angústia desmedida do amigo. Exatamente por esta atitude, aquele silêncio surtiu o efeito extraordinário de abrir a alma de Jó, que agora pode, ao menos momentaneamente, exprimir o seu lamento e enfurecer-se contra o destino, rompendo de algum modo o círculo de dor que o torturava.

É a eloquência do silêncio, este misterioso pode que possui o emudecer quando é pleno de interioridade e de pensamento, de sensibilidade e de respeito pela condição do outro, quando nasce daquelas demoras calmas de reflexão sobre os deveres graves da vida, sobre os problemas que ameaçam a existência humana e a vida de nossos entes queridos.

Não é, por certo, um dom espontâneo e natural esta capacidade de silenciar. E hoje em dia, muito menos que antes. É evidente, até demais, quanto nossa sociedade seja faladora, quanto seja permeada pela tagarelice. Esta prerrogativa de nosso tempo tem sido muito criticada. Um dos mais notáveis e apreciados escritores de espiritualidade de nosso tempo e recentemente falecido, Henrij Nouwen, observa que “Nas últimas décadas estamos inundados por um rio de palavras. Estamos circundados por palavras em qualquer lugar: palavras sussurradas a meia voz, emitidas em voz alta ou gritadas com ira; palavras faladas, recitadas ou cantadas; palavras sobre faixas, em livros, sobre muros ou no céu; palavras em diferentes sons, cores ou formas; palavras para serem ouvidas, lidas, vistas ou guardadas, palavras que vão e vêm, que se movem lentamente, dançam, pulam ou se agitam. Palavras, palavras, palavras! Elas constituem os muros, o chão e o teto de nossa existência”2.O resultado desta enxurrada de palavras é o empobrecimento da função da palavra, que é comunicação. E se a comunicação faltar, não se realizará a comunhão. Apesar da abundância,

2 H.Nouwen, Silenzio, solitudine, preghiera, Città Nuova, Roma 1985, p. 55.

da variedade e do requinte de expressões, cada um permanece em sua solidão, fechado para o outro: resta somente a sensação de comunicar, porque, de fato, o outro não recebeu nada da minha verborragia. Idêntico é o resultado para mim: não estabeleci nenhum relacionamento, permaneço sozinho com meu monólogo.

A importância da palavraNão obstante, a palavra é importante. Não acho completamente verdadeira a expressão “o que vale são os fatos, não as palavras”, hoje tão difundida. Antes de mais nada, porque os fatos são explicados também com a expressão verbal; depois, se as palavras não contassem para entender uma situação, para avaliar uma pessoa, seria um sinal de que já não confiamos no que dizemos, e, por isso, se poderia mentir, não sustentar a palavra dada, nem seria preciso manter a coerência, e assim por diante. «Quanto nos afastamos da estima que a Escritura Sagrada atribui à palavra, também à palavra do ser humano! Não porque o homem seja sempre sincero ou que fale sempre de modo sensato, mas porque a palavra exprime a pessoa, participa de seu dinamismo, é dotada – de qualquer maneira – de eficácia. Segundo sua qualidade, ela implica, para quem a pronuncia, honra ou confusão: “Sê pronto para escutar, mas lento para dar a resposta” (Eclo 5, 13); morte e vida estão em seu poder: “Morte e vida estão em poder da língua, aqueles que a escolhem comerão de seu fruto”(Pr 18, 21). Para julgar o valor de um homem, ela é, portanto, a pedra de toque que permite prová-lo: “O forno põe à prova as vasilhas de barro, a prova do homem está no seu falar. O fruto mostra o cultivo da árvore, assim a palavra do homem, os pensamentos do seu coração. Não elogies a um homem antes de ele falar, porque esta é a pedra de toque (Eclo 27,5-7)»3.

3 A.Feuillet – P.Grelot, Parola umana, in: X.Léon-Dufour, Dizionario di Teologia biblica, Marietti, Torino 1976, col 834.

Page 10: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

18 19

Ainda assim, para consolar de verdade, tudo isso não basta. Para que uma palavra seja uma mensageira eficaz de consolação, deve vir da verdade interior, do que efetivamente somos, e não do que se quer aparentar ou se pretende ser. Deve ser concebida na interioridade da pessoa, no “coração”, ou seja, no centro existencial de cada um, na “consciência”, onde “Deus, que perscruta os corações, o espera, e onde ele, sob o olhar do Senhor, decide da própria sorte” (Gaudium et Spes, 14). Esta realidade exige precisamente o “silêncio” interior, a capacidade de parar para escutar-se, e requer a identidade profunda de si, a própria verdade.

Contudo, a tanto não estamos habituados. Em geral, somos bastante banais, estamos imersos num falatório constante, condicionados por urgências e emergências contínuas, que nos afastam daquela profundidade, daquela verdade de nós mesmos e das outras pessoas. Enquanto quem sofre pensa em questões sérias, em verdadeiros problemas e em perguntas autênticas. A dor chama necessariamente o ser humano ao centro de si mesmo; para alguns, o sofrimento inclusive representa a única experiência que leva à consciência profunda de si, à própria e ímpar responsabilidade diante da vida! Não se deve, então, pretender consolar uma pessoa ferida pela vida, partindo da superfície do próprio eu, de palavras frívolas ou circunstanciais. Nem mesmo limitar-se a repetir pensamentos recolhidos de fora, de um “ouvi falar” e que têm pouco a ver com nossa vivência pessoal.Para que a palavra proporcione conforto deve estar enraizada na humildade de quem a pronuncia. Uma das causas do insucesso dos amigos de Jó em sua louvável vontade de consolá-lo, está precisamente numa determinada atitude de mestres sabichões que, do alto de sua cátedra, transmitem um saber desvinculado da experiência. E de que serve uma ciência sem experiência? As palavras não vividas, separadas do cadinho da vida, são como vento que passa, uma tagarelice vazia. Além do mais, a própria agudeza da inteligência, se for implantada numa pessoa sem equilíbrio interior e sabedoria, torna-se seletiva, ou seja, muito capaz de fixar-se numa perspectiva limitada e incapaz de enxergar a realidade em seu contexto complexo. Permanece muito atual a advertência do apóstolo: “a ciência incha!”(1Cor 8,2). Esta visão limitada, mesmo que seja aguda, distorce a compreensão do conjunto da realidade: confunde-se uma parte com o total. Sem humildade, sem

capacidade de compadecer, a inteligência se engana e perde de vista o amplo projeto da vida. Desta maneira, para que serviria a inteligência?

A força terapêutica da palavra de JesusComo permanecer indiferentes à sobriedade e à força das palavras de Jesus transmitidas pelos Evangelhos? Quem poderá sondar o abismo de vida do qual provém o grito apaixonado “Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e vos darei descanso” (Mt 11, 28)? Quem alguma vez se atreveu a aplacar o coração de uma humanidade desiludida e dolente, extraviada e atribulada em todas as partes? De que fonte Jesus obtém uma tal consciência?Não conseguiremos nunca penetrar naquela profundidade, não obstante, uma estrada se abre se escutamos as palavras que os Evangelhos atribuem a Jesus. Tem-se a impressão que elas revelem o mistério do silêncio do qual provêm e que ali reconduzam quem as acolhe. Seria de grande interesse uma leitura dos Evangelhos direcionada a pôr em evidência a modalidade da comunicação que os evangelistas atribuem a Jesus: suas palavras e seus silêncios, e o efeito que provocam nos ouvintes. Limitando-nos à observação da “força curadora” que possuem as breves palavras que Jesus dirige aos enfermos e aos sofredores, nota-se sobretudo a ampliação do objetivo de sua intervenção terapêutica: Jesus não se limita a restituir a saúde orgânica ou psíquica ao paciente, como também procura introduzi-lo no horizonte da vida de Deus, do seu reino. O Senhor se propõe abri-lo ao dom da salvação definitiva, da comunicação da vida divina.Observando também a modalidade do seu agir, não se pode não ficar tocado pela eficácia das palavras que acompanham o gesto. De onde nasce o poder curador daquelas palavras? O primeiro dado que os Evangelhos testemunham é o sentimento de compaixão que Jesus sente diante da pessoa aflita: não somente a escuta, mas consente o mal que aflige o outro de subir até ele, de entrar nele, de modo que o sofrimento alheio se torne seu próprio sofrimento: “Tomou nossas enfermidades e carregou nossas doenças” (Mt 8,17). O que estava acontecendo comigo, agora acontece também com ele, e é por isso que eu curei: “...porque dele saía uma força que a todos curava” (Lc 6,19). Deste espaço aberto, colocado à disposição dos necessitados, sai aquela “energia” iluminada pela palavra. Lendo

Page 11: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

20 21

à distância este comportamento de Jesus, a epístola aos Hebreus falará dele como de um sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas: “Com efeito, não temos sumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). É precisamente esta experiência que lhe permite ser mediador da virtude divina para que “alcancemos graça, como ajuda oportuna” (Hb 4, 16).Deste modo, fica também claro outro aspecto que está na origem do poder que a palavra de Cristo possui para curar nossas doenças: a sua intimidade de vida com o Pai, a sua fidelidade amorosa e obediente ao Pai. Em sua ternura para com os doentes, com efeito, Jesus exprime a compaixão do próprio Deus por sua criatura. Jesus que se comove, que se entristece, que fica aflito e chora diante da dor que devasta o ser humano, diante da morte que pretende anular a obra de vida do Criador, exprime o sentimento de participação dolorosa do Pai, que assume aquela situação e a transforma, curando-a.

Die heilende Kraft des Wortes Christi kommt aus diesen zwei Quellen: das Mitleid mit den Menschen und die Nähe mit der Gesinnung des Vaters, „der will, dass alle Menschen gerettet werden“ (1 Tim 2,4) und deshalb seinen Sohn gesandt hat, „damit die Menschen das Leben haben und es in Fülle haben“ (Joh 10,10). So ist also die Quelle eines „wirksamen“ Wortes beschaffen, das der Jünger Christi berufen ist, der leidenden Person zu übermitteln.

Page 12: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

22 23

JO próprio Jesus, na parábola mencionada, indicava “como” construir uma vida espiritual robusta: escutar suas palavras e praticá-las (Mt 7, 24). O problema está, portanto, na disponibilidade da escuta e em agir da maneira correspondente.

Parece, por isso, que se trate de ativar dois movimentos do espírito. Na realidade, porém, é uma dualidade feita de um único dinamismo, porque um não pode estar sem o outro. Aliás, é próprio o risco de curar-se só de um deles – escutar e não praticar, ou praticar sem refletir sobre o porquê da ação – que põe em perigo a consistência da construção.

O risco de uma vida espiritual ilusória Com certeza, existe o risco de “escutar” e “não praticar” o que se ouviu. É impressionante observar com quanta insistência o Novo Testamento volte a esta eventualidade. Poucos versículos antes dos citados, o mesmo evangelista relata uma afirmação de Cristo: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai” (7, 21). Será, pois, o apóstolo Tiago a declarar em sua epístola, sem meios termos, mas também com um certo humorismo: “Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes; isto equivaleria a vos enganardes a vós mesmos. Aquele que escuta a palavra sem a realizar, assemelha-se a alguém que contempla num espelho a fisionomia que a natureza lhe deu: contempla-se e, mal sai dali, esquece-se de como era” (Tiago 1,22-24)5. Vê-se claramente quanto seja fácil construir uma vida espiritual baseada em sentimentos nobres e belos, que enchem a vida de entusiasmo, mas que depois – nos momentos de provação – se revelam pelo que são, isto é, “ilusões”. O tempo da provação, mostra a verdade de cada um, o que efetivamente a pessoa é, e não o que ela acha que é. Tudo é, se poderia dizer, questão de coerência: coerência entre convencimento e conduta, entre os valores do “reino de Deus” professados e atitudes existenciais. Trocando em miúdos, trata-se de

5 Outros textos: Mt 7, 24-27; Lc 8, 21; 11, 27-28; Rm 2, 13; ecc.

3A casa Sobre a Rocha

Como construir uma espiritualidade sólida, capaz de sustentar a dureza de certas situações ou provas da vida que podem comprometer todo o caminho até agora percorrido? Cada cristão sabe que foi o próprio Jesus a prevenir contra este risco, com a famosa parábola da casa construída sobre a rocha. Antes ou depois, em efeito, vem o tempo em que “cai a chuva, vêm as enchentes, sopram os ventos e investem contra aquela casa” (Mt 7, 27).São numerosas as circunstâncias ou eventos que podem representar uma tal ameaça. Para quem vive e trabalha no mundo da saúde, e talvez o faça devido a um “chamado” que sentiu em sua vida e acredita que aquele apelo vem de Deus, a doença – seja a própria ou a de quem assiste – pode certamente ser uma destas ameaças.

A doença: escândalo ou oportunidade? A doença, na realidade, principalmente quando se trata de algo sério, é sempre vivida como um “obstáculo” que impede o desenvolvimento da vida, sobretudo se ela for entendida como um “projeto” a ser realizado. Também São Paulo, mesmo sendo tão apaixonado pela causa de Cristo de seu Evangelho, quando foi atingido o que ele chama “um espinho na carne” (uma metáfora, conforme explicam muitos exegetas, para expressar precisamente uma doença desagradável)4, “por três vezes, rezou” (2 Co, 12, 7-8) para se livrar dela. O santo achava que aquela situação estivesse, acima de tudo, em contradição com seu chamado a ser “o apóstolo dos povos”: como poderia anunciar o nome de Cristo em tais condições? Como se locomover, como viajar, o que poderia organizar assim enfraquecido?

4 G. Cinà, L’apostolo Paolo e il dolore umano, Ed. Camilliane, Torino 2001, pp. 87-91; U.Vanni, La spiritualità di S. Paolo, in: R. Fabris, (a c.), La spiritualità del Nuovo Testamento, Borla, Roma 1985, p.198.

Page 13: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

24 25

conduzir uma vida coerente com o projeto que se quer realizar. E quais são as sugestões que o Evangelho oferece?

Como construir uma “casa sobre a rocha”?Entre as muitas sugestões que podemos recolher dos Evangelhos para este tipo de formação, chamo a atenção para três afirmações de Jesus, narradas por São Mateus, que me parecem muito pertinentes. A primeira é um grito de louvor a Deus; a outra, uma afirmação do próprio Jesus sobre a identidade teologal; a terceira, um convite a ir a seu encontro e que está direcionado a quem se sente oprimido por uma lei que não consegue praticar. Considerando o que nos dizem os exegetas, não é fácil definir o contexto no qual estas três afirmações se originaram. Provavelmente, sua localização atual se deve ao propósito redacional do evangelista. A este ponto de seu Evangelho (capítulos 11 e 12), Mateus está apresentando a reação de Jesus diante da incompreensão e rejeição de sua identidade messiânica. Fala-se, com efeito, de João Batista que, encarcerado na fortaleza de Macheronte, não é mais assim seguro (ele mesmo ou os seus discípulos?...) que Jesus seja verdadeiramente o Messias. Envia pois algum discípulo para verificar:“Sois vós aquele que deve vir ou devemos esperar por outro?”(11,3). Poucos versículos depois, serão os seus compatriotas a rejeitá-lo como rapazes voluntariosos: “Tocamos a flauta e não dançais, cantamos uma lamentação e não chorais” (11, 17). Os chefes do povo, por sua vez, o contestam até o ponto de procurar matá-lo (12, 33-37). No entanto, Ele é o “Cristo”, como provam os gestos de cura que opera nos doentes (11, 4-6); é o revelador dos mistérios do Pai, a favor de seu povo e age como um mestre humilde e compreensivo. Eis o texto que narra as outras duas afirmações:

Por aquele tempo, Jesus pronunciou estas palavras: “Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequenos. Sim, Pai, eu te bendigo, porque assim foi do teu agrado. Todas as coisas me foram dadas por meu Pai; ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo. Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11, 25-30).

Uma leitura atenta e direcionada destas expressões produz no leitor um senso de harmonização interior, em quanto se sente impulsionado a agir, atrevo-me a dizer, conaturalmente com a palavra escutada. Procurarei esclarecer este pensamento

Uma nova compreensão da realidade Já a contraposição entre os pequenos e os sábios e inteligentes mostra que tipo de atitude predisponha a acolher a palavra de Deus e a praticá-la: os pequenos mencionados pelo Senhor não são os simplórios e os menos dotados. Mais especificamente são os que têm um tipo de inteligência e de cultura diferentes dos sábios e doutos, que no caso eram os Escribas e os Fariseus: uma mentalidade caracterizada por uma rigidez que os deixava impermeabilizados à novidade do Reino que Jesus veio anunciar. Um tipo de inteligência fechada em seu orgulho e presunção e, justamente por isso, incapaz de acolher o nova realidade de Deus-Pai que estava no centro da mensagem de Cristo. Na mentalidade farisaica, a relação de Deus com seu povo, sancionada pela aliança e pelas palavras da Lei, limitava-se a um contexto legalístico e formal, exterior ao homem, incapaz de transformar o coração e a mente. Tinha-se perdido o sentido forte do mandamento central da fé de Israel: “Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” (Dt 6, 4-5).Aquele tipo de inteligência e de insensibilidade impedia também de captar o sentido

Page 14: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

26 27

verdadeiro da vida e das coisas. Para entender a realidade profunda dos fatos não é suficiente refletir e raciocinar. E, para agir de acordo com a palavra de Deus, não é suficiente se impor este relacionamento e seguir uma disciplina. Antes de mais nada, é preciso abrir-se à amplidão da vida e viver de maneira boa e confiante; viver na familiaridade como Deus e com aqueles que nos circundam, sentir gratidão por tudo o que Deus fez por nós e corresponder ao seu amor. Em síntese, é preciso uma inteligência humilde, porque a humildade é também indispensável para acolher a verdade. O orgulho e a presunção cegam, impedem o conhecimento da verdade, não somente – nem tanto – a verdade literária, quanto aquela vivida nos relacionamentos como o próximo e com as coisas.

A autoconsciência de Jesus: “tudo me foi dado por meu Pai”É isto que torna Jesus capaz de olhar com tanta simpatia os pequenos e se reconhecer neles: ele, na realidade, não tem nada que não tenha recebido do Pai: “Tudo me foi dado por meu Pai”. Ele deve todo seu ser ao Pai, não possui nada de seu. Confia totalmente no Pai e do Pai tudo recebe. Este sentimento de confiança absoluta no Pai constitui sua segurança e sua força: o Pai é a rocha sobre a qual ele funda todo o seu ser. Eis a segurança de Cristo, que lhe permite falar e agir de modo tão franco e respeitável, e que o levará a confiar no Pai também na terrível “hora” do Getsêmani.

Aqui está o ponto firme ao qual o discípulo deve tender para construir sua fé sobre a rocha: não olhar para fora de si, talvez confrontando-se com os outros; e sim olhar para dentro de si mesmo para descobrir a presença e a ação de Deus que nos criou por amor e no seu amor nos mantém.

Descobrir que tudo devemos a Ele e ao seu amor. Esta é a base que dá vigor e força ao discípulo e o sustenta também na hora da provação. Por isso, o cristão deve imitar Cristo, em sua humildade e confiança total no Pai, para que sejam formados – também nele – os mesmos sentimentos do Filho (Fl 2,5).

O paradoxo cristão Nesta perspectiva, adquire um sentido pleno a paradoxal afirmação: “meu jugo é suave e meu fardo é leve”. A palavra de Cristo é verdadeiramente paradoxal, porque coloca junto ‘peso e fardo”, por um lado, e ‘suavidade e leveza’ por outro: como pode ser suave e leve o que é pesado e doloroso? E ainda, não disse Jesus que “quem quiser segui-lo” deve “levar a sua cruz”? Ele nunca enganou seus ouvintes, ao contrário, falou da necessidade de esforçar-se para encontrar e seguir o caminho estreito quando se quer entrar na vida verdadeira. A contradição aparente se resolve precisamente quando se assimila a atitude de Jesus diante da vida: confiar e entregar-se ao Pai, estar em suas mãos, dele vem a sua “graça”: “Basta-te minha graça”, frase que São Paulo sentiu que vinha de Deus, quando, doente, rezava pela sua cura (este é o significado que muitos exegetas atribuem às expressões utilizadas pelo apóstolo). “Mas ele me disse: Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha força. Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo”(2 Cor 12,9).Agora sabemos que a “graça” é, em primeiro lugar, a atitude de amor atencioso e benévolo do Pai para com o filho. Disso nasce, no filho, o sentimento de confiança e de segurança que o faz capaz de enfrentar a vida, de assumir as próprias responsabilidades, de estar de pé diante das dificuldades e da dureza da existência. A experiência e as ciências humanas por acaso não ensinam que a primeira qualidade a ser cultivada na criança é justamente o senso de segurança, e isto nasce do acolhimento amoroso dos pais? Quantos dramas da vida vêm desta carência afetiva, e quantas vidas perdem uma orientação, tornam-se inseguras e incapazes de assumir responsabilidades e empenhos, porque faltou este afeto! Somente sobre este sentimento de confiança, pode ser construída uma vida madura e responsável.Nesta segurança, que nasce na infância através do amor acolhedor dos genitores, o discípulo de Cristo sabe ver um sinal demonstrativo de que tudo lhe foi dado pelo Pai-Deus.

Page 15: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

28 29

4Por uma igreja compassiva:

a partir de São Paulo A “compaixão” é um sentimento natural?

O que entendemos por “compaixão”? É oportuno esclarecer, de qualquer maneira, o conceito, seja porque a linguagem corrente atual dá a este vocábulo frequentemente um viés piedoso, ou seja pela variedade das motivações que podem estar na origem do termo. Quanto a seu significado, os dicionários em geral indicam “participação ao sofrimento dos outros” (ter compaixão de alguém, sentir compaixão por alguém...), ou até mesmo “nutrir um sentimento de desprezo para alguém ou algo”, como por exemplo: “Aquele orador provoca compaixão!”.Há alguns anos, Romano Guardini notava como, sob pressão do individualismo crescente da época moderna, o sentimento de solidariedade estivesse enfraquecendo. A observação vinha do fato que se podia constatar um diminuição no comprometimento com os serviços de saúde e advertia: “O serviço ao próximo está em perigo” 6. A disponibilidade para servir as pessoas necessitadas, ele sublinhava, não é um fato espontâneo e natural. Exige educação e empenho, porque é um dado “cultural” e não “natural”, devendo portanto ser cuidadosamente cultivado. Sua proposta era refletir sobre o tema, com o propósito de favorecer um perfil de igreja “compassiva”, comprometida com a revelação bíblica e com a tradição cristã.

Ressaltava também o fato de que, no mundo ocidental, a atitude de cuidado atencioso aos necessitados havia encontrado seu ponto forte no cristianismo. Com efeito, foi a fé cristã que educou a este comportamento. A parábola de São Lucas do “bom samaritano” foi uma imagem representativa deste valor do Ocidente. Por isso, com a diminuição da fé cristã na consciência da sociedade ocidental contemporânea, é muito lógico um correspondente enfraquecimento, se não desaparecimento, deste tipo de sentimento.

6 R. Guardini, Il servizio al prossimo in pericolo, in: Id.: Ansia per l’uomo, tr.it. Morcelliana, Brescia 1969, vol. II, 73-102

A experiência de São PauloINa experiência do apóstolo Paulo, a origem e a fonte da capacidade de nutrir a “compaixão” do fiel está no próprio Deus, em sua atitude de cuidado atento à humanidade. Ele, “hebreu, filho de hebreus” (Fl 5), exorta frequentemente suas comunidades a cultivar este comportamento.

Fala porque fez experiência neste âmbito; conhece, de fato, o “Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias, Deus de toda a consolação, que nos conforta em

todas as nossas atribulações, para que, pela consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus, possamos

consolar os que estão em qualquer angústia!” (2 Cor 1, 3-4). O apóstolo, portanto, experimentou Deus como “Pai das misericórdias, Deus de toda a consolação”, e por este motivo agora transfere estes sentimentos para outros que estão sofrendo. Todavia, no texto citado, o apóstolo associa a comunidade

ao seu sofrimento e consolação. Deste modo, se vê a gênese da dimensão compassiva da comunidade cristã:

“Se, pois, somos atribulados, é para vossa consolação e salvação. Se somos consolados, é para vossa consolação, a

qual se efetua em vós pela paciência em tolerar os sofrimentos que nós mesmos suportamos. A nossa esperança a respeito de

vós é firme: sabemos que, como sois companheiros das nossas aflições, assim também o sereis da nossa consolação. (v.6-7).

Forma-se deste modo a “comunidade” dos cristãos que logo se torna uma comunidade de compaixão e de consolação.

A comunidade cristã é “corpo de Cristo”O que ainda caracteriza a comunidade cristã, no pensamento de São Paulo e nos outros textos do Novo Testamento, é a constatação que ela nasce do corpo glorioso de Cristo. O “corpo” de Cristo exprime, de fato, o seu comportamento “pro existente”. Na ceia de

Page 16: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

30 31

instituição da eucaristia, Jesus ressalta que seu corpo é um “corpo doado”, assim como seu sangue é “derramado”: Cristo existe “para” outro, fora de si mesmo. Neste comportamento “pro existente” do seu corpo pascal se resume todo seu sentimento de “compaixão” que caracterizou sua vida pública. Então, na ceia pascal, Cristo, transmitindo seu corpo aos discípulos, insere neles aquele mesmo comportamento de autodoação. Assim, a comunidade de Cristo, que nasce da páscoa na visão do apóstolo, é um corpo: “nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo em Cristo, e cada um de nós é membro um do outro. Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros, cada um por sua parte”(1 Cor 12,27; Rm 12,5). Existe, por isso, uma reciprocidade entre Cristo e seu discípulo, como também entre os próprios discípulos, que é solidariedade na alegria e na aflição, conforme São Paulo, concluindo, dirá: “Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros compartilham a sua alegria” (1 Cor 12, 26).O mesmo pensamento permeia outras epístolas. Ele escreveu aos gálatas: “carregai o peso uns dos outros(6,2); e aos cristãos de Roma: “Sede alegres na esperança, pacientes na tribulação e perseverantes na oração. Socorrei às necessidades dos fiéis. Esmerai-vos na prática da hospitalidade... Alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram. Vivei em boa harmonia uns com os outros” (12,12.15-16a).

Clima de afeto e de ajuda recíproca na comunidadeOutras expressões de São Paulo evidenciam como este comportamento seja constitutivo da personalidade de Jesus Cristo, do discípulo e da comunidade cristã. No hino à caridade, da primeira epístola aos coríntios, é especialmente luminosa a seguinte afirmação: “Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, de nada valeria!”(13,3).

O apóstolo quer dizer que o amor aos demais não consiste somente em fazer o bem: antes de “fazer”, há um “ser” que deve ser cultivado, um “modo de ser”. Isso significa que o “fazer o bem” deve expressar um sentimento de afeto e de calor, bem personalizado e habitual, para com o próximo. O comportamento compassivo, em síntese, não se improvisa, nem pode limitar-se a um gesto ocasional.

Um comportamento assim enraizado e desenvolvido, forma, no interior da comunidade, um clima de afeto e de ajuda recíproca que se manifesta também exteriormente: “Saudai-vos uns aos outros com ósculo santo” (1 Cor 16,20; Rm 16,16); “com amor fraterno, tendo carinho uns para com os outros” (Rm 12,10). Ele mesmo atesta o próprio afeto aos destinatários da epístola: “Eu vos amo a todos vós em Cristo Jesus” (1 Cor 16,25); “Foi numa grande aflição, com o coração despedaçado e lágrimas nos olhos, que vos escrevi, não com o propósito de vos contristar, mas para vos fazer conhecer o amor todo particular que vos tenho”(2 Cor 2,4). Nutre um pensamento similar pelos filipenses: “E é justo que assim pense de todos vós, porque vos tenho no meu coração... Deus me é testemunha de que vos amo a todos com a ternura de Cristo Jesus” (Fl 1,7-8).Porque o verdadeiro amor a Cristo e ao próximo impulsiona a demonstrar compaixão aos irmãos: “O amor de Cristo nos constrange, considerando que, se um só morreu por todos, logo todos morreram. Sim, ele morreu por todos, a fim de que os que vivem já não vivam para si, mas para aquele que por eles morreu e ressurgiu” (2 Cor 5,14-15).

Um texto peculiar para o mundo da saúdeA epístola aos gálatas, comunidade que, como se sabe, provocou várias preocupações e tristezas ao apóstolo, narra um momento concreto da vida de São Paulo, em que ele mesmo experimentou a aflição daqueles discípulos. Paulo os incentiva a comportarem-se não como “escravos” de Deus, mas como “filhos” conscientes de serem amados pelo Pai, porque é o próprio Espírito santo que, neles, grita “Abba, Pai!” (4, 6-7). Depois acrescenta: “Receio ter-me fatigado em vão por vós” (v.11). Ainda

Page 17: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

32 33

conclui com uma forte exortação que nasce da experiência de “compaixão” que os gálatas experimentaram em primeira pessoa, e pelos quais ele, por sua vez, continua a dedicar-se a “gerá-los entre as dores do parto” a uma fé adulta. Eis o texto: “Suplico-vos, irmãos, que vos torneis como eu, pois eu também me tornei como vós. Em nada me ofendestes. Bem o sabeis, foi por causa de uma doença que eu vos evangelizei pela primeira vez. E vós não mostrastes desprezo nem desgosto, em face da vossa provação na minha carne; pelo contrário, me recebestes como anjo de Deus, como Cristo Jesus. Onde estão agora as vossas felicitações? Pois vos testemunho que, se vos fosse possível, teríeis arrancado os olhos para dá-los a mim. Então, dizendo-vos a verdade, tornei-me vosso inimigo? Não é para o bem que eles vos cortejam. O que querem é separar-vos de mim para que vós os cortejeis a eles. É bom ser cortejado para o bem sempre, e não só quando estou presente entre vós, meus filhos, por que sofro de novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós” (Gl 4, 12-19). Esta narração é interessante para nosso argumento, seja porque relata a experiência de solidariedade e conforto que o apóstolo tinha experimentado daquela mesma comunidade no tempo de sua doença, ou seja porque São Paulo está ainda exercitando, com relação a eles, uma atenção apostólica que se origina num sentimento “materno”, mas doloroso como as “dores do parto”. A imagem do sentimento materno utilizada para expressar seu ministério apostólico – “sofro de novo as dores do parto” (odìno = sofro as dores do parto) – estava já em 1 Ts 2,7: “...apresentamo-nos no meio de vós cheios de bondade, como uma mãe que acaricia os filhinhos”7. Em certo sentido, aproximaram-se assim a ação compassiva dos gálatas e a dedicação apostólica de Paulo à sua comunidade. Trocando em miúdos, existia a prática de uma “compaixão” recíproca, mesmo que tivessem motivações diversas.

Mas “compadecer” é também “com-sofrer”O cristão, porém, está chamado não só a expressar a “compaixão de Cristo” aos necessitados (sym-patheia), como também à participação aos “sofrimentos/padecimentos de Cristo”

7 Em 1 Cor 4,15, São Paulo utiliza a imagem do pai que gera: “Com efeito, ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais, pois fui eu quem pelo Evangelho vos gerou em Cristo Jesus”

(sym-paschein). O autor da epístola exortativa aos hebreus recorda como eles haviam já exercido este compartilhamento no início de seu caminho de fé. Agora, trata-se de manter com constância aquele comportamento: “Lembrai-vos dos dias de outrora, logo que fostes iluminados. Quão longas e dolorosas lutas sustentastes. Seja tornando-vos alvo de toda espécie de opróbrios e humilhações, seja tomando moralmente parte nos sofrimentos daqueles que os tiveram que suportar. Não só vos compadecestes dos encarcerados, mas aceitastes com alegria a confiscação dos vossos bens, pela certeza de possuirdes riquezas muito melhores e imperecíveis” (10,32-34).Também Paulo conhece e fala deste sofrimento “por causa de Cristo”, e que se torna um “com-padecer/com-sofrer” com ele. A comunhão/koinonia com Cristo é indivisível da participação ao seu sofrimento; e quem aspira a nutrir os mesmos sentimentos de Cristo, sofrerá também com ele: “…para conhecê-lo, conhecer o poder da sua ressurreição e a participação nos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte, para ver se alcanço a ressurreição de entre os mortos” (Fl 3,10-11; Rm 8,17; 1 Pd 4,13).

Compaixão como vulnerabilidadeNo mais, a epístola aos hebreus havia afirmado, com notável audácia, que Cristo, para tornar-se um sacerdote em condições de salvar o homem, deveria “...se compadecer das nossas fraquezas”, e, por isso, ser também ele “provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (4,15).Tanto é verdade que o escritor sagrado não mostra o Filho como “mediador perfeito”, ou seja, plenamente habilitado a desenvolver sua missão, desde o primeiro momento da encarnação, pelo único fato de que no Filho estavam unidas as duas naturezas, a humana e a divina (ver o primeiro capítulo). Neste caso, não teria sido levada a sério a dimensão humana e histórica da encarnação; os acontecimentos da vida de Cristo teriam perdido seu sentido autêntico. Aliás, nota-se a presença de um tipo de conflito ou de tensão entre a natureza humana de Cristo e sua filiação divina, como aconteceu na noite do Getsêmani (5, 7-10). Uma tensão que não vinha, com certeza, de uma culpa pessoal, pois, com firmeza, se declara a absoluta ausência de pecado em Cristo (4, 15), mas ao compartilhamento de uma natureza humana decaída.

Page 18: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

34 35

O compartilhamento da fraqueza humana o tornou capaz de “provar compaixão” pelo homem. Teve de entrar na fragilidade da condição humana e, assim, de dentro, foi capaz de consolar, de com-padecer (sympathésai). É este tipo de “fragilidade” assumida por solidariedade, que o faz causa de “salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (Hb, 5, 9).

Eis o sentido da “com-paixão”, da sympàtheia de Deus com o homem e do homem com Deus. Abraham J. Heschel, em sua obra juvenil, “A mensagem dos profetas”8, vê a manifestação do pathos de Deus com relação ao homem no comportamento do profeta que, em sua pessoa e nos acontecimentos de sua existência, é chamado a representar para Israel a atitude de solicitude e de amor que Deus nutre por seu povo: o profeta é tal precisamente quando participa do “pathos” de Deus para com seu povo e o expressa com sua vida. No Novo Testamento, é a comunidade cristã – a igreja – que no seu conjunto participa do pathos de Cristo, no qual se revela o pathos do Deus trinitário: os Três que vivem da doação recíproca por amor, e que acolhem no seu pathos o homem e toda a criação. Então, emerge a “igreja compassiva”, o sacramento do Deus trinitário, do qual expressa e comunica a atitude de cuidado diligente.

8 Tr.it. Borla, Roma 1983.

Page 19: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

36 37

5A eucaristia e o enfermo

A tradição da Igreja sempre considerou uma relação particular entre o enfermo e a eucaristia. Também o atual missal romano que acolheu, com pequenas modificações, os três formulários anteriores para as missas dos enfermos, dá fé disso, seja para os enfermos, o Viático, ou para os moribundos. Também o novo ritual para o sacramento da Unção dos enfermos prevê, e solicita, depois de rezar o “Pai nosso”, a inserção da comunhão eucarística. O documento da Conferência Episcopal Italiana “A evangelização e os sacramentos da penitência e da unção dos enfermos”, de 1974, no número 161 exorta: “É uma possibilidade que não deve ser menosprezada, até mesmo porque ajuda a colocar a Unção na luz da eucaristia, origem, centro e fim de todo o organismo sacramental”. Aliás, o citado “ritual” não só vê a oportunidade de inserir a administração da Unção na eucaristia, como também estabelece uma relação direta entre o sacramento e o “cuidado pastoral dos enfermos”. Deste modo, recupera-se a organicidade da pastoral da saúde na Igreja. Nesta perspectiva, podemos compreender bem a seguinte afirmação da Carta Apostólica de João Paulo II, “Mane nobiscum Domine”:

a eucaristia oferece “não apenas a força interior, mas também em determinado sentido o projeto”, isto é, “um modo de ser que passa de Jesus para o cristão e, através do seu testemunho, tende a irradiar-se na sociedade e na cultura” (MN 25).

É o significado da fórmula que define a eucaristia como “fonte e cume” da evangelização e de toda ação sacramental da Igreja (SC 10, LG 26, UR 15; PO 5).O que significa, do ponto de vista pastoral, essa expressão? Tem-se a impressão de que na práxis a eucaristia seja vista, com certeza, como ponto de chegada da evangelização, mas que

não esteja no seu início, não seja – em outros termos – o motivo inspirador. Normalmente, é a “palavra” que tende a suscitar a fé, para depois, num segundo momento, atingir o sacramento... Por certo, esta diretriz é já melhor que uma preocupação sobretudo de “sacramentalização” do fiel. Trata-se, ao contrário, de recuperar o sentido que a eucaristia tem em toda a ação pastoral, porque é precisamente a eucaristia que edifica a Igreja e que forma o cristão9.Aquela fórmula, portanto, quer dizer que ela está no centro da vida e da evangelização, na medida em que é o motivo inspirador e o objetivo para o qual todo o resto tende.

Os enfermos no Evangelho da “multiplicação dos pães”Se o vínculo entre enfermo e eucaristia sempre esteve presente na consciência da Igreja, isso é um sinal que encontra suas raízes na própria práxis de Jesus. É interessante, por exemplo, observar o sentido que a presença dos enfermos adquire nas narrações evangélicas da “multiplicação dos pães”, milagre que se refere claramente à eucaristia. Os quatro Evangelhos narram este episódio. Na introdução da narração, sejam os sinópticos ou João, mencionam uma “grande multidão” que o segue e sublinham – exceto no caso de Marcos – a presença dos enfermos e os gestos de cura da parte de Jesus. Para São João, a participação dos doentes representa até mesmo o motivo da vinda de tanta gente: “Uma grande multidão o seguia, porque tinha visto os sinais que ele realizava nos doentes” (6,2). Mateus comenta a “compaixão” de Jesus para com a multidão; ao sentimento, segue a ação, isto é, a cura dos doentes (14,14). Lucas por sua vez, cita a dupla ação de Cristo, ou seja, “falar do reino de Deus” e “sanar os necessitados de cura”(9,11). O significado da presença dos doentes, ressaltada nos três Evangelhos, pode ser entendido no Evangelho de Lucas. Após o chamado dos doze (6,12-19), o evangelista narra que Jesus desceu com eles e parou “num lugar plano, onde havia numeroso grupo de discípulos e imensa multidão de pessoas de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidônia.

9 João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, n.21: “No Cenáculo, os Apóstolos, tendo aceitado o convite de Jesus: «Tomai, comei [...]. Bebei dele todos » (Mt 26, 26-27), entraram pela primeira vez em comunhão sacramental com Ele. Desde então e até o fim dos séculos, a Igreja edifica-se através da comunhão sacramental com o Filho de Deus imolado por nós: « Fazei isto em minha memória...”.

Page 20: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

38 39

Tinham vindo para ouvi-lo e ser curados de suas doenças. Os atormentados por espíritos impuros também eram curados” (6, 17-18). Por isso, “o motivo que os impulsiona a ir até Jesus é a necessidade de ouvi-lo e de serem curados. Assim como a palavra da serpente trouxe o mal e a morte, assim a palavra de Deus cura e dá vida... A Palavra cura o mal radical que é a mentira, e sua escuta salva da desconfiança que gera a desobediência”10.Existe, portanto, uma relação entre palavra e gesto terapêutico de Cristo, sinal de que a evangelização não consiste somente no anúncio, mas o próprio anúncio deve transformar-se em ação, obra curadora e regeneradora (é o significado da “palavra de Deus” já no Antigo Testamento). Os doentes, então, com seu pedido de saúde, expressam muito bem a pobreza do homem e sua necessidade de ser salvo. Com sua evidente insuficiência, eles tornam-se um símbolo representativo da verdade do homem, de sua condição existencial, marcada pela pobreza e pelo pecado. No mais, Jesus havia se apresentado como portador de salvação, através da imagem do médico: “Os sãos não têm necessidade de médico e sim os doentes” (5,31).

Além da cura orgânicaContudo, os Evangelhos denunciam também a insuficiência do simples desejo de cura do mal físico para entrar no “reino de Deus”. Nas narrações da multiplicação dos pães, esta realidade surge de modo mais claro no Evangelho de São João, em que, conforme comentei antes, “os sinais que ele realizava nos doentes” (6,2) são indicados como o único motivo do assédio da multidão: “Uma grande multidão o seguia, porque (othi) tinha visto os sinais...”. A este propósito, um famoso biblicista comenta: “O comentário geral (cf. 2,23; 4,45) è destinado a chamar a atenção para a multidão que o seguia somente por estes benefícios exteriores e não por uma fé mais profunda (cf. 2,24), aliás, até mesmo por egoísmo e procura de sensações(cf. 4,48). De tal modo, a narração já prepara o leitor para a reação do povo depois da multiplicação dos pães (v. 15), para sua imperfeita compreensão do ‘sinal’ (v.26) e à incredulidade que está implícita (vv.30.36)”11.

10 S. Fausti, Una comunità legge il vangelo di Luca, EDB, Bologna 2003 (9 ristampa), 163.11 R. Schnackenburg, Commentario teologico del NT. Il vangelo di Giovanni, parte II, tr. it. Paideia, Brescia 1977, 32.

Por isso, é preciso que Jesus se desvele para que a fé inicial cresça e se torne mais madura, para que o homem seja capaz de participar da vida divina. É este o motivo do novo “sinal” que Jesus realiza: a multiplicação dos pães. Todavia, até mesmo aqui a multidão permanece prisioneira da satisfação de uma necessidade imediata, incapaz de ir além. Aliás, diante do discurso de Jesus, que procura transmitir a compreensão do milagre apenas realizado, o povo pede um novo sinal: “Que sinal realizas, para que vejamos e creiamos em ti?” (Jo 6,30). É preciso mais profundidade para perceber o que está na origem de nossa precariedade, assim como de certas nossas incapacidades de compreensão: o pecado e a morte, as duas “raízes transcendentais do mal”, como lembra João Paulo II, na “Salvifici doloris” (n.14).

Cristo realmente atende os nossos pedidos, mas depois vai além, porque sabe “o que está em cada homem” (Jo 2, 25), e portanto o que verdadeiramente precisamos: “procurem primeiro o reino de Deus e sua justiça, e todas estas coisas lhes serão dadas em acréscimo” (Mt 6, 33). Além do mais, nós, como diz o apóstolo, “nem mesmo sabemos o que convém pedir (Rm 8, 26).

É comovente a oração de Antoine de Saint-Exupéry: “Não me dê o que desejo, mas o que eu preciso”, invocação que santa Teresa de Lisieux havia esclarecido: “O Senhor é tão bom comigo... Sempre me deu o que eu desejava, aliás, me fez desejar o que Ele queria conceder-me”. Cristo sabe que o homem vive somente no relacionamento com Deus, ao ponto que – se não reconhecer Deus como fonte de seu ser e de todo seu agir – não poderá viver. É o motivo pelo qual deve “comer a carne do Filho do Homem e beber seu sangue” (Jo 6,53): a eucaristia faz viver porque instala o homem na relação com Deus. O discurso longo e apaixonado sobre “o pão da vida”, do Evangelho de São João, é a catequese do Senhor, para que o homem acolha a oferta de Deus. Só assim poderá viver e viver “na abundância” (Jo 10,10). Na perspectiva do quarto Evangelho, toda a fé cristã se aposta na eucaristia: “Não quereis também vós partir?” (Jo 6,67), pergunta Jesus aos doze, revelando quanto é irrenunciável esta relação.

Page 21: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

40 41

A eucaristia “fonte e cume da evangelizaçãoe da atuação sacramental da Igreja”

Toda a pastoral da Igreja, então, evolui na perspectiva da eucaristia, como também deriva da eucaristia: dela se parte e a ela se retorna. Nela, se “faz” a Igreja, isto é, se forma a comunidade cristã, a comunhão; ao mesmo tempo, da comunidade-comunhão se parte para a missão que deve retornar à comunidade-comunhão e, portanto, à eucaristia. É esta a razão central da relação entre a eucaristia e o enfermo: levar a eucaristia ao enfermo, levar o enfermo à eucaristia, porque somente a eucaristia faz viver – não só no sentido biológico e psíquico, mas também teologicamente, ou seja, em relação com Deus. E somente esta é a vida verdadeira.

Contudo, é também a comunidade que “precisa” da presença do enfermo, posto que ele expressa, por causa de sua condição de transitoriedade e de dependência, na maneira mais convincente, a nossa dependência uns dos outros, e realidade de estar relacionados.

Exatamente por este motivo, o doente ajuda a entender a necessidade absoluta que temos da eucaristia: para estar em relação com Deus, para viver de modo próximo entre nós, para viver em “...comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1 Jo 1,3-4).Em conclusão, também as narrações evangélicas da multiplicação dos pães, com sua ênfase na participação dos enfermos, ajudam a entender o sentido do vínculo entre a eucaristia e os doentes. Com sua presença, expressam vivamente a condição humana necessitada de salvação. Com seu comportamento, Jesus também nos faz entender como não devemos nos limitar ao pedido de cura física ou psíquica. A condição de “toda sorte de doenças e enfermidades” (Mt 9, 35) deve ser interpretada como sinal de um mal mais profundo, cuja libertação está acima das possibilidades humanas e somente uma relação com Deus pode resolver, ou seja, somente a fé. E a fé faz passar da saúde à salvação. A este respeito, é significativo o uso dos

verbos nos episódios da cura da mulher hemorroíssa (Lc 8,43-48) e dos dez leprosos (17, 11-19): antes se fala de “curar, cura”, depois de “salvar, salvação”. A fé, por sua vez, é um dinamismo relacional com Deus que deve ser protegido, cultivado, e também aprofundado e desenvolvido; deve “crescer” e abrir-se a uma relação com Deus que permita que cada um de nós acolha em si a própria vida divina. Isto acontece no sacramento, em que “a palavra se faz carne”, isto é, torna-se “elemento do sacramento e o evento sacramental, desta maneira, se cumpre”12: o pão eucarístico é o “corpo partido para nós” que, nos incluindo “em Cristo”, nos faz efetivamente partícipes da vida divina. Deste modo, o doente que se nutre da eucaristia é “salvo” e não somente “curado”.

12 H. Schuermann, Commentario teologico al NT: Il vangelo di Luca, parte I, tr. it. Paideia, Brescia 1983, 700.

Page 22: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

42 43

6O Viático

A comunhão eucarística próxima à morteÉ surpreendente observar quanto seja pouco presente, na consciência do cristão de hoje, a importância do Viático, ou comunhão eucarística próxima à morte. E isto apesar da grande renovação que a práxis litúrgica e sacramental sofreu após a reforma trazida pelo Concílio Vaticano II. O novo ritual, que coloca o Viático no ordenamento da Unção dos Enfermos e de seu cuidado pastoral, oferece elementos preciosos para uma melhor compreensão de seu significado. Uma sugestão considerável, para intensificar a prática do Viático, vem do Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia, celebrado no Vaticano, em outubro de 200513. Não obstante, na tradição da Igreja, a administração da eucaristia no momento da morte sempre foi considerada. Atualmente, dispomos de estudos bem elaborados sobre a história do Viático que fazem uma reconstrução complexa, com alternância de acontecimentos em que a modalidade concreta da celebração do sacramento varia segundo o tempo e o lugar. Contudo, a preocupação da Igreja de que nunca faltasse ao cristão moribundo a comunhão eucarística, sempre permaneceu firme. Então, a que se deve o atual esquecimento (ou desinteresse?) do Viático também na consciência da comunidade cristã?

O atual “esquecimento” na consciência dos fiéisCom certeza, o clima de secularização que caracteriza o nosso tempo influi também nos cristãos em sua percepção dos valores de sua fé. Uma sociedade secularizada, que relega ao plano privado tudo quanto diz respeito a religiosidade do homem, por si mesma não facilita a assimilação e a prática dos conteúdos da própria fé. Todavia, é também a atitude de ignorar a morte, típica de nossa sociedade, que torna mais problemática a percepção do significado que ela assume na fé cristã. Prevalece, de fato, uma atitude de remoção da morte, percebida como um tabu, “uma experiência cujo ingresso é

13 In: Il Regno, n.44 (2005), p.19.

proibido”14.Motivos deste comportamento

Não é fácil indicar os motivos deste modo de comportar-se diante de uma realidade com a qual – de qualquer modo – devemos nos confrontar. Proponho somente algumas observações para estimular a reflexão pessoal:

- a sociedade contemporânea é propensa a celebrar unicamente os valores do sucesso, do estar fortes, sadios, jovens e belos, por isso a morte é vivida mais como uma derrota, uma desgraça, uma catástrofe que é preciso esquecer o quanto antes, para que o ritmo da vida retome seu inebriante refrão. - a cultura deste tipo de sociedade não está em condições de oferecer ideais pelos quais viver, valores pelos quais empenhar-se, objetivos que apaixonem. Portanto, o povo sofre de um vazio interior, destituído das convicções que dão segurança à pessoa e fazem com que ela seja capaz de escolhas autônomas, pessoais. Mas isso equivale a delegar a outros a gestão de um fato tão pessoal quanto a morte; - por isso, existe hoje em dia uma fuga e uma evasão diante da morte, porque uma correta administração destas condições exige pessoas livres, capazes de decidir com base em convicções interiores;- neste contexto sociocultural, também a morte é conformada ao modelo dominante: são “outros” que lidam com a própria morte. É um modo de morrer que priva a pessoa humana da originalidade de seu caráter, de morrer da “própria” morte e de poder – desta maneira – conferir a esse momento a própria marca pessoal. Por isso, no moribundo de hoje, se vê unicamente uma pessoa que chegou à conclusão, “ao final” e não “à finalidade”, ou seja, à meta, ao objetivo pelo qual se vive.

14 Palumbieri S., La morte nella città secolare, in: Felici S. (ed.), Morte e immortalità nella catechese dei Padri del III-IV secolo, LAS, Roma 1985, p. 275.

Page 23: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

44 45

Motivos internos à comunidade cristãContudo, aquele tipo de indiferença ou desatenção ao Viático diz respeito diretamente à comunidade cristã. Se não se pode negar a influência que a sociedade externa exercita também sobre os cristãos, um motivo da crise que atravessa a pastoral do Viático pode ser encontrada essencialmente na própria Igreja. Ao propósito, os estudiosos falam de uma “teologia pobre” do Viático e chamam a atenção para o fato de que “uma teologia pobre leva a uma pastoral inexpressiva do Viático”15. Por exemplo, o fato que a prática pastoral o confunda com a “comunhão dos enfermos” é um sinal que não se vê sua originalidade, verdade específica e significado próprio. Por sua vez, isto indica que existe pouca reflexão cristã sobre a riqueza teológica deste sacramento. Não se reflete suficientemente que a reforma do Vaticano II regressou o Viático à sua identidade de “sacramento dos moribundos, assim como a Unção dos Enfermos é o sacramento dos doentes”16.Além disso, que espaço ocupa o Viático na catequese e na pregação? Que espaço tem nas escolas de teologia e de ciências religiosas, de catequese e de pastoral?

Como recuperar seu valor e significado?É, antes de tudo, preciso que se volte a falar da morte para recuperar seu sentido. Convém, no entanto, tratar do assunto dentro do discurso antropológico, para mostrar sua centralidade.

A morte, na realidade, é uma questão inevitável para quem procura o sentido da vida. É possível entender algo da vida somente integrando também a questão da morte, que é fortemente preanunciada nas experiências dolorosas da existência.

Diante da morte, torna-se mais urgente minha resposta à pergunta: “O que devo fazer? O que

15 Rocchetta C., Il Viatico, in: AA.VV., Dizionario di Teologia della Pastorale Sanitaria, Ed. Camilliane, Torino 1997, p. 1360.16 Falsini R., Il senso del Viatico ieri e oggi, in: AA.VV., Il Sacramento dei malati, Elle Di Ci, Torino 1975, p.191.

posso esperar?”. Sou pessoalmente provocado a tomar uma decisão que de novo revela a vida como uma função a ser desempenhada, como uma resposta que deve ser dada à existência. A morte, aliás, se manifesta como o ato conclusivo da existência, um ato sintetizador da vida no qual o ser humano começa a surgir em sua identificação definitiva: somente agora, após a morte, começa a ficar claro “quem” verdadeiramente seja a pessoa que nos deixou.

O que nos diz a fé? Neste ponto, entra a função, atrevo-me a dizer, de cada fiel, de “evangelizar a morte”, de passar da “morte do ser humano” à “morte do cristão”.É óbvio que o ponto de referência não pode ser outro que o próprio Jesus: a morte de Cristo evangeliza nossa morte e revela o sentido definitivo que ela assume para o ser humano. Pois bem, nos Evangelhos, a morte de Cristo representa o acontecimento central de sua vida. Os Evangelhos estão estruturados ao redor do “mistério pascal” de Jesus, isto é, de sua morte e ressurreição. Portanto, a morte de Jesus é aberta à ressurreição, contudo não perde seu caráter dramático, pois de nenhum modo se nega sua aspereza e absurdidade. Certamente, Jesus não procurou a morte, mas quando percebeu que “devia” enfrentá-la – mesmo vivendo-a numa tensão lancinante, como testemunham os Evangelhos, sobretudo na agonia do Getsêmani e, depois, no Gólgota – se “entregou” livremente (Jo 10, 18), com decisão (Lc 9, 51) e a viveu “por amor” (Jo 13,1; 15,13). Por isso, a resposta do Pai foi a ressurreição. A morte não foi evitada, mas “atravessada” e, assim, mudou seu “sentido”, isto é, o objetivo e a direção: tornou-se “caminho para a vida”. Como foi possível verificar-se uma tal transformação da morte? É preciso observar “como Jesus morre”.

A atitude de Jesus diante de sua morteJJesus morre com uma atitude de total confiança no Pai, confiando nele “até o fim” (Jo 13, 1), ou seja, até o ponto de aceitar uma morte absurda como a sua, provocada por uma injusta condenação da humanidade, que se fechou a sua mensagem de amor e de vida. Esta obediência radical e amorosa ao Pai diz respeito ao cumprimento da sua missão de salvação para a humanidade. Também no que se refere aos homens, ele morreu com uma atitude de extrema solidariedade misericordiosa. É, com efeito, por causa desta morte, isto

Page 24: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

46 47

é, desta maneira de morrer, que a salvação chegou aos seres humanos: “por nós homens e por nossa salvação desceu do céu”.

A atitude de fidelidade a Deus e de misericórdia para com o homem, com a qual Jesus morreu, transformou o sentido da morte, tornando-a “caminho para a vida”.

Os sofrimentos relacionados com a morte de Cristo foram vividos como “as dores do parto” (Jo 16,21-23): o sinal exterior da transformação do sepulcro em berço em que nasce a vida em sua verdade e plenitude. A partir de então, o sentido da morte do homem que vive em relação com Cristo é que, ao morrer, passa à vida, à vida divina, eterna e bem-aventurada.

Significado do Viático“O Viático é o sacramento da passagem da morte à vida, deste mundo ao Pai; uma passagem que se realiza em Cristo”17.Em relação às precedentes comunhões eucarísticas que o fiel vivenciou e das quais se nutriu, o Viático é visto, no novo ritual (n.32) como “um sinal especial da participação ao mistério celebrado no sacrifício da Missa, o mistério da morte do Senhor e de sua passagem ao Pai”. Se já cada comunhão eucarística tornava o fiel partícipe do “corpo doado” e do “sangue derramado” do Senhor, agora o evento adquire uma densidade singular, porque o cristão também está vivendo o término de sua vida.

Os frutos do sacramento derivam desta realidade: se o Viático insere no cristão o modo de morrer de Cristo, ou seja, no dinamismo de seu mistério pascal, ele também participa desta atitude de autodoação e de confiança: a “páscoa” de Cristo torna-se a sua “páscoa”.

17 Rocchetta C., art. c. p.1361.

Este convencimento de fé faz superar o “medo” que o homem experimenta diante da morte (Hb 2, 15). O cristão dispõe, portanto, desta extraordinária ajuda para enfrentar a “passagem” da morte. Ele sabe que a realiza junto com o “companheiro de viagem” que é o Senhor Jesus, que conta com seu conforto para “ir além”, para a vida de Deus. Este dinamismo exodal é também princípio e sinal, penhor e garantia da ressurreição. Atualmente, há muita confusão – também entre os cristãos – sobre o significado evangélico da ressurreição18. Por este motivo, também a ressurreição deve ser... evangelizada! Não diz respeito somente ao corpo físico, somente à dimensão física e psíquica. Trata-se da introdução em um novo estado de vida, o estado “glorioso” que os Evangelhos testemunham através das aparições do Cristo ressuscitado. Podemos entender, enfim, como o Viático seja o sacramento da conclusão da “viagem” terrena, introduzindo ao último passo para a casa do Pai, “onde tu nos esperas” (como recita a oração eucarística do episcopado suíço). Faz “morrer com Cristo”, de modo que nos apresentemos ao Pai, que nos espera, acompanhados por Jesus!A celebração do Viático mostra que a morte do discípulo de Cristo é vivida na Igreja, isto é, na comunidade e não na solidão; ele “não morre sozinho”, mas na comunidade que o confia à “comunidade celeste”, à “nova Jerusalém” (Ap 21, 2) e o acompanha.Porque, em última análise, toda a revelação bíblica é “também um lento, longo e fatigoso aprender a morrer, desde Adão a Jesus de Nazaré”20. No entanto, aprender a morrer equivale a aprender a viver. Na perspectiva cristã, exercitar-se na arte de morrer com Cristo é se dispor a ressuscitar com Ele a uma Vida que não terá mais fim.

18 Catecismo da Igreja Católica, n. 996.

Page 25: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

48 49

Page 26: COMENTÁRIOS BÍBLICOS QUE ILUMINAM O …camilianos.org.br/wp-content/uploads/2013/12/P-Note-bibliche-per-l... · Atualmente, nossa sociedade parece que dificulte ainda mais a escuta,

Comitê para as Comemorações do IV Centenário

Casa Generalícia da Ordem dos Ministros dos Enfermos - Piazza della Maddalena,53 - 00186 ROMA Tel +39 06.899.281

BlackBerry Android

english

Android

italiano

ipadiphone

Para descobrir os lugares onde São Camilo viveu e trabalhou,faça agora o download do App iCamilliani

@San_Camillo - facebook.com/camillodelellis. orgacompanhe-nos em: www.camillodelellis.org - www.camilliani.org