comentário - ac. tj factortame

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- 1 - COMENTÁRIO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 19 DE MAIO DE 1990 PROCESSO C-213/89 The Queen e Secretary of State for Transport contra Factortame, Ltd. e outros Palavras-chave: Tutela Jurisdicional Efectiva; Princípio da União de Direito; Princípio da Lealdade, da Efectividade e do Primado do Direito da União Europeia; Tutela Cautelar; Reenvio Prejudicial. I. INTRODUÇÃO Enquanto “modelo de integração original1 , a União Europeia é dotada de um ordenamento jurídico próprio e autónomo, resultado do poder público de que as suas instituições são dotadas, desde logo, por serem capazes de criar Direito e de vincularem, a própria União Europeia e os Estados-Membros que a integram, a esse Direito. O fundamento deste Direito Público da União Europeia encontra-se no Princípio da União de Direito, recortado do ordenamento jurídico europeu, pela primeira vez, por Hallstein 2 e depois confirmado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Os Verdes, de 1986, que tem como função primordial o controlo ou a limitação da actuação dos órgãos comunitários e a garantia dos direitos dos particulares. Trata-se, no fundo, de um princípio estruturante da União Europeia equiparado ao princípio do Estado de Direito que é comum a todos os Estados-Membros. A essencialidade deste princípio mereceu-lhe consagração expressa, a partir de 1992, no artigo 6º do Tratado de Maastricht, que institui a União Europeia (“A União assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito, princípios que são comuns aos Estados-Membros.”) e vai transitar para o artigo 2º na versão 1 ANTÓNIO VITORINO, «União Europeia: natureza, legitimidade e democracia», in A Revolução Europeia por Francisco Lucas Piras – Antologia de Textos, apud. Alessandra Silveira in Princípios de Direito da União Europeia. 2 Cfr. T. Opperman (ed.), Hallstein, Europäische Reden, Sttugart, 1979, p.341, apud BAQUERO CRUZ, J., «La protección de los derechos sociales en la Comunidad Europea tras el tratado de Amsterdam», Revista de derecho comunitário europeo, 1998, p. 640.

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COMENTÁRIO

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 19 DE MAIO DE 1990

PROCESSO C-213/89

The Queen e Secretary of State for Transport

contra

Factortame, Ltd. e outros

Palavras-chave: Tutela Jurisdicional Efectiva; Princípio da União de Direito; Princípio da Lealdade, da Efectividade e do Primado do Direito da União Europeia; Tutela Cautelar; Reenvio Prejudicial.

I. INTRODUÇÃO

Enquanto “modelo de integração original”1, a União Europeia é dotada de um ordenamento jurídico próprio e autónomo, resultado do poder público de que as suas instituições são dotadas, desde logo, por serem capazes de criar Direito e de vincularem, a própria União Europeia e os Estados-Membros que a integram, a esse Direito.

O fundamento deste Direito Público da União Europeia encontra-se no Princípio da União de Direito, recortado do ordenamento jurídico europeu, pela primeira vez, por Hallstein2 e depois confirmado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Os Verdes, de 1986, que tem como função primordial o controlo ou a limitação da actuação dos órgãos comunitários e a garantia dos direitos dos particulares. Trata-se, no fundo, de um princípio estruturante da União Europeia equiparado ao princípio do Estado de Direito que é comum a todos os Estados-Membros.

A essencialidade deste princípio mereceu-lhe consagração expressa, a partir de 1992, no artigo 6º do Tratado de Maastricht, que institui a União Europeia (“A União

assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do

Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito, princípios

que são comuns aos Estados-Membros.”) e vai transitar para o artigo 2º na versão

1 ANTÓNIO VITORINO, «União Europeia: natureza, legitimidade e democracia», in A Revolução Europeia

por Francisco Lucas Piras – Antologia de Textos, apud. Alessandra Silveira in Princípios de Direito da

União Europeia. 2 Cfr. T. Opperman (ed.), Hallstein, Europäische Reden, Sttugart, 1979, p.341, apud BAQUERO CRUZ, J.,

«La protección de los derechos sociales en la Comunidad Europea tras el tratado de Amsterdam», Revista de derecho comunitário europeo, 1998, p. 640.

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consolidada no Tratado de Lisboa que vai entrar em vigor, em princípio, no próximo dia 1 de Dezembro (cfr. artigo 6º do Tratado de Lisboa).

A concretização funcional deste princípio tem que assentar necessariamente na garantia de uma tutela jurisdicional efectiva no Direito da União Europeia, donde se destacam o direito de acesso ao Direito e aos Tribunais, o direito de obter uma decisão judicial em prazo razoável e mediante processo equitativo e o direito à efectividade das sentenças proferidas3.

Mas a necessidade de garantir uma tutela jurisdicional efectiva não obriga somente as instituições da União Europeia. As autoridades nacionais dos Estados-Membros, por exigência dos princípios do primado, da efectividade e do próprio princípio da tutela jurisdicional efectiva, têm que garantir o efeito útil das disposições comunitárias e assegurar que as pretensões dos particulares decorrentes do Direito da União sejam salvaguardadas como se de direito interno se tratasse (princípio da equivalência do Direito da União), mediante uma tutela jurisdicional efectiva, integrada por um direito de os particulares acederem ao foro judicial e aí obterem um processo equitativo e uma decisão, em prazo razoável, mas também de um direito de, pelo menos, terem dois graus de jurisdição para apreciação do mérito da causa e de lhe serem concedidas providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade das sentenças a proferir no processo principal.

É justamente neste ponto que o acórdão do Tribunal de Justiça Factortame, 1990, ganha a sua relevância, porquanto ali se discutiu a possibilidade de os órgãos jurisdicionais dos ordenamentos jurídicos internos concederem uma providência cautelar para proteger direitos conferidos pelo Direito Comunitário.

II. O ACÓRDÃO

A questão que se levantava no Acórdão prendia-se com uma alteração de lei no Reino Unido relativa ao registo de navios por força da qual alguns dos navios de que as requerentes eram proprietárias iam ficar privados do direito de pescar.

Por esse motivo, solicitaram ao High Court of Justice, Queen’s Bench Divison a compatibilidade dessa lei com o direito comunitário e, até ser proferida a decisão definitiva, requereram que lhe fosse concedida uma providência cautelar.

Na sua decisão, a Divisional Court da Queen’s Bench Divison decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça um pedido prejudicial sobre as questões de Direito Comunitário suscitadas durante o processo e ordenou, a título cautelar, a suspensão da lei em causa relativamente às recorrentes. Não obstante, em sede de

3 Cfr., por exemplo, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª ed., 2002, p.

487 e ss.

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recurso, a Court of Appeal considerou que, nos termos do direito interno britânico, os órgãos jurisdicionais não tinham o poder de suspender provisoriamente a aplicação das leis e, em consequência, anulou o despacho da Divisional Court.

Submetida a questão à House of Lords, esta considerou que as recorrentes podiam efectivamente sofrer prejuízos irreparáveis no caso de não concessão da providência cautelar requerida. Todavia, também reconheceu que nos sistemas da Commom Law vigorava uma regra que impedia os tribunais de ordenar providências cautelares contra a Coroa, conjugada com uma presunção de que as leis internas estariam em conformidade com o Direito Comunitário. Face a isto, a House of Lords interrogou-se se, não obstante a referida regra de direito interno, os órgãos jurisdicionais britânicos tinham o poder de ordenar medidas provisórias contra a Coroa no recurso ao Direito Comunitário, pelo que suspendeu a instância e questionou o Tribunal de Justiça, através do mecanismo do reenvio prejudicial, se, em face das circunstâncias do caso, o Direito Comunitário obrigava o tribunal nacional a proteger a título cautelar os direitos invocados ou se, simplesmente, autorizava esse tribunal a proteger esses direitos e, nesse caso, quais os critérios de concessão da providência cautelar.

Em resposta, o Tribunal de Justiça lembrou que já no seu Acórdão Simmenthal de 1978 tinha afirmado o princípio da efectividade do Direito da União, pelo qual as autoridades nacionais têm que garantir o efeito útil das disposições europeias desde a sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade, além de que por força do princípio do primado o direito interno que seja incompatível com o Direito Comunitário deve ser afastado e as consequências que daí advenham devem ser reparadas. Acresce que, por aplicação do princípio da cooperação (da lealdade), é aos órgãos jurisdicionais nacionais que compete garantir a protecção jurídica decorrente para os particulares do efeito directo das disposições do Direito Comunitário4.

Decidindo, o Tribunal de Justiça considerou que é incompatível com o Direito Comunitário qualquer disposição ou prática de um ordenamento interno que vede o juiz de fazer o que for necessário para afastar, ainda que temporariamente, as disposições legislativas que obstem à plena eficácia das normas comunitárias, nomeadamente que impeça a concessão de uma medida cautelar para salvaguarda de direitos conferidos pelo Direito Comunitário, porquanto essa medida põe em causa o princípio da efectividade do Direito da União.

“Por conseguinte, deve responder-se à questão submetida declarando que o direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que, quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o direito comunitário considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma do direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma.”

4 Cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Julho de 1980, Ariete, proc. 811/79, Recueil, p. 2545 e

Acórdão Mireco, proc. 826/79, Recueil, p. 2559.

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III. CONSIDERAÇÕES

O Acórdão Factortame de 1990 que ora se acaba de analisar é um marco obrigatório no quadro dos princípios de Direito da União Europeia, tanto que é uma referência vulgar na generalidade dos Acórdãos do Tribunal de Justiça.

Atento a fundamentação jurídica do Acórdão facilmente se conclui que ali se (re)afirmam os princípios do primado, mediante o qual a aplicação do direito nacional que seja incompatível com o Direito da União deve ser afastada e, consequentemente, suprimida a norma ou reparados os danos que a sua aplicação provocou, e da efectividade, que impõe que os Estados-Membros devem garantir o efeito útil e a plena aplicação do direito comunitário, quer adequando as suas legislações ao Direito Comunitário, quer adoptando disposições jurídicas susceptíveis de criar situações suficientemente precisas, claras e transparentes para que os particulares possam conhecer os seus direitos e invocá-los perante os órgãos jurisdicionais.

Mas o enfoque do Acórdão vai sobretudo para o princípio da tutela jurisdicional efectiva, como corolário do princípio da lealdade consagrado no artigo 10º do Tratado da Comunidade e que supra já fomos avançando.

É este um princípio geral de Direito que está na base das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros e que aparece consagrado no artigo 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e que é reconhecido como um princípio geral do Direito Comunitário por força do artigo 6º nº 2 do Tratado da União (princípio da União de Direito).

Com ele, os Estados Membros obrigam-se a garantir a efectividade das normas comunitárias consagrando o direito de acesso ao Direito e aos Tribunais a todos os cidadãos; o direito de obterem uma decisão, em prazo razoável e mediante um processo equitativo; o direito de ter, pelo menos, um duplo grau de jurisdição para apreciação do mérito; mas também, e é este aspecto que é destacado no acórdão, o direito de obter uma tutela cautelar, isto é, uma decisão provisória, antecipatória ou conservatória, a ser proferida pelos tribunais nacionais de forma a assegurar a utilidade da sentença a ser proferida no processo principal e, com isso, evitar os danos irreparáveis ou de difícil reparação nos direitos dos particulares decorrentes do Direito da União Europeia.

Atente-se que ao incorporar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o art. 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem “exige implicitamente o acesso

para efeitos de fiscalização no contexto de um caso concreto. Só são compatíveis com o

artigo 6º, nº 1, as restrições a esse acesso quando não prejudicam a essência desse

direito, quando prosseguem um fim legítimo, e quando existe uma relação de

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proporcionalidade razoável entre os meios empregados e o fim que se pretende

alcançar”5.

Assinale-se, por outro lado, que o Acórdão Factortame de 1990 vem na sequência da reiteração do princípio, consagrado pela primeira vez no Acórdão Rewe I de 19766, de que é à ordem jurídica interna de cada Estado Membro que compete regular os meios processuais destinados a garantir a protecção dos direitos que decorrem do direito comunitário, desde que essas modalidades não sejam menos favoráveis do que as modalidades relativas a acções judiciais similares de natureza interna (princípio da equivalência) e que não tornem impossível, na prática, o exercício desses direitos (princípio da efectividade). E o Direito Comunitário exige, também, que a legislação nacional não afecte o direito a uma protecção jurisdicional efectiva7.

Assim, neste Acórdão, o Tribunal de Justiça firma a ideia de que, se uma norma interna não consagrar a possibilidade de o juiz nacional decretar uma providência cautelar num caso concreto, o juiz deve desaplicar essa norma e assegurar a aplicação do Direito da União, exactamente para garantir a tutela jurisdicional efectiva imposta por um Estado de Direito e, no caso, pela União de Direito. “Assim, o direito

comunitário pode, em determinadas circunstâncias, exigir uma nova via de recurso

quando essa for a única forma de assegurar que um direito decorrente do direito

comunitário pode ser protegido.”8

A jurisprudência seguida neste Acórdão foi depois reafirmada no Acórdão Zuckerfabrik 1991, Atlanta 1995, e no Acórdão (supracitado) Unibet 2007, onde, em complemento do Acórdão analisado, mais se defendeu que a concessão das providências cautelares para tutelar danos irreparáveis nos direitos dos particulares decorrentes do Direito da União Europeia “… é regulada por critérios fixados pelo direito nacional

aplicável nesse órgão jurisdicional, desde que esses critérios não sejam menos

favoráveis do que os relativos a pedidos similares de natureza interna nem tornem

impossível ou excessivamente difícil, na prática, a protecção jurisdicional provisória

desses direitos.”.

5 Cfr. Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Acórdãos Golder/Reino Unido (1979/1980); Klass e

o./Alemanha (1994); Ashingdane/Reino Unido (1985); Lithgow e o./Reino Unido (1986);etc. 6 Cfr. Acórdão de 16 de Dezembro de 1976, Rewe/Landwirtschaftskammer für das Saarland (33/76,

Colect., p. 813, nº 5). 7 Cfr. Acórdão Verholen de 11 de Julho de 1991 (C-87/90, C-88/90, C-89/90, colect., p. I-3757, nº 24).

8 Cfr. Ponto 35 das conclusões da Advogada-geral Eleanor Sharpston, apresentadas em 30 de Novembro

de 2006, no processo C-432/05 [Unibet (London) Ltd e Unibet (International) Ltd contra Justitiekanslern].