comentário 289 além do bem e do mal

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  • 8/14/2019 Comentrio 289 alm do bem e do mal

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    O 289 diz o seguinte:

    "Ouve-se sempre nos escritos de um ermito algo tambm do eco do ermo, algo do tomsussurado e da arisca circunpesco da solido; em suas palavras mais fortes, mesmo emseu grito, soa ainda uma nova e mais perigosa espcie de calar, de silenciar. Quem, entra

    ano, sai ano, e de dia e de noite, sentou-se a ss com sua alma em confidencial duelo edilogo, quem em sua caverna - pode ser um labirinto, mas tambm uma jazida de ouro - setornou urso de cavernas ou cavador ou vigia de tesouro e drago: seus prprios conceitosacabam por conter uma cor prpria de lusco-fusco, um odor de profundeza como de mofo,algo de incomunicvel e renitente, que sopra frio em todo aquele que passa. O ermito noacredita que um filsofo - suposto que um filsofo sempre foi primeiro um ermito - tenha jamais expresso suas prprias e ltimas opinies em livros: no se escrevem livros ,precisamente, para resguardar o que se guarda em si? - ele at duvidar se um filsofopode, em geral, ter opinies "ltimas e prprias", se nele, por trs de cada caverna, no jaz,no tem de jazer uma caverna ainda mais profunda, um modo mais vasto, mais alheio, maisrico, alm de uma superfcie, um sem-fundo por trs de cada fundo, por trs de cada"fundamento". Cada filosofia uma filosofia de fachada - eis um juzo ermito: "H algo dearbitrrio se aqui ele se deteve, olhou para trs, olhou em torno de si, se aqui ele no cavoumais fundo e ps de lado a enxada - h tambm algo de desconfiado nisso."

    Cada filosofia esconde tambm uma filosofia; cada opinio tambm um esconderijo,cada palavra tambm uma mscara."

    Existe algo de inexprimvel naquilo que a solido revelou. Os escritos de um filsofo notrazem nunca sua viso mais ntima, mais fiel a si, nem a fora plena daquilo que oamadurecimento de uma meditao solitria. O prprio sentido da meditao o de umaruptura com a efemeridade da vivncia cotidiana, da banalidade desesperada com que sevive o presente. O filsofo pode explicar a realidade atravs de uma estrutura conceitual.Mas aquele que participa das coisas, de certa forma, impedido de perceber estas coisascom a mesma clareza. Odores que nos parecem familiares so estranhos aos que vem defora. Pode-se calar um protesto, engolindo em seco, e escolher uma conivncia hipcrita.Mas sempre se corre o risco de um olhar estrangeiro colocar tudo em nova perspectiva.

    Nietzsche um crtico da cultura e adota essa postura com toda as suas conseqncias,tericas e pessoais. Ao mesmo tempo em que declama aforismos inspirados que demolemboa parte da tradio filosfica ocidental, da cincia, da religio, e do modo como sepensam as coisas, adverte que aquele no o sentido ltimo de sua obra, nem sua revelaomais profunda. Aqui, tendo em vista o conjunto conceitual de sua obra, que, apesar de seucontedo, extremamente coerente, deve-se tomar cuidado com a escolha dos termos. Pois,se quisermos seguir os conselhos do autor e tomarmos como vlidas as chaves de leituraque indica para poder interpretar sua obra, corremos o risco de efetivarmos na anlise doautor certas posturas que so combatidas em sua obra.

    Nietzsche procurou coisas ocultas nos autores que comentou. crueza de sistemasfechados, que fundam a si sobre suas prprias bases, ops uma avaliao "psicolgica",conformou-os ao seu prprio pensamento, e extraiu deles observaes perspicazes, masdistantes das correntes consagradas pela tradio. Essa nova viso que o autor traz revela-se

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    pensamento como um sintoma de sua estrutura psicolgica ou de frustraes de suas vidapessoal. Pois como adverte Nietzsche no 22 de Para Alm de Bem e Mal, ele j estprecavido contra tal sorte de crticas, e ao faz-lo podemos apenas afirmar uma das formasmltiplas que seu pensamento prope.

    Zaratustra, o ermito, passa dez anos consigo mesmo em uma montanha e depois desceao vilarejo para pregar seus ensinamentos aos "populachos". Seu esprito encontrava-se jcomo uma taa cheia de vinho que comea a transbordar, uma supersafra de mel, como elemesmo afirma. Urge jogar humanidade o fruto daquilo que a solido revelou e esperarque algum possa entend-lo. Nietzsche um estrangeiro, o velho fillogo que com um arirnico e um tanto lacnico pede perdo por inverter as teorias fsicas que querem ler anatureza como um livro e por enquadrar no (ao seu ver) passageiro esprito democrtico deuma poca a universalizao das leis naturais. Mas tambm procura um leitor, coisa quetalvez no tenha encontrado em vida. Queixoso uma vez disse: "Gostaria que me lessemcomo lem Aristteles". Isto , com a mesma ateno, o mesmo cuidado, o afinco e aexegese que torna cada vrgula no texto de Aristteles objeto de um estudo ou fruto de uma

    controvrsia. Para sanar essa falta, se coloca na figura de um anunciador. O Zaratustra omenestrel de uma filosofia do porvir e do devir, mas tambm do eterno retorno, e mesmo deuma nova humanidade.

    "Cada filosofia uma filosofia de fachada", escreve o autor. "no se escrevem livrosprecisamente para resguardar o que se guarda em si?". "Cada filosofia esconde tambmuma filosofia; cada opinio tambm um esconderijo, cada palavra tambm uma mscara".Estas afirmaes podem ser usadas para duas coisas. Primeiramente para entender o esforofilosfico e filolgico do autor em seu mtodo genealgico, que busca as condies, ascausas e as mscaras que levaram os filsofos a direcionarem seus escritos para o alto, parao alm-mundo, ou que levaram os fracos e os escravos a inverter o sentido da palavra bomcomo mal e criar assim a moral. Mas serve tambm para entender que o melhor dopensamento de Nietzsche no nos foi contado, e mesmo o que foi d margem inmeroserros de interpretao. Pois preciso uma esmerada arte-de-interpretao para entenderNietzsche, para fazer jus sua obra ou sua postura perante os problemas da filosofia. Ou,na exatido tcnica do dizer de Vnia Dutra de Azeredo:

    "Ora, se de um lado, a cumplicidade requer o abandono da imparcialidade, de outro,a prpria imparcialidade j se apresenta como elemento a ser interpretado. Com isso, otexto nietzscheano remete toda afirmao, produo, a uma interpretao". (AZEREDO,2000)

    O autor tinha conscincia da magnitude da sua obra, Assim FalouZaratustra dizendo que muitos dos livros clssicos no chegavam aos ps

    de sequer um dos discursos de Zaratustra e que ningum poderia

    compreender o livro antes de ser profundamente ferido e influenciado por

    cada uma de suas palavras. O compromisso de Nietzsche era apenas

    consigo, e uma certa desesperana com seus conterrneos e

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    contrrio. Diante deste dilema, Nietzsche encontra a sada encontrando um nico valor emsi mesmo: a vida, a existncia, pois em todo o querer e em todo o viver j h o existir,mesmo sua negao apenas uma disperso da fora dentro da prpria vida. Com estasoluo, o autor pode propor a perspectiva contrria ao ressentimento: a perspectiva queafirma a vida e que honra a terra. Existe algumas figuras femininas nos escritos de

    Nietzsche que, ao meu ver, se associam: a natureza, a sabedoria e a vida. Em O nascimentoda tragdia Nietzsche j esboava, tomando como ponto de partida o famoso fragmento123 de Herclito, que a natureza ama esconder-se, e s pode revelar-se perante a fora ouvirilidade do homem. Na terceira dissertao dePara uma Genealogia da Moral, Nietzschetoma como epgrafe uma frase de Zaratustra, exemplificando como se pode ler umaforismo. Essa frase diz o seguinte: "Descuidados, zombeteiros, violentos - assim nos quera sabedoria: ela uma mulher, ela ama somente um guerreiro." Outros trechos poderiam serselecionados, como o prlogo de Para Alm de Bem e Mal. Essa figura feminina, to nobree altiva, que precisa ser conquistada, se contrapem a algumas outras vises negativasacerca do universo feminino que Nietzsche expe em alguns de seus aforismos,especialmente em Para Alm de Bem e Mal. porm na segunda parte do Zaratustra, nocaptulo denominado "Da Superao de Si" que se encontra uma pujante figurao acercada figura feminina da vida, uma dessas passagens que no deixam dvidas de que o autortem como fonte de sua filosofia uma fora pura conservada para si:

    "(...) E este segredo a prpria vida me contou (...)"

    A vida conta o segredo da vontade de potncia, do modo de todo o vivente, da obedinciae da vontade de ser senhor de todo o vivente. Essa vida que revela seu segredo aoZaratustra (um Nietzsche idealizado) um pouco como a natureza que costuma se velar dofragmento 123 de Herclito. E correndo o risco de cair numa contradio absuda, poderia-se afirmar que um pouco tambm como a Deusa que conta a verdade ao escolhidoParmnides, conforme este relata em seu poema "Da Natureza". A fora desse captulo deZaratustra e o papel da vida que se desvela parece exprimir mais do que uma figura delinguagem ou um recurso literrio. Embora no seja uma revelao mstica - uma vez queno h plano transcendente e a existncia j est na prpria vida - ainda assim trata-se deuma revelao. A vida o nico valor autnomo em Nietzsche e aqui ela fala por si, afirmauma verdade ao guerreiro Zaratustra.

    Embora o conceito de vontade de potncia s seja melhor desenvolvido nos fragmentospstumos, algo que permeia, mesmo que em intuio ou premonio toda a obra deNietzsche, sendo absolutamente central. O conceito introduzido no prprio Zaratustra emtrs captulos, "Dos mil e um alvos", "Da Redeno" e este "Da superao de si". (cf.MARTON, 1988). Trechos como "onde encontrei vida, encontrei ali vontade de potncia; eat mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor" j fazem intuir aligao entre vida e vontade de potncia. Se olharmos mais de perto poderemos ver mesmouma identificao entre os dois:

    "(...) a idia de que vida e vontade de potncia se identificam. E

    acrescenta: somente onde h vida, h tambm vontade: mas no vontade

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    de vida, e sim - assim vos ensino - vontade de potncia!". Neste momento, a

    vontade de potncia caracteriza-se como vontade orgnica; prpria no

    unicamente do homem, mas de todo o ser vivo. Escritos posteriores vo

    alm e deixam entrever que ela se exerce em cada rgo, tecido ou clula.

    (...)

    Outro fragmento pstumo apresenta um novo dado: "a vontade de

    potncia s pode manifestar-se face a RESISTNCIAS; procura, pois, o que

    lhe resiste, procura, pois, o que lhe resiste: tendncia original do

    protoplasma, quando estende seus pseudpodes e tateia sua volta". por

    exercer-se que ela torna a luta inevitvel, e isso ocorre na medida em que

    encontra resistncias. Assim a vontade de potncia, efetivando-se na clula,

    faz com que esbarre em outras que a ela resistem, mas o obstculoconstitui um estmulo. Da decorre a idia de que a luta se desencadeia de

    tal modo que no h pausa ou fim, possveis." (MARTON, 1988)

    Alm dessa aspecto orgnico da vontade de potncia, que encontra relao com a cinciado sculo XIX, a qual Nietzsche no era alheio, nos salta aos olhos esse eterno efetivar-secego que constitui um jogo de foras. Esse efetivar-se nunca recai numa teleologia, no visanenhum fim a no ser o prprio efetivar-se e a busca de sua ampliao. A vida vai aoencontro de mais potncia, em direo do mximo de potncia. A sua realidade mais ntimae profunda o querer. Dos conflitos que a resultam temos no meramente a vontade de

    dominar, pois o dominar est ainda ligado aos valores que o homem tem de se desprender,mas a vontade de criar. O homem senhor-de-si consegue vencer o drago milenar dosvalores que dizem "Tu Deves" (cf. ZARATUSTRA).

    Com isso fica evidente que a filosofia de Nietzsche fala tambm para um porvir, seenvolve de um carter esperanoso e otimista. O seu carter aforismtico e asistemticorendeu e rende inmeras interpretaes e at mesmo algumas tentativas de apropriao; pordiferentes meios: artsticos, filosficos, polticos, pessoais e existenciais. Mas permaneceinapropriada e aberta ainda aos olhos livres, como um coringa, sendo isso explicado pelonosso mote do pargrafo 289 dePara Alm de Bem e Mal, pois um "ermito no acreditaque um filsofo - suposto que um filsofo sempre foi primeiro um ermito - tenha jamais

    expresso suas prprias e ltimas opinies em livros".