“com quem os filhos ficarÃo?” representaÇÕes...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA COM QUEM OS FILHOS FICARÃO?” REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA GUARDA APÓS A SEPARAÇÃO CONJUGAL FERNANDA CABRAL FERREIRA SCHNEEBELI VITÓRIA 2011

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    COM QUEM OS FILHOS FICARO?

    REPRESENTAES SOCIAIS DA GUARDA

    APS A SEPARAO CONJUGAL

    FERNANDA CABRAL FERREIRA SCHNEEBELI

    VITRIA

    2011

  • FERNANDA CABRAL FERREIRA SCHNEEBELI

    COM QUEM OS FILHOS FICARO?

    REPRESENTAES SOCIAIS DA GUARDA

    APS A SEPARAO CONJUGAL

    Dissertao apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Psicologia Social e do

    Desenvolvimento da Universidade

    Federal do Esprito Santo, como

    requisito parcial para obteno do

    grau de Mestre em Psicologia.

    rea de Concentrao: Psicologia

    Social.

    Orientadora: Professora Doutora

    Maria Cristina Smith Menandro.

    UFES

    2011

  • FERNANDA CABRAL FERREIRA SCHNEEBELI

    COM QUEM OS FILHOS FICARO?

    REPRESENTAES SOCIAIS DA GUARDA

    APS A SEPARAO CONJUGAL

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social e do

    Desenvolvimento da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial

    para obteno do grau de Mestre em Psicologia.

    Aprovada em 16 de maio de 2011 por:

    ___________________________________________________________________

    Professora Doutora Maria Cristina Smith Menandro Orientadora Universidade

    Federal do Esprito Santo UFES

    ___________________________________________________________________

    Professora Doutora Zeidi de Arajo Trindade Universidade Federal do Esprito

    Santo UFES

    ___________________________________________________________________

    Professora Doutora ngela Maria de Oliveira Almeida Universidade de Braslia

    UnB

  • Dedico este trabalho a

    Famlia Cabral Ferreira,

    que me concebeu e me ensinou o significado de retido e respeito;

    Famlia Schneebeli,

    que me acolheu e me ensinou o significado de generosidade e solidariedade;

    Anna Helena e Stephan, minha famlia,

    que me transformou em uma pessoa infinitamente melhor e me ensinou o significado

    de amor incondicional.

  • AGRADECIMENTOS

    Maria Cristina Smith Menandro, orientadora atenta e carinhosa, com a qual

    aprendi que curiosidade, humildade, coragem e dedicao so essenciais para

    alcanar o conhecimento.

    A Cludia Broetto Rossetti, Edinete Maria Rosa, Helosa Moulin de Alencar, Ldio de

    Souza, Paulo Rogrio Meira Menandro, Svio Silveira de Queiroz, Rosana Suemi

    Tokumaru e Zeidi Araujo Trindade, professores com os quais aprendi Psicologia,

    Metodologia e muito mais.

    A Alexsandro Andradre, Andra dos Santos Nascimento, Ana Beatryce Tedesco

    Morais, Anna Beatriz Carnielli Howat Rodrigues, Adriadne Dettmam Alves, Bruno

    Dias Franqueira, Daniele de Souza Garioli, Danielly Bart do Nascimento, Diemerson

    Saquetto, Eduardo Coelho Ceotto, Fabiana Pinheiro Ramos, Fabrcia Rodrigues

    Amorim Aride, Fernanda Schiavon Ogioni, Filipe Moreira Vasconcelos, Flvia

    Encarnao Motta, Glenda Almeida Pratti, Grace Rangel Felizardo, Helena Quintas,

    Iara Feldman, Julio Csar Pompeu, Kirlla Dornelas, Lorena Badar Drumond, Lorena

    Santos Ricardo, Luciana Chequer Saraiva, Luiz Gustavo Silva Souza, Mirian

    Bccheri Cortez, Rafael Rubens de Queiroz Balbi Neto, Rebeca Valado Bussinger,

    Rosangela Guimares Seba e Teresinha Cid Constantinidis, colegas do Programa

    de Ps-Graduao em Psicologia (PPGP), que me fizeram sentir em casa e com os

    quais aprendi a levar o estudo a srio e a vida nem to a srio assim.

    A Alexandre Cola Amigo, Amanda Tessarolo Cruz, Ana Luiza Soares Pereira, Andr

    Vieira Bastos Rezende, Brenda Faria de Miranda Caus, Bruno Oliveira de Souza,

    Bruno Vigiani Freitas, Caio Csar Barros Mozelli, Camilo Pais Bertollo, Cristiele

    Costa Cindra, Estefania da Silva Pereira, Fabio Rodrigues Gil, Gabriel Cardorini da

  • Silva, Gabriel Garschagen Gonalves, Gilberto Beduhn Machado, Giordano Bruno

    Gomes Rocha, Haroldo Pereira Lima, Jaqueliny Feliciano Faria, Jeferson Margon,

    Jessica Leite Coutinho, Jessica Machado Pereira, Joo Afonso Borsoi, Joo Pedro

    Sousa Passamani, Joyce Castello Pereira, Juliana Pereira de Paula, Kesler

    Scheidegger Soares, Laila Freitas Coimbra, Larissa Alves Sincora, Leandro Ardito

    Sanchez, Lorenzo Novelli de Souza, Lucas Furtado Gramlich, Lucas Poubel Timm

    do Carmo, Ludimila Santana do Prado, Luna Nunes Belizrio, Maira Vieira Moreira,

    Martha Uliana Krohling, Mateus Lopes Machado, Nayane Costa e Souza, Queila

    Mendes de Melo, Riccardo Werner Sanches Mocelin, Sedeney Tavares Vaz,

    Stephanie Gomes Fa, Tssia Mery Francisco, Thatyane Alvarenga Andrade, Valc

    ngelo Rufino, Vanessa Vieira Pagotto, Venncio Ubiratan Quintino Moreira Braga,

    Victor Costa Jesus, Victor Fernandes Moca Casagrande, Vitor Salume Silva,

    Welington Sebastio Marques Eller, Weverson Valcker Meireles e Yuri Tancoso

    Costa, alunos do estgio de docncia, com os quais aprendi que lecionar um

    processo to rduo quanto gratificante.

    s mes e aos pais que acreditaram no meu projeto e se dispuseram a participar da

    pesquisa, abrindo sua agenda, sua casa e sua intimidade em prol da cincia.

    Maria Lcia Ribeiro Fajli, secretria do PPGP, sempre disponvel para ajudar.

    Helen Schultz Viana, minha secretria, por sua pacincia nas transcries.

    Lvia Fortes Silva Zenbio, minha amiga mestre, pela reviso do resumo.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela

    concesso da bolsa de mestrado.

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1. O que os membros do casal pensam quando cogitam a separao? 56

    Tabela 2. A reao dos filhos sobre a separao dos pais influencia na deciso do casal? 58

    Tabela 3. Com quem os filhos devem ficar em caso de separao dos pais? 60

    Tabela 4. A opinio dos filhos influencia na deciso dos pais sobre a guarda e a visitao? 62

    Tabela 5. Quais so as preocupaes da me e do pai depois de concretizada a separao? 65

    Tabela 6. Quais so os aspectos de ordem prtica que devem ser considerados depois de concretizada a separao? 69

    Tabela 7. O que voc entende por guarda unilateral? 73

    Tabela 8. Quais so os aspectos positivos e os negativos da guarda unilateral? 76

    Tabela 9. O que voc entende por guarda compartilhada? 79

    Tabela 10. Quais so os aspectos positivos e os negativos da guarda compartilhada? 82

    Tabela 11. Voc a favor da guarda unilateral? 85

    Tabela 12. Sendo a guarda unilateral, com quem os filhos devem ficar? 86

    Tabela 13. Que tipo de visitao deve ser feita quando a guarda unilateral? 87

    Tabela 14. Quando a separao litigiosa, a guarda unilateral necessria? 88

    Tabela 15. Filhos pequenos (at 11 anos) podem morar s com o pai? 89

    Tabela 16. Voc a favor da guarda compartilhada? 90

    Tabela 17. Os filhos podem ter duas casas? 91

    Tabela 18. A troca de casa pode ocorrer de que forma? 92

    Tabela 19. Quando a separao litigiosa, a guarda pode ser compartilhada? 93

    Tabela 20. Filhos pequenos (at 11 anos) podem morar com a me e com o pai em casas distintas? 94

  • RESUMO

    Schneebeli, F. C. F. (2011) Com quem os filhos ficaro?: Representaes Sociais da Guarda Aps a Separao Conjugal. Dissertao de Mestrado, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Universidade Federal do Esprito Santo, Vitria/ES.

    Este trabalho objetivou investigar as representaes sociais da guarda de filhos em caso de separao conjugal e teve como base a Teoria das Representaes Sociais de Serge Moscovici. Compartilhar a criao dos filhos uma tarefa inerente ao poder familiar e exercida na constncia do casamento ou da unio estvel. O tema se torna controverso quando h ruptura conjugal e surge a necessidade de discutir com quem os filhos ficaro. No Brasil, na maior parte dos casos, a guarda entregue me, pois parte-se do princpio de que natural que os filhos sejam criados pelas mes, com o auxlio dos pais. Contudo, a relativizao dessa concepo naturalista da maternidade ganhou destaque com a edio da lei que instituiu a guarda compartilhada no ordenamento jurdico brasileiro em 2008. Para averiguar o que pensam sobre essa nova possibilidade, foram escolhidos 30 sujeitos moradores da Grande Vitria/ES, com curso superior e idade mdia de 40 anos, sendo 15 mes e 15 pais de filhos menores de idade. Os instrumentos utilizados foram uma entrevista e um questionrio, abordando os seguintes temas: reflexo e deciso acerca da separao, concretizao da separao, vida aps a separao, e guarda de filhos. As respostas foram gravadas em udio e transcritas. Os dados foram analisados por meio de anlise de contedo temtica. Os resultados principais indicam que, na fase de reflexo e deciso acerca da separao, o bem-estar psicolgico dos filhos foi a preocupao referida com maior frequncia pelos sujeitos e que a reao dos filhos influencia a deciso sobre a separao do casal. Na fase de concretizao da separao, para a maior parte dos sujeitos, os filhos devem ficar com a me quando o casal se separa, e considera que a opinio dos filhos influencia na deciso dos pais sobre a guarda e a visitao. Na fase aps a separao, as preocupaes mais referidas pelos sujeitos foram o bem-estar psicolgico dos filhos e participar ativamente da vida dos filhos. Os elementos que compuseram a representao social de guarda unilateral foram guarda materna, exclusividade de um genitor e excluso do outro, e desacordo entre os ex-cnjuges. Na representao social de guarda compartilhada os elementos encontrados foram igualdade de convvio entre genitores e filhos, diviso de responsabilidades sobre os filhos entre os genitores, acordo e/ou amizade entre os genitores, alm de diversidade de ambientes, que invoca tanto a noo de fonte de aprendizado para os filhos quanto a possibilidade de haver confuso na educao. Os resultados indicam que a preferncia pela guarda unilateral e a resistncia guarda compartilhada relacionam-se com as representaes sociais da maternidade e da paternidade, as quais tomam a figura materna como central na criao dos filhos.

    Palavras-chave: guarda, separao conjugal, maternidade, paternidade, parentalidade.

    Financiamento: CAPES

  • ABSTRACT

    Schneebeli, F. C. F. (2011) "With whom will the children stay?": Social Representations of Child Custody after Marital Separation. Master Thesis, Post Graduation Program in Psychology, Universidade Federal do Esprito Santo, Vitria/ES.

    This study aimed to investigate the social representations of child custody in cases of marital separation and was based on the Theory of Social Representations by Serge Moscovici. Sharing parenting is a task inherent to parental rights and it is carried during marriage or stable union. The issue becomes controversial when there is marital separation and it becomes necessary to discuss with whom the children will stay. In Brazil, in most cases, custody is given to the mother, as we depart from the principle that it is natural that children be raised by mothers with the help of fathers. However, the relativization of this naturalistic conception of motherhood has gained prominence whith the publication of legislation establishing joint custody in the Brazilian law in 2008. To find out what they think about this new possibility, 30 subjects were chosen, 15 mothers and 15 fathers of minor children, inhabitants of Vitria/ES, with a college degree and an average age of 40 years old. The instruments were an interview and a questionnaire concerning the following themes: reflection and decision on marital separation, implementation of marital separation, life after marital separation, and child custody. Responses were audio taped and transcribed. Data were analyzed using thematic content analysis. The main results indicate that during the phase of reflection and decision on marital separation the psychological well-being of the children was the concern most frequently mentioned by the subjects and that the childrens reaction influences the decision on the separation of the couple. In the phase of implementation of marital separation, for most subjects, the children should stay with the mother when the couple separates, and they consider that the childrens opinion influences the parentss decision about custody and visitation. In the phase after marital separation, the concerns most often mentioned by the subjects were the psychological well-being of the children and actively participate in the children's lives. The elements that made up the social representation of unilateral custody were maternal custody, exclusivity of one parent and exclusion of the other, and disagreement between the former spouses. In the social representation of joint custody the elements found were equal interaction between parents and children, division of the responsibilities over the children between the parents, agreement and/or friendship between the parents, also diversity of environments, that invokes the notion of source of learning to the children and the possibility of confusion in education. The results indicate that the preference for unilateral custody and the resistance to joint custody are related to the social representations of motherhood and fatherhood, which take the mother figure as central in the upbringing of children.

    Keywords: child custody, marital separation, motherhood, fatherhood, parenthood.

    Finance: CAPES

  • SUMRIO

    1 APRESENTAO 11

    2 INTRODUO 12

    2.1 Guarda de filhos 12

    2.2 Teoria das Representaes Sociais 19

    2.3 Papeis feminino e masculino 26

    2.4 Maternidade e paternidade 30

    2.5 Conjugalidade versus parentalidade 40

    2.6 Representaes Sociais da guarda 45

    3 MTODO 49

    3.1 Objetivos 49

    3.2 Participantes 49

    3.3 Aspectos ticos 51

    3.4 Instrumentos 51

    3.5 Coleta dos dados 51

    3.6 Anlise dos dados 52

    4 RESULTADOS 54

  • 4.1 Reflexo e deciso acerca da separao 54

    4.1.1 O que os membros do casal pensam quando cogitam a separao 54

    4.1.2 A reao dos filhos sobre a separao 58

    4.2 Concretizao da separao 59

    4.2.1 Com quem os filhos devem ficar 59

    4.2.2 A opinio dos filhos sobre a guarda e a visitao 62

    4.3 Aps a separao 64

    4.3.1 As preocupaes 64

    4.3.2 Os aspectos de ordem prtica 67

    4.4 Guarda unilateral 72

    4.4.1 Significado 72

    4.4.2 Aspectos positivos e negativos 75

    4.5 Guarda compartilhada 78

    4.5.1 Significado 78

    4.5.2 Aspectos positivos e negativos 80

    4.6 Questionrio 85

    4.6.1 Guarda unilateral 85

    4.6.2 Guarda compartilhada 90

    5 DISCUSSO 96

    6 CONSIDERAES FINAIS 107

    REFERNCIAS 113

    ANEXOS

    ANEXO A Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 125

    ANEXO B Roteiro da entrevista 126

    ANEXO C Roteiro do questionrio 127

  • 11

    1 APRESENTAO

    Como advogada familiarista, observo que o ponto nevrlgico da maioria das

    separaes conjugais a definio de qual dos genitores ser o guardio dos filhos.

    Ultrapassadas as questes pessoais e interpessoais que levaram os cnjuges

    reflexo e deciso acerca da separao, surge a questo da guarda dos filhos.

    Sob a perspectiva jurdica, a questo da guarda reflete na definio do

    regime de visitao, na obrigao alimentcia e, por vezes, at na diviso do

    patrimnio. O modelo de guarda, seja acordado entre os genitores, seja

    judicialmente imposto, reflete no regime de visitao porque justamente a partir da

    guarda que a visitao discutida. A guarda reflete, ainda, na estipulao da

    obrigao alimentcia, na medida em que o no-guardio participar do sustento da

    prole por meio do pagamento de alimentos. A questo da guarda relevante,

    inclusive, na discusso da diviso do patrimnio. Isto porque, a despeito do regime

    de bens escolhido pelos cnjuges, no raro o guardio exclusivo permanecer no

    lar conjugal com os filhos.

    Sob a perspectiva psicolgica, o regime de guarda influencia, sobretudo, na

    relao entre os genitores e os filhos aps a separao conjugal. A depender do tipo

    de guarda, o convvio entre genitores e filhos ser dirio, frequente ou espordico, o

    que influencia no relacionamento familiar. Na maioria dos casos, a guarda unilateral

    materna escolhida pelas partes sem grande questionamento. A guarda unilateral

    paterna exceo. Quando se prope a guarda compartilhada, encontra-se forte

    resistncia. Assim, a prtica forense me despertou o interesse em pesquisar sobre

    como pais e mes concebem a guarda de filhos e quais motivos os levam a optar

    por um determinado tipo de guarda em detrimento de outro.

  • 12

    2 INTRODUO

    2.1 Guarda de filhos

    Quando um casal que tem filhos se separa, surge a pergunta com quem os

    filhos ficaro?. O compartilhamento do poder familiar, que at ento era feito pelo

    casal parental, ameaado pela ruptura do casamento e pela distncia fsica de um

    dos genitores do lar.

    Segundo dados apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    (IBGE, 2007)1, em 89% dos processos de divrcio findos no ano de 2007, a guarda

    dos filhos ficou com as mes. Ou seja, a guarda acordada pelas partes ou

    determinada pelo juiz na maioria dos divrcios brasileiros unilateral, a qual

    implica que o no-guardio deve abrir mo de parte do exerccio do poder familiar

    sobre seus filhos em favor do guardio. No consta nos dados do IBGE o tipo de

    guarda dos 11% restantes (se paterna, compartilhada ou entregue a outro parente).

    O poder familiar o direito e o dever de exercer atos de vigilncia, de

    cuidado e de educao (Devreux, 2006, p. 609) sobre os filhos menores de idade,

    i.e., at que atinjam a maioridade no Brasil, aos 18 anos (Lei 10.406, 2002)2.

    Durante a menoridade dos filhos, o poder familiar compartilhado pelos genitores

    durante a constncia do casamento ou da unio estvel (Lei 10.406, 2002)3.

    1 No ano de 2007, em 89,1% dos divrcios a responsabilidade pela guarda os filhos menores foi concedida s mulheres. (IBGE, 2007)

    2 Art. 5. A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada prtica de todos os atos da vida civil. (Lei 10.406, 2002)

    3 Art. 1.631. Durante o casamento e a unio estvel, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercer com exclusividade. Pargrafo nico. Divergindo os pais quanto ao exerccio do poder familiar, assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para soluo do desacordo. (Lei 10.406, 2002)

  • 13

    Quando h a separao do casal, o poder familiar passa a ser exercido pelo

    genitor que detm a guarda, denominado guardio, que detm pleno poder sobre o

    filho (Silva, 2003, p. 14). O genitor no-guardio/visitador perde parte do poder

    familiar, eis que carece do direito convivncia diria dos filhos, passando a v-los

    somente em dias de visita (Lei 10.406, 2002)4. Neste arranjo, o genitor no-guardio

    corre o risco de se tornar mero coadjuvante na vida de seu filho, eis que o

    responsvel, de fato e de direito, pela criao dos filhos o genitor guardio.

    Por isso, a questo da guarda crucial. No se trata de mera determinao

    de com quem ficaro os filhos, mas quem ordenar sua vida, quem por eles ser

    responsvel e quem deles cuidar cotidianamente.

    Introduzida no ordenamento jurdico brasileiro somente em 2008, a guarda

    compartilhada instituto previsto em diversos pases. A seguir, alguns exemplos.

    A Frana vanguardista em diversos aspectos relacionados ao direito de

    famlia, inclusive no que concerne guarda. A modificao legislativa no cdigo civil

    francs ocorrida em 1975 substituiu o termo garde partage (guarda compartilhada)

    por autorit parentale (autoridade parental). Implica dizer que naquele pas o

    equivalente ao poder familiar deve ser exercido por ambos os genitores, mesmo em

    caso de ruptura conjugal5.

    4 Art. 1.632. A separao judicial, o divrcio e a dissoluo da unio estvel no alteram as relaes entre pais e filhos seno quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos. (Lei 10.406, 2002)

    5 Os artigos 286, 287 e 372-2 do Cdigo Civil francs preveem que mesmo com o divrcio, subsistem os direitos e os deveres do pai e da me no que diga respeito aos seus filhos menores; que a autoridade parental exercida conjuntamente por ambos os pais; e que pai e me divorciados ou separados de corpos devem exercer a autoridade parental nas mesmas condies, ou seja, de forma compartilhada. (Code Civil, 1975, texto original em francs, traduo da autora)

  • 14

    Na Itlia, a guarda unilateral materna costumava ser to largamente

    praticada quanto no Brasil, alcanando o patamar de 85% das decises judiciais

    (APASE, 2011). No entanto, lei editada em 2006, que tratou do affidamento

    condiviso dei figli, passou a prever, como regra, a guarda compartilhada e, como

    exceo, a guarda exclusiva, sempre levando em conta o interesse do filho menor.6

    Com efeito, na pennsula itlica h o entendimenento legal segundo o qual se

    ambos os pais so genitores adequados, os filhos tm direito de manter uma relao

    plena e significativa com ambos, a quem caber igual responsabilidade para educ-

    los e conviver no dia a dia, e no apenas em emergncias (APASE, 2011)7. A partir

    da mudana legislativa, os ndices relativos guarda sofreram uma mudana

    radical: levantamento provisrio relativo a 2007, do Istituto Nazionale di Statistica,

    indica que essa modalidade [guarda compartilhada] chegou a 71,5% no caso de

    casais que se separaram e a 51% nos casos de divrcios. (Pais por justia, 2008)8

    No Canad, tanto o pai quanto a me tm o direito e o dever de assegurar a

    educao, o cuidado e a manuteno de seus filhos e detm o poder parental, no

    importa seu estado civil (Justice Quebec, n.d., texto original em francs, traduo da

    autora). Naquele pas

    6 O artigo 155 do Cdigo Civil italiano, recebendo nova redao, passou a prever que, mesmo em caso de separao dos pais, o filho menor tem o direito de manter contato de forma equilbriada e contnua com cada um dos gentiroes, de receber cuidados, educao e instruo de ambos, e de manter contatos significativos com seus ascendentes e parentes, sejam maternos, sejam paternos. Na sequncia, o artigo 155 bis prev que o juiz pode ordenar a guarda dos filhos a um dos genitores, mediante deciso fundamentada, somente se considerar que a deciso acerca da guarda compartilhada for contrria ao interesse do menor. (Senato Della Repubblica, 2005, texto original em italiano, traduo da autora)

    7 In Itlia institui a guarda compartilhada. Disponvel em [http://www.apase.org.br/16160-italia.htm]. Acesso em 09/02/2011.

    8 Disponvel em [http://paisporjustica.blogspot.com/2008/08/guarda-compartilhada-na-italia.html]. Acesso em 09/02/2011.

    http://www.apase.org.br/16160-italia.htm]http://paisporjustica.blogspot.com/2008/08/guarda-compartilhada-na-italia.html]
  • 15

    Os dois genitores podem ter a guarda dos filhos no momento da ruptura,

    uma vez que so iguais perante a lei. Portanto, um genitor no ter mais que

    o outro o direito de ter a guarda dos filhos. Assim, um genitor no pode

    decidir levar as crianas com ele se o outro no est de acordo. Com efeito,

    prefervel que os genitores faam um acordo a partir da ruptura sobre o

    tipo de guarda que melhor convier aos seus filhos. Se eles no conseguem

    fazer um acordo, eles podem fazer um pedido urgente ao juiz para que este

    decida sobre a guarda. (Educaloi, n.d., texto original em francs, traduo da

    autora)

    No ordenamento jurdico norte americano, a guarda compartilhada prevista

    como joint custody, e a regra; sendo o no compartilhamento exceo que deve

    ser justificada (Barreto, 2003). O mesmo autor cita informativo onde consta a

    seguinte definio desta modalidade de guarda:

    Guarda compartilhada significa que ambos os genitores tm direito de

    guarda e responsabilidades sobre a criana. Sob o regime da guarda

    compartilhada, nenhum dos genitores tem direito de guarda superior ao do

    outro. Guarda compartilhada no significa necessariamente que a criana

    passe a mesma quantidade de tempo ou viva com ambos os genitores. Um

    genitor pode ter guarda compartilhada mesmo que a criana resida com o

    outro genitor. (Iowa Judicial Branch, 2002, texto original em ingls, traduo

    da autora)

    Nos pases da America Latina, a guarda compartilhada ainda novidade. O

    cdigo civil argentino, por exemplo, prev que a guarda dos filhos aps a separao

    conjugal pode ser do pai ou da me, sem dar preferncia a um ou a outro, mas no

    prev que a guarda pode ser de um e de outro, no regime de compartilhamento

    (Grisard Filho, 2005, p. 81).9

    9 O artigo 264 do cdigo civil argentino prev que, em caso de separao ou divrcio, ou o pai ou a me ter a custdia [guarda] dos filhos, sem prejuzo do direito do outro de ter uma comunicao adequada com a criana e supervisionar a sua educao. (Cdigo Civil de la Repblica Argentina, 1987)

  • 16

    No Brasil, at pouco tempo atrs, a guarda unilateral materna era a regra,

    questionada somente nos casos de m conduta da mulher no necessariamente

    por negligncia nas suas responsabilidades de me, mas, por exemplo, por

    adultrio. Atualmente, no entanto, as duas possibilidades previstas em lei guarda

    unilateral (materna ou paterna) e guarda compartilhada no focam

    especificamente na conduta da me ou do pai. A partir de uma mudana de

    perspectiva, passou-se a considerar, sobretudo, o bem-estar dos filhos. O princpio

    que deve nortear toda e qualquer deciso acerca dos filhos o chamado princpio

    do melhor interesse da criana, preconizado pela Declarao Universal dos Direitos

    da Criana e ratificada pelo governo Brasileiro.10

    O cdigo civil brasileiro prev, assim, dois tipos de guarda, a unilateral e a

    compartilhada (Lei 10.406, 2002)11. Na guarda unilateral, somente o genitor guardio

    detm o exerccio do poder familiar e responsvel pelos cuidados dirios com

    higiene, alimentao, sade, educao, segurana etc., enfim, o responsvel pela

    criao dos filhos. Os filhos moram com o guardio e recebem visitas do no-

    guardio, que tem o direito-dever de visita e fica com o encargo de supervisionar os

    interesses dos filhos (Lei 10.406/02)12.

    10 Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990.

    11 Art. 1.583. A guarda ser unilateral ou compartilhada. 1o Compreende-se por guarda unilateral a atribuda a um s dos genitores ou a algum que o substitua (art. 1.584, 5o) e, por guarda compartilhada a responsabilizao conjunta e o exerccio de direitos e deveres do pai e da me que no vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. 2o A guarda unilateral ser atribuda ao genitor que revele melhores condies para exerc-la e, objetivamente, mais aptido para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I afeto nas relaes com o genitor e com o grupo familiar; II sade e segurana; III educao. 3o A guarda unilateral obriga o pai ou a me que no a detenha a supervisionar os interesses dos filhos. 4o (Vetado.). (Lei 10.406, 2002)

    12 Art. 1.589. O pai ou a me, em cuja guarda no estejam os filhos, poder visit-los e t-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cnjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manuteno e educao. (Lei 10.406, 2002).

  • 17

    Na guarda compartilhada, ambos os genitores so guardies dos filhos e

    detm e exercem igualmente o poder familiar, sendo corresponsveis pelos filhos

    em todas as esferas de sua vida. Pode haver, ou no, alternncia de casas. O que a

    caracteriza no o fato de os filhos morarem em duas casas, mas sim o

    compartilhamento das responsabilidades parentais por ambos os genitores, tal como

    o fariam se mantivessem relacionamento conjugal.

    Introduzida no ordenamento jurdico brasileiro por meio da Lei 11.698, de 13

    de junho de 2008, a guarda compartilhada apresenta-se, hoje, como primeira

    alternativa quando no h entendimento entre os pais (Lei 10.406, 2002).13 Implica

    dizer que, caso no haja acordo quanto guarda dos filhos, o magistrado deve

    decidir, preferencialmente e, sempre que possvel, pela guarda compartilhada (Lbo,

    2008, p. 30). O escopo da lei proteger o interesse dos menores, partindo do

    pressuposto de que o melhor para crianas e adolescentes ter o mesmo convvio

    com a me e o pai, tal como teriam se no houvesse ocorrido a separao dos pais.

    A guarda compartilhada, portanto, o referencial do qual o magistrado deve partir

    para determinar a guarda dos filhos quando os membros do ex-casal no chegam a

    um acordo. Somente quando verificada a impossibilidade prtica do

    compartilhamento da guarda, o magistrado determina a guarda unilateral, sempre

    tendo em vista o bem-estar dos menores.

    A favor da guarda compartilhada h o seguinte argumento: se os pais

    compartilham o exerccio do poder familiar durante a convivncia conjugal, por que

    no podem faz-lo aps o rompimento da vida em comum?

    13 Art. 1.584. Quando no houver acordo entre a me e o pai quanto guarda do filho, ser aplicada, sempre que possvel, a guarda compartilhada. (Lei 10.406, 2002).

  • 18

    Indubitavelmente, com a ruptura do casal, o modelo tradicional de famlia

    cujo ncleo constitudo por pai, me e filhos ameaado, quando no destrudo,

    pelo litgio entre os membros do ex-casal. No incomum as disputas girarem em

    torno da guarda dos filhos. No contexto mundial, as mudanas sociais, tais como o

    ingresso da mulher no mercado de trabalho e as novas tecnologias reprodutivas,

    tm impacto em termos de renegociar o significado de paternidade (Bustamante &

    Trad, 2005, p. 1.866).

    No s a sada da mulher do ambiente domstico, como tambm a entrada

    do homem no cenrio familiar, com maior participao, ainda que discreta,

    impulsionaram a mudana na dinmica familiar. Alm disso, a institucionalizao da

    separao conjugal outro fator modificador. Com efeito, ao lado do modelo de

    famlia nuclear, surgem outras configuraes familiares a partir dos recasamentos,

    na chamada monogamia em srie (Ribeiro & Albuquerque, 2008, p. 224).

    Geralmente, o direito est um passo atrs das mudanas sociais. No caso

    da guarda compartilhada, porm, verifica-se que a legislao precedeu a mudana

    da cultura dominante. De fato, a reformulao de uma lei, s vezes, no est

    acompanhada pela reformulao cultural da sociedade (Cerveny & Chaves, 2010,

    p. 43). Por isso, compreensvel que haja resistncia nova modalidade de guarda.

    Embora no haja dados estatsticos oficiais, observada, de forma assistemtica no

    cotidiano forense, forte resistncia por parte das mes e dos pais em aderirem

    voluntariamente guarda compartilhada. Essa tendncia orientou nosso interesse

    em analisar, sob a perspectiva da Teoria das Representaes Sociais, como mes e

    pais concebem a guarda de filhos e quais motivos os levam a optar por um

    determinado tipo de guarda em detrimento de outro.

  • 19

    2.2 Teoria das Representaes Sociais

    A Teoria das Representaes Sociais foi preconizada pelo psiclogo francs

    Serge Moscovici, que em 1961 escreveu a obra A Psicanlise, sua imagem e seu

    pblico, na qual analisa as representaes deste ramo da Psicologia entre os

    catlicos e os comunistas franceses dos anos cinquenta (Arruda, 2002; Jodelet,

    2001; Menandro, 2004; Pereira & Soares, 2003; Rouquette, 2000; Santos, 2005).

    To rica quanto inovadora, esta proposta terica tem enfoque pluridisciplinar

    e, justamente por isso, usada em estudos quantitativos e qualitativos da

    Antropologia, da Lingustica e da Psicologia, entre outras reas do conhecimento

    cientfico (Banchs, 2000, p. 3.1, texto original em espanhol, traduo da autora).

    Com efeito, estudos em representaes sociais tm mostrado o quanto esta noo

    e sua correlata base terica tm permitido uma compreenso e explicao

    aprofundada dos fenmenos sociais (Almeida, 2005, p. 121).

    Com base no conceito clssico de Denise Jodelet, Menandro explica que as

    representaes sociais so uma forma de conhecimento social que nos permite

    interpretar e pensar os acontecimentos de nossa vida cotidiana (Menandro, 2004, p.

    69). Souza, recorrendo a Serge Moscovici, explica que as representaes sociais

    correspondem a um tipo de conhecimento construdo por sujeitos e grupos humanos

    na informalidade de seu cotidiano. E continua:

    So sociais justamente por serem compartilhadas por uma quantidade

    considervel de pessoas e grupos e se caracterizam por funcionar como

    balizas para a comunicao e para o comportamento. So formas de

    conhecimento normalmente identificadas como pertencentes ao senso

    comum. (Souza, 2007, p. 74)

  • 20

    A teoria francesa prope que uma representao social sempre

    representao de algum (sujeito) e de alguma coisa (objeto) (Jodelet, 2001, p.

    27; Moscovici, 2009, p. 106; S, 1998, p. 24). Pereira e Soares, ao analisarem as

    concluses feitas na obra seminal da teoria moscoviciana, indicam que a

    representao permite s pessoas reduzir a categorias simplificadas as informaes

    concernentes ao seu ambiente. Assim, uma importante funo categorizar

    pessoas e objetos que auxiliem na interpretao do ambiente social (Pereira &

    Soares, 2003, p. 72). Eis o conceito clssico de representaes sociais:

    Trata-se de uma forma de conhecimento corrente, dito do senso-comum,

    caracterizado pelas seguintes propriedades: 1. Socialmente elaborado e

    partilhado; 2. Tem uma orientao prtica de organizao, de domnio do

    meio (material, social, ideal) e de orientao das condutas e da

    comunicao; 3. Participa do estabelecimento de uma viso de realidade

    comum a um dado conjunto social (grupo, classe etc.) ou cultural. (Jodelet,

    1991, citada por Almeida, 2005, p. 122)

    Moscovici explica que a finalidade de todas as representaes tomar

    familiar algo no-familiar. (Moscovici, 2009, p. 54). O indivduo, ento, classifica,

    categoriza e nomeia aquilo que lhe estranho, a partir do que lhe conhecido. Esta

    categorizao se d por meio dos processos conhecidos como objetivao e

    ancoragem. Trata-se de processos sociocognitivos, ou seja, processos cognitivos

    regulados pro factores sociais (Vala, 1997, p. 363). O processo de objetivao se

    d por meio da concretizao de uma imagem a partir de uma ideia abstrata,

    enquanto que o processo da ancoragem ocorre por meio da assimilao daquela

    imagem, tendo como suporte um paradigma, construindo-se um novo conceito

    (Franco, 2004).

  • 21

    Objetivar transformar algo abstrato em algo quase concreto, transferir o

    que est na mente em algo que exista no mundo fsico. Ancorar reduzir ideias

    estranhas a categorias e a imagens comuns, coloc-las em um contexto familiar,

    classificar e dar nome a alguma coisa (Moscovici, 2009, pp. 60-61). Com efeito,

    Quando tudo dito e feito, as representaes que ns fabricamos duma

    teoria cientfica, de uma nao, de um objeto, etc. so sempre o resultado

    de um esforo constante de tornar comum e real algo que incomum (no-

    familiar), ou que nos d um sentimento de no-familiaridade. E atravs delas

    ns superamos o problema e o integramos em nosso mundo mental e fsico,

    que , com isso, enriquecido e transformado. Depois de uma srie de

    ajustamentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mo; o que

    parecia abstrato, torna-se concreto e quase normal. Ao cri-los, porm, no

    estamos sempre mais ou menos conscientes de nossas intenes, pois as

    imagens e ideias com as quais nos compreendemos o no-usual (incomum)

    apenas trazem-nos de volta ao que ns j conhecamos e com o qual ns j

    estvamos familiarizados h tempo e que, por isso, nos d uma impresso

    segura de algo j visto (dj vu) e j conhecido (dj connu). (Moscovici,

    2009, p. 58)

    De carter universal, as representaes sociais dizem respeito a um

    fenmeno comum a todas as sociedades, a saber, a produo de sentido. Assim, a

    representao social no mera reproduo, mas construo (Vala, 1997, pp. 354-

    355). Construo de um sentido daquilo que se apresenta como novo, tornando-o

    conhecido a partir de percepes do que era anteriormente conhecido, ou seja,

    familiar.

    Alm disso, as representaes sociais se apresentam como uma rede de

    ideias, metforas e imagens, mais ou menos interligadas livremente e, por isso, mais

    mveis e fluidas que teorias (Moscovici, 2009, p. 210). As representaes so, de

    fato, mais fluidas que as teorias, mas no to volteis quanto uma simples opinio.

  • 22

    As representaes sociais diferenciam-se da opinio pura e simples que se

    tem sobre determinado objeto. Enquanto a representao social diz respeito a um

    processo de reflexo e validao acerca de um sujeito, objeto ou fenmeno,

    processo este que construdo no decorrer do tempo; a opinio algo mais voltil,

    superficial, instvel. Por isso, uma vez constituda uma representao, os indivduos

    procuraro criar uma realidade que valide as previses e explicaes decorrentes

    dessa representao (Vala, 1997, p. 356). Neste sentido, as representaes do

    senso comum, alm de serem sociais so tambm culturais, como o so todos os

    conhecimentos populares (Moscovici, 2003, p. 26).

    Banchs explica que dois tipos de processos incidem na formao das

    representaes sociais: por um lado, os processos cognitivos ou mentais, de carter

    individual e, por outro, os processos de interao e contextuais de carter social

    (Banchs, 2000, p. 3.1, texto original em espanhol, traduo da autora). Significa

    dizer que as representaes sociais, vistas como processo, formam-se a partir de

    uma atividade cognitiva individual conjugada com a interao social, resultando no

    produto que, ao mesmo tempo, influencia no e influenciado pelo movimento social,

    num processo dinmico e recproco de criao e validao de ideias e prticas.

    Na mesma linha de pensamento, Palmonari define representaes sociais

    como um processo interativo (dialgico) de re-construo e criao de sentidos

    relativos a fenmenos que se impem ateno de um grupo ou de uma

    comunidade (Palmonari, 2006, p. 29). Ou seja, somente objeto de representao

    aquilo que relevante ao grupo. Fenmenos isolados e insignificantes, que passam

    despercebidos e no recebem ateno do grupo, no so objetos de representao.

  • 23

    Ao contrrio do conhecimento oriundo da cincia (universo reificado), o

    conhecimento construdo a partir de representaes sociais (universo consensual)

    surge no seio do senso comum, isto , das teorias cotidianas (Ordaz & Vala, 2000,

    p. 100). Significa dizer que as pessoas refletem sobre o fenmeno (sujeito ou objeto

    da representao), conversam sobre ele, trocam ideias e percepes, e, sobretudo,

    elaboram o conhecimento por meio dos processos de objetivao e ancoragem.

    A cincia retrata a realidade independentemente da conscincia humana,

    sua estrutura fria e abstrata e restringida aos experts. As representaes sociais,

    por sua vez, surgem do senso comum, da conscincia de cada um (e de todos

    juntos), so acessveis aos amadores e, portanto, variveis (Arruda, 2002, p. 130).

    Da porque

    No todo conhecimento que pode ser considerado representao social,

    mas somente aquele que faz parte da vida cotidiana das pessoas, atravs

    do senso comum, que elaborado socialmente e que funciona no sentido de

    interpretar, pensar e agir sobre a realidade. (Alexandre, 2004, p. 127)

    O cotidiano , portanto, o cenrio privilegiado para a produo de

    representaes sociais (Arruda, 2006, p. 83). Ou seja, no cotidiano que se

    formam as ideias que do origem s representaes. O cotidiano, aqui, tomado

    como a vivncia do dia a dia, tudo o que influencia as pessoas, que as fazem refletir

    sobre algo e representar objetos de acordo com o conhecimento consensual.

    No entanto, importante salientar que, embora haja diferenas entre o

    conhecimento cientfico e o conhecimento do senso comum, notadamente quanto

    fonte e ao mtodo, tais formas de conhecimento interagem. So, de fato,

    conhecimentos diversos, mas no opostos nem excludentes. (Santos, 2006, p. 54)

  • 24

    De acordo com a Teoria das Representaes sociais, os universos

    consensuais [senso comum] so locais onde todos querem sentir-se em casa, a

    salvo de qualquer risco, atrito ou conflito. Tudo o que dito ou feito ali, apenas

    confirma as crenas e as interpretaes adquiridas, corrobora, mais que contradiz, a

    tradio (Moscovici, 2009, p. 54). Isto porque

    Todos os nossos discursos, nossas crenas, nossas representaes provm

    de muitos outros discursos e muitas outras representaes elaboradas antes

    de ns e derivadas delas. uma questo de palavras, mas tambm de

    imagens mentais, crenas, ou pr-concepes (Moscovici, 2009, p. 242)

    Em uma abordagem estrutural da teoria moscoviciana, Abric explica que a

    identificao da viso de mundo que os indivduos ou os grupos tm e utilizam para

    agir e para tomar posio, indispensvel para compreender a dinmica das

    interaes sociais e clarificar os determinantes das prticas sociais e que a

    representao um guia para a ao, ela orienta as aes e as relaes sociais

    (Abric, 2000, pp. 27-28). Assim, pode-se afirmar que estudar representaes sociais

    pressupe investigar o que pensam os indivduos acerca de um determinado

    objeto e porque pensam daquela maneira (Almeida, 2005, p. 124).

    Sendo teoria que emerge das condies de existncia de determinada

    sociedade em um tempo-histrico definido (Trindade, 1998, p. 20), este aporte

    terico apresenta-se como precioso instrumento para o estudo da guarda de filhos

    sob a perspectiva da Psicologia Social. A guarda de filhos faz parte do universo

    consensual dos brasileiros desde a institucionalizao da separao de corpos no

    Brasil, em 1891; seguida da previso do desquite, em 1916, substitudo pela

    separao judicial em 1977, pela mesma lei que instituiu o divrcio no Brasil

    (Almeida Jnior, 2002).

  • 25

    Com efeito, o divrcio, h muito tempo, deixou de ser fenmeno de

    exceo, para tornar-se quase um acontecimento cotidiano das famlias.

    (Grzybowsky, 2007, p. 59). No Brasil, antes mesmo, mas, sobretudo, com o advento

    da Lei do Divrcio (Lei 6.515, 1977), o modelo tradicional de famlia foi

    paulatinamente substitudo pelo que pode ser definido como modelo tradicional de

    guarda, isto , a guarda unilateral materna.

    Nesse sentido, estudar a guarda de filhos sob o prisma da Teoria das

    Representaes Sociais analisar a compreenso que se tem, no senso comum,

    dos papeis materno e paterno na formao dos filhos. Sobretudo, de que maneira

    esse conhecimento consensual reflete no dia a dia, notadamente quando se opta por

    um determinado tipo de guarda em detrimento de outro.

    Partindo da premissa de que representaes sociais referem-se apenas a

    objetos ou questes socialmente relevantes (Wagner, W., 2000, p. 18), pode-se

    afirmar que a guarda de filhos, por sua relevncia social, objeto de representao

    social. A relevncia social da guarda de filhos justificada pelo fato de que o

    exerccio da guarda influencia sobremaneira nas relaes familiares, como ser

    demonstrado no decorrer deste trabalho.

    Antes de tratarmos especificamente da representao da guarda, no

    entanto, trataremos dos papeis feminino e masculino, da maternidade e da

    paternidade, da conjugalidade e da parentalidade, pois acreditamos que as

    representaes que se faz desses objetos influenciam sobremaneira as

    representaes que se faz da guarda de filhos.

  • 26

    2.3 Papeis feminino e masculino

    inegvel o fato de que os padres de comportamento esto enraizados na

    nossa cultura, sendo perpetuados e transmitidos de gerao em gerao (Wagner,

    A., 2005, p. 107). Parte-se, aqui, dessa premissa cientfica e do princpio de que as

    representaes sociais so constitudas tanto a partir de teorias do senso-comum

    decorrentes das prticas cotidianas, como a partir do conhecimento produzido na

    academia que se incorpora ao cotidiano dos indivduos (Dias & Lopes, 2003, p. 64).

    possvel afirmar, assim, que as diferenas entre os gneros feminino e

    masculino, propagadas pela cincia e incorporadas ao senso comum, so a base

    das representaes sociais da maternidade e da paternidade, da conjugalidade e da

    parentalidade, e, consequentemente, da guarda de filhos. De fato,

    As representaes sociais da maternidade e paternidade materializadas no

    pensamento social esto intrinsecamente relacionadas s representaes de

    gnero, que produzem formas, diferenciadas ou no, de conceber o

    masculino e o feminino, evidenciando o predomnio ou a falncia dos

    modelos tradicionais, sempre referenciados nas diferenas biolgicas entre

    os sexos. (Trindade, 1999, p. 33)

    O tema objeto de diversos estudos na Psicologia (Arajo, 2005; Perucchi,

    Beiro, Butzke & Butzke, 2005; Rodrigues, 2000; Silva, 2003; Trindade, 1999). Tais

    estudos analisam as diferenas entre gneros sob a perspectiva cultural e a

    perspectiva biolgica. Do ponto de vista biolgico, encontramos as diferenas entre

    feminino e masculino no que concerne ao sexo: o que fisiologicamente peculiar a

    cada um. Do ponto de vista cultural, encontramos as diferenas no que concerne ao

    gnero (Wagner, A., 2005, p. 108). Com efeito,

  • 27

    Ao longo da histria, o debate da diferena entre os sexos desenvolveu-se

    principalmente entre duas perspectivas: a essencialista e a culturalista. O

    discurso essencialista exalta a diferena sexual e defende a existncia de

    uma essncia feminina. Psicologizando ou biologizando as constataes

    sociolgicas e culturais historicamente produzidas, realizam afirmaes

    universalistas que aprisionam a feminilidade em modelos estruturados, ainda

    que ideologicamente valorizados (mulher como me e esposa). Supe um

    feminismo universal e acaba justificando a discriminao das mulheres em

    funo da essncia feminina. Na perspectiva culturalista, as diferenas

    sexuais provm da socializao e da cultura. Sob esta tica, a superao da

    ordem e das leis patriarcais eliminaria as diferenas sexuais. (Arajo, 2005)

    A perspectiva cultural se apresenta a partir da constatao de que, ao longo

    da histria, especialmente com o processo de industrializao, o modelo de famlia

    extensa (parentes que moravam prximos e criavam os filhos juntos) foi eliminada

    pelo modelo de famlia nuclear (somente casal e filhos). Nesse modelo de famlia, o

    pai o provedor, o membro do casal que trabalha fora e passa pouco tempo com

    os filhos; a me, por sua vez, a cuidadora, o membro da famlia que trabalha em

    casa, desempenhando as funes domsticas, entre elas, os cuidados e a educao

    dos filhos.

    Por isso, em casos de separao, considera-se natural (concepo

    culturalmente construda) que me seja concedida a guarda dos filhos, eis que

    sempre coube a ela o papel de cuidadora dos filhos, restando ao pai a incumbncia

    de prover as necessidades materiais da famlia. (Barreto, 2003). Ficam evidentes,

    aqui, as representaes sociais dos papeis feminino e masculino, verdadeiros

    pilares das representaes sociais da maternidade e da paternidade, ambas

    representaes baseadas (leia-se ancoradas) em um modelo tradicional e arcaico:

  • 28

    O modelo tradicional da paternidade implica em uma figura masculina que

    prov o sustento da famlia, que se mostra forte e com poder de deciso nos

    momentos de crise, que comanda a famlia nas questes de carter

    instrumental. (...) O modelo tradicional de maternidade implica em uma figura

    feminina responsvel pela manuteno do vnculo familiar. Esta tarefa deve

    ser prioridade sobre suas necessidades pessoais, visto que atravs da

    maternidade que se concretizar sua identidade como mulher. A

    maternagem vista, ento, como o ideal feminino mais nobre e edificante.

    (Trindade, 1993, p. 538)

    De fato, essa forma tradicional de conceber e de organizar a famlia foi, com

    o tempo, naturalizando-se, ou seja, sedimentando-se no imaginrio social de tal

    maneira que chega ao ponto de ser considerada inata. No entanto, preciso

    salientar que os papeis feminino e masculino so social e historicamente

    construdos. (Grzybowski, 2007, p. 19)

    Dessa maneira, o sexo, ou como defende a sociloga francesa Anne-Marie

    Devreux , as relaes sociais do sexo so objeto de categorizao, no sentido de

    tornar certas atividades como sendo femininas ou masculinas:

    O trabalho parental efetuado pelas mulheres, em nome de sua funo

    biolgica na reproduo da vida humana, h muito tempo foi qualificado

    como funo maternal, sem que haja um equivalente masculino. Assim, a

    parentalidade, ligada ao fato parental de assumir a responsabilidade material

    das crianas, no adviria do domnio do social, mas derivaria da natureza

    maternal das mulheres. (Devreux, 2005, p. 568-569)

    Observa-se, porm, uma mudana comportamental a partir da modificao

    de paradigmas, tradies e representaes. Com efeito, nas sociedades ocidentais,

    homens e mulheres esto se distanciando dos modelos estereotipados de gnero e

  • 29

    desenvolvendo novas formas de subjetividade, livres do imperativo das divises

    traadas pelas representaes sociais at ento vigentes (Arajo, 2005).

    A questo da igualdade dos sexos, no que concerne a direitos e deveres,

    tema de diversas reas do conhecimento alm da Psicologia, como o Direito, a

    Antropologia e a Sociologia. Em estudo realizado pelo Institut national dtudes

    dmographiques Ined, instituto de pesquisas demogrficas francs, a licena

    parental na Sucia foi objeto de anlise, sob o prisma do bem-estar na vida cotidiana

    de crianas de at trs anos de idade. Na Sucia, a licena maternidade foi

    substituda pela licena parental em 1974, i.e, tanto mulheres quanto homens tm

    exatamente as mesmas possibilidades de se licenciar do trabalho, sem prejuzo de

    sua remunerao, para cuidar dos filhos de tenra idade. Entre os objetivos da

    medida esto o alcance de uma igualdade maior entre os sexos no que concerne ao

    trabalho e vida familiar, e o bem-estar ou os interesses das crianas (Brachet,

    2006). O estudo cita as vantagens da licena parental:

    A criana precisa de seu pai tanto quanto de sua me. Os laos mais

    profundos entre pais e filhos so criados quando a criana ainda pequena.

    O perodo em que essas relaes so formadas irrecupervel. Um pai

    ausente rapidamente se torna uma figura secundria para a criana. Alm

    disso, cuidar de uma criana aumenta as habilidades sociais, uma vez que

    enfrentar e resolver os problemas da vida cotidiana da criana faz surgir

    novas competncias. A licena parental serve, ainda, para desenvolver o

    sentimento paterno. Com efeito, a licena parental praticada pelo homem

    contribui para que haja uma relao mais rica entre o filho e o pai, na medida

    em que este se sente mais seguro no seu papel de pai. A necessidade que a

    criana tem de estar com ambos os genitores tambm invocada para

    incentivar os pais a tirar uma licena parental. (Brachet, 2006, p. 517, texto

    original em francs, traduo da autora)

  • 30

    No Brasil, entretanto, a licena-maternidade14 e a licena-paternidade15 so

    bem distintas mulheres tm 120 dias e homens, apenas 5 dias para se ausentar do

    trabalho para cuidar dos filhos recm-nascidos. Essa grande diferena refora a

    concepo de que os cuidados dos filhos cabem exclusivamente mulher

    (Grzybowski, 2007, p. 21), e retira do pai o direito de participar dos cuidados com a

    prole. De fato, em estudo sobre os problemas no casamento, no qual foram

    entrevistas 20 mulheres casadas h mais de quinze anos, nenhuma das

    entrevistadas indicou uma condio de igualdade entre o par no processo de cuidar

    da casa e dos filhos (Garcia & Tassara, 2003).

    de se constatar, portanto, que as representaes sociais dos papeis

    feminino e masculino influenciam sobremaneira nas prticas conjugais e parentais, e

    refletem nas representaes sociais da maternidade e da paternidade, como ser a

    seguir analisado.

    2.4 Maternidade e paternidade

    No h como tratar de representaes sociais da maternidade e da

    paternidade sem tratar do amor materno. Com efeito, h vrias referncias no

    cotidiano considerando o amor materno como natural e inerente natureza

    feminina (Vieira, 2008).

    14 Artigo 7. So direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, alm de outros que visem melhoria de sua condio social: XVIII licena gestante, sem prejuzo do emprego e do salrio, com durao de cento e vinte dias. (Constituio Federal, 1988).

    15 Artigo 7. So direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, alm de outros que visem melhoria de sua condio social: XIX - licena-paternidade, nos termos fixados em lei. Art.10, 1 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias At que a lei venha a disciplinar o disposto no art.7., XIX, da Constituio, o prazo da licena-paternidade a que se refere o inciso de cinco dias. (Constituio Federal, 1988).

  • 31

    No entanto, a naturalizao do amor materno contestada em vrios

    estudos, entre os quais destaca-se o clssico Lamour en plus: Histoire de lamour

    maternel (XVIIe-XXe sicle), de lisabeth Badinter. Filsofa francesa, Badinter

    responsvel pela desconstruo da ideia de amor materno como um instinto,

    universal e necessrio (Rios & Gomes, 2009, p. 216). Em Um Amor Conquistado: o

    mito do amor materno, ttulo da edio brasileira, apresentado vasto e profundo

    estudo histrico sobre a evoluo do amor materno na Frana entre os sculos XVII

    e XX. Constata-se que o amor materno uma construo cultural por meio da qual

    se pretende que a mulher permanea no ambiente domstico. Fica demonstrado

    que aps a Revoluo Industrial, por razes polticas, de sade pblica e at

    religiosas, foi difundida a ideia de que as mulheres deveriam permanecer em casa,

    cuidando dos filhos. Para tanto, usou-se a premissa do amor materno, ou seja, de

    que no h ningum mais preparado para cuidar dos infantes que a prpria me, a

    qual, naturalmente, possui todos os requisitos essenciais, entre os quais, o amor

    incondicional e a abnegao da vida pessoal em favor dos filhos. (Badinter, 1985)

    O mito do amor materno tem como premissa a existncia de um instinto

    materno superior e insubstituvel. Mito este que induz o imaginrio popular a criar

    outros mitos, como aquele segundo o qual o afeto materno mais forte que o

    paterno (Martnez, 1999). De fato, diversos estudos concluem que, culturalmente, o

    papel materno mais valorizado que o papel paterno (Crepaldi, Andreani, Hammes,

    Ristof & Abreu, 2006; Dantas, Jablonski, & Fres-Carneiro, 2004; Devreux, 2005;

    Falcke & Wagner, 2000; Goetz & Vieira, 2008; Trindade & Menandro, 2002). Desde

    tenra idade, as meninas so incentivadas a brincar de casinha e a desempenhar

    funes ditas maternas, como realizar as tarefas domsticas e cuidar dos irmos

    menores. Enquanto aos meninos so reservadas as brincadeiras de fora e

  • 32

    empreendedorismo, o que refora o futuro papel de provedor (Trindade, 1991, p. 25;

    Wagner, 2005, p. 107). Como consequncia, em caso de litgio entre os ex-

    cnjuges, por exemplo, a atribuio da guarda dos filhos me pressupe um

    consenso social de que a me seria sempre, e acima de qualquer suspeita, a melhor

    cuidadora dos filhos (Lyra & Medrado, 2000, p. 149).

    Mesmo a Psicologia, por muito tempo, deu grande importncia ao estudo do

    vnculo me-criana para o desenvolvimento dos infantes (Rodrigues & Trindade,

    1999, p. 126). A cincia psicolgica chegou a propagar a tese de que a mulher seria

    a responsvel natural pelos filhos (Coutinho & Menandro, 2009, p. 18). Como

    exemplo, podemos citar estudo acerca de gnero e paternidade nas pesquisas

    demogrficas, no qual foram analisados dados scio-demogrficos em pesquisas

    realizadas pelo SEADE (Sistema Estadual de Anlise de Dados) e pelo IBGE

    (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica). Constatou-se que os atos de

    conceber e criar filhos constituem, inclusive na demografia, experincias humanas

    atribudas culturalmente s mulheres, incluindo muito discretamente o pai (Lyra &

    Medrado, 2000, p. 155).

    No que concerne ao estudo das representaes sociais, tem-se que uma

    representao social quanto mais sua origem esquecida e sua natureza

    convencional ignorada, mais fossilizada ela se torna (Moscovici, 2009, p. 41).

    Implica dizer que a cincia desempenhou um papel importante na formao da

    representao social da maternidade e da paternidade quando valorou, por muito

    tempo, o papel materno em detrimento do paterno. Resultados dessa cincia

    equivocada foram incorporados no imaginrio popular, ficando arraigado no senso

    comum que a me mais importante que o pai na formao e na criao de filhos.

  • 33

    Os estudos atuais, entretanto, demonstram que a participao paterna to

    importante quanto a participao materna no desenvolvimento dos filhos

    (Bustamante & Trad, 2005; Dantas et al., 2004; Pratta & Santos, 2007). Ou seja,

    que os pais so agentes importantes no desenvolvimento da criana e que tm

    potencial para serem pais competentes e envolvidos (Crepaldi et. al., 2006, p. 584).

    Com efeito,

    Em diversas reas da atividade humana os pais so reconhecidos no s

    como afetivamente importantes para os filhos como tambm aptos para

    providenciar todos os cuidados necessrios para o seu bem-estar, inclusive

    aqueles antigamente restritos exclusivamente s mes. (Trindade, 1991, p.

    30)

    As representaes sociais da paternidade, por sua vez, so ancoradas na

    ideia segundo a qual

    Tradicionalmente, existe uma supervalorizao do papel materno no

    desenvolvimento infantil, enquanto o papel paterno colocado como algo

    secundrio e de menor importncia para o equilbrio social e afetivo dos

    filhos, sendo o pai valorizado apenas no papel de provedor. (Trindade, 1993,

    p. 538)

    Esse discurso social to internalizado e cristalizado, que como se

    realmente fosse determinado biologicamente, e no uma construo histrica e

    social (Silva, 2003, pp. 22-23). No entanto, tal como o amor materno, o amor

    paterno tambm semeado, alimentado e aprendido no trato dirio com os filhos.

    Nas oscilaes da convivncia, em meio ambivalncia, construdo e sustentado.

    Nada difere em possibilidade, da magnitude do amor materno (Nazareth, 1998).

    Em estudo sobre guarda paterna e representaes sociais de paternidade e

    maternidade, foram verificados os seguintes elementos definidores das

  • 34

    representaes sociais da paternidade: responsabilidade e acompanhamento,

    afetividade e companheirismo, orientao e correo, provedor material e equilbrio

    (Vieira, 2008, p. 72). No mesmo estudo, no contedo das representaes sociais da

    me foram encontrados aspectos como centralidade da me, aspectos biolgicos,

    participao nos cuidados, afetividade, igual paternidade e superior paternidade;

    e ainda no abandonar os filhos e equilbrio (Vieira, 2008, pp. 81 e 129).

    importante ressaltar, contudo, que os sujeitos estudados por Vieira eram pais

    detentores da guarda exclusiva de seus filhos. Portanto, a representao da

    paternidade por esses pais foi elaborada a partir da experincia de cuidar de seus

    filhos sem a participao direta da me, o que, por certo, um fator diferenciador da

    representao social.

    No entanto, de uma maneira geral, a participao paterna nos afazeres

    domsticos, entre os quais o cuidado com os filhos, mesmo nos pases em que

    mais difundida, como na Frana, ainda deixa a desejar. Em estudo realizado

    naquele pas, foi constatado que a participao masculina nos afazeres domsticos

    decresce com o nascimento dos filhos, enquanto que, obviamente, o trabalho

    domstico aumenta (Devreux, 2006).

    Alm disso, para os homens, trabalho e famlia so complementares, esta

    como apoio e refgio para os problemas daquele. Para as mulheres, trabalho e

    famlia representam exigncias conflitantes, levando-as ao dilema de conciliar o

    tempo dedicado carreira e o tempo dedicado famlia (Carter & McGoldrick, 1995,

    p. 35). Pesquisas demonstram que a carreira da mulher tem importncia capital na

    determinao do tamanho de sua descendncia, o que no ocorre com o homem:

  • 35

    para os homens, ao contrrio, a paternidade, geralmente, fortalece seu estatuto

    profissional (Devreux, 2005, p. 572).

    Os homens ainda agem como se tivessem uma opo quanto a participar

    da paternidade. As mulheres raramente consideram a maternidade como uma

    opo, e aquelas que a fazem arriscam-se s consequncias negativas da opinio

    que a sociedade ter sobre elas (Carter & McGoldrick, 1995, p. 338). Ou seja,

    enquanto que para os homens a paternidade uma possibilidade; para as mulheres,

    a maternidade uma obrigao social. A mulher de certa idade que ainda no se

    casou, bem como a mulher casada que ainda no teve filhos constantemente

    julgada por sua opo.

    Em estudo sobre a infertilidade feminina, no qual foram entrevistadas 50

    mulheres em tratamento contra infertilidade, concluiu-se que, devido

    supervalorizao da maternidade, a esterilidade tomada como um estigma. Foi

    observada alta incidncia de sentimentos de inferioridade e inadequao. De fato, as

    mulheres participantes daquela pesquisa consideram gerar um filho uma obrigao

    feminina e uma condio de normalidade (Trindade, 2000, p. 199). Em suma,

    como se a mulher, para ser plenamente mulher, devesse gerar filhos, sob pena de

    descumprir seu papel na sociedade.

    importante salientar, porm, que o exerccio da maternidade e da

    paternidade no se d automaticamente com o nascimento do filho. na

    convivncia ntima do dia a dia que vai ser construda uma outra forma de

    parentalidade: a parentalidade psicolgica (Cezar-Ferreira, 2007, p. 92). o que se

    define como maternagem e paternagem, neologismos que servem para diferenciar a

    parentalidade biolgica (ter filhos) da parentalidade psicolgica (criar filhos). Alm

  • 36

    disso, um pai sem compromisso e emocionalmente distante de seus filhos uma

    figura socialmente construda e no biologicamente determinada. Da mesma forma,

    a figura do pai comprometido que cuida de seu filho, tambm uma realidade que

    pode e deve ser construda socialmente (Martnez, 1999).

    Em estudo sobre a participao paterna no cuidado de crianas pequenas,

    Bustamante & Trad (2005) constataram que com base na diviso sexual do

    trabalho, homens e mulheres tm formas diferenciadas de cuidar (p. 1871) de seus

    filhos, mas que os pais so to capazes de cuidar de seus filhos quanto as mes. Na

    mesma pesquisa, a representao que se faz de um bom pai aquele que est

    presente na vida do filho, especialmente quando deste [se] precisa (p. 1872).

    Em outro estudo sobre o mesmo tema, Crepaldi et al. (2006) salientam que o

    pai no pode ser tomado como mero coadjuvante no cuidado dos filhos, pois isto o

    desestimula a buscar o seu espao e desempenhar a contento o seu papel na

    parentalidade. Por isso, o pai deve ser tomado como um partcipe importante no

    desenvolvimento da prole, uma vez que influencia e influenciado em sua interao

    direta com a criana (p. 581). Ou seja, as interaes entre pai e filho, desde a tenra

    idade, deve ser incentivada pela me e buscada pelo prprio pai.

    Em recente estudo sobre o envolvimento parental aps separao/divrcio,

    Grzybowski & Wagner (2010) constataram que a coabitao um fator importante

    para um maior envolvimento direto com as crianas. Observaram, tambm, que as

    mes se relacionam mais com seus filhos no espao domstico e os pais, no espao

    pblico. Assim como as mes esto mais atentas rotina dos filhos e os pais, ao

    entretenimento. Os autores concluram que a frequncia de visitas e a coabitao

    so variveis significativas do envolvimento parental.

  • 37

    Em estudo realizado na Frana, foi observado que os pais que efetivamente

    partilham com as mes os cuidados dirios com os filhos apresentaram trajetrias

    profissionais tpica de mulheres com filhos. Ou seja, suas carreiras sofrem

    estagnao e tm renda menor (Devreux, 2005, p. 573).

    Mesmo na Sucia, onde os pais tm o direito, tanto quanto as mes, de

    cuidar de seus filhos, a participao masculina apenas um pouco maior que antes

    da instituio da licena parental, em 1974. Comparado com o papel materno, o

    paterno ainda secundrio. (Brachet, 2006, p. 515, texto original em francs,

    traduo da autora)

    No Brasil, a participao dos pais nos cuidados com os filhos incipiente

    (Poeschl, 2003, p. 35). possvel explicar o fenmeno com o fato de que ainda

    comum que o homem perceba o trabalho domstico como natural e inerente

    mulher (Wagner, A., 2005, p. 115). Na nossa sociedade ainda muito valorizada a

    figura da me que cuida e do pai que prov, como funes compartimentalizadas, o

    que est em certo desacordo com as transformaes sociais (Cezar-Ferreira, 2007,

    p. 119). Ou seja, mesmo que a me exera atividade profissional, o encargo da

    criao dos filhos ainda dividido entre os genitores de forma no igualitria.

    Em extenso estudo etnogrfico realizado em favelas de Porto Alegre,

    constatou-se que a participao paterna no ambiente domstico, notadamente no

    que concerne aos filhos, insignificante (Fonseca, 2002). Os cuidados que deveriam

    ser parentais, ou seja, realizados tanto pelo pai quanto pela me, so to somente

    cuidados maternais, em uma verdadeira prioridade do direito materno, como a

    autora descreve:

  • 38

    Mesmo que os pais desfrutem de um contato frequente com seus filhos, no

    h ambiguidade: lavar, alimentar, cuidar da boa sade dos filhos tarefa das

    mulheres. A tendncia tcita do grupo, revelada pelas crenas morais e

    msticas, a de proclamar a inalienabilidade e a exclusividade dos direitos

    da me sobre a sua progenitura. Acredita-se que quando seu beb est

    doente ou seu filho em perigo, uma me sabe sem ser avisada. No caso de

    disputa entre os pais, os filhos tomam mais facilmente o partido do pai. (...)

    Quando um casal se separa, a me, se quer e pode ficar com os filhos,

    raramente contrariada em seus propsitos. (Fonseca, 2002, pp. 84-85)

    Vale destacar, ainda, recente estudo sobre as representaes sociais de

    homens e mulheres ideais, no qual se verificou que o conceito de mulher ideal

    perpassa por noes de boa me e boa dona de casa. Assim como o conceito de

    homem ideal perpassa por noes de trabalhador e responsabilidade. Apesar de o

    adjetivo trabalhador/a ter sido vinculado a homens e mulheres, os pesquisadores

    constataram que o trabalho externo, na rua, designado aos homens, enquanto

    que o trabalho domstico, em casa, designado s mulheres (Trindade,

    Nascimento & Gianrdoli-Nascimento, 2006, pp. 193-203). Implica dizer que as

    representaes sociais da maternidade e da paternidade so influenciadas pela

    ideia de que a boa me aquela que permanece em casa, cuidando dos filhos; e

    pela ideia de que o bom pai aquele que trabalha e o provedor da famlia.

    No entanto, no decorrer dos anos entre a institucionalizao da separao

    conjugal e o advento da lei da guarda compartilhada, novos arranjos familiares foram

    surgindo. Sem dvida, a entrada da mulher no mercado de trabalho modificou

    sobremaneira o tradicional arranjo familiar, trazendo tona outras possibilidades,

    entre elas, a guarda compartilhada.

  • 39

    Nesse diapaso, o papel paterno tambm sofreu modificaes, notadamente

    quanto participao do pai nos cuidados com a prole. A figura tradicional do pai

    provedor, distante e autoritrio, que no se envolve diretamente com os filhos,

    exercendo o modelo de poder e autoridade, vai, paulatinamente transmutando

    figura moderna do pai participativo, que exerce seu papel no desenvolvimento

    moral, escolar e emocional dos filhos, alcanando, a figura daquele pai que exerce

    todas as funes oriundas da parentalidade em igual participao e competncia

    com a me, mostrando-se capaz de participar ativamente dos cuidados e da criao

    das crianas (Dantas et al., 2004, p. 348).

    Assim, hoje, h a expectativa de que o homem, alm de ser provedor da

    famlia, seja presente em casa, participe efetivamente nos cuidados com os filhos,

    dividindo com a mulher tanto a tarefa de manter como tambm a de cuidar da famlia

    (Bustamante & Trad, 2005, p. 1866). De fato, a tendncia atual da famlia moderna

    ser cada vez mais simtrica na distribuio dos papeis e obrigaes (Pratta &

    Santos, 2007, p. 249). E mais, observa-se um nmero crescente de pais que

    tambm compartilham com a mulher ou at mesmo assumem as tarefas educativas

    e as responsabilidades de educar os filhos, buscando adequarem-se s demandas

    da realidade atual (Wagner, Predebon, Mosmann & Verza, 2005, p. 181).

    O que se observa no dia a dia forense que aquele pai que efetivamente

    cuida dos filhos na constncia do casamento, raramente vira um estranho aps a

    separao. Ao contrrio, tende a ser um pai que luta na Justia para manter convvio

    com os filhos. Entretanto, aps o divrcio, 50% dos homens perdem totalmente o

    contato com suas crianas (Goetz & Vieira, 2008, p. 84).

  • 40

    Vimos at aqui que as representaes sociais dos papeis feminino e

    masculino, e as representaes sociais da maternidade e da paternidade dividem as

    funes parentais entre maternas e paternas. A seguir, discorreremos sobre como

    as representaes sociais da conjugalidade e da parentalidade influenciam no

    exerccio da parentalidade.

    2.5 Conjugalidade versus parentalidade

    importante demarcar a diferena entre conjugalidade e parentalidade. Isto

    porque as representaes que se tem de uma e de outra interferem sobremaneira

    na vivncia da relao conjugal e da relao parental. O que se observa no dia a dia

    forense que se faz muita confuso entre a conjugalidade e a parentalidade, numa

    verdadeira fuso das duas como se, de fato, no fossem concernentes a relaes

    distintas. Isto reflete negativamente tanto na vivncia do casamento ou da unio

    estvel, como tambm, e, sobretudo, na vivncia da ruptura conjugal, surtindo

    efeitos nefastos no perodo ps-separao.

    Conjugalidade diz respeito relao construda entre duas pessoas,

    casadas ou no, que vivem uma relao amorosa com o intuito de formar uma

    famlia com ou sem filhos. Uma das caractersticas principais da conjugalidade na

    atualidade a sua dissolubilidade, que pode ocorrer, entre outras possibilidades, por

    meio da dissoluo da unio estvel16 ou por meio do divrcio17.

    16 Art. 1. reconhecida como entidade familiar a convivncia duradoura, pblica e contnua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituio de famlia. [...] Art. 7. Dissolvida a unio estvel por resciso [...]. (Lei 9.278, 1996)

    17 Art. 1.571. 1. O casamento vlido s se dissolve pela morte de um dos cnjuges ou pelo divrcio [...]. (Lei 10.406, 2002)

  • 41

    A parentalidade, por sua vez, diz respeito relao entre pais e filhos,

    relao esta indissolvel. Com efeito, a indissolubilidade no se aplica mais unio

    conjugal, e sim filiao (Brito, 2001). A principal diferena entre conjugalidade e

    parentalidade, portanto, a possibilidade de dissoluo, presente naquela e ausente

    nesta.

    No entanto, embora sejam relaes distintas, a conjugalidade e a

    parentalidade influenciam uma a outra. H, de fato, ligao entre as relaes

    conjugais e parentais, especialmente quanto qualidade de uma influenciando na

    qualidade da outra. Com efeito, uma boa relao marital [conjugalidade] favorece o

    compartilhamento de tarefas domsticas e prticas entre maridos e esposas, e

    promove o desenvolvimento de sentimento de segurana em suas crianas

    [parentalidade] (Braz, Dessen & Silva, 2005, p. 151).

    Assim, durante a relao amorosa entre pessoas que tm filhos em comum,

    a maneira como a conjugalidade vivenciada influencia na parentalidade. Tal

    influncia persiste aps a ruptura, eis que a maneira como a separao conjugal

    vivenciada igualmente influencia na parentalidade ps-separao. Porquanto,

    quando relacionados coparentalidade e separao, muitos fatores presentes

    durante o casamento e na poca do divrcio podem predizer a natureza da relao

    coparental em um momento posterior (Grzybowski, 2007, p. 61).

    De fato, estudos tm demonstrado, por um lado, que relaes conjugais

    insatisfatrias produzem efeitos nefastos sade fsica e mental nos filhos (Braz et

    al., 2005, p. 151), uma vez que a relao entre os cnjuges um fator que influi

    positiva ou negativamente nas caractersticas e comportamentos dos filhos (Garca,

    Marn & Currea, 2006, texto original em espanhol, traduo da autora). Por outro

  • 42

    lado, h estudos que demonstram os efeitos, muitas vezes, negativos, da ruptura

    conjugal sobre os filhos, especialmente quando a separao no bem elaborada

    por ambos os cnjuges e os filhos se sentem coagidos a tomar partido, o que os

    leva a um conflito de lealdade to danoso quanto cruel:

    Uma criana, embora nunca queira, pode at suportar que seus pais se

    separarem, vivam em casas separadas e at venham a constituir novas

    famlias. No entanto, se desorientam complemente, ficam inseguros, com a

    identidade comprometida, se esses pais no so capazes de manter um

    dilogo como pais, sem ataques destrutivos, sem animosidade... Um filho

    jamais pode ser leal a um dos pais contra o outro. Isso o dilacera. (Rosa

    Maria Stefanini de Macedo, no prefcio de Cezar-Ferreira, 2007, p. 14).

    No entanto, preciso considerar que os efeitos do divrcio na vida dos

    filhos sero sempre de difcil avaliao, porque no sabemos o que teria acontecido

    se os pais estivessem juntos. (Giddens, 1999, citado por Brito, 2007, p. 34).

    Ademais, muitas vezes no o divrcio em si que causa danos psicolgicos aos

    filhos, mas sim a maneira como as mudanas oriundas da ruptura conjugal so

    vivenciadas por cada membro do casal parental (Dolto, 2003, p. 38).

    Em alguns casos, mesmo aps o fim do casamento, conjugalidade e

    parentalidade seguem unificadas (Brito, 2007, p. 39). Em estudo sobre famlia ps-

    divrcio foi constatado que a guarda e a visitao, aspectos do exerccio da

    parentalidade, so prejudicadas quando a relao entre os ex-cnjuges no

    saudvel, perpetuando-se os conflitos da conjugalidade (Brito, 2007, p. 39).

    Na mesma direo, pesquisa sobre os aspectos transgeracionais dos novos

    arranjos familiares oriundos de separao e recasamento, destaca que o divrcio

    no implica somente a separao dos cnjuges, mas tambm o distanciamento

  • 43

    entre pais e filhos. Assim, segundo os autores daquela pesquisa, a mxima a

    separao do casal nem sempre se cumpre (Ribeiro & Albuquerque, 2008, p.

    237).

    Como se no bastasse a confuso que se faz entre conjugalidade e

    parentalidade, mesmo quando concebidas como relaes distintas, a ideia que se

    tem de casamento e de ruptura conjugal diferente entre mulheres e homens.

    Enquanto as mulheres concebem o casamento como relao amorosa e associam

    a ruptura a sentimentos de mgoa e solido; os homens concebem o casamento

    como constituio de famlia e associam a ruptura a sentimentos de frustrao e

    fracasso (Fres-Carneiro, 2003, pp. 367-370). Se as mulheres valorizam o

    casamento como relao, e os homens o valorizam como instituio e projeto de

    vida, quais seriam, ento, os desdobramentos dessa dicotomia na questo da

    guarda dos filhos aps a separao conjugal? O que se observa na prtica forense

    que, aps a ruptura conjugal, cabe s mes a maior parte da responsabilizao pela

    prole, cabendo aos pais o papel de meros provedores. Estudos sobre famlia

    verificam que, para a maioria dos pais, a separao implica distanciamento, fsico e

    afetivo, dos filhos. O revs oriundo da ruptura significa, em muitos casos, abandono

    completo do projeto constituio de famlia (Fres-Carneiro, 1998).

    Essas diferenas de formas de conceber a conjugalidade, portanto, geram

    consequncias na vivncia da parentalidade. No se pode negar que a relao

    conjugal de suma importncia no desenvolvimento emocional dos filhos (Fres-

    Carneiro, 1998). Tampouco se pode negar que a sade mental dos filhos est

    associada ao bem-estar dos pais e qualidade do relacionamento conjugal (Souza,

    R. M., 2000, p. 203). Assim, plausvel afirmar que uma ruptura conjugal mal

  • 44

    elaborada pelos ex-cnjuges provoca efeitos malficos na prole. No raro, porm,

    que os ex-cnjuges confundam a separao conjugal com a funo parental, muito

    embora a separao seja do casal conjugal e o casal parental subsista com as

    funes de cuidar, de proteger e de prover as necessidades materiais e afetivas dos

    filhos (Fres-Carneiro, 1998). Mes e pais, no entanto, ainda impem aos filhos um

    desnecessrio e nefasto conflito de lealdade, ao obrig-los a escolher quem

    continuaro a amar aps a separao conjugal. Esse o conflito de lealdade

    responsvel por grande parte do sofrimento dos filhos, na situao de separao.

    (Cezar-Ferreira, 2007, p. 90)

    Observa-se no dia a dia forense que quanto mais litigioso for o processo de

    separao ou divrcio, mais acirrada a disputa sobre tudo o que diga respeito aos

    filhos, desde a guarda e a visitao, at o valor dos alimentos. Em muitos casos, fica

    clara a inteno de um dos ex-cnjuges, quando no dos dois, de nutrir a relao j

    finda por meio do litgio judicial. Em alguns casos, mesmo aps anos de durao do

    processo judicial alguns [ex-cnjuges] ainda permanecem excessivamente aderidos

    culpa ou ao ressentimento desenhado na querela judicial. (Coimbra, 2009)

    O exerccio da guarda, assim, apresenta-se como a chave para a

    manuteno da unidade familiar e do desempenho dos papeis parentais aps a

    ruptura conjugal. Partindo da premissa de que o desempenho parental baseado

    nas representaes dos papeis feminino e masculino, e que tais representaes

    refletem no exerccio da conjugalidade e da parentalidade, pode-se concluir que o

    conjunto dessas representaes tambm influencia no exerccio da guarda.

    Chegamos, assim, ao foco principal: as representaes sociais da guarda.

  • 45

    2.6 Representaes Sociais da guarda

    Sob o ponto de vista do senso comum, famlia o grupo composto pelos

    genitores e seus filhos, cabendo queles o cuidado destes. Sob o ponto de vista

    cientfico, famlia a entidade responsvel no s pela sobrevivncia dos infantes,

    como tambm por sua socializao, que ocorre por meio da educao e da

    transmisso da cultura. Nesse sentido, cabe famlia no s suprir as necessidades

    primrias de seus membros, como segurana e alimentao, mas tambm abarcar a

    afetividade, o desenvolvimento cognitivo e social. Cabe famlia proporcionar um

    ambiente saudvel, notadamente no que concerne s relaes me-criana e pai-

    criana. (Macedo, 1994, pp. 63-64)

    De fato, a famlia tem importncia capital no desenvolvimento psicossocial

    de seus membros, desenvolvimento este que no se encerra na infncia, mas que

    perdura por toda a vida (Almeida & Cunha, 2003, p. 149). Logo, qualquer mudana

    na famlia reflete diretamente no s nas relaes interpessoais de seus membros,

    como os atinge individualmente sendo que cada membro sente o impacto de uma

    maneira diferente. Nesse diapaso, quando ocorre a ruptura conjugal, surge a

    necessidade de reorganizar a famlia em um novo arranjo. Isto porque,

    inevitavelmente, a estrutura se altera com a dissoluo da conjugalidade, embora a

    famlia, enquanto organizao, se mantenha. (Cano, Gabarra, Mor & Crepaldi,

    2009). Este novo arranjo traz a noo de famlia recomposta, que remete a um

    duplo movimento de dessacralizao do casamento e de humanizao dos laos de

    parentesco. Implica dizer que a famlia contempornea, no mais divinizada nem

    naturalizada, assume sua fragilidade e sua desordem; sem com isso perder seu

    papel fundamental no desenvolvimento humano (Roudinesco, 2003, p. 153).

  • 46

    Assim, a famlia nuclear tradicional comea a tornar-se uma exceo em um

    universo marcado pelo trinmio casamento, separao e recasamento (Schabbel,

    2005). Emergem, portanto, novas representaes sociais da famlia, como resultado

    da ruptura conjugal, da posio social da mulher e da quebra de paradigmas quanto

    diviso sexual do trabalho (Silva, 2003, p. 11). Alm disso, o nmero crescente de

    separaes e reconstituies das relaes conjugais com outros companheiros fez

    com o que conceito de famlia se tornasse mais extenso (Wagner, Falcke & Meza,

    1997).

    preciso atentar-se ao fato de que a permanncia dos laos parentais aps

    a ruptura conjugal uma tarefa complexa, mas essencial para o bem-estar dos

    filhos. Afinal, quem se separa o casal conjugal e no o casal parental (Fres-

    Carneiro, 1998). preciso conciliar as questes pessoais, como elaborao da

    separao e a retomada da vida social e sexual, com as questes relacionadas

    parentalidade, como a ateno aos efeitos separao na vida dos filhos e o convvio

    destes com ambos os genitores.

    Por isso, a questo da guarda essencial quando ocorre a separao de um

    casal com filhos menores de idade. Mesmo quando decidida por meio de acordo,

    no raro surgir a necessidade de rediscusso a partir dos problemas que surgem

    quando do seu exerccio. Especialmente na guarda unilateral, onde o poder sobre os

    filhos est concentrado em um s genitor, e o outro, por no ter convvio dirio com

    os filhos, acaba assumindo o papel ldico da educao. Os problemas oriundos

    dessa dicotomia surgem com o tempo e suscitam mal-estares entre os genitores e,

    inclusive, aes judiciais supervenientes. Isto porque

  • 47

    A relao guarda = poder e visita = lazer, comumente, estabelecida em

    prejuzo dos filhos. Agravando o quadro, v-se, com frequncia, o genitor

    detentor da guarda tentar dificultar a execuo do regime de visitas e o

    genitor visitador, que em geral o alimentante, abster-se do cumprimento da

    obrigao do pagamento da penso alimentcia e/ou ir-se afastando dos

    filhos. Essa cadeia de comportamentos no linear e pode iniciar-se

    concretamente por qualquer dos comportamentos. A causalidade circular e

    os comportamentos so recursivos. (Cezar-Ferreira, 2007, p. 118).

    A guarda, muitas vezes, acordada entre os ex-cnjuges ou determinada

    pelo juiz a partir da premissa de que os filhos devem ficar com a me. Este um

    caso exemplar de que o senso comum influenciado por conceitos oriundos da

    cincia. Antigos pressupostos da Psicologia do Desenvolvimento, embora hoje

    questionados, ainda fazem parte do imaginrio popular e so fontes de ancoragem

    da representao social da maternidade, com a supervalorizao da me em

    detrimento do pai na vida dos filhos. A teoria do apego, proposta por John Bowlby

    nos anos 1950, por exemplo, preconiza que a me a figura central do apego,

    sendo os demais membros da famlia, incluindo o pai da criana, figuras subsidirias

    (Rodrigues, 2000, pp. 143-144).

    Estudos atuais, no entanto, demonstram que a criana necessita de um

    cuidador: idealmente, a me e o pai juntos, casados ou no; preferencialmente, a

    me ou o pai, na ausncia de um deles; e no necessariamente a me, caso haja

    tambm um pai (Alexandre & Vieira, 2009; Brachet, 2006; Brito, 2007; Cerveny &

    Chaves, 2010; Rodrigues, 2000). Ambos os genitores so, de fato, os principais e

    mais influentes agentes de socializao na vida de seus filhos (Garca et al., 2006,

    original em espanhol, traduo da autora).

  • 48

    A despeito do que comprova o conhecimento cientfico, porm, ainda nos

    dias de hoje persiste, no seio do conhecimento consensual, oriundo do senso

    comum (o qual mescla ideias preconcebidas, aspectos culturais e teorias cientficas),

    a ideia de que a me naturalmente mais preparada que o pai para cuidar dos

    filhos. Esta concepo salientada em estudo sobre Psicologia e Direito de Famlia:

    histrico o entendimento de que a me no necessria e exclusivamente

    a melhor opo para a criao de uma criana, e que o privilgio das

    mulheres quanto s decises de guarda foi, e tem sido, condicionado ao

    longo da histria por diversos pressupostos sociais e culturalmente

    construdos. Nos sculos passados o direito do pai era superior ao da me,

    entretanto, nos dias atuais, com os direitos civis decretados a partir de 1900,

    o direito de guarda tem ficado com a me, na maioria dos casos, pautado

    em diferentes teorias sobre o papel da me no desenvolvimento da criana.

    (Perucchi et al., 2005, p. 144)

    Tanto a mulher quanto o homem, no entanto, nascem com as mesmas

    potencialidades que so, por meio da transmisso cultural, desenvolvidas e

    transformadas em capacidades. Assim, a mulher no nasce apta para cuidar dos

    filhos, torna-se apta. O homem pode e deve passar pelo m