colonialismo ou solidariedade nas relaÇÕes...
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Maria Denise Schimith
COLONIALISMO OU SOLIDARIEDADE NAS RELAES
ENTRE TRABALHADORES DE SADE E USURIOS?
Implicaes para a continuidade do cuidado
Tese apresentada Universidade Federal de So Paulo para obteno do ttulo Doutor em Cincias
So Paulo 2013
Maria Denise Schimith
COLONIALISMO OU SOLIDARIEDADE NAS RELAES
ENTRE TRABALHADORES DE SADE E USURIOS?
implicaes para continuidade do cuidado
Tese apresentada Universidade Federal de So Paulo, Programa de Ps-graduao em Enfermagem da Universidade Federal de So Paulo Escola Paulista de Enfermagem para obteno do ttulo de Doutor em Cincias. Convnio Dinter Novas Fronteiras Unifesp/ UFSM/ EEAN. Linha de pesquisa: Cuidado em Enfermagem e Sade na Dimenso Coletiva Vinculada aos Ncleos: Ncleo de Estudo e Pesquisa em Sade, Polticas Pblicas e Sociais da Unifesp e, Cuidado, Enfermagem e Sade da UFSM Orientadoras: Ana Cristina Passarella Brtas e Maria de Lourdes Denardin Bud
So Paulo 2013
Schimith, Maria Denise Colonialismo ou solidariedade nas relaes entre trabalhadores de sade e usurios? Implicaes para a continuidade do cuidado./ Maria Denise Schimith. -- So Paulo, 2013. xvii, 203f. Tese (Doutorado) Universidade Federal de So Paulo. Escola Paulista de Enfermagem. Programa de Ps-Graduao em Enfermagem. Ttulo em Ingls: Is it colonialism or solidarity in the relations between health works and users? implications for continuity of the care 1. Participao do paciente. 2. Continuidade da assistncia ao paciente. 3. Sistema nico de Sade. 4. Assistncia Sade.
iii
Tese de Doutorado vinculada linha de pesquisa Cuidado em Enfermagem e
Sade na Dimenso Coletiva e aos Ncleos de Estudo e Pesquisa em Sade,
Polticas Pblicas e Sociais. Programa de Ps-graduao em Enfermagem da
Universidade Federal de So Paulo Escola Paulista de Enfermagem.
iv
Maria Denise Schimith
COLONIALISMO OU SOLIDARIEDADE NAS RELAES
ENTRE TRABALHADORES DE SADE E USURIOS?
Implicaes para a continuidade do cuidado
Presidente da banca: Profa Dra Ana Cristina Passarella Brtas
BANCA EXAMINADORA
Profa Dra Anna Maria Chiesa (EE/USP/SP)
Profa Dra Elisabeth Niglio de Figueiredo (EPE/Unifesp)
Profa Dra Teresinha Heck Weiller (Denfe/UFSM)
Profa Dra Cleide Lavieri Martins (FSP/USP)
Profa Dra Carmem Lcia Colom Beck (Denfe/UFSM)
Profa Dra Dirce Stein Backes (Enfermagem/Unifra)
v
Dedicatria
Dedico minha tese aos usurios da Estratgia Sade da Famlia que tm a
esperana de serem acolhidos e respeitados em sua singularidade. Tambm aos
gestores e trabalhadores da sade que ousam tornar a Ateno Bsica em
espaos de escuta, responsabilizao e solidariedade.
vi
Agradecimentos
Minha mais sincera gratido a todos e todas que fizeram este sonho se
tornar possvel,
minha orientadora da Unifesp, Profa Ana Cristina Passarella Brtas por
me ensinar a ser colega, respeitando minha histria e instigando minha
autonomia. Contigo compreendi que o importante na pesquisa seguir e investir
no que faz o corao bater mais forte;
minha orientadora da UFSM, Profa Maria de Lourdes Denardin Bud
pela disponibilidade e afeto com que me recebeu no grupo de pesquisa e por ter
aceitado o desafio de me orientar nesta caminhada;
Profa Anna Maria Chiesa pelas contribuies apresentadas no exame
de qualificao e na defesa, fazendo me sentir muito cuidada;
Profa Teresinha Heck Weiller pela participao na qualificao e defesa
e por compartilhar do mesmo sonho na construo do SUS;
Profa Cleide Lavieri Martins pelas contribuies na defesa e por
partilhar suas experincias, gerando muitos aprendizados;
Profa Elisabeth Niglio de Figueiredo por aceitar contribuir com a tese
no momento da defesa e pelos belos encontros na EPE;
s Profas Carmem Beck e Dirce Backes pela leitura e ricas contribuies.
s colegas dinterianas pelo convvio profcuo e por tornarem as aulas
do doutorado momentos de trocas e de amizades;
vii
Aos companheiros e companheiras do grupo de pesquisa Cuidado,
Sade e Enfermagem da UFSM, principalmente ao pequeno grupo pela troca
de conhecimentos e possibilidade de compartilhar projetos de pesquisa e
extenso;
Aos colegas do Ncleo de Estudo e Pesquisa em Sade, Polticas
Pblicas e Sociais da Unifesp pela possibilidade de aprendizado e troca de
experincias;
Profa Mnica Antar Gamba, minha amiga, com sua intensidade e
emoo me fez apreender o sentido da parceria e comprometimento;
s colegas enfermeiras que me auxiliaram durante o perodo de
observao, Bruna Sodr Simon e Melissa Gewehr, sem a dedicao de vocs
esta maratona no teria sido possvel;
Bruna, Franciele, Jamilles, Tas, Saul, Mariane, Marianne, Tifany, Lais
e Melissa pelo auxlio nas transcries das entrevistas;
Aos gestores da ESF Santa Maria que aceitaram participar da pesquisa,
dividindo suas experincias;
equipe e usurios da USF estudada pela acolhida e por possibilitarem o
ingresso no cotidiano de trabalho;
minha famlia amada, em especial ao meu companheiro Denilso, por me
acompanhar com amor e carinho e possibilitar meus estudos; aos meus lindos
filhos Vincius, Lucas e Bruno pelo amor e compreenso incondicional, vocs
so a razo da minha vida; Mariana Gaida por aceitar nossa famlia como ela ;
viii
Nick, segunda me do Bruno, por permitir minhas ausncias com
segurana e a tranquilidade de que cuidado no faltaria aos meus amores;
famlia que me trouxe ao mundo, principalmente ao meu pai Leonardo,
hoje em outra dimenso, que sempre nos incentivou aos estudos, e minha me
Natalina, sempre guerreira, agora necessitando de cuidados, soube me esperar
concluir esta tarefa; s minhas irms, irmos, cunhadas, cunhados, sobrinhos e
sobrinhas, que sempre acompanham e torcem por mim;
Carol Mussoline, minha sobrinha e afiliada, por estar presente na minha
qualificao;
famlia do Denilso que me acolheu com carinho e fez-me sentir parte
dela, em especial Vanise, Denise, Mirtes e Edson pelas conversas e
cumplicidade; e a minha sogra Claudina pelas oraes e exemplo de fora;
Aos amigos e amigas do Grupo Esprita Irmo Helil pela escuta e
carinho e por me manterem sempre em contato com a espiritualidade superior;
s colegas professoras da Enfermagem da UFSM por possibilitarem meu
afastamento e tornarem possvel a concluso desta empreitada;
s colegas professoras Stela Maris Padoin, Janine Schirmer e Laura
Guido por acreditarem e apostarem na proposta Dinter;
s professoras da Escola Paulista de Enfermagem de Unifesp e da Escola
de Enfermagem Ana Nery de UFRJ pelos ensinamentos e contribuies na minha
formao;
Universidade Federal de Santa Maria pela oportunidade de realizao
do doutorado;
ix
Sumrio
Dedicatria.......................................................................................... v
Agradecimentos.................................................................................. vi
Listas................................................................................................... xi
Resumo............................................................................................... xv
1 INTRODUO................................................................................. 1
2 FUNDAMENTAO TERICA..................................... 6
2.1 Princpios norteadores da Ateno Bsica e Estratgia Sade
da Famlia............................................................................................
6
2.2 A corresponsabilizao entre trabalhadores e usurios nas
praticas de cuidado.............................................................................
9
2.3 Construo de redes: da hierarquia conectividade.................... 11
2.4 Conexes entre o macro e o micro: conceito de conhecimento-
emancipao....................................................................................
13
3 PERCURSO METODOLGICO 16
3.1 Primeira etapa............................................................................... 16
3.2 Etapa 2: Relaes entre trabalhadores e usurios durante as
prticas de cuidado realizadas em uma USF......................................
19
3.2.1 Tipo de estudo............................................................................ 20
3.2.2 Unidade de Anlise.................................................................... 21
3.2.3 Coleta de dados......................................................................... 23
3.2.4 Critrios para a interpretao dos dados................................... 28
3.2.5 Aspectos ticos......................................................................... 29
4 RESULTADOS 31
4.1 Processo de implantao e acompanhamento da ESF em Santa
Maria...................................................................................................
31
4.1.1 A Ateno Bsica em Santa Maria antes da implantao da
ESF..................................................................................................
31
4.1.2 foi assim que a estratgia comeou em Santa Maria: a
x
presena do SUS na vida das pessoas............................................ 32
4.1.3 A transio na troca de gesto................................................... 47
4.1.4 Nova gesto: novas escolhas?.................................................. 52
4.1.5 Desafio de explicar os altos e baixos da ESF em Santa Maria.. 56
4.2 Relaes entre trabalhadores de sade e usurio em uma USF. 62
4.2.1 Diferentes caminhos que o usurio submetido na RAS de
Santa Maria a partir da USF estudada................................................
62
4.2.2 Participao do usurio na deciso do encaminhamento:
negociao possvel?.......................................................................
87
4.2.3 Usurio encaminhado RAS: fatores que interferem nesse
caminhar..............................................................................................
95
4.2.4 Modo de gerenciar influenciando na autonomia e
responsabilidade dos trabalhadores...................................................
104
4.2.5 Usurio generalizado, desrespeitado......................................... 117
5 ANLISE E DISCUSSO 126
5.1 O que aprender com o processo de implantao da ESF em
Santa Maria?.......................................................................................
126
5.2 Barreiras continuidade do cuidado............................................. 131
5.3 Gesto do trabalho: implicaes para a continuidade do
cuidado................................................................................................
135
5.4 Colonialismo e a negao da pluralidade humana....................... 146
6 CONSIDERAES FINAIS............................................................. 155
7 ANEXOS.......................................................................................... 160
7 REFERNCIAS................................................................................ 163
Abstract
Apndices
xi
Lista de figuras
Figura 1 Esquema de gestores indicados para entrevista..................... 19
Figura 2 Unidade dialtica da subjetividade objetividade................... 150
xii
Lista de tabelas
Tabela 1 - Descrio dos perodos observados na USF.......................... 24
xiii
Lista de abreviaturas e siglas
AB - Ateno Bsica
ACD Auxiliar de Consultrio Dentrio
ACS Agente comunitrio de sade
APS - Ateno Primria Sade
ATB - Antibitico
CAEE - Certificado de Apresentao para Apreciao tica
CAPS - Centro de Ateno Psicossocial
CAPS i - Centro de Ateno Psicossocial infantil
CAPS Ad - Centro de Ateno Psicossocial lcool e drogas
CEDAS Centro de Especialidades e Diagnstico em Sade
CEDEC - Centro de Especialidades Erasmo Crossetti
CEREST - Centro Regional de Sade do Trabalhador
CMS Conselho Municipal de Sade
CO Centro Obsttrico
CRAS Centro de Referncia de Assistncia Social
CT Conselho Tutelar
DENASUS Departamento Nacional de Auditoria do Sistema nico de Sade
DINTER Doutorado Interinstitucional
Dra - Doutora
EEAN Escola de Enfermagem Anna Nery
Enfa- Enfermeira
EP Educao Permanente
ESF Estratgia Sade da Famlia
HGT Hemoglicoteste
HIV- Vrus da Imunodeficincia Humana (traduzido)
HUSM - Hospital Universitrio de Santa Maria
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
Md Mdico(a)
MPE Ministrio Pblico Estadual
MPF - Ministrio Pblico Federal
xiv
MPT - Ministrio Pblico do Trabalho
MS Ministrio da Sade
OMS - Organizao Mundial da Sade
OPAS - Organizao Pan-Americana de Sade
PA Pronto Atendimento
PACS Programa de Agentes Comunitrios de Sade
PRD - Programa Reduo de Danos
PROESF - Projeto de Expanso e Consolidao da ESF
PS Pronto Socorro
PSF Programa Sade da Famlia
PTS Projeto Teraputico Singular
RAS - Redes de Ateno Sade
RMPISPS - Residncia Multiprofissional Integrada do Sistema Pblico de Sade
SAMU Servio de Atendimento Mvel de Urgncia
SIAB - Sistema de Informao da Ateno Bsica
SUS - Sistema nico de Sade
TAC Termo de Ajuste de Conduta
UAC - Unio das Associaes Comunitria
UBS Unidade Bsica de Sade
UFSM Universidade Federal de Santa Maria
UNIFESP Universidade Federal de So Paulo
UPA - Unidade de Pronto Atendimento
VD Visita Domiciliria
xv
Resumo
Essa pesquisa insere-se no tema da integralidade da ateno do Sistema nico
de Sade, contemplando a temtica da continuidade do cuidado nas Redes de
Ateno Sade e tendo como objeto as relaes que se estabelecem em uma
Unidade de Sade da Famlia do municpio de Santa Maria, Rio Grande do Sul.
Os objetivos foram: analisar o processo de implantao e acompanhamento da
Estratgia Sade da Famlia em Santa Maria; compreender as relaes entre
trabalhadores e usurios durante as prticas de cuidado realizadas em uma
Unidade de Sade da Famlia do municpio de Santa Maria, relacionando-as com
a efetivao da continuidade do cuidado na Rede de Ateno Sade do Sistema
nico de Sade. Trata-se de uma pesquisa social, com abordagem metodolgica
qualitativa. Os objetivos desta tese foram desenvolvidos em duas etapas. Para o
primeiro objetivo, a coleta de dados foi realizada atravs de anlise documental e
entrevistas semiestruturadas com gestores. Analisamos as resolues, atas e
documentos do Conselho Municipal da Sade. As entrevistas foram realizadas
com 16 gestores, indicados intencionalmente, iniciando com a Secretria
Municipal de Sade que implantou a Estratgia Sade da Famlia. A apresentao
dos resultados foi organizada em eixos temticos: A Ateno Bsica em Santa
Maria antes da implantao da Estratgia Sade da Famlia; foi assim que a
estratgia comeou em Santa Maria: a presena do SUS na vida das pessoas; A
transio na troca de gesto; Nova gesto: novas escolhas? e Desafio de explicar
os altos e baixos da Estratgia Sade da Famlia em Santa Maria. O segundo
objetivo teve o estudo de caso como referencial metodolgico. A unidade de
anlise foi uma Unidade Sade da Famlia do municpio de Santa Maria. A coleta
de dados ocorreu por observao participante, direta e no estruturada;
entrevistas semiestruturadas; anlise de documentos e de registros. Os sujeitos
da pesquisa foram os trabalhadores de sade e usurios. A anlise ocorreu
guiada pela coleta de dados, mediada pela orientao terica e pelos
pressupostos estabelecidos. Os seguintes eixos temticos apresentam os
resultados: Os diferentes caminhos que o usurio est sujeito na Rede de Ateno
Sade; A participao do usurio na deciso do encaminhamento: negociao
xvi
possvel?; Usurio encaminhado Rede de Ateno Sade: fatores que
interferem nesse caminhar; O modo de gerenciar influenciando na autonomia e
responsabilidade dos trabalhadores; Usurio generalizado, desrespeitado.
Apreendemos que as escolhas da gesto, ou a proposta de governo, so os
disparadores para a melhoria ou degradao do Sistema nico de Sade. O
percurso da Estratgia Sade da Famlia est refletido no cotidiano das equipes,
com imbricamentos que precisam ser enfrentados, sob pena de tornar ineficaz e
ineficiente a reestruturao do modelo de ateno. Defendemos a transparncia, a
publicizao e a construo coletiva de critrios, tcnicos e singulares, a serem
utilizados pelas equipes no intuito de instituir novas maneiras de buscar a
integralidade da ateno e regular a Rede de Ateno Sade. preciso reverter
o padro de relacionamento entre usurios e trabalhadores, indo do colonialismo
para a solidariedade e da invaso cultural para a promoo da sade.
Descritores: participao do paciente; continuidade da assistncia ao paciente;
sistema nico de sade; assistncia sade.
xvii
o importante no reduzir o realismo ao que
existe, pois, de outro modo, podemos ficar
obrigados a justificar o que existe, por mais injusto
ou opressivo que seja (SANTOS, 2005, p.13).
1
1 INTRODUO
As Redes de Ateno Sade (RAS) so propostas integrantes aos
Sistemas Integrados de Sade no mundo todo. O Sistema nico de Sade (SUS),
na Lei 8080/90, estabelece como um dos seus objetivos a assistncia s pessoas
por meio da promoo e recuperao de sade, preveno de doena,
presumindo que isso se d pela integrao das aes preventivas e assistenciais.
Legitima que estas aes sejam organizadas de forma regionalizada e
hierarquizada em nveis de complexidade crescentes. Em 2010, o Ministrio da
Sade (MS) publicou a Portaria 4279/2010 conceituando a RAS como a
coordenao integrada de aes e servios de sade de diferentes densidades
tecnolgicas, que procuram garantir a integralidade do cuidado. A RAS tem como
objetivo a promoo da integrao sistmica, de aes e servios de sade com
proviso de ateno contnua, integral, de qualidade, responsvel e humanizada.
Busca ainda, entre outros objetivos, melhorar o desempenho do SUS, no que diz
respeito ao acesso, equidade e eficcia (BRASIL, 2010, p.4).
No Brasil, vrias pesquisas j indicam inexistncia da rede e falha na
continuidade da assistncia (TAVARES, MENDONA, ROCHA, 2009;
NASCIMENTO et al, 2009; PINAFO, LIMA, BABUY, 2008; SOUZA et al, 2008a;
SOUZA, GARNELO, 2008; SARINHO et al, 2007; CAMPINAS, 2004). H
pesquisas que indicam dificuldade na interface da Ateno Primria Sade1
(APS) e Ateno Secundria em outros pases, em especial nos que possuem a
inteno de garantia de acesso ao cuidado integral a seus cidados (DE VOS et
al., 2008; TELFORD et al, 2002; REDFERN et al, 2002), persistindo assim o
desafio da complementariedade nos sistemas pblicos no mundo todo. Vrios
fatores interferem no acesso a rede, os quais podem ser agrupados em
pertencentes macroestrutura, como a territorializao inadequada (ROESE,
GERHARDT, 2008); barreiras na organizao dos servios bsicos (CARRET,
FASSA, DOMINGUES, 2009; OLIVEIRA et al, 2008, SACCHI et al, 2006) e falha
1 Utilizaremos Ateno Primria Sade e Ateno Bsica como termos equivalentes.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Telford%20R%22%5BAuthor%5Dhttp://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Telford%20R%22%5BAuthor%5D
2
na educao permanente (SILVA et al 2005; LUCCHESE et al, 2009). Outros so
compostos por aspectos relacionais, como comunicao (BARRIGA et al, 2002);
questes morais (HARRIS et al, 2007); caractersticas pessoais e profissionais dos
mdicos (ROSA FILHO, FASSA, PANIZ, 2008); falha na linha de cuidado
(LUCCHESE et al, 2009); processo de trabalho (TAVARES, MENDONA,
ROCHA, 2009; SCHIMITH, LIMA, 2004); atendimento fragmentado (MAEDA et al,
2007; OLIVEIRA, MATTOS, SOUZA, 2009) deciso pessoal dos gestores
(NOGUEIRA DAL PR, FERMIANO, 2007) e relacionamento interpessoal
(SACCHI et al, 2006). O rol de aspectos envolvidos aponta para a complexidade
da organizao e efetivao das RAS.
Estas pesquisas revelaram o que os usurios do sistema pblico de sade,
especialmente o brasileiro, enfrentam ao buscarem as portas para o atendimento
a seu cuidado. Na maioria das vezes no so individualizados ou singularizados
nos diferentes servios e aes que lhes so ofertados. Alm disso, a concepo
predominante que trabalhadores e gestores tm a respeito dos usurios, a julgar
pela forma como organizam ou executam as aes em sade, de um objeto, um
ser genrico, sem particularidades. Assim, o cidado brasileiro, que conta com
uma Constituio Federal que lhe promete acesso universal, integral e equnime,
se v solitrio na busca desse direito (MARQUES, LIMA, 2007). A questo de
fundo parece ser a de no se reconhecer o usurio como cidado e partcipe
nesse processo. Santos (2009, p.81) chama isso de colonialismo, revelado na
ignorncia da reciprocidade e na incapacidade de conceber o outro a no ser
como objeto.
Estudos que abarcam as relaes entre trabalhadores de sade e usurios
indicam que este um campo ainda aberto para descortinar a implicao na
continuidade do cuidado. Podemos citar pesquisa realizada nos Estados Unidos
(EUA) entre indivduos HIV positivos, especificando o aspecto relacional da
confiana, indica que a desconfiana pode ser barreira para a utilizao dos
servios de sade e interferir nos resultados destes (WHETTEN et al, 2006). Outra
realizada em So Leopoldo, Rio Grande do Sul (RS), cujo objetivo foi estabelecer
a rota crtica de mulheres no enfrentamento da violncia, apontou que no caminho
3
percorrido pelas mulheres muitas vezes no receberam acolhimento nos servios
e ainda, os trabalhadores minimizaram os pedidos de ajuda das mulheres e
culpabilizaram-nas (PRESSER, MENEGHEL, HENNINGTON, 2008). Estudo
identificou o imperativo de especificar as necessidades de usurias no pr-natal
com fortalecimento do vnculo com os profissionais (FIGUEIREDO, ROSSONI,
2008) e, em pesquisa realizada com o purperas de Curitiba, Paran, o
acolhimento e vnculo com profissional e equipe de sade somente foi
ultrapassada pelo desejo de ser algum com direito a diferena (SOUZA et al,
2008b). Indicaram, ainda, que no trabalho da enfermeira e da equipe de sade,
acolhimento e vnculo so aspectos positivos, mas demonstram a necessidade de
reconstruo de prticas que fortaleam a autonomia e autoconfiana das
mulheres para o cuidado em sade.
A participao do usurio pode se dar pelo modelo da chamada tomada de
deciso compartilhada. Este modelo depende de alguns elementos essenciais que
possibilitam tal participao, dentre eles, o incentivo explcito por parte do
profissional para a participao do paciente e a valorizao do direito do usurio
em desempenhar um papel ativo na tomada de deciso (FRAENKEL, MCGRAW,
2007). Esta prtica pode fortalecer a autonomia e responsabilizao dos usurios
pela proposta teraputica escolhida.
A submisso do usurio s regras de uma equipe de Sade da Famlia foi
revelada em pesquisa realizada durante mestrado acadmico (SCHIMITH, LIMA
2004) e neste momento incentiva-nos a questionar a relao existente entre esta
condio do usurio (submisso) e a continuidade do cuidado em outros pontos
do sistema. Outra motivao para estudar esse tema decorre da experincia como
docente do Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). Nossa experincia com atividades de ensino, pesquisa e extenso nas
ESF de Santa Maria permitiu que vivencissemos vrios momentos desde a
implantao da Estratgia Sade da Famlia (ESF) em Santa Maria. Durante as
vivncias em aulas terico-prticas, com graduandos e residentes
multiprofissionais, nos diferentes servios de sade, observamos que a
4
necessidade do usurio muitas vezes traduzida por um encaminhamento a outro
servio sem a participao deste.
O municpio de Santa Maria aderiu proposta em 2004, por meio do
Projeto de Expanso e Consolidao da ESF (PROESF). Justificamos a
realizao desta pesquisa por consideramos que a histria da ESF de Santa Maria
apresenta uma singularidade que deve ser respeitada ao se desenvolver
pesquisas relacionadas a essa rea da rede assistencial, identificando esse
processo e os possveis reflexos nas prticas de sade. Portanto, para entender
as relaes que se estabelecem em uma Unidade de Sade da Famlia (USF) e a
construo do fluxo assistencial na rede de servios de sade, necessrio se faz
considerar a complexidade da construo local de sade, a partir da histria de
implantao da ESF em Santa Maria, anlogo ao que Santos (2009, p. 81)
denomina de campo privilegiado do conhecimento emancipatrio. A APS
considerada o centro de comunicao da RAS, pela funo resolutiva dos
cuidados primrios sobre os problemas mais comuns de sade e a partir do qual
se realiza e coordena o cuidado em todos os pontos de ateno (BRASIL, 2010,
p.4), e a ESF o principal modelo de APS no SUS, justificando o locus deste
estudo.
Assumimos como pressupostos que com a negociao e a tomada de
deciso compartilhada entre trabalhadores e usurios, o encaminhamento
realizado pode ser promotor de responsabilizao, tanto do trabalhador quanto do
usurio; que, ao contrrio, o encaminhamento sendo uma deciso unilateral pode
gerar desresponsabilizao tanto do trabalhador quanto do usurio, funcionando
como barreira ao acesso equnime aos servios e comprometendo o desempenho
do SUS.
A questo norteadora desta pesquisa como aspectos relacionais da
negociao e a tomada de deciso entre trabalhadores e usurios durante as
prticas de cuidado em uma USF podem efetivar a continuidade do cuidado na
RAS do municpio de Santa Maria? Reiteramos que entre os aspectos relacionais,
a negociao e tomada de deciso compartilhada, so elementos que se
constituem em espaos para a participao do usurio.
5
Os objetivos deste estudo so:
1. analisar o processo de implantao e acompanhamento da ESF em
Santa Maria;
2. compreender as relaes entre trabalhadores e usurios durante as
prticas de cuidado realizadas em uma USF do municpio de Santa
Maria, relacionando-as com a efetivao da continuidade do cuidado
na Rede de Ateno Sade do SUS.
6
2 FUNDAMENTAO TERICA
O referencial terico que embasa esta pesquisa est estruturado em itens
que discutem os princpios norteadores da Ateno Bsica (AB) e ESF, a
corresponsabilizao entre trabalhadores de sade e usurio nas prticas de
cuidado, a construo de redes: da hierarquia conectividade e as conexes
entre o macro e micro espaos: conceito de conhecimento-emancipao. Alm
disso, foram realizadas duas revises integrativas, organizadas em artigos, um j
publicado (SHIMITH et al., 2011) e outro submetido revista.
2.1 Princpios norteadores da Ateno Bsica e Estratgia Sade da Famlia
Os servios de sade apresentam como metas principais otimizar a sade
da populao e reduzir as desigualdades entre os subgrupos populacionais
(STARFIELD, 2002).
No almejo de diminuir as crescentes iniquidades sociais e de sade de
grande parte dos pases, a Organizao Mundial da Sade (OMS) elaborou a
Carta de Lubliana no sentido de planejar a base da APS, em que os servios de
sade necessitam estar direcionados para a promoo e proteo da sade. Alm
disso, devem focar na qualidade, equidade, dignidade humana, solidariedade e
tica profissional, no obstante, precisam centrar nas pessoas, no intuito de
permitir que os sujeitos sintam-se parte desse sistema e responsveis pela sua
prpria sade (STARFIELD, 2002).
Para que a APS melhore a situao de sade da populao, se faz
necessrio que a sade dos sujeitos seja abordada dentro de um meio social e
fsico, na coletividade, e no apenas focalizar a enfermidade individualmente.
Ento, nesta instncia dos servios de sade ofertada a entrada no sistema de
maneira a formar a base e direcionar o trabalho dos demais nveis de sade,
possibilitando a preveno, cura e reabilitao dos sujeitos, com objetivo de
maximizar a sade e o bem-estar da comunidade (STARFIELD, 2002).
7
A OMS defende que a APS deve ser renovada, para revitalizar a
capacidade dos pases de elaborar uma estratgia coordenada, eficaz e
sustentvel para combater os problemas de sade existentes, e assim propor
novos desafios como melhorar a equidade (ORGANIZAO PAN-AMERICANA
DE SADE, 2007).
A Organizao Pan-Americana de Sade (OPAS) salienta que frente
diversidade cultural existente, faz-se necessrio que cada pas elabore sua prpria
estratgia de APS, no entanto no deve perder de vista que um sistema de sade
com base na APS formado por um conjunto de elementos funcionais e
estruturais que garantam a cobertura e o acesso universal a servios
fundamentais para o bem estar da populao (ORGANIZAO PAN-AMERICANA
DE SADE, 2007).
Em nosso pas observa-se que mesmo antes da OPAS afirmar essa
necessidade de adaptao, os servios de sade j sofriam alteraes quanto sua
dinmica de organizao, de acordo com o movimento de reforma sanitria
brasileira. Desde 1994, quando o Programa Sade da Famlia (PSF) foi criado
como proposta e alternativa para melhorar a APS no Brasil, formularam-se aes
para cada Estado e suas respectivas comunidades, conforme as necessidades e
polticas dos mesmos. Por isso, esse um programa dinmico e plural que muda
de localidade para localidade, tamanho a diversidade brasileira.
A Ateno Bsica (AB), segundo o Ministrio da Sade (BRASIL, 2011a),
caracteriza-se por um conjunto de aes de sade, que pode ser individuais e/ou
coletivas, voltado para a promoo, proteo, reabilitao e a manuteno da
sade e a preveno, o diagnstico e o tratamento de agravos. Estas aes so
desenvolvidas por meio do exerccio de prticas gerenciais e sanitrias
democrticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipe. O objetivo da
AB desenvolver ateno de forma integral, impactando na situao de sade e
autonomia das pessoas, bem como nos determinantes e condicionantes de sade
da coletividade, dirigidas a populaes de territrios definidos, pelas quais assume
a responsabilidade sanitria.
8
A Poltica Nacional de Ateno Bsica, Portaria 2488/2011, considera a
Sade da Famlia sua estratgia prioritria para expanso e consolidao da AB.
A qualificao da ESF dever seguir as diretrizes da AB e do SUS configurando
um processo progressivo e singular que considera e inclui as especificidades
locoregionais. Deve ser tambm o contato preferencial dos usurios, a porta de
entrada principal e o centro de comunicao da RAS. A universalidade, a
acessibilidade, o vnculo, a continuidade do cuidado, a integralidade da ateno, a
responsabilizao, a humanizao, a equidade e a participao social so seus
princpios orientadores. A AB deve considerar o sujeito em sua singularidade e
insero sociocultural (BRASIL, 2011a).
Dentre as funes da AB na RAS, destacamos a de coordenao do
cuidado. A referida portaria prev que a elaborao, o acompanhamento e a
gesto dos projetos teraputicos singulares (PTS), bem como acompanhamento e
organizao do fluxo dos usurios entre os pontos de ateno das RAS sejam
funes da AB. Responsabilizar-se pelo cuidado dos usurios em qualquer destes
pontos atravs de uma relao horizontalizada, contnua e integrada com o
objetivo de produzir a gesto compartilhada da ateno integral tambm sua
funo. Para isso, articular outras estruturas das redes de sade e intersetoriais,
pblicas, comunitrias e sociais, incorporando ferramentas de gesto do cuidado,
entre elas, citamos a gesto das listas de espera (encaminhamentos para
consultas especializadas, procedimentos e exames). Neste espao micro-
regulatrio, a partir da relao horizontal, deve garantir o acesso a outros pontos
da rede em tempo adequado, com equidade.
Salientamos que a ESF surgiu com a proposta de ser a porta de entrada
dos usurios para os servios de sade, e exigir a inter-relao entre diversos
nveis de ateno, ou seja, alterar o modelo tradicional do trabalho isolado, e
assim fazer a complementaridade das polticas pblicas, a reorganizao da
assistncia e dos servios de sade (BRASIL, 1997).
A ESF assume como modelo de ateno sade a Vigilncia em Sade
tendo como pilares a intersetorialidade, a atuao com foco em problemas e a
territorializao. Deve realizar o cadastro das famlias adstritas e trabalhar com a
9
lgica do planejamento e programao locais, utilizando o Sistema de Informao
da Ateno Bsica (SIAB). Reconhecemos que o Siab apresenta vrios limites,
como j constatados em pesquisa (BITTAR et al, 2009). Com isso possui
ferramentas que poderia possibilitar o desempenho da funo de ordenar as
redes, prevista na Portaria 2488/2011, reconhecendo as necessidades de sade
da populao de seu territrio de abrangncia, identificando as necessidades
desta populao em relao aos outros pontos de ateno sade, favorecendo a
programao dos demais servios de sade, que podero adequar a oferta a partir
das necessidades de sade dos usurios.
Trabalhar com a lgica da territorializao favorece s equipes da ESF
atuarem com o conhecimento da realidade e os riscos sociais que a populao
adstrita est exposta. A maneira de agir e tratar os sujeitos na APS diferenciado,
ou seja, so manejados de modos mltiplos, em que seus sinais e sintomas so
abordados em um amplo panorama, sendo que sua enfermidade no se enquadra
nos diagnsticos e tratamentos convencionados pela medicina das
especialidades, concluindo-se ento, que a sade possui diversos determinantes
(STARFIELD, 2002).
2.2 A corresponsabilizao entre trabalhadores e usurios nas prticas de
cuidado
As prticas de cuidado devem ser desenvolvidas com corresponsabilizao
entre trabalhadores e usurios e que a gesto local se d de forma cooperada
entre os mltiplos atores sociais do territrio (SILVA, MAGALHES JUNIOR,
2008). A responsabilizao evoca o tema das relaes entre trabalhadores e
usurios, que foi amplamente analisado em uma reviso narrativa (SCHIMITH el
al, 2011). Destacamos o ncleo de sentido que chamamos de des(colonialismo),
no qual agruparam-se resultados de pesquisas que revelaram a ambiguidade nas
relaes, ora sendo solidrias, ora opressoras.
A permanncia de relaes colonialistas nos servios de sade, negando a
proposta de emancipao dos sujeitos, um impeditivo da corresponsablizao,
10
pois para incluir os usurios nas decises faz-se necessrio descolonizar nossas
mentes e compartilhar saberes (SANTOS, 2007 e 2009). A descolonizao ocorre
quando o trabalhador de sade enxerga o usurio como sujeito, no somente
como um corpo. A construo da continuidade do cuidado de forma
responsavelmente compartilhada sair da utopia quando formos capazes de
entender que os usurios e os grupos sociais tm o direito a ser iguais quando a
diferena os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os
descaracteriza (SANTOS, 2005, p. 12). Defendemos que o reconhecimento do
usurio com direito a diferena tambm seja um princpio norteador da AB e ESF.
A tomada de decises compartilhadas tambm foi revelada como
fundamental para a adeso e a continuidade do tratamento (SCHIMITH el al,
2011). A deciso compartilhada est relacionada s dimenses do cuidado
paciente-centrado citados por Dolan (2008), entre as quais esto: a perspectiva
biopsicossocial do usurio; o entendimento do usurio como uma pessoa com
direitos (cidado); responsabilidade e poder compartilhado entre trabalhador e
usurio; construo da aliana teraputica e entender o trabalhador de sade
como uma pessoa, no meramente um tcnico qualificado.
Interligar os princpios da AB e da ESF com a responsabilizao, a
negociao e a tomada de deciso compartilhada se faz necessrio para
avanarmos no acesso equnime ao SUS e torn-lo, de fato, um direito de
cidadania. Tendo em vista que a histria da reforma sanitria no Brasil se originou
articulada com o movimento democrtico de meados dos anos 1980 e culminou
com a proposta de instrumentos democrticos como o controle social na gesto
das polticas pblicas. Em 1990 foram institudos, pela Lei 8.142/90, os Conselhos
de Sade e as Conferncias com o objetivo da garantir a participao da
comunidade no SUS, bem como, proporcionar a democracia que fazia parte dos
iderios do movimento sanitrio. Sabemos, no entanto, que estes espaos no
so suficientes para levar a cabo este objetivo (CAMPOS, 1998).
11
2.3 Construo de redes: da hierarquia conectividade
As redes de servios de sade so construes sociais, portanto,
interessante entender como isso ocorreu historicamente. Os desenhos de rede
tecidos nos municpios brasileiros apresentam heranas histricas da poltica
pblica do nosso pas, que na dcada de 70, desenvolveu um modelo centralizado
e apoiado na diviso dos espaos que produzem cura e nos que fazem
preveno. Naquele momento, duas redes foram construdas e instaladas nos
municpios, uma do Ministrio da Previdncia e outra do MS, sem que estes
tivessem participao na gesto e organizao delas, tornando o municpio
apenas endereo das instituies de sade (RIGHI, 2005, p. 75).
A rede tecida com a lgica de mercado, que orientava essa organizao,
priorizou a instalao de servios mais complexos em municpios de grande porte,
imprimindo no imaginrio da sociedade a valorizao de servios especializados e
localizados nos grandes centros, como ressalta a mesma autora. Decorreu disto a
precariedade dos servios de sade em municpios de mdio e pequeno porte, e
de autonomia administrativa destes, luta histrica de gestores, que por muito
tempo disputaram sua insero da gesto do SUS.
A herana desta rede notvel at os dias atuais, pois a rede regionalizada
e hierarquizada ainda no logrou sua sustentao. A proposta de organizar a
demanda pela AB e essa direcionar os encaminhamentos para outros nveis de
ateno, j discutida em outros trabalhos (CECLIO, 1997; CAMPOS, 1997),
permanece desmaterializada na maioria dos municpios brasileiros. Ainda temos
filas interminveis, desigualdade no acesso e quando o acesso possvel,
convivemos com a desumanizao nos atendimentos. Os usurios que enfrentam
esses problemas sofrem com o descaso, principalmente por no serem
reconhecidos como sujeitos e no terem suas dores respeitadas.
Atualmente temos como imagem-objetivo a construo de redes que
atendam os princpios do SUS e que acolham os usurios. Somando-se ao
conceito de rede j apresentado, temos no Decreto 7508/2011 a definio de
redes como um conjunto de aes e servios de sade articulados em nveis de
12
complexidade crescente, com a finalidade de garantir a integralidade da
assistncia sade (BRASIL, 2011b). Antes disso, Silva, Magalhes Junior
(2008, p. 81) conceituaram-na como sendo uma
malha que interconecta e integra os estabelecimentos e servios
de sade de determinado territrio, organizando-os
sistemicamente para que os diferentes nveis e densidades
tecnolgicas de ateno estejam articulados e adequados para o
atendimento ao usurio e para a promoo da sade.
Possui como componentes imprescindveis a definio do espao territorial
e a populao de abrangncia; a identificao das aes e servios de diversas
caractersticas e diferentes densidades tecnolgicas integrados e articulados; fluxo
que oriente os usurios a caminharem na rede, com ferramentas que possibilite
identificar o usurio e pronturio que seja possvel acessar em qualquer ponto do
sistema e sistemas de regulao com normas e protocolos que orientem o acesso,
definam competncias, responsabilidades e coordenao dos processos de
deciso, segundo os mesmos autores.
A importncia da construo das redes justifica-se pelo aumento das
doenas crnicas; pela possibilidade da integralidade e vnculo e pelos gastos
crescentes com o adoecimento (SILVA, MAGALHES JUNIOR, 2008).
Destacamos aqui a criao de vnculo, sem desconsiderar os demais importantes
aspectos da RAS, pois est relacionado ao foco deste estudo. Do vnculo
estabelecido emerge a responsabilizao entre trabalhadores e usurios, no
somente a ideia de conhecimento da comunidade e de seus riscos (FERREIRA,
SCHIMITH, CCERES, 2010). A responsabilizao pressupe o compartilhar de
saberes, com um forte componente relacional nesta construo. A isso
poderamos acrescentar a perspectiva de alcanar o princpio da equidade no
SUS.
O acesso equnime, assim como a informao e a comunicao, com foco
no papel de escolha objeto do estudo conceitual de Theide e Mcintyle (2008). Os
autores afirmam que a informao e suas caractersticas, que atravessam as
diversas dimenses do acesso, devem fortalecer os indivduos na expanso dos
13
seus conjuntos de escolhas. Portanto, referindo-se a essas dimenses, o grau de
ajuste entre o sistema de sade e os usurios e comunidades tem um papel
determinante no nvel de acesso aos servios de sade, pois tem potencial para
definir o conjunto de escolhas.
2.4 Conexes entre o macro e o micro: conceito de conhecimento-
emancipao
Encontramos respaldo nas produes de Boaventura de Souza Santos para
realizar esta conexo entre os macro e micro espaos. Para ele no existe um
nico caminho para a transformao social, convivemos com uma sociedade que
ao mesmo tempo autoritria e libertria. Assim no existe apenas uma forma de
dominao e opresso. A histria da sade em curso permite dizer que h
opresso e dominao, na qual usurios, profissionais e gestores se revezam na
situao de refns. Por outro lado, Santos (2009) diz que como so vrias as
formas de opresso e dominao tambm so vrias as formas de resistncia e
os agentes protagonistas. Na impossibilidade de reunir todas as resistncias e
agentes, a necessidade que urge traduzir as lutas, tornando-as inteligveis,
permitindo que os sujeitos coletivos possam refletir sobre as opresses que os
afligem e tambm os desejos que os guiam. Esta tese soma-se ao desafio de
fazer esta traduo.
As dificuldades que cercam a Ateno Bsica e a ESF no Brasil no
impedem que tornemos nossas experincias em conhecimento cientfico, no
sentido que Santos (2009) defende. Um paradigma cientfico, de um conhecimento
prudente, conectado a um paradigma social, de uma vida decente. O
conhecimento, para esse autor, total, mas tambm local, construdo por temas
adotados por projetos de vida locais, como por exemplo, reconstruir uma histria
de um contexto local. Ao estimular os conceitos e as teorias desenvolvidas no
local a emigrarem para outros espaos cognitivos, esses podem ser usados em
outros contextos. A generalizao pode ocorrer atravs da qualidade e da
exemplificao. Com isso, o autor afirma que a cincia ps-moderna tradutora.
14
A organizao dos servios de sade possui igualmente mltipas formas de
resistncia. O anseio por servios, aes e instituies de sade que visem
integralidade da ateno e que respeitem as individualidades dos usurios est
polinizado nas pesquisas e relatos de experincia na sade. Segundo Santos
(2009), decorrente da multiplicidade de opresses, resistncias e agentes torna-se
difcil identificar ou determinar o inimigo ou adversrio. Por trs de um inimigo
pode estar outro e por trs desse pode estar outro ainda. Isso tambm ocorre nas
prticas de cuidado na sade. Questionamo-nos quais so os inimigos da garantia
ao acesso equnime? Por que para o usurio a resolutividade do seu caso est
em outro servio que no aquele que ele acessou? Parece-nos que precisamos
traduzir os inimigos, sem jamais ignor-los ou subestim-los.
O conceito de conhecimento emancipao nos auxilia a entender como isso
ocorre. Nesse tipo de conhecimento, a ignorncia o colonialismo e o
colonialismo a concepo do outro como objeto e, consequentemente, o no
reconhecimento do outro como sujeito. Elevar o outro condio de sujeito
pressupe o conhecimento como conhecimento-reconhecimento, de forma que
funcione como princpio de solidariedade (SANTOS, 2009, p.30).
Ento, como investigar as prticas de cuidado que traduzam o
conhecimento emancipao? Como identificar o princpio da solidariedade de
modo que ele possa ser difundido e pactuado entre trabalhadores, usurios e
gestores? Seguindo Boaventura uma implicao d-se do monoculturalismo ao
multiculturalismo. Nesse sentido, precisamos enfrentar duas dificuldades: o
silncio e a diferena. Parece-nos que no existe dilogo fcil na sade, o
profissional tem a autorizao para conduzir a conversa, dada pela capa dos
valores universais autorizados pela razo que imps a razo de uma raa de
um sexo e de uma classe social (SANTOS, 2009, p. 30). Na sade esses valores
universais podem produzir o que Cunha (2004) chama de dilogo de surdos. A
dificuldade aqui est no dilogo multicultural. Comparar os discursos disponveis,
hegemnicos e contra hegemnicos e analisar as hierarquias entre eles, bem
como os vazios que produzem possibilita captar esses silncios, as necessidade e
15
desejos dos usurios que so no ditos e que se configuram como um dos
inimigos do acesso equnime.
A segunda dificuldade, a diferena, diz respeito necessidade dela para
que ocorra a solidariedade, sem a qual no h conhecimento multicultural.
Traduzir as diferentes prticas do cuidado pode tornar possvel a compreenso
entre trabalhadores e usurios, tornando-as inteligveis possvel transformar as
prticas do cuidado em prticas emancipatrias. Como diz Santos, finitas e
incompletas e, por isso, apenas sustentveis quando ligadas em rede (p.31).
Assim tambm os servios de sade deveriam se complementar em rede,
traduzindo seus cdigos para que os servios, instituies, trabalhadores e
usurios, respeitando suas diferenas, atravs do conhecimento-reconhecimento
e exercitando a solidariedade. O saber enquanto solidariedade visa substituir o
objeto-para-o-sujeito pela reciprocidade entre sujeitos (p.83).
Assim, investigar o papel da negociao e da tomada de deciso
compartilhada em uma USF na construo da rede de cuidado sade dos
cidados, desafia-nos a percorrer caminhos terico-metodolgicos, indissociveis
da prtica cotidiana do fazer sade, sempre em movimento, em transformao,
acreditando que h vrias possibilidades ainda no mapeadas de solidariedade e
emancipao.
16
3 PERCURSO METODOLGICO
Colocar em foco o contexto local e as relaes entre trabalhadores e
usurios da ESF, suscita a necessidade de um referencial metodolgico que tenha
como conceito a investigao do ser humano em sociedade com suas relaes e
instituies, como a Pesquisa Social. Tais pesquisas se fundamentam em razes
e objetivos oriundos da insero no real. A Pesquisa Social em Sade trata do
fenmeno sade/doena e das representaes dos vrios atores envolvidos,
sejam as instituies polticas e de servios, sejam os profissionais e usurios
(MINAYO, 2008).
A abordagem metodolgica qualitativa a escolha feita para desenvolver
esta investigao, pois trabalha com as relaes, representaes, percepes e
opinies, produto das interpretaes que o ser humano faz a respeito de como
vive, sente e pensa (MINAYO, 2008).
Os objetivos desta tese foram desenvolvidos em duas etapas. A primeira
conta o processo de implantao e implementao da Estratgia Sade da
Famlia no municpio de Santa Maria. A outra etapa foi pesquisada por meio de um
estudo de caso, com o objetivo compreender as relaes entre trabalhadores e
usurios durante as prticas de cuidado realizadas em uma USF do municpio de
Santa Maria, relacionando-as com a efetivao da continuidade do cuidado na
Rede de Ateno Sade do SUS. A seguir apresentaremos os caminhos
percorridos nas duas etapas.
3.1 Primeira etapa
A coleta de dados foi realizada atravs de anlise documental e entrevistas
semiestruturada (MINAYO, 2008) com gestores. Analisamos as resolues e atas
do Conselho Municipal da Sade (CMS) e tambm documentos recebidos e
expedidos, principalmente os que envolvem processos judiciais acerca da ESF. As
17
entrevistas continham um roteiro (APNDICE A) formado por temas, as quais
foram gravadas e posteriormente transcritas. A transcrio foi devolvida aos
entrevistados para sua conferncia. Os sujeitos entrevistados foram escolhidos
intencionalmente e sendo utilizada a tcnica bola de neve ou indicao da rede
de relaes, sendo que cada gestor recomendou outros sujeitos que estiverem
envolvidos (BARRIOS, 2009; VICTORIA, KNAUTH, HASSEN, 2000), seguindo o
nosso seguinte questionamento: qual gestor municipal que acompanhou a ESF
pode ser entrevistado? O nmero de entrevistas seguiu o critrio de saturao de
dados, a qual ocorre quando os relatos subsequentes revelam informaes que o
pesquisador julga serem repetitivas, no sendo mais necessrio realizar novas
entrevistas (FONTANELLA, RICAS, TURATO, 2008). Iniciamos as entrevistas
com a Secretria Municipal de Sade que estava frente da pasta quando da
implantao da ESF na data que o Conselho Municipal de Sade aprovou a
implantao da ESF no municpio de Santa Maria, conforme a ata de 28 de agosto
de 2003, na Resoluo 60/2003. A coleta de dados ocorreu de agosto de 2011 a
maio de 2012.
No processo da anlise, os dados da pesquisa foram vrias vezes
revisitados, permitindo a identificao de eixos temticos capazes de auxiliar na
sistematizao das narrativas e documentos. A partir disso, foi possvel construir
uma histria sobre o processo de implantao da ESF em Santa Maria.
Por se tratar de uma pesquisa que envolve seres humanos, as normativas
ticas e cientficas pautadas na Resoluo 196/96 foram respeitadas (BRASIL,
1996). Os sujeitos indicados foram informados sobre a temtica da pesquisa, os
objetivos, metodologia, e os riscos e benefcios, sendo respeitada sua autonomia,
estando livres para participar e desistir de sua participao em qualquer etapa da
mesma. Aps o aceite, foi disponibilizado aos sujeitos pesquisados o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (APNDICE B).
Seguindo os princpios ticos esse projeto de pesquisa foi aprovado pela
Secretaria Municipal de Sade (SMS) e pelo Conselho Municipal de Sade, sendo
ento submetido e aprovado pelo Comit de tica da Universidade Federal de
Santa Maria, sob CAEE no 23081.007707/2011-51 (ANEXO 1). Os entrevistados
18
contaram tambm com um Termo de Confidencialidade (APNDICE C), no qual
ficou estabelecido o compromisso do pesquisador em manter o anonimato da
identidade das pessoas. Foi ofertada aos sujeitos a possibilidade de escolha de
seu codinome, sendo essas respeitadas. Aos entrevistados que delegaram essa
tarefa s pesquisadoras foram utilizados nomes fictcios.
Dos gestores participantes da pesquisa, 13 so mulheres e trs homens.
Quanto formao nove so enfermeiros, dois dentistas e dois fisioterapeutas, e
os demais so psiclogo, cientista social e graduando em psicologia. O que
trabalhou mais tempo na gesto permaneceu durante sete anos no cargo. Com
exceo de um dos entrevistados, os demais sujeitos possuem ps-graduao,
entre eles nove possuem mestrado e um doutorado. As especializaes so em
sua maioria em Sade Pblica e Coletiva, Gesto em Sade e Gesto da Clnica,
Humanizao, Sade da Famlia, Sade Mental, Administrao Hospitalar, ainda
dois residentes multiprofissionais. Esses participantes ocuparam os mais
diferentes cargos na gesto, so atores que em diferentes momentos exerceram
papis tambm diferenciados, ora gestores, ora trabalhadores de AB ou ESF, ora
docentes de universidades. Em vrios casos foram gesto em um governo e
equipe no outro. Consideramos que isso permite a abordagem do tema por
diversos ngulos, podendo ser um fator que garante a realidade dos fatos e a
triangulao dos dados.
Organizamos a apresentao dos resultados em eixos temticos, quais
sejam: A Ateno Bsica em Santa Maria antes da implantao da ESF; foi assim
que a estratgia comeou em Santa Maria: a presena do SUS na vida das
pessoas; A transio na troca de gesto; Nova gesto: novas escolhas? e
Desafio de explicar os altos e baixos da ESF em Santa Maria.
19
Figura 1 - Esquema de gestores indicados para a entrevista
Legenda:
* Perodo em que o entrevistado esteve na gesto 2001-2008
# Perodo em que o entrevistado esteve na gesto 2009-2012
3.2 Etapa 2: Relaes entre trabalhadores e usurios durante as prticas de
cuidado realizadas em uma USF
Considerando a extenso do objeto de pesquisa e tendo como referncia
metodolgica a pesquisa qualitativa, propomos realizar uma pesquisa
desenvolvida a partir de um estudo de caso.
Entrevista 1*
Entrevista 2* Entrevista 3* Entrevista 4*
Entrevista 15* Entrevista 5# Entrevista 9* Entrevista 6*#
Entrevista 8# Entrevista 7*# Entrevista
12*# Entrevista
10*#
Entrevista
11*#
Entrevista
13*# Entrevista
14*#
Entrevista 16*
20
3.2.1 Tipo de estudo
[...] nada mais universal que o nosso
umbigo e [...] uma histria confinada em
si mesma [...] traduz a humanidade
toda. (MEDEIROS, 2011, p.2)
O estudo de caso investiga um fenmeno contemporneo em profundidade
e em seu contexto de vida real, especificamente quando os limites entre o
fenmeno e o contexto no so claramente evidentes (YIN 2010, p. 39). Com
estas caractersticas, no estudo de caso h mais variveis de interesses do que
pontos de dados e, os resultados contam com mltiplas fontes de evidncia,
precisando convergir os dados, de maneira triangular. Outro resultado que a
coleta e anlise dos dados so beneficiadas por haver proposies tericas
desenvolvidas anteriormente.
Para um projeto com estudo de caso so necessrios cinco componentes:
questes do estudo; proposies; unidade de anlise; coerncia que une os dados
s proposies e critrios para interpretao dos dados. A questo deste estudo,
j apresentada na introduo, pressupe uma investigao explanatria. O estudo
de caso se constitui em uma vantagem diferenciada quando uma pergunta como
ou por que feita sobre um evento contemporneo e sobre algo que o
pesquisador tem pouco ou nenhum controle (YIN, 2010), como o caso dos
aspectos relacionais entre trabalhadores e usurios.
O segundo componente do estudo de caso tambm foi apresentado na
introduo e chamamos de pressupostos. Nos estudos explanatrios, sobre temas
j bem explorados, os pressupostos so guias seguros para saber onde procurar
as evidncias relevantes e para refletir sobre os aspectos tericos segundo o
mesmo autor. Ressaltamos que os demais componentes de um estudo de caso
sero apresentados nos prximos itens.
21
3.2.2 Unidade de anlise
A seleo da unidade de anlise, ou o caso, est relacionada questo
da pesquisa (YIN, 2010). Neste estudo, como os aspectos relacionais da
negociao e a tomada de deciso compartilhada entre trabalhadores e usurios
durante as prticas de cuidado em uma USF podem efetivar a continuidade do
cuidado na RAS do municpio de Santa Maria? j est apontando para a unidade
de anlise, uma USF. Faz-se necessrio, para isso, especificar o contexto da USF
pesquisada. Apresentamos de forma sucinta o sistema municipal de sade de
Santa Maria para depois localizar a USF a ser estudada.
Santa Maria situa-se no centro do estado do Rio Grande do Sul e possui
uma populao de 261.031 habitantes (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATSTICA, 2010). municpio-sede da 4 Coordenadoria
Regional de Sade. A RAS do municpio conta 31 Unidades Bsicas de Sade
(UBS), sendo 24 urbanas e sete rurais e uma Unidade Mvel de Atendimento
Bsico; um Laboratrio de Anlises Clnicas; um Pronto Atendimento Municipal
(PA), que agrega atendimentos diferenciados para adultos, crianas e
odontolgico. Entre os servios especializados esto o Centro de Ateno
Psicossocial infantil (CAPS i) o equilibrista; CAPS II lcool e drogas (Ad)
Caminhos do Sol; CAPS II Ad Cia do Recomeo; CAPS II Prado Veppo;
Ambulatrio Municipal de Sade Mental e Programa Reduo de Danos (PRD).
Sedia ainda o Hospital Universitrio de Santa Maria (HUSM), referncia para
atendimento de emergncia, internao e servio ambulatorial; o Centro Regional
de Sade do Trabalhador (CEREST), um servio referncia em oftalmologia e um
Hemocentro. Possui um hospital geral, Hospital Casa de Sade, referncia para
internao. A RAS conta ainda com uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e
o Servio de Atendimento Mvel de Urgncia (SAMU).
22
Em visita ao setor de regulao/agendamento, feita em maio de 2011,
fomos informadas que a SMS conta com as seguintes especialidades mdicas:
infectologia (1); urologia (3); proctologia (1); angiologia (1); pneumologia (1);
reumatologia (1); otorrinolaringologia (1); cardiologia (3); pneumologia peditrica
(1) endocrinologia (1); dermatologia (2) e neurologia (4) que atendem no Centro de
Especialidades Erasmo Crossetti (Cedec). O Governo Municipal enviou Cmara
de Vereadores em 07 de novembro de 2011, o Projeto de Lei que institui no
municpio a Tabela SUS Municipal com o objetivo de reduzir a demanda reprimida
de mdicos especialistas em Santa Maria. Segundo a Prefeitura, naquele
momento 1.497 pacientes estavam na fila para a consulta em cardiologia; 300 em
pneumologia, 1.661 em endocrinologia, 350 aguardam neurologista, 2.395 em
traumatologista (no conta com mdico traumatologia, nesta rea possui convnio
com um Pronto Socorro (PS) traumatolgico, o PS de Fraturas), 357 em
otorrinolaringologista e 238 em gastroenterologista. Segundo esta notcia, a
Prefeitura convocou 45 profissionais mdicos de um concurso realizado em 2008,
dos quais 24 tomaram posse, mas somente 15 esto trabalhando (SANTA MARIA,
2011).
Nas Unidades de Sade da Famlia (USF) atuam 16 equipes da ESF, cada
equipe composta por mdico, enfermeiro, tcnico de enfermagem e Agentes
Comunitrios de Sade (ACS). Em cinco unidades h equipes de sade bucal.
Uma equipe trabalha em duas USF rurais (Arroio do S e Pains).
A unidade de anlise estudada uma USF com duas equipes bsicas e
equipe de sade bucal. Para preservar o anonimato da equipe pesquisada no
revelaremos o local da pesquisa, mas ele estabelece o limite espacial do caso
(YIN, 2010). Para produzir conhecimento sobre a realidade social imprescindvel
mergulhar no seu cotidiano, buscando uma relao de intersubjetividade
(DESLANDES, 2005), pois o trabalho de campo ser mediado pelo referencial
terico e prtico, portanto nunca neutro (MINAYO, 2008).
Alm da delimitao espacial da unidade de anlise, tambm importante
delimitar o tempo e os sujeitos envolvidos (YIN, 2010). Quanto ao limite temporal
para a coleta de dados, foi de fevereiro a julho de 2012, com incio desencadeado
23
aps a aprovao no Comit de tica em Pesquisa (CEP) da Unifesp e a definio
do trmino da coleta deu-se pela saturao de dados.
Os sujeitos desta pesquisa foram os trabalhadores de sade2 e usurios da
USF. O grupo de trabalhadores composto por um Auxiliar Administrativo, nove
Agentes Comunitrios de Sade (ACS), uma Auxiliar de Consultrio Dentrio
(ACD), um Auxiliar de Servios Gerais, um coordenador administrativo de USF,
duas enfermeiras, uma mdica, uma odontloga e duas tcnicas de enfermagem.
Ainda compe o contexto do estudo de caso, mas esto fora do caso (YIN,
2010), mdicos no vinculados ESF, residentes multiprofissionais de sade,
professores e acadmicos.
importante lembrar que os estudos de caso so generalizveis s
proposies tericas e no s populaes, portanto a USF no est sendo
considerada uma amostra das demais ESF de Santa Maria (YIN, 2010, p. 36). A
meta ser expandir e generalizar analiticamente os resultados sobre as relaes
entre trabalhadores de sade e sua implicao para a continuidade do cuidado na
RAS de Santa Maria.
3.2.3 Coleta de dados
A coleta de dados em estudo de caso deve seguir trs princpios essenciais
que so: a utilizao de mltiplas fontes de evidncia; a criao de um banco de
dados e a manuteno de uma conexo entre estas evidncias (YIN, 2010).
Nesta pesquisa foram realizadas observao, entrevistas com os
trabalhadores e usurios e buscas em documentos e em registros de sistemas de
informaes.
A observao desenvolvida foi do tipo participante, no estruturada e direta.
A observao participante pressupe a interao do pesquisador com os sujeitos
da pesquisa (KAKEHASHI E PINHEIRO, 2006). A participao ativa durante a
observao, com o desenrolar do estudo, variou em graus desde a no
2 Optamos por utilizar a definio trabalhadores de sade e no profissionais de sade por
incluirmos todos os sujeitos que atuam na USF.
24
participao at a participao completa (SPRADLEY, 1988). Identificamos um
envolvimento crescente da pesquisadora e suas auxiliares para com o contexto e
os sujeitos pesquisados, bem como dos sujeitos pesquisados para com as
pesquisadoras.
A observao foi ainda no estruturada, pois foi guiada pelo
questionamento do estudo, no havendo um instrumento previamente elaborado,
e direta porque teve a presena fsica do pesquisador no ambiente da pesquisa
(KAKEHASHI e PINHEIRO, 2006).
As observaes foram realizadas durante perodos em que a USF estava
em funcionamento, principalmente durante as prticas de cuidado. As prticas de
cuidado foram consideradas como todas as aes que envolviam o encontro entre
trabalhadores e usurios. Tambm as reunies de equipe, encontros com a
comunidade, encontros entre os membros da equipe que aconteciam
informalmente durante os turnos de trabalho. A tabela 1 apresenta os perodos
observados.
Tabela 1. Descrio dos perodos observados na USF
Data Dia da
semana Turno
Entrada e
sada
Horas
observadas
27/02/12 Segunda Tarde 13h40min
15h10min 1h30min
28/02/12 Tera Tarde 13h40min
15h10min 1h30min
29/02/12 Quarta Tarde 13h
15h15min 2h15min
01/03/12 Quinta Tarde 13h45min
15h50min 2h05min
08/03/12 Quinta Tarde 13h45min-
15h 1h15min
25
09/03/12 Sexta Manh 8h 11h 3h
12/03/12 Segunda Manh 8h30min
10h45min 2h15min
13/03/12 Tera Manh 8h20min
11h20min 3h
15/03/12 Quinta Tarde 13h45min-
15h30min 1h45min
23/03/12 Sexta Manh 8h20min
11h15min 1h55min
26/03/12 Segunda Tarde 13h45min-
15h45min 2h
27/03/12 Tera Manh 8h15min
10h45min 2h30min
29/03/12 Quinta Tarde 13h45min-
16h15min 3h30min
30/03/12 Sexta Manh 8h 11h15min 3h15min
03/04/12 Tera Tarde 13h40min-
15h50min 2h10min
04/04/12 Quarta Tarde 12h-13h 1h
17/04/12 Tera Manh 8h45min-
11h45min 3h
17/04/12 Tera Tarde 13h45min-
15h45min 2h
19/04/12 Quinta Tarde 13h45min-16h 2h15min
20/04/12 Sexta Manh 10h-11h45min 1h45min
23/04/12 Segunda Tarde 13h50min-
16h20min 2h30min
24/04/12 Tera Tarde 13h30-16h 2h30min
26
25/04/12 Quarta Tarde 13h-14h15min 1h15min
26/04/12 Quinta Tarde 13h40-
16h10min 2h30min
27/04/12 Sexta Manh 8h30-
12h45min 4h15min
02/05/12 Quarta Tarde 13h-15h15min 2h15min
03/05/12 Quinta Tarde 13h40-
15h10min 1h30min
10/05/12 Quinta Tarde 14h-16h 2h
16/05/12 Quarta Tarde 13h-15h30 2h30min
22/05/12 Tera Tarde 14h-16h30 2h30min
23/05/12 Quarta Tarde 13h30-15h15 1h45min
29/05/12 Tera Manh 8h40- 11h 2h20min
30/05/12 Quarta Tarde 13h30-15h 1h30min
13/06/12 Quarta Tarde 13h30-15h 1h30min
19/06/12 Tera Manh 9h-11h 2 h
19/06/12 Tera Tarde 14h- 15h 1 h
20/06/12 Quarta Tarde 13h-16h 3 h
Total 76h25 min
Vale destacar que para realizar a descrio das observaes primamos por
esta ser minuciosa, detalhada e densa, tentando captar o todo que estava
acontecendo durante os perodos observados. Com o dirio de campo construdo
desta forma, a anlise foi facilitada, auxiliando a evitar pensamentos
convencionais (BECKER, 2007).
Para aumentar a confiabilidade dos dados observados e evitar a
parcialidade do pesquisador prudente garantir a presena de mais de um
27
observador (YIN, 2010). Contamos com duas observadoras auxiliares que so
membros do grupo de pesquisa e j possuam familiaridade com a pesquisa. As
auxiliares receberam treinamento prvio no qual, alm de conhecerem o contedo
do projeto, elaboramos os Apndices 1 e 2 para dar segurana s observadoras,
facilitando as primeiras observaes. Portanto, tais apndices no foram utilizados
no sentido de estruturar as observaes. Os dirios de campo eram elaborados
pela pesquisadora e pela auxiliar, sendo posteriormente confrontados e discutidos
para garantir maior fidedignidade observao.
A entrevista, para o estudo de caso, pode ser tipo conversas guiadas, e no
inquritos estruturados. Duas tarefas devem ser seguidas durante a realizao da
entrevista: seguir a linha de investigao e manter a imparcialidade, formulando
perguntas no ameaadoras (YIN, 2010). No caso desta pesquisa, por tratarmos
de relaes, as entrevistas so considerados relatos e, em alguns casos, contm
histrias que envolvem a vida pessoal do sujeito da pesquisa ou seu percurso
profissional. Lembramos que quando a relevncia do discurso entra em jogo, a
questo torna-se poltica por definio, pois por meio do discurso que o ser
humano um ser poltico (ARENDT, 2001, p. 11).
As entrevistas foram realizadas com as duas enfermeiras, com a duas
tcnicas de enfermagem, com a mdica, com a odontloga, com a ACD, com o
auxiliar de servios gerais, com o coordenador da USF e com quatro ACS
(APNDICE 3 e 4). Ainda entrevistamos seis usurios (APNDICE 5) que, durante
o perodo da coleta de dados, receberem um encaminhamento a outro ponto da
RAS de Santa Maria, totalizando 19 entrevistas. O nmero de usurios
entrevistados seguiu o critrio de saturao dos dados, que indica suspenso da
incluso de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na
avaliao do pesquisador, certa redundncia e que atendiam os objetivos
(FONTANELLA, RICAS, TURATO, 2008).
A documentao analisada consistiu em cadernos de atas da equipe,
relatrios da equipe, relatrios de gesto da SMS, agendas dos encaminhamentos
e ofcios recebidos. A documentao foi usada com cuidado, evitando serem
tomados como registros literais do ocorrido. importante lembrar que o
28
documento no foi redigido para a pesquisa e sim para alguma outra finalidade
especfica (YIN, 2010).
3.2.4 Critrios para a interpretao dos dados
A anlise de estudo de caso foi conduzida de modo a perseguir a resposta
questo de pesquisa e aos objetivos estabelecidos, juntamente com as
proposies tericas, que esto em constante atualizao. Tambm a coleta de
dados, mediados pela orientao terica, com pressupostos estabelecidos
guiaram a anlise (YIN, 2010).
Em contraposio a isso, e buscando a confiana nas constataes, foram
estabelecidos outros pressupostos considerando possibilidades inversas de
explanaes sobre a construo das RAS, ou seja, explanaes rivais (YIN,
2010). Neste projeto estamos considerando que com a negociao e a tomada de
deciso compartilhada entre trabalhadores e usurios, o encaminhamento
realizado pode ser promotor de responsabilizao, tanto do trabalhador quanto do
usurio.
Tomamos como hiptese nula (explanao rival) que a responsabilizao
sobre a continuidade do cuidado, tanto do trabalhador quanto do usurio, no
dependem da negociao e tomada de deciso compartilhada. Perguntamos a
ambos como o usurio chegar ao destino previsto no encaminhamento e quem
chegar num perodo aceitvel de tempo para cada caso, considerando outras
influncias que no a responsabilizao. Para isso foi necessrio de antemo
conhecer todas as possibilidades de razes para usurios conseguirem caminhar
na RAS, mesmo as improvveis. Assim, a anlise est preservada das
confortveis rotinas do pensamento que a vida acadmica promove e sustenta,
tornando a maneira certa de fazer as coisas (BECKER, 2007, p. 24).
Definimos como estratgia analtica a prpria elaborao do corpus da
pesquisa. Os dados da pesquisa foram vrias vezes revisitados, permitindo a
identificao de marcadores importantes para orientar a anlise e evitar
interpretaes a priori. A questo de pesquisa e o pressuposto estabelecidos,
29
como j foi dito, serviram de guia durante a anlise com a inteno de ser uma
orientao para contar a histria do caso (YIN, 2010).
A apresentao dos resultados est pautada pelos eixos temticos, guiada
pela necessidade de inserir o leitor no contexto pesquisado, procurando
compreender como as relaes entre trabalhadores e usurios implicam na
continuidade do cuidado. Os eixos temticos so: 1. Os diferentes caminhos que o
usurio submetido na RAS de Santa Maria a partir da USF estudada; 2. A
participao do usurio na deciso do encaminhamento: negociao possvel?;
3. Usurio encaminhado RAS: fatores que interferem nesse caminhar; 4. O
modo de gerenciar influenciando na autonomia e responsabilidade dos
trabalhadores; 5. Usurio generalizado.
3.2.5 Aspectos ticos
Procurando assegurar e valorizar uma conduo tica, durante todo o
processo desta pesquisa, as orientaes e disposies da Resoluo n 196/96,
do MS (BRASIL, 1996), na qual esto descritas as diretrizes e normas que
regulamentam os processos investigativos que envolvem seres humanos, foram
consideradas. Apresentamos a proposta equipe da Unidade Sade da Famlia e
SMS do municpio de Santa Maria, solicitando a anuncia para realizao da
pesquisa. Aps, o projeto foi submetido ao CEP da UNIFESP e considerado
aprovado sob protocolo no 1939/11 (ANEXO 2).
A participao na pesquisa se deu a partir da aceitao dos sujeitos e
firmada por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(APNDICE 6) pelos participantes. Os objetivos e a metodologia foram
apresentados de forma clara, bem como os riscos e benefcios. Os participantes
tm garantidos seu anonimato e de suas informaes. Alm disso, a liberdade de
participao espontnea e o direito de desistncia, em qualquer momento da
pesquisa, foram preservados e explicitados. Destacamos que a trabalhadora que
exerce a funo de recepcionista no aceitou participar da entrevista.
Comprometemo-nos com os sujeitos atravs do Termo de Confidencialidade
30
(APNDICE 7), no qual ficou estabelecido o compromisso em manter de forma
confidencial a identidade das pessoas cujas informaes sero coletadas.
Aos sujeitos envolvidos na pesquisa foi solicitado que escolhessem seu
codinome. A equipe decidiu em reunio do dia 18 de julho de 2012 que devemos
adotar nomes prprios para todos os trabalhadores da USF. Os usurios que
escolheram tambm optaram por nomes prprios. Com o intuito de agradecer e
homenagear os sujeitos envolvidos utilizamos nomes de pessoas que j foram
medalhistas olmpicos, pois os consideramos heris. Para Arendt (2001, p.199), o
heri no necessita fazer atos heroicos, mas a fato de o ser humano abandonar
seu esconderijo para mostrar quem , para revelar e exibir sua individualidade, j
denota coragem e at mesmo ousadia.
31
4 RESULTADOS
Para atender aos objetivos propostos, neste captulo apresentaremos os
resultados divididos em duas partes. O item 4.1, e suas subdivises, do conta do
primeiro objetivo que analisou o processo de implantao da ESF em Santa Maria
e o item 4.2, tambm apresentado por eixos temticos, apresenta o estudo de
caso.
4.1 Processo de implantao e acompanhamento da ESF em Santa Maria
Para iniciar a apresentao dos resultados, antes necessrio dizer que o
recorte realizado est permeado por uma intencionalidade de aprendizado e de
no julgamento. Sabemos que fazer gesto pressupe escolhas, que sempre
apresentam consequncias e que esto cercadas por um contexto que tambm as
influenciam.
4.1.1 A Ateno Bsica em Santa Maria antes da implantao da ESF
Antes da implantao da ESF em Santa Maria, a AB do municpio
desenvolvia uma assistncia restrita, fragmentada. Na opinio de gestores, isso
desencadeou um processo efervescente de fazer o novo, transformar uma
realidade e tambm motivou a forma de contratao das equipes.
[...] 2003 a gente sentia que no municpio existia uma estrutura de
unidade bsica de sade [...] muito centrada na figura do mdico
[...]. E que no tinham resolutividade. E havia uma dificuldade
histrica em relao sade da famlia em Santa Maria, porque
havia sido implantado o Pacs, mas no a ESF3. (Ametista)
3 Utilizamos no decorrer da exposio das falas a abreviatura ESF, mas os sujeitos, com raras
excees, falavam a expresso Estratgia Sade da Famlia.
32
[...] no havia naquele momento nenhuma organizao para
Ateno Bsica. Santa Maria trabalhava como um retrato do Brasil
inteiro. Com um modelo desarticulado, no preparado, que
trabalhou com a lgica de soma das coisas sem organiz-las.
Ento, eram servios que no se conversavam, cumpriam
meramente com as atividades tradicionais, enfim, um conjunto de
servios que no trabalhava em conjunto. Com isso havia lacunas
na assistncia muito importantes que a ESF poderia efetivamente
suprir, principalmente nas reas que eram vazias de acesso [...]
(Catina)
[...] sabemos que os profissionais que ns tnhamos reproduziam
um modelo muito tradicional, que nada iria mudar. Ento a gente
precisa de gente nova. [...] (em Santa Maria) uma enfermeira para
fazer uma consulta de enfermagem no fazia, solicitao de
exames nem pensar, coleta de CP (citopatolgico) pensava que
era atribuio s do ginecologista, quer dizer umas coisas [...]
totalmente absurdas, ento a gente deu esta movimentada.
(Marisa)
Motivados por iniciar um novo processo em Santa Maria, os gestores no
mediram esforos para mostrar que poderia ser diferente. Essa constatao que
tinham gerou um distanciamento entre AB e a ESF, como veremos adiante.
4.1.2 foi assim que a estratgia comeou em Santa Maria: a presena do
SUS na vida das pessoas
A implantao foi motivada por uma demanda social e construda com a
participao de vrios segmentos da sociedade, coerente com a ideologia
partidria que estava no governo municipal e reconhecida por quem no
compartilhava a mesma ideologia.
33
[...] final de 2002 [...] a primeira vez que chegou essa discusso da
ESF [...] foi uma demanda vinda do conselho, no foi da gesto.
(Esmeralda)
[...] em 2004 que foi implantado, porque a ESF em Santa Maria foi
sempre muito discutida, teve muito debate de como que ia ser
implantado, de quem iria implantar, quem seriam os funcionrios,
eu acho que isso teve um grande debate, no foi uma coisa
decidida por um governo, ou no. Foi o Partido dos
Trabalhadores, mas eles deram oportunidade de ouvir, foi
debatido dentro do Conselho Municipal de Sade. (Borboleta)
[...] um programa de reestruturao para cidades com mais de 100
mil habitantes [...] pessoas (da gesto) da ateno bsica
descobriram esse decreto, essa nova proposta do governo, e a
gente comeou a estudar, e vimos que havia uma viabilidade de
implantao aqui em Santa Maria. J havia a resoluo do
conselho, j haviam acontecido vrios movimentos, mas nunca
tinha sido possvel em funo de dinheiro. [...]. Quando a gente viu
que tinha um financiamento especfico para cidades com mais de
100 mil habitantes, a gente construiu uma proposta, a equipe
construiu uma proposta, apresentamos para o prefeito. (Ametista)
[...] como era uma administrao popular, ela tinha na sua
concepo a escuta da populao. Foram mobilizadas nos bairros
vrias reunies com a proposta de discutir a ESF, [...] a
implantao da ESF em alguns locais, esses locais passaram pela
discusso do prefeito e da secretaria geral do governo, porque ela
vinha muito baseada nos indicadores de sade, era baseada na
questo das vulnerabilidades sociais. (Esmeralda)
34
Tu pensares os vazios assistenciais, a localizao de uma
unidade de sade com uma delimitao geogrfica de
responsabilidade, com pessoas e com habitaes que eram da
sua responsabilidade, com uma lgica mais coerente de presena
do SUS na vida das pessoas. (Catina)
A gente discutiu com as associaes comunitrias e com o
conselho de sade, quais os lugares onde ns tnhamos
indicadores epidemiolgicos piores, onde a gente entendia que
precisava ter uma equipe de sade para tentar melhorar, onde
tinha um ndice de mortalidade infantil mais alto, onde tinha
mulheres com dificuldade de acesso ao pr-natal. Enfim, onde
tinha um vazio assistencial, no tinha unidade de sade prxima e
as pessoas precisavam caminhar muito para ir at a unidade de
sade. Acho que isso j fez a diferena porque comeamos a
discutir isso com a prpria comunidade nos mais diferentes
espaos a gente ocupava para fazer essa discusso explicando
para eles, inclusive, o que era a ESF, para eles poderem entender
que a gente queria era um envolvimento deles. (Dulce)
A primeira gesto, ao aderir proposta da ESF fez isso com um projeto
construdo, conhecia o que estava implantando, tinha feito uma opo por um
modelo de ateno sade que envolvia a proposta da ESF. Isso pode ser
confirmado a partir das falas.
A gente tinha claro para ns, at fundamentado teoricamente:
esse era o modelo, e isso ia gerar um movimento de mudana.
(Ametista)
35
[...] o objetivo que se tinha era de realmente impactar e fazer a
mudana nos indicadores de sade e na organizao do SUS de
Santa Maria, do sistema de sade de Santa Maria. (Dulce)
[...] era a inverso completa da lgica que at ento acontecia [...]
a primeira coisa o (nome do prefeito) falava: essa ficha no pode
mais existir, ficha no se existe mais, as pessoas iam ser
acolhidas, todas elas iam ser atendidas (Esmeralda)
A opo da primeira gesto da ESF em Santa Maria foi envolver e
proporcionar a participao dos profissionais, da comunidade e do CMS. Outra
escolha foi a transparncia na forma de contratao das equipes e a certeza que o
perfil profissional faria toda a diferena. A escolha pelo vnculo empregatcio se
deu muito por sugesto do MS.
[...] foi assim que a estratgia comeou em Santa Maria, com uma
participao muito grande do controle social e das associaes
comunitrias, no s do conselho de sade, mas de todos os
movimentos sociais daquelas comunidades onde iriam ser
implantadas as Unidades de Sade da Famlia. (Dulce)
[...] o grande problema era: como contratar esses recursos
humanos? E como garantir que as pessoas que viessem, seriam
pessoas que iriam fazer a diferena nesse modelo? (Ametista)
[...] Se voltarmos para o perodo inicial da ESF em Santa Maria, o
sentimento na gesto era de que haviam conseguido achar o
caminho para que a contratao sem incidir na Lei de
Responsabilidade Fiscal, uma vez que o vnculo do pessoal era
via Consrcio e o pagamento era realizado para pessoa Jurdica,
36
Fundo Municipal de Sade para Consrcio Intermunicipal de
Sade. (Mandacaru)
[...] Ento, olhando hoje esse processo d para ver claramente
que se o prprio Ministrio (da Sade) tivesse definido algumas
regras claras sobre a via (de contratao), no deixasse to
flexvel a modalidade de contratao, isso poderia ter, no apenas
em Santa Maria, mas em toda essa regio centro do estado, feito
uma diferena muito grande no potencial da estratgia para
reordenar as equipes. (Catina)
A opo de realizar as contrataes via Processo Seletivo e no
Concurso, na poca, tambm tinha o intuito de contratar pessoas
com experincia e perfil para atuarem na ESF. (Mandacaru)
[...] o processo seletivo [...] guardava muita diferena de qualquer
outro que tivesse sido feito. Ns tivemos o cuidado de trabalhar
com uma lgica muito coletiva e transparente. Ento, ns tivemos
mais de 300 candidatos e constitumos uma comisso de
avaliao que foi muito abrangente: tnhamos representao do
Conselho Municipal de Sade, representao da Cmara de
Vereadores, representao da Secretaria de Sade, da 4
Coordenadoria Regional de Sade. (Catina)
Analisando as atas do CMS, identificamos uma consonncia com essas
falas, pois em janeiro de 2004 designaram-se os conselheiros que representariam
o CMS no acompanhamento e fiscalizao do Processo Seletivo do Programa de
Sade da Famlia. Alm disso, com o propsito de assegurar e qualificar a
implementao do PSF como prtica de Sade Pblica foi formada a comisso
para estudos das regies sanitrias alm da discusso sobre a formao de novas
equipes e localizao do PSF.
37
[...] os critrios para o processo seletivo, foram aprovados no
Conselho Municipal de Sade, como formao, com residncia em
sade da famlia ou com especializao em sade coletiva [...]
depois chamava para entrevista. A entrevista foi bem interessante
na poca porque a gente comps a comisso das pessoas que
fariam a entrevista com diferentes segmentos da comunidade,
com trabalhadores e docentes das universidades, com
representantes do controle social, do Conselho, com
representao da cmara de vereadores, o grupo era bem
diversificado, com segmentos representativos da comunidade [...]
tinha entrevista individual e entrevista coletiva, at porque a ideia
era de que as pessoas vo trabalhar em equipe, ento numa
entrevista coletiva, no s por categoria profissional, misturando
as categorias profissionais, d a ideia de como vai ser o
comportamento para desenvolver o trabalho em equipe, por isso
que foi bem focado para mudana mesmo. (Dulce)
Selecionadas as primeiras equipes, a gesto colocou em prtica a cogesto
com as equipes, essas puderam programar seu processo de trabalho, com a
ressalva de sempre envolver a comunidade. Esse compartilhamento de
gerenciamento ilustrado pelos entrevistados:
[...] as equipes participando do planejamento, porque diferente,
ns enquanto gesto pensar como queramos e dizer para essas
equipes executarem, afinal ningum gosta de apenas executar
aquilo que no ajudou a planejar, ajudou a pensar. (Dulce)
[...] ns sentamos para trabalhar a ESF Santa Maria e fizemos trs
grupos: (um) para construir as linhas de cuidado; um que
trabalhou os protocolos, e o terceiro grupo que trabalhou o
38
processo de trabalho. [...] a gesto disse: vai ser um processo que
ser construdo entre vocs, a gesto vai bater martelo [...] muito
do que vocs pensarem a gesto vai aprovar. (Esmeralda)
No incio da ESF em Santa Maria a gesto utilizou como processo de
educao permanente o envolvimento das equipes em questes estruturais da
proposta, como a territorilizao. As prprias equipes conheceram os territrios e
fizeram os desenhos, com a inteno de suprir vazios assistenciais. Durante o
perodo de trs meses as equipes trabalharam nas propostas, antes de iniciar
suas atividades.
[...] Tudo isso foi feito dentro do processo de capacitao que
culminou com a apresentao de tudo isso. Era um processo que
foi bem exuberante, eles mesmos se identificavam com as
regies. (Catina)
[...] tu conhecias as pessoas e tu dizias onde querias ir (trabalhar)
[...] eu quero ir para (nome do bairro), por qu? Porque era uma
localidade que tinha uma alta vulnerabilidade social [...].
(Esmerlada)
[...] tnhamos um modus operandi de trabalhar, quando chegaria
algum que fosse fora de rea, ns tratvamos do mesmo jeito,
era emergncia, ns abramos pronturio, desde a questo da
padronizao do tamanho do pronturio ns tnhamos, a
padronizao do nmero [...]. Ento, foi muito rico, foi excelente,
foi enriquecedor [...] e a partir da comearam as implantaes nos
locais. (Esmeralda)
No incio da Estratgia, 2004 e 2005, a gesto era participativa,
com a presena constante da gesto e dos profissionais da
39
assistncia na gesto.