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PIAGET JEAN Jean Piaget_fev2010.pmd 21/10/2010, 09:33 1

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Piaget

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  • PIAGETJEAN

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  • Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio TeixeiraAparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho

    Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy RibeiroDurmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan FernandesFrota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos

    Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires AzanhaJulio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim

    Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo FreireRoquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas

    Alfred Binet | Andrs BelloAnton Makarenko | Antonio Gramsci

    Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin FreinetDomingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim

    Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich HegelGeorg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich

    Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques RousseauJean-Ovide Decroly | Johann Herbart

    Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev VygotskyMaria Montessori | Ortega y Gasset

    Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund Freud

    Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco

    Coordenao executivaCarlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari

    Comisso tcnicaCarlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente)

    Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle,Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas,

    Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero

    Reviso de contedoCarlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto,Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia

    Secretaria executivaAna Elizabete Negreiros Barroso

    Conceio Silva

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  • PIAGETJEAN

    Alberto Munari

    Traduo e organizaoDaniele Saheb

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  • ISBN 978-85-7019-546-3 2010 Coleo Educadores

    MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana

    Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbitodo Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a

    contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoriada equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no

    formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidosneste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as

    da UNESCO, nem comprometem a Organizao.As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao

    no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCOa respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio

    ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.

    A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia,estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98.

    Editora MassanganaAvenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540

    www.fundaj.gov.br

    Coleo EducadoresEdio-geralSidney Rocha

    Coordenao editorialSelma Corra

    Assessoria editorialAntonio Laurentino

    Patrcia LimaReviso

    Sygma ComunicaoReviso tcnica

    Jeanne Marie Claire SawayaUlisses Ferreira de Arajo

    IlustraesMiguel Falco

    Foi feito depsito legalImpresso no Brasil

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca)

    Munari, Alberto. Jean Piaget / Alberto Munari; traduo e organizao: Daniele Saheb. Recife:Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 156 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-546-31. Piaget, Jean, 1896-1980. 2. Educao Pensadores Histria. I. Saheb, Daniele. II.Ttulo.

    CDU 37

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  • SUMRIO

    Apresentao, por Fernando Haddad, 7

    Ensaio, por Alberto Munari, 11O combate de uma vida: a cincia, 12O descobrimento da infncia e da educao, 14Da aventura do BIE aosprincpios educacionais de Piaget, 16A longa construo da epistemologia gentica, 22A dupla leitura do construtivismo gentico, 24Piaget atual, 25

    Textos selecionados, 27O Nascimento da Inteligncia na Criana, 27Jean Piaget - Sobre a Pedagogia: textos inditos, 44Psicologia e Pedagogia, 68O Estruturalismo, 105

    Cronologia, 141

    Bibliografia, 143Obras de Jean Piaget, 143Obras sobre Jean Piaget, 147Obras de Jean Piaget em portugus, 151

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  • 6Jean Piaget_fev2010.pmd 21/10/2010, 09:336

  • 7O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educa-dores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colo-car disposio dos professores e dirigentes da educao de todoo pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeramalguns dos principais expoentes da histria educacional, nos pla-nos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentosnessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importantepara o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas aoobjetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e daprtica pedaggica em nosso pas.

    Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao insti-tuiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes doMEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unescoque, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros etrinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimentohistrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avanoda educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a co-leo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau ofEducation (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos mai-ores pensadores da educao de todos os tempos e culturas.

    Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projetoeditorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto PauloFreire e de diversas universidades, em condies de cumprir osobjetivos previstos pelo projeto.

    APRESENTAO

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  • 8Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC,em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favo-rece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, comotambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a pr-tica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transiopara cenrios mais promissores.

    importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coinci-de com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao esugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, emnovembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de espe-ranas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas quese operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulga-o do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Uni-versidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos tobem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros.

    Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e doEstado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosado movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passa-do, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possi-bilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas edu-cacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprova-o, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases nocomeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas easpiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetiza-das pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido porFernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidasem 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios.

    * A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste

    volume.

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  • 9Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio daeducao brasileira representa uma retomada dos ideais dos mani-festos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com otempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, doPlano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanis-mo de estado para a implementao do Plano Nacional da Edu-cao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educa-cional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no serdemais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cujareedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifestode 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos pro-blemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao daeducao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideiase de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer daeducao uma prioridade de estado.

    Fernando HaddadMinistro de Estado da Educao

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    JEAN PIAGET1

    (1896-1980)

    Alberto Munari2

    A ideia de considerar o grande epistemlogo e psiclogo su-o educador poderia surpreender primeira vista: de fato, comochamar de educador a Jean Piaget, que jamais exerceu esta pro-fisso, que sempre negou considerar-se pedagogo, chegando aoponto de declarar que Em matria de pedagogia, no tenho opi-nio (Bringuier, 1977, p.194), e cujos escritos sobre educao3

    no ultrapassam 3%4 do conjunto de sua obra?A perplexidade pode ser totalmente justificada quando se pensa

    exclusivamente na produo cientfica do prprio Piaget. Porm,torna-se menor quando se pensa no considervel nmero de obras

    1 Este perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle dducation compare.Paris, Unesco: Escritrio Internacional de Educao, v. 24, n. 1-2, pp. 321-337, 1994.2 Alberto Munari (Sua) psiclogo e epistemolgo, professor da Universidade de

    Genebra, onde dirige, desde 1974, a Unidade de Psicologia da Educao. Alberto Munari

    colaborou com Piaget de 1964 a 1974 e obteve, em 1971, seu ttulo de doutor em

    psicologia gentica experimental, sob a orientao de Piaget. Tem diversas publicaes,

    dentre as quais se destacam The Piagetian approach to the scientifc method: implicationsfor teaching [A abordagem piagetiana do mtodo cientfico: implicaes para o ensino];La scuola di Ginebra dopo Piaget [A escola de Genebra desde Piaget] (em colaborao)e o recente (1993) Il sapere ritovato: conoscenza,formazione, organizzazione [O saberreencontrado: conhecimento, formao, organizao].

    3 Piaget, 1925, 1928, 1930, 1931, 1932, 1933a, 1933b, 1934a, 1934b, 1935, 1936a, 1939a,1939b, 1942, 1943, 1944, 1949a, 1949b, 1949c, 1954a, 1957, 1964, 1965, 1966a, 1966b,1969, 1972a, 1972b, 1973; Piaget & Duckworth, 1973. Alm disso, Piaget redigiu, naqualidade de diretor do Bureau International dducation (BIE), cerca de quarenta discur-sos e relatrios, todos publicados aos cuidados do BIE, entre 1930 e 1967.4 Talvez um pouco menos de mil pginas (a compreendidos os discursos e os relatrios

    redigidos para o BIE) sobre um total estimado em torno de 35.000 pginas, sem contar as

    tradues!

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    de outros autores que se referem s implicaes educacionais daobra piagetiana5. De fato, h muitos anos, inmeros educadores epedagogos de diversos pases se referem explicitamente obra dePiaget para justificar suas prticas ou princpios. Mas trata-se sem-pre da mesma interpretao? Faz-se referncia invariavelmente psi-cologia de Piaget, ou evocam-se outros aspectos de sua obra com-plexa e multiforme? A qual dos to diversos Piagets devem-se ascontribuies mais importantes: ao Piaget bilogo, ao epistemlogo,ao psiclogo, ou se est particularmente em dvida com o polti-co da educao que como se poderia qualificar o Piaget dire-tor do Bureau Internacional de Educao?

    O combate de uma vida: a cincia

    Comecemos pintando o pano de fundo. Figura tpica de aca-dmico iluminado, Jean Piaget lutou toda a sua vida contras asinstituies e os preconceitos intelectuais de sua poca e, talvez,tambm, contra suas prprias preocupaes espiritualistas e idea-listas da juventude (Piaget, 1914, 1915, 1918) para defender epromover o enfoque cientfico.

    Incitado por um pai de esprito escrupuloso e crtico, queno gostava das generalizaes apressadas (Piaget, 1976, p.2); ini-ciado muito cedo preciso da observao naturalista pelas mos

    5 A propsito, a literatura mundial extremamente rica e difcil estabelecer uma lista

    completa. Entre as obras de referncia clssicas podem ser citadas: Campbell & Fuller,

    1977; Copeland, 1970; Duckworth, 1964; Elkind, 1976; Forman & Kuschner, 1977; Furth,

    1970; Furth & Wachs, 1974; Gorman, 1972; Kamii, 1972; Kamii & De Vries, 1977;

    Labinowicz, 1980; Lowery, 1974; Papert, 1980; Rosskopf & al., 1971; Schwebel & Raph,

    1973; Sigel, 1969; Sinclair & Kamii, 1970; Sprinthall & Sprinthall, 1974; Sund, 1976;

    Vergnaud, 1981.

    Ns mesmos, com a ajuda de alguns colegas que colaboravam em nosso grupo,

    notadamente, Donata Fabbri,analisamos, em muitas ocasies as implicaes educacio-

    nais da psicoepistemologia piagetiana: Bocchi et al., 1983; Ceruti et al., 1985; Fabbri,1984, 1985, 1987a, 1987b, 1988a, 1988b, 1989, 1990, 1991, 1992; Fabbri & Formenti,1989, 1991; Fabbri et al., 1992; Fabbri & Munari, 1983, 1984a, 1984b, 1985a, 1985b,1988, 1989, 1991; Fabbri & Panier-Bagat, 1988; Munari, 1980, 1985a, 1985b, 1985c,1987a, 1987b, 1987c, 1988, 1990a, 1990b, 1990c, 1992; Munari et al., 1980.

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    do malaclogo Paul Godet, diretor do Museu de Histria Naturalde Neuchatel, sua cidade natal (id., ib., p.2 e 3); lanado, ainda estu-dante, na arena da confrontao cientfica internacional, em 1911,com a idade de 15 anos, publica seus primeiros trabalhos em re-vistas de grande circulao. Piaget foi muito rapidamente seduzidopelo charme e pelo rigor da pesquisa cientfica. Escutemos suasprprias palavras:

    Esses estudos, por prematuros que fossem, foram de grande utili-dade para minha formao cientfica; alm disso, funcionaram, pode-ria dizer, como instrumentos de proteo contra o demnio da filo-sofia. Graas a eles, tive o raro privilgio de vislumbrar a cincia e oque ela representa antes de sofrer as crises filosficas da adolescncia.Ter tido a experincia precoce destes dois tipos de problemtica cons-tituiu, estou convencido, o motivo secreto da minha atividade pos-terior em psicologia (id., ib., p.3).

    Assim, apesar de duas importantes crises de adolescncia,uma religiosa e outra filosfica, Piaget chegou, progressivamen-te, convico ntima de que o mtodo cientfico era a nica viade acesso legtima ao conhecimento, e que os mtodos reflexivosou introspectivos da tradio filosfica, no melhor dos casos, spodiam contribuir para elaborar certo tipo de conhecimento(Piaget, 1965b).

    Essa convico, cada vez mais forte, determinou as opesbsicas que Piaget adotou at os anos 20 do sculo passado e queele nunca mais modificou, seja no campo da psicologia que deci-dira estudar; seja no da poltica acadmica que decidira defender;seja, finalmente, no compromisso que aceitara enfrentar diante dosproblemas da educao.

    No que diz respeito psicologia, dizia: Isso me fez adotara deciso de consagrar minha vida explicao biolgica do co-nhecimento (Piaget, 1965b, p.5), abandonando, assim, aps uminteresse inicial, vinculado sua prpria experincia familiar, a psi-canlise e a psicologia patolgica.

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    Quanto a seu trabalho de pesquisador e de professor universi-trio, a preocupao constante que estimulava e orientava sua obrae sua vida inteira foi a de conseguir o reconhecimento, em particu-lar de seus colegas no campo das cincias fsicas e naturais, decarter tambm cientfico das cincias do homem e mais especifi-camente da psicologia e da epistemologia. Quanto sua atitude eseu engajamento no campo da educao, sua posio o levou na-turalmente a reconhecer, desde o princpio de sua participaoativa como estudante, o caminho privilegiado para incorporar omtodo cientfico na escola.

    O descobrimento da infncia e da educao

    Animado por esse projeto, Jean Piaget se distanciou daintrospeco filosfica e foi para Paris trabalhar com Janet, Piron eSimon, nos laboratrios fundados por Binet. Ali, descobriu, pelaprimeira vez, a maravilhosa riqueza do pensamento infantil.

    Foi tambm, nessa ocasio, que elaborou o primeiro esboo deseu mtodo crtico que, s vezes, chamou tambm de mtodoclnico de interrogao da criana, partindo de uma sntese total-mente original e surpreendente dos ensinamentos que acabara dereceber de Dumas e Simon, em psicologia clnica, e de Brunschvicge Lalande, em epistemologia, lgica e histria das cincias.

    A originalidade do estudo do pensamento infantil que Piagetrealizou tem como base o princpio metodolgico segundo o qual aflexibilidade e a preciso da entrevista em profundidade, que ca-racterizam o mtodo clnico, devem modular-se mediante a buscasistemtica dos processos lgico-matemticos subjacentes aos raci-ocnios expressados; alm disso, para realizar esse tipo de entrevista, preciso referir-se s diversas etapas de elaborao pelas quais pas-sou o conceito que se examina no curso de sua evoluo histrica.

    A metodologia de Piaget se apresenta, pois, de entrada, comouma tentativa de associar os trs mtodos que a tradio ocidental

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    at ento mantinha separados: o mtodo emprico das cinciasexperimentais, o mtodo hipottico-dedutivo das cincias lgico-matemticas e o mtodo histrico-crtico das cincias histricas(Munari, 1985a, 1985b).

    Mas, em Paris, Piaget interrogava principalmente as crianashospitalizadas. Somente quando Edouard Claparde e Pierre Boveto chamaram a Genebra que comeou a estudar a criana em seumeio de vida normal e, sobretudo, na escola: a Casa das Crianasdo Instituto Jean-Jacques Rousseau converteu-se, ento, no seu princi-pal campo de pesquisa. Seus trabalhos, nesse centro privilegiado daeducao moderna e, em seguida, nas escolas primrias de Genebra,da poca talvez menos modernas do que a Casa das Crianas levaram, provavelmente, Piaget a compreender a distncia que, comdemasiada frequncia, separava as capacidades intelectuais insuspei-tas, que acabara de descobrir nas crianas, e das prticas normal-mente utilizadas pelos professores das escolas pblicas.

    Alm disso, o fato de trabalhar no Instituto Jean-JacquesRousseau, dedicado inteiramente ao desenvolvimento e ao aper-feioamento de sistemas de educao e de prticas educativas, eno mais em estabelecimentos hospitalares ou laboratrios mdi-cos interessados na criana enferma ou deficiente, no podia dei-xar de exercer certa influncia na conscincia que Piaget tinha ad-quirido sobre a problemtica da educao.

    Piaget reconheceu, porm, sem inocncia, que a pedagogiano me interessava ento, porque no tinha filhos (Piaget, 1976,p.12). Somente mais tarde, quando voltou a Genebra, depois deum breve perodo em Neuchatel, onde substituiu seu antigo pro-fessor Arnold Reymond, que assumira, com Claparde e Bovet, aco-direo do Instituto Jean-Jacques Rousseau, que seu compro-misso com a educao adquirira uma primeira forma tangvel:Em 1929 aceitei imprudentemente o cargo de diretor do BureauInternacional de Educao (BIE), cedendo insistncia de meu

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    amigo Pedro Rossell (Piaget, 1976, p.17). Isso resultou ser ummarco importante na vida de Piaget, j que o levou a descobrir oselementos sociopolticos que, inevitavelmente, esto em jogo emtoda ao educacional, e a comprometer-se no grande projeto deuma educao internacional.

    Da aventura do BIE aos princpios educacionais de Piaget

    Nesta aventura havia um elemento esportivo, dizia Piaget(id., ib.), como se quisesse diminuir-lhe a importncia. Contudo,permaneceu frente dessa organizao internacional de 1929 a1968. Isso constituiu, sem dvida, um fato notvel, sobretudo emrelao prpria personalidade de Piaget, notoriamente poucoinclinado a dedicar-se a tarefas no cientficas.

    Tratava-se do desejo de melhorar os mtodos pedaggicosmediante a adoo oficial de tcnicas melhor adaptadas ao esp-rito infantil (id., ib.) e, portanto, tambm, mais cientficas? Ou tra-tava-se de poder intervir com maior eficcia nas instituies esco-lares oficiais por meio de uma organizao supragovernamental?Ou, ainda, se tratava da esperana de poder combater a incompre-enso entre os povos e o flagelo da guerra, mediante um esforoeducativo orientado aos valores internacionais?

    Todos os anos, de 1929 at 1967, Piaget redigia diligentemen-te o Discurso do Diretor, apresentado ao Conselho do BIE e Conferncia Internacional de Instruo Pblica. nesta coleode uns 40 textos esquecidos pela maior parte dos comentaristasda obra de Piaget que se encontram, expressos mais explicita-mente do que em seus outros escritos, os elementos do credopedaggico de Piaget. Graas a esses textos, mais do que comqualquer obra de carter geral publicada por Piaget sobre os pro-blemas da educao (Piaget, 1969, 1972b), possvel ilustrar osprincpios bsicos que orientam seu projeto educacional. Desco-brir-se-, ento, que esse projeto muito menos implcito emenos inconsciente do que se costuma afirmar.

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    Em primeiro lugar, Piaget, contrariamente ao que costumasupor-se, atribui uma importncia muito grande educao, umavez que no hesitou declarar abertamente que somente a educa-o pode salvar nossas sociedades de uma possvel dissoluo,violenta ou gradual (Piaget, 1934c, p.31). Para ele, a ao educa-tiva algo pelo que vale a pena lutar, confiando no xito final:

    Basta recordar que uma grande ideia tem sua prpria fora6 e que arealidade em boa parte o que queremos que seja7, para ter confianae assegurar-se de que, partindo de nada, conseguiremos dar educa-o, no plano internacional, o lugar que lhe corresponde por direito(id., ib.).

    Alguns anos mais tarde, s vsperas da Segunda Guerra Mun-dial, Piaget declarou ainda: Aps os cataclismos que marcaramestes ltimos meses, a educao constituir, uma vez mais, o fatordecisivo no s da reconstruo, mas inclusive e, sobretudo, daconstruo propriamente dita (Piaget,1940, p.12). A educaoconstitui, pois, em sua opinio, a primeira tarefa de todos os po-vos, sobrepondo as diferenas ideolgicas e polticas: O bemcomum de todas as civilizaes: a educao da criana (id., ib.).

    Mas que tipo de educao? Neste caso, e contrariamente aoque dir, mais tarde, a Bringuier (1977, p.194), Piaget no temeuexplicitar suas opinies nos Discursos. Em primeiro lugar, enun-ciou uma regra fundamental: A coero o pior dos mtodospedaggicos (Piaget, 1949d, p.28). Por conseguinte, no terrenoda educao, o exemplo deve desempenhar um papel mais im-portante do que a coero (Piaget, 1948, p. 22). Outra regra, igual-mente fundamental e que prope em vrias ocasies a impor-tncia da atividade do aluno: Uma verdade aprendida no maisque uma meia verdade, enquanto a verdade inteira deve ser recon-quistada, reconstruda ou redescoberta pelo prprio aluno (Piaget,

    6 Esta uma convico fundamental de Jean Piaget, apresentada em todos os seus

    primeiros escritos: cf. La mission de lide (PIAGET, 1915).7 Belo ato de f construtivista.

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    1950, p.35). Este princpio educativo repousa, para Piaget, em umarealidade psicolgica indiscutvel: Toda psicologia contemporneanos ensina que a inteligncia procede da ao (id., ib.). Da o papelfundamental que a pesquisa deve desempenhar em toda estratgiaeducacional: porm, esta investigao no deve ser abstrata: Aao supe pesquisas prvias e a investigao s tem sentido seleva ao (Piaget, 1951, p.28).

    Portanto, prope uma escola sem coero, na qual o aluno convidado a experimentar ativamente, para reconstruir por si mes-mo, aquilo que tem de aprender. Este , em linhas gerais, o projetoeducativo de Piaget. Porm,

    No se aprende a experimentar simplesmente vendo o professorexperimentar, ou dedicando-se a exerccios j previamente organiza-dos: s se aprende a experimentar, tateando, por si mesmo, traba-lhando ativamente, ou seja, em liberdade e dispondo de todo otempo necessrio (Piaget, 1949, p.39).

    Sobre esse princpio, que considera primordial, Piaget noteme a polmica:

    Ora, na maior parte dos pases, a escola forma linguistas, gramticos,historiadores, matemticos, mas no educa o esprito experimental. necessrio insistir na dificuldade muito maior de se formar o espritoexperimental do que o esprito matemtico nas escolas primrias e se-cundrias. (...) muito mais fcil raciocinar do que experimentar (id., ib.).

    Que papel teriam ento, nesta escola, os livros e os manuais? Aescola ideal no teria livros obrigatrios para os alunos, mas somen-te obras de referncia que se empregariam livremente: (...) os nicosmanuais indispensveis so os de uso do professor (id., ib.).

    Esses princpios so vlidos apenas para a educao da criana?Pelo contrrio, os mtodos ativos, que recorrem ao trabalho ao mesmotempo espontneo e orientado por perguntas planejadas, ao trabalhoem que o aluno redescobre ou reconstri as verdades em lugar de receb-las j feitas, so igualmente necessrios tanto para o adulto quanto paraa criana... Cabe recordar, de fato, que cada vez que o adulto aborda problemas

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    novos, o desenvolvimento de suas reaes assemelha-se evoluo das reaes noprocesso do desenvolvimento mental 8 (Piaget, 1965a, p.43).

    Esses so, pois, os princpios bsicos da educao segundo Piaget.Quanto s distintas disciplinas, Piaget tambm no hesita, em seusDiscursos, em oferecer conselhos precisos, sobretudo, para o ensi-no de matemtica.

    A criana pequena, estando mais desenvolvida do ponto de vista sens-rio-motor do que do da lgica verbal, convm proporcionar-lhes esque-mas de ao sobre os quais possa basear-se posteriormente. Por conse-guinte, uma educao sensrio-motora, tal como se pratica, por exem-plo, na Casa das Crianas de Genebra favorece a iniciao matemtica(Piaget, 1939c, p.37).

    Sua posio a este respeito muito clara: A compreensomatemtica no questo de aptido da criana. um erro suporque um fracasso em matemtica obedea a uma falta de aptido.A operao matemtica deriva da ao: resulta que a apresentaointuitiva no basta, a criana deve realizar por si mesma a operaomanual antes de preparar a operao mental. (...) Em todos os do-mnios da matemtica, o qualitativo deve preceder ao numrico(Piaget, 1950, pp.79 e 80).

    Piaget tambm chama ateno ao ensino das cincias naturais:Aqueles que, por profisso, estudam a psicologia das operaes intelec-tuais da criana e do adolescente sempre se surpreendem com os recur-sos de que dispe todo aluno normal, desde que se lhe proporcionemos meios de trabalhar ativamente, sem constrang-los com repetiespassivas. (...) Desse ponto de vista, o ensino das cincias a educaoativa da objetividade e dos hbitos de verificao (Piaget, 1952, p. 33).

    Mas o princpio da educao ativa pode-se aplicar, tambm,a reas menos tcnicas, como a aprendizagem de uma lngua

    8 Queramos sublinhar esta passagem muitas vezes ignorada por aqueles que conside-

    ram que a abordagem piagetiana no seria aplicvel criana porque nos parece

    revestir-se de uma importncia capital do ponto de vista educacional. Foi com este

    esprito que desenvolvemos, com Donata Fabbri, em outro trabalho, uma estratgia de

    interveno educacional para o adulto, qual podamos dar o nome de Laboratrio

    epistemolgico operativo (Fabbri, 1988a, 1990; Fabbri; Munari, 1984a, 1985b, 1988,1990, 1991; Munari, 1982, 1989, 1990a, 1992, 1993).

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    viva: aprender a lngua na forma mais direta possvel para po-der domin-la; para refletir sobre ela na deduo da gramtica(Piaget, 1965b, p.44); ou mesmo para o desenvolvimento de umesprito internacional:

    Para lutar contra o ceticismo e as dificuldades das relaes entre ospovos, somente se imaginaram propostas de carter passivo, consis-tentes em lies, exortaes sensibilidade e imaginao dos alu-nos. (...) necessrio estabelecer entre as crianas, sobretudo entre osadolescentes, relaes sociais, apelar para a sua atividade e para a suaresponsabilidade (Piaget, 1948, p.36).

    Quanto s relaes entre educao e psicologia, Piaget muitomais explcito em seus Discursos do que em outros escritos.Para ele a relao entre educao e psicologia uma relao neces-sria: No creio que exista uma pedagogia universal. O que comum a todos os sistemas de educao a prpria criana, oupelo menos, algumas caractersticas gerais de sua psicologia (Piaget,1934d, p.94). E so justamente esses traos gerais que a psicologiadeve evidenciar, a fim de que os mtodos educativos possam t-los em conta:

    inegvel que as investigaes dos psiclogos foram o ponto departida de quase todas as inovaes metodolgicas e didticas destasltimas dcadas. Nunca demais recordar que todos os mtodosque apelam aos interesses e atividade real dos alunos se inspiraramna psicologia gentica (Piaget, 1936b, p. 14).

    Porm,as relaes entre a pedagogia e a psicologia so complexas: a pedago-gia uma arte, enquanto que a psicologia uma cincia; mas se a artede educar supe atitudes inatas insubstituveis, ela requer ser desen-volvida por meio dos conhecimentos necessrios sobre o ser huma-no que se educa (Piaget, 1948, p.22).

    Por outra parte,costuma-se afirmar que a educao uma arte, no uma cincia e que,portanto, no deveria requerer uma formao cientfica. Se verdadeque a educao uma arte, ela o da mesma forma e pela mesmarazo que a medicina, a qual tambm exige atitudes e um dom inato,

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    tambm requer conhecimentos anatmicos, patolgicos etc. Domesmo modo, se a pedagogia deve moldar o esprito do aluno, hde partir do conhecimento do aluno e, portanto, da psicologia (Piaget,1953, p.20).

    Sendo mais preciso ainda, no plano da pesquisa cientfica Piagetconsiderou e no sem uma ligeira inteno polmica que a peda-gogia experimental no poderia existir sem a ajuda da psicologia:

    Se a psicologia experimental quer ser uma cincia puramentepositivista, ou seja, que se limita a constatar fatos e no pretendeexplic-los, que se limita a constatar resultados, mas sem compreen-der suas razes, evidente que no necessitar da psicologia. (...) Masse a pedagogia experimental quer compreender o que descobre, ex-plicar os resultados que encontra, explicar as razes da eficcia decertos mtodos em comparao com outros, neste caso, com certeza, indispensvel relacionar a pesquisa pedaggica com a investigaopsicolgica, isto , praticar constantemente a psicopedagogia, e nosimplesmente adotar as medidas de rendimento da pedagogia expe-rimental (Piaget, 1966a, p.39).

    Mas se as relaes entre pedagogia e psicologia so complexas,o dilogo entre educadores e psiclogos no menos. Piaget chegou,inclusive, a dar conselhos estratgicos que, por mais surpreendentesque possam parecer, traduzem a sabedoria e a experincia de umhbil negociador. preciso ter sempre presente, nos recorda:

    (...) a lei psicolgica mais elementar: nenhum ser humano gosta quelhe deem lies, e dos mestres menos ainda. Faz tempo que ospsiclogos bem sabem que, para os mestres e os administradoresserem ouvidos no devem dar a impresso de estar recorrendo adoutrinas psicolgicas, mas devem dar a entender que esto apelan-do, simplesmente, ao senso comum (Piaget, 1954a, p. 28).

    Oportunismo? Poderia parecer primeira vista. Porm, pensan-do bem, tambm aqui se manifesta o credo educativo fundamentalde Piaget:

    Temos confiana no valor educativo e criador das trocas objetivas. Pensa-mos que as informaes mtuas e a compreenso recproca de pontosde vista diferentes so formadoras das verdades. Defendemo-nos damiragem das verdades gerais para crer nesta verdade concreta e

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    viva que nasce da livre discusso e da coordenao laboriosa de pers-pectivas distintas e, s vezes, contrrias (id., ib.).

    Essa crena no se restringe exclusivamente ao mbito das ativi-dades educativas: , para Piaget, a condio indispensvel de todotrabalho cientfico, o princpio regulador de toda atividade humana,a norma de vida de todo ser inteligente.

    A longa construo da epistemologia gentica

    Com esta perspectiva, Piaget prosseguiu durante muitos anos dedi-cando-se ao grande projeto que o fascinava desde o incio de sua carrei-ra: estabelecer uma espcie de embriologia da inteligncia (PIAGET,1976, p.10). Estudando a evoluo da inteligncia desde a mais tenrainfncia, com enfoques e mtodos diversos, por meio da confrontaoentre estudos de perspectivas distintas e de especialidades diferentes,Piaget chegou a formular sua famosa hiptese de um paralelismoentre os processos de elaborao do conhecimento individual e os pro-cessos de elaborao do conhecimento coletivo, ou seja, entre apsicognese e a histria das cincias (Piaget; Garcia, 1983).

    Essa hiptese suscitou inmeras controvrsias que transcende-ram as fronteiras da regio de Genebra e o mbito especfico dapsicologia. Teve, porm, do ponto de vida heurstico, uma fecundidadeextraordinria: no somente inspirou a enorme produo cientficado Centro Internacional de Epistemologia Gentica, cujos trabalhosocupam atualmente 37 volumes, mas, igualmente, deu um novo im-pulso ao debate sobre a educao inspirada em Piaget, sobretudo nosEstados Unidos da Amrica9.

    O Piaget psiclogo j tinha proporcionado ao educador umasrie importante de dados experimentais em apoio aos mtodos ati-vos preconizados igualmente por Montessori, Freinet, Decroly e

    9 Cf. Copelan, 1970; Elkind, 1976; Furth, 1970; Gorman, 1972; Schwebel & Raph, 1973.

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    Claparde10. Com seus trabalhos sobre os estgios do desenvolvi-mento da inteligncia j havia incitado os mestres a adaptar melhorsuas intervenes pedaggicas ao nvel operatrio alcanado pelo alu-no. O Piaget epistemlogo propunha outro ponto de vista e sugeriadescentrar, de alguma maneira, o aluno de seu nvel, de suas dificulda-des, de suas habilidades particulares, para abrir-se mais ao seu contex-to cultural e levar em conta os diversos percursos e trajetrias histri-cas dos conceitos a que se prope estudar, ou fazer estudar.

    Em particular, o postulado bsico da psicoepistemologia ge-ntica, segundo o qual a explicao de todo fenmeno, seja fsico,psicolgico ou social, buscar em sua prpria gnesis e no alhu-res, contribuiu para dar um novo papel dimenso histrica, tantona prtica pedaggica como na reflexo sobre a educao. Todateoria, todo conceito, todo objeto criado pelo homem foi anteri-ormente uma estratgia, uma ao, um gesto. Deste postuladobsico nasce, ento, uma nova norma pedaggica: se para apren-der bem necessrio compreender bem, para compreender bem preciso reconstruir, por si mesmo, no tanto o conceito ou obje-to de que se trate, mas o percurso que levou do gesto inicial a esseconceito ou a esse objeto. Alm disso, este princpio pode apli-car-se tanto ao objeto do conhecimento como ao sujeito queconhece: da a necessidade de desenvolver paralelamente a todaaprendizagem uma metareflexo sobre o prprio processo deaprendizagem11.

    10 Neste sentido, ainda que elas paream no ter tido relaes diretas com a psicologia

    piagetiana salvo, bem entendido, em Genebra , as diversas tendncias, cada vez

    mais numerosas, no que diz respeito s biografias educativas, ou s histrias de vida,

    como instrumento pedaggico, poderiam ser consideradas como um desenvolvimento

    particular deste princpio (cf. p.ex., Dunn, 1982; Ferrarotti, 1983; Josso, 1991; Pineau &

    Giobert, 1989; Sarbin, 1986). Da mesma maneira, ainda que sua origem seja outra,

    (Flavell, 1976), o fluxo crescente de pesquisas e de intervenes pedaggicas com

    traos de metacognio pode igualmente ser situado nessa mesma direo (cf. Nol,

    1990; Weinert & Kluwe, 1987; e, tambm, Piaget, 1974a, 1974b).11 Cf., p.ex., Fabbri, 1990; Fabbri & Munari, 1988; Landier, 1987; Munari, 1987b.

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    A dupla leitura do construtivismo gentico

    Os fatos e as teorias do construtivismo gentico de Piaget e,sobretudo, sua descrio dos estgios do desenvolvimento da in-teligncia e dos conhecimentos cientficos, foram objeto de lei-turas muito diferentes segundo o tipo de concepo, expressa outcita, que cada leitor tinha da cultura objetivo ltimo de todaao educativa.

    Entre essas diversas concepes, cabe reconhecer duas ten-dncias principais: uma que entende a cultura como um tipo deedifcio que se constri progressivamente, segundo um procedi-mento bem programado; e outra que a considera antes como umaespcie de rede, dotada de certa plasticidade e de uma capacidadede auto-organizao e, por conseguinte, o processo de construoou de reconstruo pode ser provocado ou facilitado, mas nodominado totalmente (Fabbri; Munari, 1984a).

    O fato interessante que ambas as tendncias fazem refernciaao construtivismo gentico de Piaget, precisamente a sua teoriados estgios, mas dando-lhe interpretaes que se localizam emnveis diferentes: um mais concretamente psicolgico e o outromais propriamente epistemolgico. So interpretaes que, na pr-tica pedaggica, terminaram por opor-se radicalmente.

    A primeira, aquela que se situa primeiro no nvel da psicologiada criana, d ao conceito de estgio o sentido de etapa precisa enecessria para a construo do edifcio da cultura. Etapa determi-nada pela prpria natureza, quase biolgica, do processo de cresci-mento, e que, segundo se entende, representa uma aquisio estvel eslida, sem a qual toda construo posterior seria impossvel.

    Exemplo tpico desta posio a utilizao de provaspiagetianas para legitimar, de forma mais cientfica, as prticasde orientao e de seleo escolar, que visam a hierarquizar o siste-ma e as prticas educacionais em nveis considerados como ho-mogneos, e cada vez mais difceis de alcanar.

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    A essa primeira interpretao do construtivismo genticopiagetiano se ope a segunda a que se situa, sobretudo, no nvelda reflexo epistemolgica, e para a qual o conceito de estgiodeve ser entendido antes como uma espcie de estruturao oureestruturao repentina, parcialmente imprevisvel, sempre tradi-cional e instvel, de uma rede complexa de relaes que vinculam,em um movimento continuamente ativo, certo nmero de con-ceitos e de operaes mentais.

    J um exemplo da segunda posio que recorda claramentea de Kuhn (1962) o abandono de toda forma rgida de pro-gramao e de uniformizao na prtica pedaggica em benefciode um esforo especial para criar contextos voltados a favorecer osurgimento das formas de organizao dos conhecimentos que sedeseja (Munari, 1990d).

    Essas duas posies, ainda que opostas, costumam encontrar-se nas diversas regies (tanto no sentido prprio como no figu-rado) do complexo e heterogneo mundo da educao. s vezes,uma prevalece sobre a outra, segundo o momento histrico preci-so, as tradies locais, os fatores econmicos e a correlao deforas polticas.

    Piaget atual

    De qualquer maneira, a segunda posio parece ter uma maiordifuso atualmente, talvez menos nas instituies escolares do quena prtica educativa extraescolar. Sobretudo, nas estratgias de for-mao dos responsveis pela gesto, possivelmente por causa dosnovos desafios que um meio, cada vez mais interconectado eimprevisvel, impe organizao das atividades humanas. Demaneira que, se o Piaget psiclogo deixou uma pegada evidentenas prticas escolares, sobretudo no que se refere educao daprimeira infncia; se o Piaget poltico da educao contribuiu,sem dvida, para a promoo de movimentos de coordenao

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  • internacional em educao; o Piaget epistemlogo, por sua par-te, influi, atualmente, nas prticas educativas que se situam em uni-versos que no se tinha imaginado. Temos, assim, um sinal inegvelda riqueza das consequncias tericas e das sugestes concretasque sua obra pode ainda oferecer aos educadores.

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  • O desenvolvimento intelectual: inteligncia12

    A questo das relaes entre a razo e a organizao psicolgi-ca pe-se necessariamente no incio de um estudo sobre o nasci-mento da inteligncia. Se verdade que tal discusso no nos podelevar a nenhuma concluso positiva atual, em vez de nos sujeitar-mos implicitamente influncia de uma das solues possveis aeste problema, vamos antes escolher com lucidez, salientando ospostulados de que se parte para a investigao.

    A inteligncia verbal ou refletida repousa na inteligncia prticaou sensrio-motora, que se apoia em hbitos e associaes queso adquiridos para voltarem a se combinar. Estas associaes pres-supem, por outro lado, o sistema de reflexos cuja relao com aestrutura anatmica e morfolgica do organismo evidente. H,pois, uma certa continuidade entre a inteligncia e os processospuramente biolgicos de morfognese e de adaptao ao meio.Que significado tem esta continuidade?

    evidente que certos fatores hereditrios condicionam o de-senvolvimento intelectual, mas isso pode ser entendido de duasformas to diferentes no plano biolgico que foi a sua confuso,na verdade, que obscureceu o debate clssico acerca das ideiasinatas e mesmo do, a priori, epistemolgico.

    12 Da obra O Nascimento da Inteligncia na Criana (1970, p.15). O tema ser retomadoadiante, quando da confrontao da escola tradicional com a psicologia clssica.

    TEXTOS SELECIONADOS

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    Os fatores hereditrios do primeiro grupo so de ordem es-trutural e esto ligados constituio do nosso sistema nervoso edos nossos rgos dos sentidos. desse modo que percebemoscertas radiaes fsicas, mas no todas, que percebemos os corpossomente em relao determinada escala etc. Estes dados estrutu-rais influenciam a construo das noes mais fundamentais. Porexemplo, a nossa intuio do espao certamente condicionadapor eles, mesmo quando, atravs do pensamento, elaboramos es-paos transintuitivos e puramente dedutivos. Estas caractersticasdo primeiro tipo, se bem que forneam inteligncia estruturasteis, so, porm, essencialmente limitativas, por oposio s dosfatores do segundo tipo. As nossas percepes so apenas o queso, dentro da multiplicidade do que concebvel (p. 15).

    As invariantes funcionais da inteligncia e a organizao biolgica

    A inteligncia uma adaptao. Para apreender as suas rela-es com a vida em geral necessrio determinar quais as relaesque existem entre o organismo e o meio ambiente. De fato, a vida uma criao contnua de formas cada vez mais completas, umabusca progressiva do equilbrio entre essas formas e o meio.

    Dizer que a inteligncia um caso particular da adaptao bio-lgica supor que essencialmente uma organizao cuja funo estruturar o Universo, como o organismo estrutura o meio imedia-to. Para descrever o mecanismo funcional do pensamento em ter-mos verdadeiramente biolgicos basta encontrar os invariantes co-muns a todas as estruturaes de que a vida capaz. O que devetraduzir-se em termos de adaptao no so os objetivos particula-res visados pela inteligncia prtica, nos seus primrdios (estes obje-tivos sero alargados at abrangerem todo o saber), mas a relaofundamental prpria do conhecimento em si: a relao entre o pen-samento e as coisas. O organismo adapta-se construindo material-mente formas novas para as inserir nas formas do Universo, en-

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    quanto a inteligncia prolonga esta criao conduzindo mentalmenteas estruturas susceptveis de se aplicarem s formas do meio.

    De certa forma, e no incio da evoluo mental, a adaptaointelectual , pois, mais restrita do que a adaptao biolgica, masquando esta se prolonga, aquela a supera infinitamente: se, do pontode vista biolgico, a inteligncia um caso particular da atividadeorgnica, e se as coisas que percebemos ou conhecemos so umaparte restrita do meio ao qual o organismo tende a adaptar-se, d-se em seguida uma inverso destas relaes. Isso em nada exclui aprocura dos invariantes funcionais.

    H, com efeito, no desenvolvimento mental, elementos variveise outros invariantes. Da os mal-entendidos da linguagem psicolgica,dos quais alguns partem para a atribuio de caractersticas superioresaos estdios inferiores, e outros para a pulverizao dos estdios e dasoperaes. Assim, convm evitar tanto o preformismo da psicologiaintelectualista como a hiptese das heterogeneidades mentais. A solu-o para esta dificuldade encontra-se precisamente na distino entreas estruturas variveis e as funes invariantes.

    Do mesmo modo que as grandes funes do ser vivo so idn-ticas em todos os organismos, mas correspondem a rgos muitodiferentes de um grupo para outro, tambm entre a criana e oadulto podemos assistir a uma construo contnua de estruturasvariadas, enquanto que as grandes funes do pensamento perma-necem constantes.

    Ora, estes funcionamentos invariantes pertencem ao grupo dasduas funes biolgicas mais gerais: a organizao e a adaptao.Comecemos pela ltima, porque se reconhecermos que, no de-senvolvimento da inteligncia, tudo adaptao, temos de nosqueixar da impreciso deste conceito.

    Alguns bilogos definem simplesmente adaptao pela conser-vao e pela sobrevivncia, isto , pelo equilbrio entre o organismoe o meio. Mas, deste modo, a noo perde todo o seu interesse por-

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    que se confunde com a da prpria vida. H diferentes graus de sobre-vivncia, e a adaptao implica o mais elevado e o mais baixo. necessrio distinguirmos adaptao-estado e adaptao-processo. Noestado, nada claro. Com o seguimento do processo as coisas come-am a deslindar-se: h adaptao a partir do momento em que oorganismo se transforma em funo do meio, e que esta variaotenha por consequncia um aumento das trocas entre o meio e oorganismo que sejam favorveis sua conservao (pp. 17- 18).

    (...)Se chamarmos acomodao ao resultado das presses

    exercidas pelo meio, podemos ento dizer que a adaptao umequilbrio entre a assimilao e a acomodao.

    Esta definio aplica-se tambm prpria inteligncia. A inte-ligncia de fato assimilao na medida em que incorpora todosos dados da experincia. Quer se trate do pensamento que, graasao juzo, faz entrar o novo no j conhecido, reduzindo assim oUniverso s suas prprias noes, quer se trate da inteligncia sens-rio-motora que estrutura igualmente as coisas que percebereconduzindo-as aos seus esquemas, nos dois casos a adaptao in-telectual comporta um elemento de assimilao, quer dizer, deestruturao por incorporao da realidade exterior s formas devi-das atividade do sujeito.

    Quaisquer que sejam as diferenas de natureza que separam avida orgnica (a qual elabora materialmente as formas, e assimiladesta as substncias e as energias do meio ambiente), a intelignciaprtica ou sensrio-motora (que organiza os atos e assimila aoesquematismo destes comportamentos motores as situaes queo meio oferece) e a inteligncia reflexiva ou gnstica (que se con-tenta em pensar as formas ou em constru-las interiormente paralhes assimilar o contedo da experincia), tanto umas como asoutras se adaptam assimilando os objetos ao sujeito.

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    Tambm no podemos ter dvidas de que a vida mental seja,simultaneamente, uma acomodao ao meio ambiente. A assimi-lao no pode ser pura porque, quando incorpora os elementosnovos nos esquemas anteriores, a inteligncia modifica imediata-mente estes ltimos para adapt-los aos novos dados.

    Mas, pelo contrrio, as coisas nunca so conhecidas nelas mes-mas, uma vez que este trabalho de acomodao s possvel emfuno do processo inverso de assimilao. Veremos como a pr-pria noo de objetos est longe de ser inata e necessita de umaconstruo ao mesmo tempo assimiladora e acomodadora.

    Resumindo, a adaptao intelectual, como qualquer outra, uma equilibrao progressiva entre um mecanismo assimilador euma acomodao complementar. O esprito s se pode conside-rar adaptado a uma realidade quando h uma acomodao per-feita, isto , quando nada nesta realidade modifica os esquemas dosujeito. Mas no h adaptao se a nova realidade impe atitudesmotoras ou mentais contrrias s que tinham sido adaptadas nocontato com outros dados anteriores: s h adaptao quandoexiste coerncia, assimilao.

    certo que, no plano motor, a coerncia apresenta uma estru-tura completamente diferente da que tem no plano reflexivo ouno plano orgnico, e so possveis todas as sistematizaes. Mas aadaptao s se consegue levar a um sistema estvel, quer dizer,quando h um equilbrio entre acomodao e assimilao.

    Isso leva-nos funo de organizao. De um ponto de vistabiolgico a organizao inseparvel da adaptao: so os doisprocessos complementares de um nico mecanismo, sendo o pri-meiro aspecto interno do ciclo do qual a adaptao constitui oaspecto exterior. Ora, no que diz respeito inteligncia tanto nasua forma reflexiva como na sua forma prtica, voltamos a en-contrar este fenmeno duplo da totalidade funcional e dainterdependncia entre organizao e adaptao (p. 19 e 20).

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    Acerca do problema da inteligncia, parece-nos que podemostirar as lies seguintes. Desde os seus primrdios, a intelignciaencontra-se, graas s adaptaes hereditrias do organismo, em-penhadas numa rede de relaes, entre este e o meio.

    Ela no aparece, pois, como um poder de reflexo indepen-dente da situao particular que o organismo ocupa no Universo,mas est ligada desde o incio por a priori biolgico: no tem nadade um independente absoluto, mas uma relao entre outras,entre o organismo e as coisas.

    Ora, se a inteligncia prolonga deste modo uma adaptao org-nica que lhe anterior, o progresso da razo consiste, sem dvida,numa tomada de conscincia cada vez maior da atividade organizadorainerente prpria vida, constituindo os estados primitivos do desen-volvimento psicolgico apenas as tomadas de conscincia mais super-ficiais deste trabalho de organizao. A fortiori, as estruturas morfolgico-reflexas de que testemunha o corpo vivo, e a assimilao biolgicaque est no ponto de partida das formas elementares de assimilaopsquica, no seriam mais do que o esboo mais exterior e mais mate-rial da adaptao, cujas formas superiores de atividade intelectual ex-primiriam melhor a sua natureza profunda.

    Podemos, ento, conceber que a atividade intelectual, partindode uma ligao de interdependncia entre o organismo e o meio, oude indiferenciao entre o sujeito e o objeto, avana simultaneamen-te na conquista das coisas e na reflexo sobre si mesma, dois proces-sos de direo inversa, sendo correlativos. Sob esse ponto de vista, aorganizao fisiolgica e anatmica aparece pouco a pouco na cons-cincia como exterior a ela, e a atividade inteligente apresenta-se comoa prpria essncia da nossa existncia de sujeitos. Da a inverso que,ao fim e ao cabo, se opera nas perspectivas do desenvolvimentomental e que explica por que que a razo, prolongando os meca-nismos biolgicos mais centrais, acaba por ultrapass-los simultane-amente em exterioridade e em interioridade complementares (p. 30).

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    A inteligncia no aparece, de modo algum, num dado momentodo desenvolvimento mental, como um mecanismo completamentemontado e radicalmente diferente dos que o precedeu. Apresenta,pelo contrrio, uma continuidade admirvel com os processos adqui-ridos ou mesmo inatos respeitantes associao habitual e ao reflexo,processos sobre os quais ela se baseia, ao mesmo tempo que os utiliza.Convm, pois, antes de analisarmos a inteligncia como tal, investigarde que forma ocorre o nascimento dos hbitos e mesmo o exercciodos reflexos que lhe preparam a vinda (p. 34).

    Os comportamentos que se observam durante as primeirassemanas de vida do individuo so, do ponto de vista biolgico, deuma grande complexidade. Em primeiro lugar, existem reflexosde ordem muito diferente, que dizem respeito medula, ao bolbo,s camadas pticas, e mesmo ao crtex; por outro lado, do instin-to ao reflexo s h uma diferena de grau.

    Paralelamente aos reflexos do sistema nervoso central, h osdo sistema nervoso autnomo, e todas as reaes devidas sensi-bilidade oprotoptica. Principalmente h o conjunto de reaesposturais de que H. Wallon mostrou a importncia para osprimrdios da evoluo mental.

    Por fim, difcil conceber a organizao destes mecanismossem fazer referncia aos processos endcrinos, cujo papel foi in-vocado a propsito de tantas reaes instrutivas ou emocionais.H, pois, uma srie de problemas atualmente postos psicologiafisiolgica e que consistem em determinar os efeitos de cada umdos mecanismos que dissociamos no comportamento do indiv-duo. A questo que H. Wallon analisa no seu timo livro sobre Lnent turbulent uma das mais importantes a este respeito: existe umestdio da emoo, ou estdio de reaes posturais e extrapiramidais,anterior ao estdio sensrio-motor ou estdio cortical?

    Nada melhor do que a discusso detalhada de Wallon, que nosfornece um material patolgico de grande riqueza como apoio

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    anlise gentica, para nos mostrar a complexidade das condutaselementares e a necessidade de distinguir os estdios sucessivosnos sistemas fisiolgicos concomitantes.

    Mas, por mais sedutores que sejam os resultados assim obtidos,parece-nos difcil ultrapassarmos hoje a descrio global, quando setrata de compreender a continuidade entre as primeiras condutas dobeb e as futuras condutas intelectuais. por isso que, apesar desimpatizarmos inteiramente com o esforo de H. Wallon no sentidode identificar os mecanismos psquicos com os da prpria vida,pensamos que nos devemos limitar a sublinhar a identidade funcio-nal, sem sair do ponto de vista de simples comportamento exterior.

    O problema que a esse respeito se nos pe, a propsito das rea-es das primeiras semanas, simplesmente o seguinte: de que modoas reaes sensrio-motoras, posturais etc., dadas no equipamentohereditrio do recm-nascido, preparam o indivduo para se adaptarao meio exterior e para adquirir as condutas posteriores, caracteriza-das precisamente pela utilizao progressiva da experincia?

    O problema psicolgico comea, portanto, a colocar-se a partirdo momento em que consideramos os reflexos, as posturas etc.,no na sua relao com o mecanismo interno do organismo vivo,mas nas suas relaes com o meio exterior, tal como ele se apre-senta atividade do sujeito. Examinemos sob este ponto de vistaalgumas reaes fundamentais das primeiras semanas: os reflexosde suco e de preenso, os gritos e as fonaes, os gestos e atitu-des dos braos, da cabea ou do tronco etc.

    O que espanta a propsito do que referimos, que, desde oseu funcionamento mais primitivo, estas atividades do lugar, cadauma por si prpria e umas em relao s outras, a uma sistemati-zao que ultrapassa o seu automatismo. H, pois, quase desde anascena, conduta no sentido de reao total do indivduo, eno apenas ativao de automatismos particulares ou locais, relaci-onados entre eles unicamente do interior. Por outras palavras, as

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    manifestaes sucessivas de um reflexo como o da suco no sepodem comparar com a ativao peridica de um motor que seutilizaria de tantas em tantas horas para o deixar repousar nos in-tervalos, mas constituem um desenrolar histrico de tal modo quecada perodo depende dos precedentes e condiciona os seguintes,numa evoluo realmente orgnica: qualquer que seja o mecanis-mo intenso deste processo histrico, podemos seguir as suas peri-pcias do exterior, e descrever as coisas como se qualquer reaoparticular determinasse as outras sem intermedirios (p. 37).

    Infelizmente, no h nada to difcil de definir como a in-tencionalidade. Dir-se-, como acontece frequentemente, que umato intencional quando determinado pela representao, dife-renciando-se assim das associaes elementares nas quais o ato regido por um estmulo externo?

    Mas se necessrio adotar o termo representao no sentidoestrito, no haveria aes intencionais antes da linguagem, isto ,antes da capacidade de pensar o real atravs de signos quecomplementam a ao. Ora, a inteligncia precede a linguagem etodo o ato da inteligncia sensrio-motora supe a inteno.

    Se, pelo contrrio, concebemos o termo representao englo-bando toda a conscincia de significaes, haveria intencionalidadedesde as associaes mais simples e quase desde o exerccio refle-xo. Dir-se-, ento que a intencionalidade est ligada ao poder deevocar imagens e que a procura de uma fruta numa caixa fechada,por exemplo, um ato intencional, enquanto determinado pelarepresentao da fruta na caixa?

    Mas, como veremos, parece que mesmo este tipo de repre-sentaes por imagens e smbolos individuais, aparece tarde: aimagem mental um produto da interiorizao dos atos da inteli-gncia e no um dado anterior a estes atos.

    Do ponto de vista terico, a intencionalidade marca, portanto,a extenso das totalidades e das relaes adquiridas durante o est-

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    dio precedente, e, devido a esta extenso, a sua dissociao maisdesenvolvida em totalidades reais e totalidades ideais, em relaesde fato e em relaes de valor.

    H uma inteligncia sensrio-motora ou prtica cujo funcio-namento prolonga o funcionamento dos mecanismos de nvel in-ferior: reaes circulares, reflexos, e mais profundamente ainda, aatividade morfogentica do prprio organismo. (...) Convm, noentanto especificar o alcance de tal interpretao, tentando dar umaviso de conjunto desta forma elementar da inteligncia.

    Em primeiro lugar, lembramos o quadro das explicaes pos-sveis dos diferentes processos psicobiolgicos para podermosinserir nele a nossa descrio. Efetivamente, h, pelo menos, cincoformas principais de conceber o funcionamento da inteligncia,que correspondem s concepes que j enumeramos em relao gnese das associaes adquiridas e dos hbitos e das estruturasbiolgicas em si (p. 162).

    Empirismo

    Podemos, em primeiro lugar, atribuir o desenvolvimento inte-lectual presso do meio exterior, cujas caractersticas (concebidascomo completamente constitudas independentemente da ativida-de do sujeito) se imprimiram pouco a pouco na mente da criana.Princpio do lamarckismo quando aplicado s estruturas heredit-rias, esta aplicao leva a que se considere o hbito como fatoprimeiro e as associaes adquiridas mecanicamente como o prin-cpio da inteligncia. difcil conceber outras ligaes entre o meioe a inteligncia que no sejam os da associao atomstica, quando,com o empirismo, se negligencia a atividade intelectual em favorda presso dos objetos.

    As teorias que consideram o meio como um todo ou umconjunto de totalidades so obrigadas a admitir que a intelignciaou a percepo que lhes do este carter (mesmo se este corres-

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    ponde a dados independentes de ns, o que implica ento umaharmonia preestabelecida entre as estruturas do objeto e as dosujeito): no vemos como que na hiptese empirista, o meiosendo concebido como constituindo um todo em si, se imponhaao esprito por fragmentos sucessivos, isto , novamente por asso-ciao. O primado do meio leva hiptese associacionista.

    Apriorismo

    (...) Segundo as concepes aprioristas, podemos considerar odesenvolvimento da inteligncia como devido, no a uma faculda-de que j est completada, mas manifestao de uma srie deestruturas que se impem de dentro percepo e inteligncia, medida das necessidades que o contato com o meio provoca. Asestruturas exprimiriam assim a prpria contextura do organismo edas suas caractersticas hereditrias, o que torna intil qualquer apro-ximao entre a inteligncia e as associaes ou hbitos adquiridossob a influncia do meio.

    Construtivismo

    () Por fim, podemos conceber a inteligncia como o desen-volvimento de uma atividade assimiladora cujas leis funcionais sodadas desde a vida orgnica e cujas estruturas sucessivas que lheservem de rgos se elaboram por interao entre ela e o meioexterior. Esta soluo difere da primeira porque no acentua uni-camente a experincia, mas a atividade do sujeito que torna poss-vel esta experincia.

    Ao apriorismo esttico (), ope-se a ideia de uma atividadeestruturante, sem estruturas pr-formadas, que elabora os rgos dainteligncia durante o funcionamento em contato com a experincia.

    ()Que a presso do meio tem um papel essencial no desenvolvimento

    da inteligncia, parece-nos impossvel de negar, e no podemos acom-

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    panhar o gestaltismo no seu esforo para explicar a inveno inde-pendentemente da experincia adquirida. por isso que o empirismoest condenado a renascer continuamente das suas cinzas, e a ter oseu papel til de antagonista das interpretaes aprioristas.

    Mas o problema consiste em saber como que o meio exercea sua ao e como que o sujeito registra os dados da experincia: neste ponto que os fatos nos obrigam a separarmo-nos doassociacionismo.

    Podemos invocar em favor do empirismo tudo o que, na su-cesso dos nossos estdios, manifeste a influncia da histria doscomportamentos at o seu presente estdio.

    A importncia do meio s sensvel num desenrolar histrico,quando as experincias somadas opem suficientemente as sriesindividuais umas s outras, para permitirem determinar o papeldos fatores externos. Pelo contrrio, a presso atual das coisas so-bre a mente, num ato de compreenso ou de inveno, por exem-plo, pode sempre ser interpretado em funo das caractersticasinternas da percepo ou do intelecto.

    Ora, o papel da histria vivida pelo sujeito, isto , a ao dasexperincias passadas na experincia atual, pareceu-nos consider-vel durante os estdios sucessivos que estudamos.

    Logo, desde o primeiro estdio, podemos constatar at queponto o exerccio de um mecanismo reflexo influencia a suamaturao. Que quer isto dizer seno que, logo desde o incio, omeio exerce a sua ao: o uso ou no uso de uma montagemhereditria depende, efetivamente, sobretudo de circunstnciasexteriores.

    Durante o segundo estdio, a importncia da experincia saumenta. Por um lado, os reflexos condicionados, associaes ad-quiridas e hbitos, cujo aparecimento caracteriza o perodo, con-sistem de ligaes impostas pelo meio exterior: qualquer que seja aexplicao adaptada em relao prpria capacidade de estabele-

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    cer estas ligaes (em relao prpria capacidade formal, por-tanto) no podemos duvidar de que o seu contedo seja emprico.

    Constatamos, por outro lado, que determinadas maturaesnormalmente consideradas como dependentes apenas de fatoresinternos, so realmente regulados, pelo menos parcialmente, peloprprio meio: assim que a coordenao entre a viso e a preensose apresenta em idades que oscilam entre os 0; 3 e os 0; 6, conformea experincia adquirida pelo sujeito.

    A conduta que caracteriza o terceiro estdio , como sabe-mos, a reao circular secundria. Ora, ainda neste caso, qualquerque seja a interpretao que se d prpria capacidade de repro-duzir os resultados interessantes obtidos por acaso, no podemosduvidar que as ligaes adquiridas devido a estas condutas se de-vam a aproximaes empricas.

    As reaes circulares secundrias prolongam assim as reaesprimrias (que se devem aos primeiros hbitos): quer a crianaatue sobre as coisas ou sobre o prprio corpo, s descobre asligaes reais por um exerccio contnuo, cujo poder de repetiosupe como matria os dados da experincia.

    Com a coordenao dos esquemas caractersticos do quartoestdio, a atividade da criana deixa de consistir apenas na repeti-o ou no prolongamento, para combinar e unir.

    Poderamos ento esperar que o papel da experincia dimi-nusse em favor de estruturaes a priori. Porm, no assim. Emprimeiro lugar, sendo os esquemas sempre snteses de experinci-as, as suas assimilaes recprocas ou combinaes, por mais aper-feioadas que sejam, s exprimem uma realidade experimental,passada ou futura.

    Depois, se estas coordenaes de esquemas supem, como asreaes circulares e os prprios reflexos, uma atividade do pr-prio sujeito, elas, no entanto, s se operam em funo da ao, dosseus sucessos ou fracassos: o papel da experincia, longe de dimi-

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    nuir nos terceiro e quarto estdios, s aumenta de importncia.Durante o quinto estdio, a utilizao da experincia estende-seainda mais, visto que este perodo se caracteriza pela reao cir-cular terciria ou a experincia, para ver o que a coordenao dosesquemas se prolonga agora em descobertas de novos meios porexperimentao ativa.

    Por fim, o sexto estdio vem juntar s condutas anterioresmais um comportamento: a inveno de novos meios por dedu-o ou combinao mental. Como aconteceu no quarto estdio,podem-nos perguntar se a experincia no agora descartada pelotrabalho do esprito e se as novas ligaes, de origem a priori, novo agora substituir as relaes experimentais. Isso no assim,pelo menos no que respeita ao contedo das relaes elaboradaspelo sujeito.

    Mesmo na prpria inveno, que, aparentemente, ultrapassa aexperincia, esta tem o seu papel enquanto a experincia mental.Por outro lado, a inveno por mais livre que seja, junta-se expe-rincia e submete-a ao seu veredicto. Esta submisso pode, real-mente, ter o aspecto de um acordo imediato e completo, donde ailuso de uma estrutura endgena no prprio contedo e ligadaao real por uma harmonia pr-estabelecida.

    Em resumo, a experincia necessria ao desenvolvimento dainteligncia, a qualquer nvel. este o fato fundamental em que sebaseiam as hipteses empiristas que tm o mrito de lhe dar ateno.Neste ponto, as nossas anlises do nascimento da inteligncia da cri-ana confirmam esta forma de ver. Mas no empirismo h mais doque uma afirmao do papel da experincia: o empirismo , princi-palmente, uma determinada concepo da inteligncia e da sua ao.

    Por um lado, tende a considerar a experincia como se im-pondo por si sem que o sujeito a tenha de organizar, isto , comose imprimisse diretamente no organismo sem que fosse necessriaqualquer atividade do sujeito para a sua constituio. Por outro

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    lado, e por consequncia, o empirismo v a experincia como exis-tindo por si, quer deva o seu valor a um sistema de coisas exterio-res e completas e de relaes dadas entre estas coisas (empirismometafsico), quer consista num sistema de hbitos e de associaesque se bastam a si mesmos (fenomenismo).

    Esta dupla crena na existncia de uma experincia por si e na suapresso direta sobre a mente do sujeito explica, por fim, o motivopelo qual o empirismo necessariamente associacionista: qualquer outraforma de registro da experincia, que no a associao nas suas dife-rentes formas (reflexo condicionado, transferncia associativa, imagi-nao de imagens, etc.), supe uma atividade intelectual que participada construo da realidade exterior percebida pelo sujeito.

    Evidentemente, o empirismo que aqui apresentamos hojeapenas uma teoria-limite. Mas h determinadas teorias clebres deinteligncia que lhe esto bastante prximas. Por exemplo, quandoSpearman descreve as suas trs etapas do progresso intelectual, aintuio da experincia (apreenso imediata dos dados), a eduodas relaes e a eduo dos correlatos, emprega uma linguagembem diferente do associacionismo e que parece indicar a existnciade uma atividade sui generis do esprito. Mas em que consiste, nestecaso particular?

    A intuio imediata da experincia no vai alm da conscinciapassiva dos dados imediatos. Em relao eduo das relaes oudos correlatos, simples leitura de uma realidade j completamenteconstruda, leitura essa que no especifica o pormenor do mecanis-mo. Um continuador sutil de Spearman, N. Isaacs, tentou realmenteanalisar este processo. O importante na experincia seria a expectati-va, isto , a antecipao que resulta das observaes anteriores e quese destina a ser confirmada ou desmentida pelos acontecimentos.

    Quando a previso infirmada pelos fatos, o sujeito dedicar-se-ia a novas antecipaes (faria novas hipteses) e finalmente, emcaso de fracasso, voltar-se-ia para si prprio e modificaria o seu

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    mtodo. Mas ou os esquemas que servem expectativa e ao con-trole dos resultados so apenas um resduo mnemnico das expe-rincias anteriores, e voltamos ao associacionismo cujo nico pro-gresso o de ser motor e no apenas contemplativo, ou entoimplicam uma organizao intelectual propriamente dita (uma ela-borao ativa dos esquemas de antecipao devida a um mecanis-mo assimilador ou construtivo) e samos do empirismo, visto que,neste caso, a experincia estruturada pelo prprio sujeito.

    (...) A mente da criana adianta-se conquista das coisas, comose o avano da experincia supusesse uma atividade inteligente quea organizasse em vez de resultar dela. Por outras palavras, o conta-to com os objetos menos direto no princpio do que no fim daevoluo que pretende. Mais que isso, nunca o , apenas tende atornar-se: foi o que constatamos ao mostrar que a experincia apenas uma acomodao, por mais exata que ela se possa tornar.

    Ora, pertence prpria essncia do empirismo colocar, pelocontrrio, as coisas, ou na sua falta os dados imediatos, isto sem-pre a atitude receptiva do esprito, no incio de qualquer evoluointelectual, consistindo o avano da inteligncia apenas em cons-truir snteses de reaes ou das reaes cada vez mais diferidas,destinadas a fazerem passar do contato direto para s o voltar aencontrar de longe a longe.

    Lembramos como decorrem os seis estdios do ponto devista desta acomodao progressiva ao meio exterior. Durante oprimeiro estdio, naturalmente no h qualquer contato direto coma experincia, visto que a atividade simplesmente reflexa. A aco-modao confunde-se com o exerccio do reflexo.

    Durante o segundo estdio constituem-se novas associaes ecomea aqui a presso da experincia. Mas estas associaes limi-tam-se, de incio, a ligar entre si dois ou mais movimentos do pr-prio corpo, ou ainda uma reao do sujeito a um sinal exterior. Aquih, decerto, uma conquista que se deve experincia. Mas esta expe-

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    rincia ainda no pe o esprito em contato com as coisas: coloca-oexatamente a meio caminho entre o meio exterior e o prprio cor-po. A acomodao ainda no dissocivel da atividade de repeti-o, referindo-se esta ltima apenas a resultados adquiridos fortuita-mente em vez de se deverem ao desenrolar da atividade reflexa.

    Com o terceiro estdio, as associaes adquiridas constituemrelaes entre as coisas e no unicamente entre os diversos movi-mentos do corpo. Mas estas relaes esto ainda sob a dependn-cia da ao prpria, o que quer dizer que o sujeito no experimen-ta sempre: a sua acomodao ao meio ainda um simples esforode repetio, sendo apenas agora mais complexos os resultadosreproduzidos.

    Com o quarto estdio a experincia aproxima-se mais doobjeto, e as coordenaes entre os esquemas permitem crianaestabelecer relaes reais entre as coisas (por oposio s relaesprticas puramente fenomenistas). Mas s no quinto estdio quea acomodao se ativa, que a nica a penetrar no interior dascoisas (pp. 371-377),

    Por outras palavras, as relaes entre o sujeito e o seu meiomantm-se numa interao radical, de modo que a conscinciano se inicia nem pelo conhecimento dos objetos nem pelo co-nhecimento da atividade prpria, mas por um estado indiferenciado,e que deste estado procedem dois movimentos complementares,um de incorporao das coisas ao sujeito e o outro de acomoda-o s prprias coisas.

    Em resumo, o problema da inveno, que constitui o proble-ma central da inteligncia, segundo muitas perspectivas, na hipte-se dos esquemas no requer qualquer soluo especial porque aorganizao, de que a atividade assimiladora uma prova, essen-cialmente construo e, assim, efetivamente inveno desde oincio. por isso que o sexto estdio, ou estdio da inveno porcombinao mental, nos apareceu como o coroar dos cinco

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    anteriores, e no como o incio de um perodo novo: desde ainteligncia emprica dos quarto e quinto estdios, mesmo desde aconstruo dos esquemas primrios e secundrios, este poder deconstruo est a germinar, e revela-se em cada operao.

    Sintetizando, a assimilao e a acomodao que primeiro soantagnicas, uma vez que a primeira permanece egocntrica e asegunda imposta pelo meio exterior, complementam-se uma outra medida que se diferenciam, e a coordenao dos esquemasfavorece reciprocamente o desenvolvimento da acomodao. assim que, desde o plano sensrio-motor, a inteligncia supe umaunio cada vez mais estreita da experincia com a deduo, unioessa de que o rigor e fecundidade da razo sero, mais tarde, o seuduplo produto (p. 426).

    O desenvolvimento moral13

    Os procedimentos da educao moral podem ser classifica-dos sob diferentes pontos de vista. Primeiramente, do ponto devista dos fins perseguidos: evidente que os mtodos sero muitodiferentes se desejarmos formar uma personalidade livre ou umindivduo submetido ao conformismo do grupo social a que elepertence. Porm, aqui no temos de tratar dos fins de educaomoral, mas somos forados a classificar os procedimentos e adistinguir aqueles que favorecem a autonomia da conscincia emrelao queles que conduzem ao resultado inverso.

    Em segundo lugar, podemos considerar o ponto de vista dasprprias tcnicas: se queremos alcanar a autonomia da conscincia,podemos perguntar se um ensinamento oral da moral - uma liode moral - to eficaz como supe Durkheim, por exemplo, ou seuma pedagogia inteiramente ativa necessria para este fim. Paraum mesmo fim podem ser concebveis diferentes tcnicas.

    13 Textos extrados da obra Jean Piaget - Sobre a Pedagogia: textos inditos. Org.Silvia Parrat e Anastsia Tryphon, So Paulo: Casa do Psiclogo, 1998.

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    Em terceiro lugar, podemos classificar os procedimentos deeducao moral em funo do domnio moral considerado: um pro-cedimento excelente para desenvolver a veracidade, a sinceridadee as virtudes que podemos chamar intelectuais, bom, tambm,para a educao da responsabilidade ou do carter.

    Classificando o conjunto de procedimentos de educao moralsob trs pontos de vista e construindo, assim, uma tabela de triplaentrada, corremos o risco de cair num caos. No existe alguma divi-so mais simples, algum princpio que nos permita a orientao si-multnea para os fins, as tcnicas e os domnios?

    Acreditamos que sim, mas sob a condio de partirmos pri-meiramente da prpria criana e de aclarar a pedagogia moral pormeio da psicologia da moral infantil. Quaisquer que sejam os finsque se proponha alcanar, quaisquer que sejam as tcnicas que sedecida adotar e quaisquer que sejam os domnios sob os quais seaplique essas tcnicas, a questo primordial a de saber quais soas disponibilidades da criana. Sem uma psicologia precisa dasrelaes das crianas entre si, e delas com os adultos, toda a discus-so sobre os procedimentos de educao moral resulta estril.Consequentemente, impe-se um rpido exame dos dados psico-lgicos atuais. Isso nos permite, ademais, classificar sem dificulda-de os procedimentos em funo de seus fins.

    H uma proposio sobre a qual todos os psiclogos e todosos educadores esto seguramente de acordo: nenhuma realidademoral completamente inata. O que dado pela constituiopsicobiolgica do indivduo como tal so as disposies, as ten-dncias afetivas e ativas: a simpatia e o medo - componentes dorespeito -, as razes instintivas da sociabilidade da subordinao,da imitao etc., e, sobretudo, certa capacidade indefinida de afei-o, que permitir a criana amar um ideal, assim como amar aseus pais e atender sociedade, ao bem de seus semelhantes.

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    Mas, deixadas livres, essas foras puramente inatas permane-ceriam anrquicas: fonte dos piores excessos como de todos osdesenvolvimentos, a natureza psicolgica do indivduo como talpermanece neutra do ponto de vista moral.

    Para que as realidades morais se constituam necessrio umadisciplina normativa, e para que essa disciplina se constitua neces-srio que os indivduos estabeleam relaes uns com os outros.Que as normas morais sejam consideradas impostas, a priori, aoesprito, ou que nos atenhamos aos dados empricos, sempre ver-dade, do ponto de vista da experincia psicopedaggica, pois nasrelaes interindividuais que as normas se desenvolvem: so as rela-es que se constituem entre a criana e o adulto ou entre ela e seussemelhantes que a levaro a tomar conscincia do dever e a colocaracima de seu eu essa realidade normativa na qual a moral consiste.

    No h, portanto, moral sem educao moral, educao nosentido amplo do termo, que se sobrepe constituio inata doindivduo. Somente - e aqui que se coloca finalmente a questo dosprocedimentos da educao moral - na medida em que a elabora-o das realidades espirituais depende das relaes que o indivduotem com seus semelhantes, no h uma nica moral e nem havertantos tipos de reaes morais quanto as formas de relaes sociaisou interindividuais que ocorrerem entre a criana e seu meio ambi-ente. Por exemplo, a presso exclusiva do adulto sobre a alma infan-til conduz a resultados muito diversos dos da livre cooperao entrecrianas e, dependendo de como a educao moral emprega umaou outra dessas tcnicas, ela moldar as conscincias e determinarcomportamentos de modos diferentes.

    Ao nos referirmos a um conjunto de pesquisas, das quais uti-lizaremos especialmente as dos socilogos de Durkheim e desua escola, em particular - e dos psiclogos da infncia - os traba-lhos de Bovet e as experincias ainda inditas que esses trabalhosnos tm sugerido! , cremos que podemos afirmar que existe en-

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    tre as crianas, seno no geral, duas morais, isto , duas maneirasde sentir e de se conduzir que resultam da presso no esprito dacriana de dois tipos fundamentais de relaes interindividuais.

    Essas duas morais que se combinam entre si, mais ou menosintimamente, ao menos em nossas sociedades civilizadas, so mui-to distintas durante a infncia e se reconciliam mais tarde, no cursoda adolescncia. essa anlise desse dado essencial que nos pareceindispensvel para a classificao e o estudo dos diversos procedi-mentos de educao moral.

    Admitimos, juntamente a quase todos os estudiosos da moral,que o respeito constitui o sentimento fundamental que possibilita aaquisio das noes morais. Duas condies, nos diz M. Bovet, sonecessrias e suficientes para que se desenvolva a conscincia de obri-gao: em primeiro lugar, que um indivduo d conselhos a outro e,em segundo lugar, que esse outro respeite aquele de quem emanamos conselhos. Dito de outro modo, suficiente que a criana respeiteseus pais ou professores para que os conselhos prescritos por essessejam aceitos por ela, e mesmo sentidos como obrigatrios.

    Enquanto Kant v o respeito como um resultado de lei eDurkheim um reflexo da sociedade; Bovet mostra, pelo contrrio,que o respeito pelas pessoas constitui um fato primrio e que mes-mo a lei deriva dele. Esse resultado essencial para a educao mo-ral, posto que conduz de uma s vez a situar as relaes de indiv-duo a indivduo acima de no importar qual ensinamento oral eterico parece confirmar tudo o que sabemos sobre a psicologiamoral infantil.

    Porm, se o fenmeno do respeito apresenta assim uma ine-gvel unidade funcional, pode-se, por abstrao, distinguir-se aomenos dois tipos de respeito (o segundo constituindo-se comoum caso limite do primeiro).

    Em primeiro lugar, h o respeito que chamaremos unilateral,porque ele implica uma desigualdade entre aquele que respeita e aquele

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    que respeitado: o respeito do pequeno pelo grande, da crianapelo adulto , do caula pelo irmo mais velho. Esse respeito, o nicoem que normalmente se pensa e no qual Bovet tem insistidomuito especialmente implica uma coao inevitvel do superiorsobre o inferior; , pois, caracterstico de uma primeira forma derelao social, que ns chamaremos de relao de coao.

    Mas existe, em segundo lugar, o respeito que podemos quali-ficar de mtuo, porque os indivduos que esto em contato se con-sideram como iguais e se respeitam reciprocamente.

    Esse respeito no implica, assim, nenhuma coao e caracterizaum segundo tipo de relao social, que chamaremos relao de coopera-o. Essa cooperao constitui o essencial das relaes entre crianasou entre adolescentes num jogo regulamentado, numa organizao deself-government ou numa discusso sincera e bem conduzida.

    So esses dois tipos de respeito que nos parecem explicar aexistncia de duas morais cuja oposio se observa sem cessar nascrianas. De modo geral, pode-se afirmar que o respeito unilate-ral, fazendo par com a relao de coao moral, conduz, comoBovet bem notou, a um resultado especfico que o sentimentode dever. Mas o dever primitivo assim resultante da presso doadulto sobre a criana permanece essencialmente heternomo. Aocontrrio, a moral resultante do respeito mtuo e das relaes decooperao pode caracterizar-se por um sentimento diferente, osentimento do bem, mais interior conscincia e, ento, o ideal dareciprocidade tende a tomar-se inteiramente autnomo (pp. 1-6).

    Em suma, no h exagero em se falar de duas morais que coexis-tem na criana e que as caractersticas de heteronomia e da autonomiaconduzem a avaliaes e comportamentos muito diferentes. Antes deconsiderarmos os fins da educao moral, destacamos, ainda, queessas duas morais se encontram igualmente no adulto, porm, essadualidade verificada desde que enfoquemos a totalidade das socie-dades atualmente conhecidas, graas sociologia e histria.

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    A moral da heteronomia e do respeito unilateral (F. W. Foerster,Schuld und Shne, Mnchen, 1920) parece corresponder moraldas prescries e das interdies rituais (tabus), prprias das soci-edades ditas primitivas, nas quais o respeito aos costumes encar-nados nos ancies prima sobre toda manifestao da personalida-de. A moral da cooperao, ao contrrio, um produto relativa-mente recente da diferenciao social e do individualismo que re-sulta do tipo civilizado de solidariedade.

    Em nossas sociedades, consequentemente, o prprio conte-do da moral , em sntese, o da cooperao. Dito de outro modo,as regras prescritas, mesmo que na forma de deveres categricos ede imperativos de motivos religiosos, no contm, a ttulo de ma-tria, mais do que o ideal de justia e de reciprocidade prprios moral do respeito mtuo. Somente cada um, tendo em vista aeducao que recebeu, pode, no que concerne forma, diferen-ciar o sentimento de dever do livre consentimento prprio dosentimento do bem (pp. 6 e 7).

    No temos que discutir aqui os fins da educao moral, massomente classific-los, para saber a que resultados conduzem os di-ferentes procedimentos pedaggicos que agora vamos estudar. Pelamesma razo, no temos aqui que nos posicionar entre uma moralreligiosa e uma moral laica: tanto numa como noutra se encontramtraos pertencentes moral do respeito unilateral e outros perten-centes moral da cooperao. S difere a motivao. Propomo-nos, assim, a situar a discusso sobre um terreno suficientementeobjetivo e psicolgico para que qualquer um, sejam quais forem osfins a que se prope, possa utilizar nossa anlise.

    Dito isso, o problema o seguinte: entre os procedimentosem curso na educao moral, uns apelam somente para recursosprprios do respeito unilateral e da coao do adulto, outros ape-lam somente para a cooperao entre crianas e outros.

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    Ao se estudar os procedimentos de educao do ponto devista de suas tcnicas gerais, pode-se considerar trs aspectos dis-tintos: conforme sejam fundamentados sobre tal ou qual tipo derespeito ou relaes interindividuais, conforme eles recorrem ouno prpria ao da criana (p. 7).

    Autoridade e liberdade

    O procedimento mais conhecido de educao moral aqueleque recorre exclusivamente ao respeito unilateral: o adulto impesuas regras e as faz observar graas a uma coao espiritual ou emparte material. Comum na pedagogia familiar, embora dificilmen-te nico, esse procedimento encontra sua aplicao mais sistemti-ca no domnio da disciplina escolar tradicional. Que se apoie so-bre uma moral religiosa ou sobre uma moral laica, o procedimen-to o mesmo: para a criana, com efeito, pouco importa que asregras emanem de Deus, dos pais, ou dos adultos em geral, se elasso recebidas de fora e impostas de uma vez por todas.

    Podemos citar como modelo de pedagogia moral fundada naautoridade a bela obra pstuma de Durkheim: A Educao Moral.Esse livro particularmente instrutivo porque em nome de preo-cupaes puramente cientficas (sociolgicas) que o autor procuradescrever uma pedagogia geralmente combatida pelos homens decincia e, em segundo lugar, porque o que Durkheim pretendeformar so personalidades livres e autnomas; ele quer chegar moral da cooperao por meio da autoridade. Como a tese deDurkheim muito representativa da educao moral tradicionalna Europa, convm que a discutamos em detalhes.

    Trs elementos principais constituem a moralidade, segundoDurkheim.

    Primeiramente, o esprito de disciplina: a moral um sistemade regras que se impem conscincia e deve-se habituar a crianaa respeit-las. Em segundo lugar, a ligao aos grupos sociais: a

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    moral implica o elo social e deve-se cultivar a solidariedade nascrianas. E, finalmente, a autonomia da vontade. Porm, como aregra se impe ao indivduo sob a presso dos grupos, ser aut-nomo significa no libertar-se dessa presso dos grupos, mas com-preender sua necessidade de aceit-la livremente. Como satisfazera essas trs exigncias na pedagogia escolar?

    O que concerne disciplina, Durkheim pretende recorrer, so-mente, autoridade do professor e s regras da escola enquantouma instituio adulta. necessrio que a criana sinta uma vontadeque lhe seja superior e necessrio que cada uma das atividades sejalimitada e canalizada por esse sistema de prescries e interdiesque so as regras escolares. necessrio, alm disso, que por inter-mdio do professor s a lei seja respeitada, e toda disciplina devetender a esse culto da lei como tal. Da a necessidade dos castigosescolares, constituindo a sano a maneira tangvel (p. 10 e 11).

    Uma vez que a criana tenha sentido, graas a seu altrusmoespontneo e disciplina adquirida, a unidade e a coerncia dassociedades que so a escola e a famlia, lies apropriadas a con-duziro a descobrir a existncia de grupos maiores aos quais deve-r se adaptar: a cidade e a nao e, enfim, a prpria humanidade.

    Por outro lado, a autonomia se adquire graas a um ensino quefaz a criana compreender a natureza da sociedade e o porqu dasregras morais (p. 12).

    Quando se constata o tempo que a humanidade tomou sim-plesmente para dar lugar livre cooperao ao lado da coao soci-al, podemos nos perguntar se no queimar etapas querer constituirna criana uma moral do respeito mtuo antes de toda moral unila-teral. O puro dever no esgota a vida moral. Mas no necessrioconhec-lo para compreender plenamente o valor desse livre idealque o Bem? O respeito mtuo uma espcie de forma limite deequilbrio para a qual tende o respeito unilateral, e pais e professoresdevem fazer tudo o que for possvel, segundo cremos, para conver-

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    terem-se em colaboradores iguais criana. Cremos, no entanto,que essa possibilidade depende da prpria criana, e pensamos quedurante os primeiros anos um elemento de autoridade fatalmente semescla s relaes que unem as crianas aos adultos.

    A verdade nos parece estar entre e consiste em no negligenciarnem o respeito mtuo nem o respeito unilateral, fontes essenciais davida moral infantil. o que buscam os procedimentos ativos deeducao dos quais falaremos adiante. Mas, antes disso, devemosainda discutir o problema do ensino verbal da moralidade (p. 14).

    Os procedimentos verbais de educao moral

    Do mesmo modo que a escola, h sculos, pensa ser suficientefalar criana para instru-la e formar seu pensamento, os moralistascontam com o discurso para educar a conscincia. Pode-se, na verda-de, distinguir um grande nmero de variaes do ensino da moralpela palavra, do mais verbal ao mais ativo, isto , do mais impreg-nado de coao espiritual adulta ao ma